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    coleo TRANS

    Gilles Deleuze Flix Guattari

    MIL PLATSCapitalismo e Esquizofrenia

    Vol. 2Coordenao da traduo Ana Lcia de Oliveira

    Editora 34 Ltda. - Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777

    Copyright Editora 34 Ltda. (edio brasileira), 1995Mille plateaux Les ditions de Minuit, Paris, 1980

    A FOTOCPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAOINDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

    Ttulo original: Mille plateaux - Capitalisme et schizophrnie

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:Bracher & Malta Produo GrficaReviso tcnica:Luiz Orlandi Reviso:Leny Cordeiro

    1.aEdio - 1995, 1.aReimpresso - 1997

    CIP - Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.Deleuze, Gilles, 1925- 1995

    D39m Mil plats - capitalismo e esquizofrenia / GillesDeleuze, Flix Guattari; traduo de Ana Lcia de Oliveira eLcia Cludia Leo. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995 (Coleo TRANS)

    Traduo de : Mille plateaux - capitalisme et schizophrnie

    ISBN 85-85490-65-9

    1. Psiquiatria social. 2. Esquizofrenia - Aspectos sociais.3. Capitalismo - Aspectos sociais. 4. Psicopatologia. I. Guattari, Flix, 1930-1992.II. Ttulo. III. Ttulo: Capitalismo e esquizofrenia. IV. Srie.

    CDD- 19495-0595 CDU - 1(44)

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    Das abas do livro:

    Dizem que no existe livro que traduza 68: isso falso! Esse livro Milplats. Mil plats o materialismo histrico em ato de nossa poca.

    Contrastando radicalmente com certa deriva atual, os Mil platsreinventam as cincias do esprito (deixando bem claro que, na tradio emque se situam Deleuze e Guattari, geist o crebro), renovando o ponto devista da historicidade, em sua dimenso ontolgica e constitutiva. Os Mil

    plats precedem o ps-moderno e as teorias de hermenutica fraca:

    antecipam uma nova teoria da expresso, um novo ponto de vista ontolgico instrumento graas ao qual se encontram em posio de combater a ps-modernidade, desvelando e dinamitando suas estruturas.

    Trata-se aqui de um pensamento forte, mesmo quando se aplica "fraqueza" do cotidiano. Quanto ao seu projeto, trata-se de apreender ocriado, do ponto de vista da criao. Esse projeto no tem nada de idealista:a fora criadora um rizoma material, ao mesmo tempo mquina e esprito,natureza e indivduo, singularidade e multiplicidade e o palco a histria,de 10.000 a.C. aos dias de hoje. O moderno e o ps-moderno so ruminadose digeridos, e reaparecem contribuindo para fertilizar abundantemente umahermenutica do porvir. Relendo osMil plats anos mais tarde, o que maisimpressionante a incrvel capacidade de antecipao que a se exprime. O

    desenvolvimento da informtica e da automao, os novos fenmenos dasociedade meditica e da interao comunicacional, as novas viaspercorridas pelas cincias naturais e pela tecnologia cientfica, em eletrnica,biologia, ecologia, etc, so apenas previstos, mas j levados em conta comohorizonte epistemolgico, e no como simples tecido fenomenolgicosofrendo uma extraordinria acelerao. Mas a superfcie do quadro no qualse desenrola a dramaturgia do futuro , na verdade, ontolgica umasuperfcie dura e irredutvel, precisamente ontolgica e no transcendental,constitutiva e. no sistmica, criativa e no liberal.

    Se toda filosofia assume e determina sua prpria fenomenologia, umanova fenomenologia se afirma aqui com fora. Ela se caracteriza peloprocesso que remete o mundo produo, a produo subjetividade, asubjetividade potncia do desejo, a potncia do desejo ao sistema deenunciao, a enunciao expresso. E vice-versa. E no interior da linhatraada a partir do "vice-versa", quer dizer, indo da expresso subjetiva superfcie do mundo, historicidade em ato, que se revela o sentido doprocesso (ou ainda a nica ideologia que a imanncia absoluta pode sepermitir): o sentido do processo o da abstrao. O sujeito que produz omundo, na horizontalidade ampliada de suas projees, efetua ele mesmo,

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    cada vez mais, sua prpria realizao. A primeira vista, o horizonte domundo construdo por Deleuze-Guattari parece animista: mas muitorapidamente se v que esse animismo traduz a mais alta abstrao, oprocesso incessante dos agenciamentos maqunicos e das subjetividades seelevando a uma abstrao cada vez mais alta.

    Nesse mundo de cavernas, de dobras, de rupturas, de reconstrues, ocrebro humano se dedica a compreender, antes de mais nada, sua prpriatransformao, seu prprio deslocamento, para alm da conflitualidade,nesse lugar em que reina a mais alta abstrao. Mas essa abstrao

    novamente desejo.

    Antnio Negri

    Este livro foi publicado com o apoio do Ministrio das RelaesExteriores da Frana.

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    NOTA DOS AUTORES:

    Esse livro a continuao e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia, cujoprimeiro tomo O anti-dipo.

    No composto de captulos, mas de "plats". Tentamos explicar maisadiante o porqu (e tambm por que os textos so datados). Em uma certamedida, esses plats podem ser lidos independentemente uns dos outros,exceto a concluso, que s deveria ser lida no final.

    J foram publicados: "Rizoma" (Ed. de Minuit, 1976); "Um s ou vrioslobos" (revista Minuit, n 5); "Como produzir um corpo sem rgos"(Minuit, n" 10). Eles so aqui republicados com modificaes.

    NOTA DO EDITOR:Esta edio brasileira de Mil plats, dividindo a obra original em cinco

    volumes, foi organizada com o acordo dos autores e da editora francesa (Ed.de Minuit).

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    4.20 DE NOVEMBRO DE 1923 - POSTULADOS DA LINGSTICA

    Agenciamento da palavra de ordem

    I. A LINGUAGEM SERIA INFORMATIVA E COMUNICATIVA

    A professora no se questiona quando interroga um aluno, assim comono se questiona quando ensina uma regra de gramtica ou de clculo. Ela"ensigna", d ordens, comanda. Os mandamentos do professor no soexteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. No provm designificaes primeiras, no so a conseqncia de informaes: a ordem seapia sempre, e desde o incio, em ordens, por isso redundncia. Amquina do ensino obrigatrio no comunica informaes, mas impe criana coordenadas semiticas com todas as bases duais da gramtica(masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do

    enunciado-sujeito de enunciao etc). A unidade elementar da linguagem o enunciado a palavra de ordem. Mais do que o senso comum,faculdade que centralizaria as informaes, preciso definir uma faculdadeabominvel que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras deordem. A linguagem no mesmo feita para que se acredite nela, mas paraobedecer e fazer obedecer. "A baronesa no tem a mnima inteno de meconvencer de sua boa f, ela me indica simplesmente aquilo que prefere me

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    ver fingir admitir1". Isso pode ser percebido nos informes da polcia ou dogoverno, que pouco se preocupam com a verossimilhana ou com averacidade, mas que definem muito bem o que deve ser observado eguardado. A indiferena dos comunicados em relao a qualquercredibilidade freqentemente beira a provocao. O que prova que se tratade uma outra coisa. Mas deixemos bem claro: a linguagem no exige maisdo que isso. Spengler observa que as formas fundamentais da fala no so oenunciado de um juzo nem a expresso de um sentimento, mas "o comando,o testemunho de obedincia, a assero, a pergunta, a afirmao ou a

    negao", frases muito curtas que comandam a vida e que so inseparveisdos empreendimentos ou das grandes realizaes: "Pronto?", "Sim","Vamos2".

    1 Georges Darien, Lpaulette, 10-18, p.435. Ou Zola, La bete bumaine, Gallimard,p.188: "E ela dizia isso, no para convenc-lo, mas unicamente para adverti-lo de que eladevia ser inocente aos olhos dos outros". Esse tipo de frase nos parece caracterstico doromance em geral, muito mais do que a frase informativa "a marquesa saiu s cinco horas".

    2Spengler,Lhomme et la technique, Gallimard, Ides, p.103.

    As palavras no so ferramentas; mas damos s crianas linguagem,canetas e cadernos, assim como damos ps e picaretas aos operrios. Umaregra de gramtica um marcador de poder, antes de ser um marcadorsinttico. A ordem no se relaciona com significaes prvias, nem com umaorganizao prvia de unidades distintivas, mas sim o inverso. A informao apenas o mnimo estritamente necessrio para a emisso, transmisso eobservao das ordens consideradas como comandos. preciso estarsuficientemente informado para no confundir Au feu! (Fogo!) comAu jeu!(Jogo!), ou para evitar a situao deveras desagradvel do professor e doaluno segundo Lewis Carroll (o professor lana uma questo do alto daescadaria, transmitida pelos valetes que a deformam a cada degrau, ao passoque o aluno, embaixo, no ptio, envia uma resposta, ela mesma deformada, acada etapa da subida). A linguagem no a vida, ela d ordens vida; a vidano fala, ela escuta e aguarda3. Em toda palavra de ordem, mesmo de um paia seu filho, h uma pequena sentena de morte um Veredito, dizia Kafka.

    O difcil precisar o estatuto e a extenso da palavra de ordem. No se tratade uma origem da linguagem, j que a palavra de ordem apenas umafuno-linguagem, uma funo coextensiva linguagem. Se a linguagemparece sempre supor a linguagem, se no se pode fixar um ponto de partidano-lingstico, porque a linguagem no estabelecida entre algo visto (ousentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Noacreditamos, a esse respeito, que a narrativa consista em comunicar o que seviu, mas em transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir dizer.

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    que...?", prometo dizendo "eu te amo...", ordeno empregando o imperativo...etc). So esses atos, interiores fala, essas relaes imanentes dosenunciados com os atos, que foram chamados de pressupostos implcitos ouno discursivos, diferenciando-se das suposies sempre explicitveis nasquais um enunciado remete a outros enunciados ou, antes, a uma aoexterior (Ducrot). O destaque da esfera do performativo, e da esfera maisvasta do ilocutrio, apresentava trs importantes conseqncias: 1) Aimpossibilidade de conceber a linguagem como um cdigo, visto que este acondio que torna possvel uma explicao; e a impossibilidade de

    conceber a fala como a comunicao de uma informao: ordenar,interrogar, prometer, afirmar, no informar um comando, uma dvida, umcompromisso, uma assero, mas efetuar esses atos especficos imanentes,necessariamente implcitos; 2) A impossibilidade de definir uma semntica,uma sintaxe ou mesmo uma fonemtica, como zonas cientficas delinguagem que seriam independentes da pragmtica; a pragmtica deixa deser uma "cloaca", as determinaes pragmticas deixam de estar submetidas alternativa: ou se voltar para o exterior da linguagem, ou responder acondies explcitas sob as quais elas so sintaxizadas e semantizadas; apragmtica se torna, ao contrrio, o pressuposto de todas as outrasdimenses, e se insinua por toda parte; 3) A impossibilidade de manter adistino lngua-fala, visto que a fala no pode mais ser definida pela

    simples utilizao individual e extrnseca de uma significao primeira, oupela aplicao varivel de uma sintaxe prvia: ao contrrio, so o sentido e asintaxe da lngua que no se deixam definir independentemente dos atos defala que ela pressupe6.

    6 William Labov apontou a contradio, ou pelo menos o paradoxo, no qualdesembocava a distino lngua-fala: define-se a lngua como "a parte social" da linguagem,remete-se a fala s variaes individuais; mas estando a parte social fechada sobre si mesma,disso resulta necessariamente que um nico indivduo testemunhar em direito pela lngua,independentemente de qualquer dado exterior, ao passo que a fala s ser descoberta em umcontexto social. De Saussure a Chomsky, o mesmo paradoxo: "O aspecto social dalinguagem se deixa estudar na intimidade de um gabinete, ao passo que seu aspecto individualexige uma pesquisa no interior da comunidade" (Sociolinguistique, Ed. de Minuit, p.259 sq.,361 sq.).

    verdade que ainda no se consegue compreender bem como possvelfazer, dos atos de fala ou pressupostos implcitos, uma funo coextensiva linguagem. Compreende-se menos ainda tal operao se partimos doperformativo (o que feito quando "o" falamos) para ir, por extenso, at oilocutrio (o que feito quando falamos). Pois pode-se sempre evitar essaextenso e encerrar o performativo nele mesmo, explicando-o por caracteres

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    dado que este remete o sistema da lngua compreenso de um indivduo de direito, e osfatores sociais, aos indivduos de fato enquanto falantes.

    porque esse carter no suficiente por ele mesmo, e pode, ainda, serextrnseco: assim, ou se fala demais ou muito pouco sobre ele. O cartersocial da enunciao s intrinsicamente fundado se chegamos a mostrarcomo a enunciao remete, por si mesma, aos agenciamentos coletivos.Assim, compreende-se que s h individuao do enunciado, e dasubjetivao da enunciao, quando o agenciamento coletivo impessoal o

    exige e o determina. Esse precisamente o valor exemplar do discursoindireto, e sobretudo do discurso indireto "livre": no h contornosdistintivos ntidos, no h, antes de tudo, insero de enunciadosdiferentemente individuados, nem encaixe de sujeitos de enunciaodiversos, mas um agenciamento coletivo que ir determinar como suaconseqncia os processos relativos de subjetivao, as atribuies deindividualidade e suas distribuies moventes no discurso. No a distinodos sujeitos que explica o discurso indireto; o agenciamento, tal comosurge livremente nesses discursos, que explica todas as vozes presentes emuma voz, as risadas de meninas em um monlogo de Charlus, as lnguas emuma lngua, em suma, as palavras de ordem. O assassino americano "Son ofSam" matava sob o impulso de uma voz ancestral, mas que passava, ela

    mesma, pela voz de um co. a noo de agenciamento coletivo deenunciao que se torna a mais importante, j que deve dar conta do cartersocial. Ora, podemos, sem dvida, definir o agenciamento coletivo pelocomplexo redundante do ato e do enunciado que o efetua necessariamente.Mas temos a apenas uma definio nominal; e no estamos nem mesmo emcondies de justificar nossa posio precedente segundo a qual aredundncia no se reduz a uma simples identidade (ou segundo a qual noh simples identidade do enunciado e do ato). Se se quer passar a umadefinio real do agenciamento coletivo, perguntar-se- em que consistem osatos imanentes linguagem, atos que esto em redundncia com osenunciados ou criam palavras de ordem.

    Parece que esses atos se definem pelo conjunto das transformaes

    incorpreas em curso em uma sociedade dada, e que se atribuem aos corposdessa sociedade. Podemos dar palavra "corpo" o sentido mais geral(existem corpos morais, as almas so corpos etc); devemos, entretanto,distinguir as aes e as paixes que afetam esses corpos, e os atos, que soapenas seus atributos no corpreos, ou que so "o expresso" de umenunciado. Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chegaprecisamente ao agenciamento jurdico, e d como exemplo a sentena do

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    magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade, o que sepassa antes o crime pelo qual se acusa algum e o que se passa depois a execuo da pena do condenado so aes-paixes afetando oscorpos (corpo da propriedade, corpo da vtima, corpo d condenado, corpoda priso); mas a transformao do acusado em condenado um puro atoinstantneo ou um atributo incorpreo, que o expresso da sentena domagistrado10. A paz e a guerra so estados ou misturas de corpos muitodiferentes; mas o decreto de mobilizao geral exprime uma transformaoincorprea e instantnea dos corpos. Os corpos tm uma idade, uma

    maturao, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria,determinada categoria de idade, so transformaes incorpreas que seatribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. "Voc no mais uma criana...": esse enunciado diz respeito a uma transformaoincorprea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas aes epaixes. A transformao incorprea reconhecida por sua instantaneidade,por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e doefeito que ela produz; eis por que as palavras de ordem so estritamentedatadas, hora, minuto e segundo, e valem to logo datadas. O amor umamistura de corpos que pode ser representada por um corao atravessado poruma flecha, por uma unio de almas etc; mas a declarao "Eu te amo"expressa um atributo no-corpreo dos corpos, tanto do amante quanto do

    amado. Comer po e beber vinho so misturas de corpos; comunicar com oCristo tambm uma mistura entre corpos propriamente espirituais, nomenos "reais". Mas a transformao do corpo do po e do vinho em corpo esangue do Cristo a pura expresso de um enunciado, atribudo aos corpos.Em um seqestro de avio, a ameaa do bandido que aponta um revlver evidentemente uma ao; da mesma forma que a execuo de refns, casoocorra. Mas a transformao dos passageiros em refns, e do corpo-avio emcorpo-priso, uma transformao incorprea instantnea, um mass-mediaact no sentido em que os ingleses falam de speech-act. As palavras de ordemou os agenciamentos de enunciao em uma sociedade dada em suma, oilocutrio designam essa relao instantnea dos enunciados com astransformaes incorpreos ou atributos no-corpreos que eles expressam.

    10Ducrot, p.77: "Qualificar uma ao como crime (roubo, abuso de confiana, chantagemetc) no , no sentido que damos a esse termo, apresent-la como um ato, visto que a situaojurdica de culpabilidade, que define o crime, c considerada como resultante de tais ou quaisconseqncias outras da atividade descrita: tal atividade considerada como passvel depunio por prejudicar os outros, a ordem, a sociedade etc. O enunciado de uma sentena porum juiz pode, ao contrrio, ser considerado como um ato jurdico, visto que nenhum efeitovem se intercalar entre a palavra do juiz e a transformao do acusado em condenado".

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    saber, a produo de bens e de meios dessa produo considerados por elesmesmos. Da mesma forma, se as expresses so consideradas ideolgicas, aforma de expresso no o , e se encontra reduzida linguagem comoabstrao, como disposio de um bem comum. Conseqentemente,pretende-se caracterizar os contedos e as expresses por meio de todas aslutas e conflitos que os atravessam sob duas formas diferentes, mas essasprprias formas so, por sua vez, isentas de qualquer luta e de qualquerconflito, e sua relao permanece completamente indeterminada17. S sepoderia determin-la remanejando a teoria da ideologia, e fazendo desde

    logo intervir as expresses e os enunciados na produtividade, sob a forma deuma produo de sentido ou de um valor-signo. A categoria de produo temaqui, sem dvida, a vantagem de romper com os esquemas de representao,de informao e de comunicao. Mas seria ela mais adequada do que essesesquemas? Sua aplicao linguagem muito ambgua, dado que se recorrea um milagre dialtico constante que transforma a matria em sentido; ocontedo, em expresso; o processo social, em sistema significante.

    17 assim que Stalin, em seu clebre texto acerca da lingstica, pretende destacar duasformas neutras, que servem indiferentemente a toda a sociedade, a todas as classes e a todosos regimes: por um lado, os instrumentos e mquinas como puro meio de produzir quaisquerbens; por outro, a linguagem como puro meio de informao e de comunicao. At mesmoBakhtin define a linguagem como forma da ideologia, mas esclarece que a forma de ideologiano , ela mesma, ideolgica.

    Em seu aspecto material ou maqunico, um agenciamento no nos pareceremeter a uma produo de bens, mas a um estado preciso de mistura decorpos em uma sociedade, compreendendo todas as atraes e repulses, assimpatias e as antipatias, as alteraes, as alianas, as penetraes eexpanses que afetam os corpos de todos os tipos, uns em relao aos outros.Um regime alimentar, um regime sexual regulam, antes de tudo, misturas decorpos obrigatrias, necessrias ou permitidas. At mesmo a tecnologia erraao considerar as ferramentas nelas mesmas: estas s existem em relao smisturas que tornam possveis ou que as tornam possveis. O estriboengendra uma nova simbiose homem-cavalo, que engendra, ao mesmotempo, novas armas e novos instrumentos. As ferramentas no soseparveis das simbioses ou amlgamas que definem um agenciamentomaqunico Natureza-Sociedade. Pressupem uma mquina social que asselecione e as tome em seu phylum: uma sociedade se define por seusamlgamas e no por suas ferramentas. E, da mesma forma, em seu aspectocoletivo ou semitico, o agenciamento no remete a uma produtividade delinguagem, mas a regimes de signos, a uma mquina de expresso cujasvariveis determinam o uso dos elementos da lngua. Esses elementos, assim

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    parte da linguagem, mas diagramtica e sobrelinear. O contedo no umsignificado nem a expresso um significante, mas ambos so as variveis doagenciamento. Enquanto as determinaes pragmticas, mas tambmsemnticas, sintticas e fonolgicas, no forem diretamente relacionadas aosagenciamentos de enunciao dos quais elas dependem, nada ter sido feito.A mquina abstrata de Chomsky permanece ligada a um modeloarborescente, e ordem linear dos elementos lingsticos nas frases e suacombinatria. Mas desde que levamos em conta os valores pragmticos ouas variveis interiores, principalmente em funo do discurso indireto, somos

    forados a fazer intervir "hiperfrases", ou a construir "objetos abstratos"(transformaes incorpreas) que implicam uma sobrelinearidade, isto , umplano cujos elementos no possuem mais ordem linear fixa: modelorizoma18. Desse ponto de vista, a interpenetrao da lngua com o camposocial e com os problemas polticos encontra-se no mago da mquinaabstrata, e no na superfcie. A mquina abstrata enquanto relacionada aodiagrama do agenciamento nunca linguagem pura, exceto por erro deabstrao. a linguagem que depende da mquina abstrata, e no o inverso.No mximo possvel distinguir, nela, dois estados de diagrama: um no qualas variveis de contedo e de expresso se distribuem segundo sua formaheterognea em pressuposio recproca em um plano de consistncia; outro,no qual no se pode nem mesmo distingui-las, porque a variabilidade do

    mesmo plano fez com que este predominasse precisamente sobre a dualidadedas formas, tornando-as "indiscernveis". (O primeiro estado remeteria amovimentos de desterritorializao ainda relativos, ao passo que o segundoteria alcanado um limiar absoluto da desterritorializao.)

    18Sobre esses problemas, cf. J.M. Sadock, "Hypersentences", Phil. Diss. Univ. of Illinois,1968; D. Wunderlich, "Pragmatique, situation d'nonciation et Deixis", Langages, Larousse,junho 1972; e sobretudo S.K. Saumjan, que prope um modelo de objetos abstratos, fundadossobre a operao de aplicao, M.G.A. modelo gerativo aplicativo (Langages, maro1974). Saumjan toma Hjelmslev como referncia: a fora deste a de ter concebido a formade expresso e a forma de contedo como duas variveis completamente relativas, em ummesmo plano, como "os funtivos de uma mesma funo" (Prolgomnes une thorie dulangage, p.85). Esse avano em direo a uma concepo diagramtica da mquina abstrata entretanto contrariado pelo fato de Hjelmslev conceber ainda a distino da expresso e do

    contedo no modo significante-significado, e manter assim a dependncia da mquinaabstrata em relao lingstica.

    III. HAVERIA CONSTANTES OU UNIVERSAIS DA LNGUAQUE PERMITIRIAM DEFINI-LA COMO UM SISTEMA HOMOGNEO

    A questo das invariantes estruturais e a prpria idia de estrutura inseparvel de tais invariantes, atmicas ou relacionais essencial para a

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    intervalo). Construir o continuam de Eu juro! com as transformaescorrespondentes. Este o ponto de vista da pragmtica; mas esta se tornouinterior lngua, imanente, e compreende a variao de quaisquer elementoslingsticos. Por exemplo, a linha dos trs processos de Kafka: o processo depai, em famlia; o processo de noivado, no hotel; o processo de tribunal.Tendemos sempre a buscar uma "reduo": tudo ser explicado pela situaoda criana face a seu pai, ou a do homem em relao castrao, ou a docidado em relao lei. Mas assim nos contentamos em destacar umapseudo-constante de contedo, o que no vale mais do que extrair uma

    pseudo-constante de expresso. Colocar em variao deve nos fazer evitaresses perigos, )a que isso constri um continuum ou um mdium que nocomportam incio nem fim. No se confundir a variao contnua com ocarter contnuo ou descontnuo da prpria varivel: palavra de ordem,variao contnua para uma varivel descontnua... Uma varivel pode sercontnua em uma parte de seu trajeto, depois pular ou saltar sem que suavariao contnua seja por isso afetada, impondo um desenvolvimentoausente como uma "continuidade alternativa", virtual e entretanto real.

    Uma constante, uma invariante se definem menos por sua permanncia esua durao do que por sua funo de centro, mesmo relativo. No sistematonal ou diatnico da msica, as leis de ressonncia e de atrao determinam,em todos os modos, centros vlidos, dotados de estabilidade e de poder

    atrativo. Esses centros so assim organizadores de formas distintas,distintivas, claramente estabelecidas durante determinadas pores detempo: sistema centrado, codificado, linear, de tipo arborescente. verdadeque o "modo" menor, em virtude da natureza de seus intervalos e da menorestabilidade de seus acordes, confere msica tonal um carter fugidio,evasivo, descentrado. Isso explica a ambigidade de ser submetido aoperaes que o alinham pelo modelo ou padro maior, mas entretantotambm a de fazer valer uma certa potncia modal irredutvel tonalidade,como se a msica viajasse, e reunisse todas as ressurgncias, fantasmas dooriente, recantos imaginrios, tradies de todas as partes. Porm, otemperamento, o cromatismo temperado, que apresenta uma outraambigidade, ainda maior: a de estender a ao do centro aos tons maislongnquos, mas igualmente preparar a desagregao do princpio central,substituir as formas centrais pelo desenvolvimento contnuo de uma formaque no pra de se dissolver ou de se transformar. Quando odesenvolvimento subordina a forma e se estende ao conjunto, como emBeethoven, a variao comea a se liberar e se identifica criao.Entretanto, preciso esperar que o cromatismo se desencadeie, se torne umcromatismo generalizado, se volte contra o temperamento, e afete no

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    funciona ainda por meio de constante e forma um subsistema; ela coloca emestado de variao o sistema das variveis da lngua pblica.

    23 assim que Labov tende a definir sua noo de "regras variveis ou facultativas", em oposios regras constantes: no simplesmente uma freqncia constatada, mas uma quantidade especfica queaponta a probabilidade de freqncia ou de aplicao da regra (cf.Le parler ordinaire, Ed. de Minuit, t.II,p.44 sq).

    24 Cf. o artigo de Gilbert Rouget, "Un chromatisme africain", in LHomme, setembro de 1961 (quetraz o disco "Chants rituels Daom" como encarte).

    Eis o que queramos dizer: um cromatismo generalizado... Colocar emvariao contnua quaisquer elementos uma operao que talvez faa surgirnovas distines, mas no reconhecendo qualquer de seus procedimentoscomo adquirido, no atribuindo a si mesma nenhum destes previamente. Aocontrrio, essa operao refere-se, em princpio, simultaneamente voz, fala, lngua, msica. Nenhuma razo para fazer distines prvias e deprincpio. A lingstica em geral ainda no abandonou uma espcie de modomaior, um tipo de escala diatnica, um estranho gosto pelas dominantes,constantes e universais. Durante esse perodo, todas as lnguas esto emvariao contnua imanente: nem sincronia nem diacronia, mas assincronia,cromatismo como estado varivel e contnuo da lngua. Por uma lingsticacromtica, que d ao pragmatismo suas intensidades e valores.

    O que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do

    mundo, precisamente o procedimento de uma variao contnua. Ora,dentre todos os dualismos instaurados pela lingstica, existem poucosmenos fundados do que aquele que separa a lingstica da estilstica: sendoum estilo no uma criao psicolgica individual, mas um agenciamento deenunciao, no ser possvel impedi-lo de fazer uma lngua dentro de umalngua. Considere-se uma lista arbitrria de autores que amamos: citamosmais uma vez Kafka, Beckett, Gherasim Luca, Jean-Luc Godard... Observa-se que esto mais ou menos na situao de um certo bilingismo: Kafka,

    judeu tcheco escrevendo em alemo; Beckett, irlands escrevendosimultaneamente em ingls e em francs; Luca, de origem romena; Godard esua vontade de ser suo. Mas apenas uma coincidncia, uma ocasio, e aocasio pode ser encontrada em outro lugar. Observa-se tambm que muitos

    dentre eles no so somente escritores ou primeiramente escritores (Beckette o teatro e a televiso; Godard e o cinema, a televiso; Luca e suasmquinas audiovisuais): porque, quando submetemos os elementoslingsticos sejam submetidos a um tratamento de variao contnua, quandointroduzimos na linguagem uma pragmtica interna, somos necessariamentelevados a tratar da mesma maneira os elementos no-lingsticos, gestos,instrumentos, como se os dois aspectos da pragmtica se reunissem, na

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    intensivo e cromtico da lngua. Uma expresso to simples como e... poderepresentar o papel de tensor atravs de toda a linguagem. Nesse sentido, oemenos uma conjuno do que a expresso atpica de todas as conjunespossveis que coloca em variao contnua. Eis porque o tensor no se deixareduzir nem a uma constante nem a uma varivel, mas assegura a variaoda varivel, subtraindo a cada vez o valor da constante (n-1). Os tensores nocoincidem com qualquer categoria lingstica; so entretanto valorespragmticos essenciais aos agenciamentos de enunciao bem como aosdiscursos indiretos29.

    29 Cf. Vidal Sephiha, "Introduction ltude de 1'intensif", Langages, maro de 1973. Eum dos primeiros estudos sobre as tenses e variaes atpicas da linguagem, tal comoaparecem principalmente nas lnguas ditas menores.

    Acredita-se, s vezes, que essas variaes no expressam o trabalhocomum da criao na lngua, e permanecem marginais, reservadas aospoetas, s crianas e aos loucos. por isso que se quer definir a mquinaabstrata pelas constantes, que s podem conseqentemente ser modificadassecundariamente, por efeito cumulativo ou mutao sintagmtica. Mas amquina abstrata da lngua no universal ou mesmo geral, ela singular;no atual, mas virtual-real; no possui regras obrigatrias ou invariveis,mas regras facultativas que variam incessantemente com a prpria variao,como em um jogo onde cada jogada se basearia na regra. Da acomplementaridade das mquinas abstratas e dos agenciamentos deenunciao, a presena de umas nas outras. Isto ocorre porque a mquinaabstrata como o diagrama de um agenciamento; traa as linhas de variaocontnua, ao passo que o agenciamento concreto trata das variveis, organizasuas relaes bastante diversas em funo dessas linhas. O agenciamentonegocia as variveis em tal ou qual variao, segundo tal ou qual grau dedesterritorializao, para determinar aquelas que estabelecero relaesconstantes ou obedecero a regras obrigatrias, e aquelas, ao contrrio, queserviro de matria fluente variao. No se concluir que o agenciamentoope somente uma certa resistncia ou inrcia mquina abstrata; poismesmo as "constantes" so essenciais determinao das virtualidades pelas

    quais a variao passa; so, elas mesmas, facultativamente escolhidas. Emcerto nvel, h freio e resistncia, mas, em outro nvel de agenciamento, noh mais do que um vaivm entre os diversos tipos de variveis e corredoresde passagem percorridos nos dois sentidos: ao mesmo tempo que todas asvariveis efetuam a mquina segundo o conjunto de suas relaes. No hcomo distinguir, portanto, uma lngua coletiva e constante, e atos de fala,variveis e individuais. A mquina abstrata sempre singular, designada porum nome prprio, de grupo ou de indivduo, ao passo que o agenciamento de

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    enunciao sempre coletivo, no indivduo como no grupo. Mquinaabstrata-Lnin e agenciamento coletivo-bolchevique... O mesmo vlidopara a literatura, para a msica. Nenhum primado do indivduo, mas in-dissolubilidade de um Abstrato singular e de um Concreto coletivo. Amquina abstrata no existe mais independentemente do agenciamento,assim como o agenciamento no funciona independentemente da mquina.

    IV. S SE PODERIA ESTUDAR CIENTIFICAMENTE A LNGUA SOB AS

    CONDIES DE UMA LNGUA MAIOR OU PADRO

    Visto que todo mundo sabe que uma lngua uma realidade varivelheterognea, o que significa a exigncia dos lingistas de traar um sistemahomogneo para tornar possvel o estudo cientfico? Trata-se de extrair dasvariveis um conjunto de constantes, ou de determinar relaes constantesentre as variveis (como j se pode observar na comutatividade dosfonologistas). Mas o modelo cientfico atravs do qual a lngua se tornaobjeto de estudo no seno um modelo poltico atravs do qual a lngua por sua vez homogeneizada, centralizada, padronizada, lngua de poder,maior ou dominante. intil o lingista recorrer cincia, cincia pura mas essa no seria a primeira vez que a ordem da cincia viria garantir as

    exigncias de uma outra ordem. O que a gramaticalidade e o signo S, osmbolo categorial que domina os enunciados? um marcador de poderantes de ser um marcador sinttico, e as rvores chomskianas estabelecemrelaes constantes entre variveis de poder. Formar frases gramaticalmentecorretas , para o indivduo normal, a condio prvia para qualquersubmisso s leis sociais. Ningum pode ignorar a gramaticalidade; aquelesque a ignoram pertencem a instituies especiais. A unidade de uma lngua, antes de tudo, poltica. No existe lngua-me, e sim tomada de poder poruma lngua dominante, que ora avana sobre uma grande frente, ora se abatesimultaneamente sobre centros diversos. Podem-se conceber vrias maneirasde uma lngua se homogeneizar, se centralizar: a maneira republicana no necessariamente a mesma que a real, e no a menos dura30. Mas oempreendimento cientfico de destacar constantes e relaes constantessempre se duplica no empreendimento poltico de imp-las queles quefalam, e de transmitir palavras de ordem.

    Speak white and loudsim que admirvel lngua

    para enquadrardar ordens

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    fixar a hora da morte no trabalhoe da pausa que arrefece...

    30 Sobre as extenses e difuses dos estados de lngua, tanto em "mancha de leo",quanto na forma de "bandos aerotransportados", cf. Bertil Malmberg,Les nouvelles tendancesde la linguistique, PUF, cap. III (invocando os muito importantes estudos de N. Lindqvistsobre a dialetologia). Seriam necessrios, ento, estudos comparativos concernentes maneirapela qual se operam as homogeneizaes e centralizaes das diversas lnguas maiores. Aesse respeito, a histria lingstica do francs no absolutamente igual do ingls; a relaocom a escrita como forma de homogeneizao tampouco a mesma. Para o francs, lngua

    centralizada por excelncia, reportaremos anlise de M. de Certeau, D. Julia, J.Revel, Unepolitiqite de Ia langue, Gallimard. Essa anlise refere-se a um perodo muito curto, no fim dosculo XVIII, em torno do abade Gregrio, e marca entretanto dois momentos distintos: um,em que a lngua central se ope aos dialetos rurais, como a cidade ao campo, a capital provncia; outro, em que se ope aos "idiomas feudais", mas tambm linguagem dosemigrados, como a Nao se ope a tudo o que lhe estrangeiro ou inimigo (p. 160 sq.: "igualmente evidente que a recusa dos dialetos resulta de uma incapacidade tcnica deapreender leis estveis na oralidade ou nas falas regionais.").

    Assim, seria preciso distinguir dois tipos de lnguas, "altas" e "baixas",maiores e menores? Umas se definiriam precisamente pelo poder dasconstantes; outras, pela potncia da variao. No queremos simplesmenteopor a unidade de uma lngua maior a uma multiplicidade de dialetos. ,antes, cada dialeto que se encontra afetado por uma zona de transio e devariao, ou melhor, cada lngua menor que se encontra afetada por umazona de variao propriamente dialetal. Segundo Malmberg, raramente sedistinguem fronteiras ntidas nos mapas dos dialetos, mas zonas limtrofes etransicionais, de indiscernibilidade. Diz-se igualmente que "a lnguaquebequense to rica em modulaes e variaes de sotaques regionais e

    jogos de acentuaes tnicas que, sem entretanto exagerar, parece, s vezes,que seria melhor preservada pela notao musical do que por todo o sistemade ortografia"31. A prpria noo de dialeto bastante incerta. Alm disso, relativa, porque preciso saber em relao a que lngua maior ela exerce suafuno: por exemplo, a lngua quebequense no avaliada apenas emrelao a um francs padro, mas em relao ao ingls maior do qual ela

    toma emprestados todos os tipos de elementos fonticos e sintticos parafaz-los variar. Os dialetos bantos no so avaliados somente em relao auma lngua-me, mas em relao ao africner como lngua maior, e ao inglscomo lngua contra-maior preferida pelos negros32. Em suma, no a noode dialeto que esclarece a de lngua menor, mas ao contrrio, a lnguamenor que define os dialetos por suas prprias possibilidades de variao.Assim, perguntamos, seria preciso distinguir lnguas maiores e lnguasmenores, seja se colocando na situao regional de um bilingismo ou de um

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    movimentos que escapam necessariamente do nvel padro da lngua. Sempre a propsito do black-english, LeRoi Jones mostra a que ponto essas duas direes conjuntas aproximam a lngua da msica (Lepeuple du blues, Gallimard, p.44-45, e todo o captulo III). Mais geralmente, cabe lembrar a anlise quePierre Boulez faz de um duplo movimento musical, dissoluo da forma, sobrecarga ou proliferaodinmicas: Par volont et par hasard, Ed. du Seuil p.22,24.

    Subtrair e colocar em variao, diminuir e colocar em variao, uma se mesma operao. No existe uma pobreza e uma sobrecarga quecaracterizariam as lnguas menores em relao a uma lngua maior oupadro; h uma sobriedade e uma variao que so como um tratamentomenor da lngua padro, um devir-menor da lngua maior. O problema no o de uma distino entre lngua maior e lngua menor, mas o de um devir. Aquesto no a de se reterritorializar em um dialeto ou um patu, mas dedesterritorializar a lngua maior. Os negros americanos no opem o blackao ingls, fazem com o americano, que sua prpria lngua, um black-english. As lnguas menores no existem em si: existindo apenas em relaoa uma lngua maior, so igualmente investimentos dessa lngua para que elase torne, ela mesma, menor. Cada um deve encontrar a lngua menor, dialetoou antes idioleto, a partir da qual tornar menor sua prpria lngua maior.Essa a fora dos autores que chamamos "menores", e que so os maiores,os nicos grandes: ter que conquistar sua prpria lngua, isto , chegar a essa

    sobriedade no uso da lngua maior, para coloc-la em estado de variaocontnua (o contrrio de um regionalismo). em sua prpria lngua que se bilnge ou multilinge. Conquistar a lngua maior para nela traar lnguasmenores ainda desconhecidas. Servir-se da lngua menor parapor em fuga alngua maior. O autor menor o estrangeiro em sua prpria lngua. Se bastardo, se vive como bastardo, no por um carter misto ou mistura delnguas, mas antes por subtrao e variao da sua, por muito ter entesadotensores em sua prpria lngua.

    A noo de minoria, com suas remisses musicais, literrias,lingsticas, mas tambm jurdicas, polticas, bastante complexa. Minoria emaioria no se opem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implicauma constante, de expresso ou de contedo, como um metro padro em

    relao ao qual ela avaliada. Suponhamos que a constante ou metro sejahomem-branco-masculino-adulto-habitan-te das cidades-falante de umalngua padro-europeu-heterossexual qualquer (o Ulisses de Joyce ou deEzra Pound). evidente que "o homem" tem a maioria, mesmo se menosnumeroso que os mosquitos, as crianas, as mulheres, os negros, oscamponeses, os homossexuais... etc. porque ele aparece duas vezes, umavez na constante, uma vez na varivel de onde se extrai a constante. A

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    representativo do padro majoritrio. Erigindo a figura de uma conscinciauniversal minoritria, dirigimo-nos a potncias de devir que pertencem a umoutro domnio, que no o do Poder e da Dominao. a variao contnuaque constitui o devir minoritrio de todo o mundo, por oposio ao Fatomajoritrio de Ningum. O devir minoritrio como figura universal daconscincia denominado autonomia. Sem dvida no utilizando umalngua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto que nostornamos revolucionrios; utilizando muitos dos elementos de minoria,conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especfico

    autnomo, imprevisto36.34 Yann Moulier, prefcio a Ouvriers et Capital, de Mario Tronti, Bourgois.35P.P. Pasolini,Lexprience hrtique, p.62.36 Cf. O manifesto do "Coletivo Estratgia" a propsito da lngua quebequense, em

    Change n.30, denuncia "o mito da lngua subversiva", como se bastasse um estado de minoriapara possuir, com isso, uma posio revolucionria ("essa equao mecanicista deriva de umaconcepo populista da lngua. (...) No porque um indivduo fala a lngua da classetrabalhadora que ele defende as posies dessa classe. (....) A tese segundo a qual o joual*possui uma fora subversiva, contracultural, perfeitamente idealista", p.188.

    * Palavra utilizada em Quebec para designar, de forma geral, as diferenas (fonticas,lexicais, sintticas) do francs popular canadense. (N. das T.)

    O modo maior e o modo menor so dois tratamentos da lngua: um,consistindo em extrair dela constantes; outro, em coloc-la em variao

    contnua. Mas, medida que a palavra de ordem a varivel de enunciaoque efetua a condio da lngua e define o uso dos elementos segundo um ououtro tratamento, ento palavra de ordem que se deve voltar, como anica "metalinguagem" capaz de apreender essa dupla direo, esse duplotratamento das variveis. Se o problema das funes da linguagem geralmente mal formulado, porque se deixa de lado essa varivel-palavrade ordem, que subordina todas as funes possveis. Segundo as indicaesde Canetti, podemos partir da seguinte situao pragmtica: a palavra deordem sentena de morte, implica sempre uma sentena como essa, mesmomuito atenuada, tornada simblica, inicitica, temporria... etc. A palavra deordem traz uma morte direta quele que recebe a ordem, uma morte eventualse ele no obedece ou, antes, uma morte que ele mesmo deve infligir, levarpara outra parte. Uma ordem do pai a seu filho "voc far isso", "vocno far aquilo" no pode ser separada da pequena sentena de morte queo filho experimenta em um ponto de sua pessoa. Morte, morte, esse o nico

    julgamento, e o que faz do julgamento um sistema. Veredito.Mas a palavrade ordem tambm outra coisa, inseparavelmente ligada a essa: como umgrito de alarme ou uma mensagem de fuga. Seria simples demais dizer que afuga uma reao palavra de ordem; encontra-se, antes, compreendida

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    nesta, como sua outra face em um agencia-mento complexo, seu outrocomponente. Canetti tem razo ao invocar o rugido do leo, que enuncia aomesmo tempo a fuga e a morte37. A palavra de ordem tem dois tons. Oprofeta no recebe menos as palavras de ordem ao fugir do que ao desejar amorte: o profetismo judeu juntou o desejo de estar morto e o impulso de fugacom a palavra de ordem divina.

    37 Elias Canetti,Massa e potncia. (Cf. os dois captulos essenciais correspondentes aosdois aspectos da palavra de ordem, "A ordem" e "A metamorfose"; e, sobretudo, p.332-333,quanto descrio da peregrinao a Meca, com seu duplo aspecto codificado: petrificaomorturia e fuga em pnico.)

    Ora, se consideramos o primeiro aspecto da palavra de ordem, isto , amorte como expresso do enunciado, percebemos que corresponde sexigncias precedentes: a morte tenta concernir essencialmente aos corpos,se atribuir aos corpos, deve sua imediatidade, sua instantaneidade, ocarter autntico de uma transformao incorprea. O que a precede e o quea ela se segue pode ser um longo sistema de aes e de paixes, um lentotrabalho dos corpos; em si mesma, ela no nem ao nem paixo, mas puroato, pura transformao que a enunciao junta ao enunciado, sentena. Essehomem est morto... Voc j est morto quando recebe a palavra de ordem...A morte, com efeito, est em toda parte como essa fronteira intransponvel,ideal, que separa os corpos, suas formas e seus estados, e como a condio,mesmo inicitica, mesmo simblica, pela qual um sujeito deve passar paramudar de forma ou de estado. nesse sentido que Canetti fala da"enantiomorfose": um regime que remete a um Senhor imvel e hiertico,legislando a todo momento por meio de constantes, proibindo ou limitandoestritamente as metamorfoses, fixando para as figuras contornos ntidos eestveis, opondo duas a duas as formas, impondo aos sujeitos que morrampara que passem de uma a outra. sempre por algo de incorpreo que umcorpo se separa e se distingue de um outro. Enquanto extremidade de umcorpo, a figura o atributo no-corpreo que o limita e o fixa: a morte aFigura. por uma morte que um corpo se consuma no somente no tempo,mas no espao, e que suas linhas formam, delimitam um contorno. Tanto

    existem espaos mortos quanto tempos mortos. "A repetio daenantiomorfose conduz a uma reduo do mundo (...); as proibies sociaisde metamorfose so talvez as mais importantes de todas. (...) a prpriamorte que interposta entre as classes, a mais estrita fronteira." Em um talregime, todo corpo novo exige a ereo de uma forma oponvel tanto quantoa formao de sujeitos distintos: a morte a transformao geral incorpreaque atribuda a todos os corpos do ponto de vista de suas formas e de suassubstncias (por exemplo, o corpo do Partido no se destacar sem uma

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    movimento que a faz se estender para alm de seus prprios limites, aomesmo tempo que os corpos so tomados no movimento da metamorfose deseu contedo, ou na exausto que os faz alcanar ou ultrapassar o limite desuas figuras. Seria possvel opor aqui as cincias menores s maiores: porexemplo, o impulso da linha quebrada em direo curva, toda umageometria operativa do trao e do movimento, uma cincia pragmtica dasoperaes de variao, que age diferentemente da cincia maior ou real dasinvariantes de Euclides, e que apresenta uma longa histria de suspeio emesmo de represso (questo qual voltaremos mais adiante). O menor

    intervalo sempre diablico: o senhor das metamorfoses se ope ao reihiertico invariante. como se uma matria intensa se liberasse umcontinuum de variao: aqui, nos tensores interiores da lngua; ali, nastenses interiores de contedo. A idia do menor intervalo no se estabeleceentre figuras de mesma natureza, mas implica pelo menos a curva e a reta, ocrculo e a tangente. Assiste-se a uma transformao de substncias e a umadissoluo das formas, passagem ao limite ou fuga dos contornos, embenefcio das foras fluidas, dos fluxos, do ar, da luz, da matria, que fazemcom que um corpo ou uma palavra no se detenham em qualquer pontopreciso. Potncia incorprea dessa matria intensa, potncia material dessalngua. Uma matria mais imediata, mais fluida e ardente do que os corpos eas palavras. Na variao contnua, no nem mesmo possvel distinguir uma

    forma de expresso e uma forma de contedo, mas dois planos inseparveisem pressuposio recproca. Nesse momento, a relatividade de suasdistines est plenamente realizada no plano de consistncia onde adesterritorializao torna-se absoluta, desencadeando o agenciamento.Absoluto no significa entretanto indiferenciado: as diferenas, tornadas"infinitamente pequenas", se faro em uma nica e mesma matria queservir de expresso como potncia incorprea, mas que servir igualmentede contedo como corporeidade sem limites. As variveis de contedo e deexpresso no se encontram mais na relao de pressuposio que supe,ainda, duas formas: a entrada em variao contnua das variveis opera,antes, a aproximao das duas formas, a conjuno dos picos dedesterritorializao tanto de um lado quanto do outro, no plano de umamesma matria liberada, sem figuras, deliberadamente no-formada, queretm justamente apenas essas extremidades, esses tensores ou tenses tantona expresso quanto no contedo. Os gestos e as coisas, as vozes e os sons,so envolvidos na mesma "pera", arrebatados nos efeitos cambiantes degagueira, de vibrato, de trmulo e de transbordamento. Um sintetizadorcoloca em variao contnua todos os parmetros e faz com que, pouco apouco, "elementos essencialmente heterogneos acabem por se converter um

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    no outro de algum modo". H matria comum desde que haja essaconjuno. E somente ento que se alcana a mquina abstrata, ou odiagrama do agenciamento. O sintetizador assumiu o lugar do juzo, como amatria assumiu o da figura ou da substncia formada. Nem mesmo convmmais agrupar de um lado intensidades energticas, fsico-qumicas,biolgicas, e de outro lado intensidades semiticas, informativas,lingsticas, estticas, matemticas... etc. A multiplicidade dos sistemas deintensidades se conjuga, se rizomatiza, em todo o agenciamento, desde omomento em que este conduzido por esses vetores ou tenses de fuga. Pois

    a questo no era: como escapar palavra de ordem?, mas como escapar sentena de morte que ela envolve, como desenvolver a potncia de fuga,como impedir a fuga de se voltar para o imaginrio, ou de cair em um buraconegro, como manter ou destacar a potencialidade revolucionria de umapalavra de ordem? Hoffmannsthal dirige a si mesmo a palavra de ordem"Alemanha, Alemanha!", necessidade de reterritorializar, mesmo em um"espelho melanclico". Mas, sob essa palavra de ordem, ouve uma outra:como se as velhas "figuras" alems fossem simples constantes que seapagassem agora para indicar uma relao com a natureza, com a vida, tantomais profunda porque mais varivel em que caso essa relao com a vidadeve ser um endurecimento, em que caso uma submisso, em que momentotrata-se de se revoltar, em que momento se render, ou ficar impassvel, e

    quando necessrio uma palavra seca, quando uma exuberncia ou umdivertimento-39? Quaisquer que sejam os cortes ou as rupturas, somente avariao contnua destacar essa linha virtual, esse continuam virtual davida, "o elemento essencial ou o real por trs do cotidiano". H umenunciado esplndido em um filme de Herzog. Colocando-se uma questo, opersonagem do filme diz: quem dar uma resposta a essa resposta? De fato,no existe pergunta, respondemos sempre a respostas. A resposta j contidaem uma pergunta (interrogatrio, concurso, plebiscito etc), sero opostasperguntas que provm de uma outra resposta. Ser destacada uma palavra deordem da palavra de ordem. Na palavra de ordem, a vida deve responder resposta da morte, no fugindo, mas fazendo com que a fuga aja e crie.Existem senhas sob as palavras de ordem. Palavras que seriam como quepassagens, componentes de passagem, enquanto as palavras de ordemmarcam paradas, composies estratificadas, organizadas. A mesma coisa, amesma palavra, tem sem dvida essa dupla natureza: preciso extrair umada outra transformar as composies de ordem em componentes depassagens.

    39Cf. o detalhe do texto de Hofmannsthal,Lettres du voyageur son retour (carta de 9 de maio de1901), Mercure de France.

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    5.587 A.C. - 70 D.C. - SOBRE ALGUNS REGIMES DE SIGNOS

    Um novo regime

    Denominamos regime de signos qualquer formalizao de expressoespecfica, pelo menos quando a expresso for lingstica. Um regime designos constitui uma semitica. Mas parece difcil considerar as semiticasnelas mesmas: na verdade, h sempre uma forma de contedo,simultaneamente inseparvel e independente da forma de expresso, e asduas formas remetem a agenciamentos que no so principalmentelingsticos. Entretanto, podemos considerar a formalizao de expressocomo autnoma e suficiente. Pois, mesmo nessas condies, h tantadiversidade nas formas de expresso, um carter to misto dessas formas,que no se pode atribuir qualquer privilgio especial forma ou ao regimedo "significante". Se denominamos semiologia a semitica significante, aprimeira to somente um regime de signos dentre outros, e no o mais

    importante. Por isso a necessidade de voltar a uma pragmtica, na qual alinguagem nunca possui universalidade em si mesma, nem formalizaosuficiente, nem semiologia ou metalinguagem gerais. ento, antes de tudo,o estudo do regime significante que d testemunho da inadequao dospressupostos lingsticos, em nome dos prprios regimes de signos.

    0 regime significante do signo (o signo significante) possui uma frmulageral simples: o signo remete ao signo, e remete to somente ao signo,infinitamente. por isso que mesmo possvel, no limite, abster-se da noo

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    de signo, visto que no se conserva, principalmente, sua relao com umestado de coisas que ele designa nem com uma entidade que ele significa,mas somente a relao formal do signo com o signo enquanto definidor deuma cadeia dita significante. O ilimitado da significncia substituiu o signo.Quando supomos que a denotao (aqui, o conjunto da designao e dasignificao) j faz parte da conotao, encontramo-nos plenamente nesseregime significante do signo. No nos ocupamos especialmente dos ndices,isto , dos estados de coisas territoriais que constituem o designvel. Nonos ocupamos especialmente dos cones, isto , das operaes de

    reterritorializao que constituem, por sua vez, o significvel. O signo jalcanou, ento, um alto grau de desterritorializao relativa, no qual considerado como smbolo em uma remisso constante do signo ao signo. Osignificante o signo redundante com o signo. Os signos emitem signos unspara os outros. No se trata ainda de saber o que tal signo significa, mas aque outros signos remete, que outros signos a ele se acrescentam, paraformar uma rede sem comeo nem fim que projeta sua sombra sobre umcontinuum amorfo atmosfrico. esse continuum amorfo que representa, porenquanto, o papel de "significado", mas ele no pra de deslizar sob osignificante para o qual serve apenas de meio ou de muro: todos oscontedos vm dissolver nele suas formas prprias. Atmosferizao oumundanizao dos contedos. Abstrai-se, ento, o contedo. Estamos na

    situao descrita por Lvi-Strauss: o mundo comeou por significar antesque se soubesse o que ele significava, o significado dado sem ser por issoconhecido. Sua mulher olhou para voc com um ar estranho, e essa manh oporteiro lhe entregou uma notificao de imposto cruzando os dedos, depoisvoc pisou em um coc de cachorro, viu na calada dois pequenos pedaosde madeira dispostos como os ponteiros de um relgio, as pessoassussurraram sua passagem quando voc entrou no escritrio. Poucoimporta o que isso queira dizer, sempre o significante. O signo que remeteao signo atingido por uma estranha impotncia, por uma incerteza, maspotente o significante que constitui a cadeia. Eis porque o paranicoparticipa dessa impotncia do signo desterritorializado que o assalta portodos os lados na atmosfera escorregadia, mas ele acede ainda mais aosobrepoder do significante, no sentimento real da clera, como senhor darede que se propaga na atmosfera. Regime desptico paranico: eles meatacam e me fazem sofrer, mas eu adivinho suas intenes, eu os antecipo,eu o sabia durante todo o tempo, tenho o poder at em minha impotncia,"eu os vencerei".

    1Lvi-Strauss, "Introduction 1'oeuvre de Mareei Mauss", Sociologie et anthropohgie, PUF, p. 48-49 (Lvi-Strauss distinguira, na continuao do texto, um outro aspecto do significado). Quanto a esseprimeiro valor de um continuum atmosfrico, cf. as descries psiquitricas de Binswanger e de Arieti.

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    No terminamos nada em um tal regime. feito para isso, o regime

    trgico da dvida infinita, no qual se ao mesmo tempo devedor e credor.Um signo remete a um outro signo para o qual ele passa, e que, de signo emsigno, o reconduz para passar ainda para outros. "Podendo mesmo retornarcircularmente...". Os signos no constituem apenas uma rede infinita, a rededos signos infinitamente circular. O enunciado sobrevive a seu objeto: onome, a seu dono. Seja passando para outros signos, seja posto em reservapor um certo tempo, o signo sobrevive a seu estado de coisas como a seu

    significado, salta como um animal ou como um morto para retomar seu lugarna cadeia e investir um novo estado, um novo significado do qual extradomais uma vez2. Impresso de eterno retorno. H todo um regime deenunciados flutuantes, ambulantes, de nomes suspensos, de signos queespreitam, esperando para voltarem a ser levados adiante pela cadeia. Osignificante como redundncia do signo desterritorializado consigo mesmo,mundo morturio e de terror.

    2Cf. Lvi-Strauss,La pense sauvage, Plon p. 278 sq. (anlise dos dois casos).

    Mas o que conta menos essa circularidade dos signos do que amultiplicidade dos crculos ou das cadeias. O signo no remete apenas aosigno em um mesmo crculo, mas de um crculo a um outro ou de uma

    espiral a uma outra. Robert Lowie narra como os Crow e os Hopi reagemdiferentemente quando enganados por suas mulheres (os Crow so caadoresnmades, ao passo que os Hopi so sedentrios ligados a uma tradioimperial): "Um ndio Crow, enganado pela mulher, retalha-lhe o rosto, aopasso que um Hopi, vtima do mesmo infortnio, sem perder a calma,recolhe-se e ora, pedindo que a seca e a fome se abatam sobre a aldeia".Vemos de que lado est a parania, o elemento desptico ou o regimesignificante, "a beatice" como diz ainda Lvi-Strauss: " que na verdade,para um Hopi, tudo est ligado: uma desordem social, um incidentedomstico invocam o sistema do universo cujos nveis so unidos pormltiplas correspondncias; uma reviravolta em um plano s inteligvel, emoralmente tolervel, como projeo de outras reviravoltas, afetando outrosnveis3".

    3Lvi-Strauss, Prefcio a Soleil Hopi, Plon, p.VI.

    O Hopi salta de um crculo a outro, ou de um signo a outro em duasespirais. Samos da aldeia ou da cidade, voltamos a ela. Ocorre que essessaltos so regulados no apenas por rituais pr-significantes, mas por todauma burocracia imperial que decide sobre sua legitimidade. No se salta de

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    todos os outros sacerdotes e todos os outros adivinhos fizeram em suapoca): que a interpretao deveria ser submetida significncia, a ponto deo significante no fornecer qualquer significado sem que este no restitusse,por sua vez, um significante. A rigor, com efeito, no h mesmo mais nada ainterpretar, mas porque a melhor interpretao, a mais pesada, a mais radical, o silncio eminentemente significativo. Sabe-se que o psicanalista nemmesmo fala mais e que s interpreta, ou, melhor ainda, faz interpretar, para osujeito que salta de um crculo do inferno a outro. Na verdade, significnciae interpretose so as duas doenas da terra ou da pele, isto , do homem, a

    neurose de base.Quanto ao centro de significncia, quanto ao Significante em pessoa, h

    pouco a dizer, pois ele tanto pura abstrao quanto princpio puro, isto ,nada. Falta ou excesso, pouco importa. a mesma coisa dizer que o signoremete ao signo infinitamente, ou que o conjunto infinito dos signos remete aum significante maior. Mas, justamente, essa pura redundncia formal dosignificante no poderia nem mesmo ser pensada sem uma substncia deexpresso particular para a qual necessrio encontrar um nome: arostidade. No somente a linguagem sempre acompanhada por traos derostidade, como o rosto cristaliza o conjunto das redundncias, emite erecebe, libera e recaptura os signos significantes. , em si mesmo, todo umcorpo: como o corpo do centro de significncia no qual se prendem todos

    os signos desterritorializados, e marca o limite de sua desterritorializao. do rosto que a voz sai; por isso mesmo, qualquer que seja a importnciafundamental de uma mquina de escrita na burocracia imperial, que o escritomantm um carter oral, no livresco. O rosto o cone prprio ao regimesignificante, a reterritorializao interior ao sistema. O significante sereterritorializa no rosto. o rosto que d a substncia do significante, eleque faz interpretar, e que muda, que muda de traos, quando a interpretaofornece novamente significante sua substncia. Veja, ele mudou de rosto.O significante sempre rostificado. A rostidade reina materialmente sobretodo esse conjunto de significncias e de interpretaes (os psiclogosescreveram bastante acerca das relaes do beb com o rosto da me; ossocilogos, acerca do papel do rosto nos mass-media ou na publicidade). Odeus-dspota nunca escondeu seu rosto, ao contrrio: criou para si um emesmo vrios. A mscara no esconde o rosto, ela o . O sacerdote manipulao rosto de deus. Tudo pblico no rosto do dspota, e tudo o que pblico o pelo rosto. A mentira, a trapaa pertencem fundamentalmente ao regimesignificante, mas no o segredo4. Inversamente, quando o rosto desaparece,quando os traos de rostidade somem, podemos ter certeza de que entramosem um outro regime, em outras zonas infinitamente mais mudas e

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    imperceptveis onde se operam os dcvires-animais, devires-molecularessubterrneos, desterritorializaes noturnas que transpem os limites dosistema significante. O dspota ou o deus mostra ameaadoramente seu rostosolar que todo seu corpo, como corpo do significante. Ele me olhou comum ar esquisito, franziu a sobrancelha, o que eu fiz para que mudasse derosto? Tenho sua foto diante de mim, parece que ela me olha... Vigilncia dorosto, diria Strindberg, sobrecodificao do significante, irradiao em todosos sentidos, onipresena ilocalizada.

    4Por exemplo, no mito banto, o primeiro fundador de Estado mostra seu rosto, come e

    bebe em pblico, enquanto o caador, depois o guerreiro, inventam a arte do secreto, seesquivam e comem atrs de uma tela: cf. Luc de Heusch, Le roi ivre ou 1'origine de 1'Etat,Gallimard, p.20-25. Heusch v no segundo momento a prova de uma civilizao mais"refinada": parece-nos, antes, que se trata de uma outra semitica, de guerra e no mais detrabalhos pblicos.

    Enfim o rosto, ou o corpo do dspota ou do deus, tem uma espcie decontra-corpo: o corpo do supliciado, ou, ainda melhor, do excludo. certoque esses dois corpos se comunicam, j que ocorre que esse corpo dodspota esteja submetido a provas de humilhao e mesmo de martrio, ou deexlio e de excluso. "No outro plo, poder-se-ia imaginar colocar o corpodo condenado, este tem tambm seu estatuto jurdico, suscita seu cerimonial(...) no para fundar o mximo de poder que se atribua pessoa do

    soberano, mas para codificar o mnimo de poder que marca aqueles que sosubmetidos a uma punio. Na regio mais sombria do campo poltico, ocondenado deixa entrever a figura simtrica e invertida do rei"5. O supliciado, antes de tudo, aquele que perde seu rosto, e que entra em um devir-animal,em um devir-molecular cujas cinzas espalhamos ao vento. Mas diramos queo supliciado no absolutamente o termo ltimo; , ao contrrio, o primeiropasso antes da excluso. dipo ao menos havia compreendido isso.

    Foucault, Surveiller et punir, p.33.

    Ele se suplicia, fura seus olhos, depois vai embora. O rito, o devir-animaldo bode emissrio mostra-o bem: um primeiro bode expiatrio sacrificado,mas um segundo bode expulso, enviado para o deserto rido. No regime

    significante, o bode emissrio representa uma nova forma de aumento daentropia para o sistema dos signos: est carregado de tudo o que "ruim",em um dado perodo, isto , de tudo o que resistiu aos signos significantes,de tudo o que escapou s remisses de signo a signo atravs dos crculosdiferentes; assume igualmente tudo aquilo que no soube recarregar osignificante em seu centro, leva consigo ainda tudo o que transpe o crculomais exterior. Encarna, enfim, e sobretudo, a linha de fuga que o regime

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    emissrio); 8) um regime de trapaa universal, ao mesmo tempo nos saltos,nos crculos regrados, nos regulamentos das interpretaes do adivinho, napublicidade do centro rostificado, no tratamento da linha de fuga.

    No somente uma tal semitica no a primeira, como tampouco se vqualquer razo para lhe atribuir um privilgio particular do ponto de vista deum evolucionismo abstrato. Gostaramos de indicar muito rapidamentealgumas caractersticas de duas outras semiticas. Primeiramente, asemitica pr-significante considerada primitiva, muito mais prxima dascodificaes "naturais" que operam sem signos. No encontraremos a

    qualquer reduo rostidade como nica substncia de expresso: nenhumaeliminao das formas de contedo pela abstrao de um significado.Mesmo quando abstramos o contedo em uma perspectiva estritamentesemitica, em benefcio de um pluralismo ou de uma polivocidade dasformas de expresso, que conjuram qualquer tomada de poder pelosignificante, e que conservam formas expressivas prprias ao prpriocontedo: assim, formas de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, dedana, de rito, coexistem no heterogneo com a forma vocal6. Vrias formase vrias substncias de expresso se entrecortam e se alternam. umasemitica segmentar, mas plurilinear, multidimensional, que combateantecipadamente qualquer circularidade significante. A segmentaridade alei das linhagens. De forma que o signo deve aqui seu grau de

    desterritorializao relativa no mais a uma remisso perptua ao signo, masao confronto de territorialidades e de segmentos comparados dos quais cadasigno extrado (o campo, a savana, a mudana de campo). No apenas apolivocidade dos enunciados preservada, como tambm somos capazes deeliminar um enunciado: um nome usado abolido, o que bastante diferenteda operao de colocar em reserva ou da transformao significante. Quando pr-significante, a antropofagia tem precisamente esse sentido: comer onome uma semiografia, que pertence plenamente a uma semitica, apesarde sua relao com o contedo (mas relao expressiva7).

    6Cf. Greimas, "Pratiques et langages gestuels",Langages n.10, junho 1968; mas Greimas relacionaessa semitica a categorias como "sujeito de enunciado", "sujeito de enunciao", que nos parecempertencer a outros regimes de signos.

    7Sobre a antropofagia como maneira de conjurar a ao das almas ou de nomes mortos; e sobre suafuno semitica de "calendrio", cf. Pierre Clastres, Chronique des Indiens Guayaki, Plon, p.332-340.

    Evitaremos pensar que por ignorncia, por recalque ou forcluso dosignificante que uma tal semitica funciona. Ela , ao contrrio, animadapelo pesado pressentimento do que vir, no tem necessidade decompreender para combater, inteiramente destinada, por sua prpriasegmentaridade e sua polivocidade, a impedir o que j ameaa: a abstrao

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    universalizante, a ereo do significante, a uniformizao formal esubstancial da enunciao, a circularidade dos enunciados, com seuscorrelatos, aparelho de Estado, instalao do dspota, casta de sacerdotes,bode expiatrio..., etc. E cada vez que se come um morto, pode-se dizer:mais um que o Estado no ter. Em seguida, ainda uma outra semitica, quechamaremos contra-significante (principalmente a dos terrveis nmadescriadores e guerreiros, em contraste com os nmades caadores que faziamparte da precedente). Dessa vez, essa semitica procede menos porsegmentaridade do que por aritmtica e numerao. Certamente, o nmero j

    tinha uma grande importncia na diviso ou na reunio das linhagenssegmentrias; tinha tambm uma funo decisiva na burocracia imperialsignificante. Mas era um nmero que representava ou significava,"provocado, produzido, causado por outra coisa diferente dele". Aocontrrio, um signo numrico que no produzido por nada exterior marcao que o institui, marcando uma repartio plural e mvel,estabelecendo ele mesmo funes e correlaes, procedendo a arranjos maisdo que a totais, a distribuies mais do que a colees, operando por corte,transio, migrao e acumulao mais do que por combinao de unidades,um tal tipo de signo parece pertencer semitica de uma mquina de guerranmade, dirigida por sua vez contra o aparelho de Estado. Nmero abstrato 8.A organizao numrica em 10, 50, 100, 1000... etc, e a organizao espacial

    que lhe associada, sero evidentemente retomadas pelos exrcitos doEstado, mas revelam, antes de tudo, um sistema militar prprio aos grandesnmades das estepes, dos hicsos aos mongis, e se superpem ao princpiodas linhagens. O segredo, a espionagem so elementos importantes dessasemitica dos Nmeros na mquina de guerra. O papel dos Nmeros naBblia no independente dos nmades, j que Moiss recebe a idia denmeros de seu sogro Jetro, o Quenita: faz deles um princpio deorganizao para a marcha e a migrao, e o aplica, ele mesmo, ao domniomilitar. Nessa semitica contra-significante, a linha de fuga despticaimperial substituda por uma linha de abolio que se volta contra osgrandes imprios, atravessa-os ou os destri, a menos que os conquiste e quese integre a eles formando uma semitica mista.

    8 As expresses precedentes concernentes ao nmero so tomadas de Julia Kristeva, ainda que ela asutilize para a anlise de textos literrios na hiptese do "significante": Semeiotik, Ed. du Seuil, p.294 sq.317.

    Gostaramos de falar ainda mais particularmente de um quarto regime designos, regime ps-significante, que se ope significncia com novoscaracteres, e que se define por um procedimento original, de "subjetivao".Existem, portanto, muitos regimes de signos. Nossa prpria lista

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    arbitrariamente limitada. No h qualquer razo para identificar um regimeou uma semitica a um povo, nem a um momento da histria. Em ummesmo momento ou em um mesmo povo, h tanta mistura de forma quepodemos simplesmente dizer que um povo, uma lngua ou um momentoasseguram a dominncia relativa de um regime. Talvez todas as semiticassejam, elas mesmas, mistas, combinando-se no apenas a formas decontedo diversas, mas tambm combinando regimes de signos diferentes.Elementos pr-significantes so sempre ativos, elementos contra-significantes esto sempre trabalhando e presentes, elementos ps-

    significantes j existem no regime significante. E isso j marcartemporalidade em demasia. As semiticas e seu carter misto podemaparecer em uma histria onde os povos se confrontam e se misturam, mastambm em linguagens onde vrias funes concorrem, em um hospitalpsiquitrico onde formas de delrios coexistem e mesmo se enxertam em ummesmo caso, em uma conversa comum onde as pessoas que falam a mesmalngua no falam a mesma linguagem (subitamente surge um fragmento deuma semitica inesperada). No fazemos evolucionismo, nem mesmohistria. As semiticas dependem de agenciamentos, que fazem com quedeterminado povo, determinado momento ou determinada lngua, mastambm determinado estilo, determinado modo, determinada patologia,determinado evento minsculo em uma situao restrita possam assegurar a

    predominncia de uma ou de outra. Tentamos construir mapas de regimes designos: podemos mud-los de posio, reter algumas de suas coordenadas,algumas de suas dimenses, e, dependendo do caso, teremos uma formaosocial, um delrio patolgico, um acontecimento histrico... etc. Ns overemos ainda em uma outra ocasio: ora lidamos com um sistema socialdatado, "amor corts", ora com um empreendimento privado, chamado"masoquismo". Podemos tambm combinar esses mapas ou separ-los. Paradistinguir dois tipos de semiticas por exemplo, o regime ps-significantee o regime significante devemos considerar simultaneamente domniosbastante diversos.

    No comeo do sculo XX, a psiquiatria, no auge de sua agudeza clnica,encontrou-se diante do problema dos delrios no-alucinatrios, comconservao de integridade mental, sem "diminuio intelectual". Havia umprimeiro grande grupo, o dos delrios paranicos e de interpretao, que jenglobava diferentes aspectos. Mas a questo se referia independnciaeventual de um outro grupo, esboado na Monomania de Esquirol, naQuerelncia de Kraepelin, mais tarde definido no delrio de Reivindicao deSerieux e de Capgras, e no delrio passional de Clrambault ("querelncia oureivindicao, cime, erotomania"). Segundo os belssimos estudos de

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    Serieux e Capgras, por um lado, e de Clrambault, por outro ( este que maisaprofunda a via da distino), poderiam se opor um regime ideal designificncia, paranico-interpretativo, e um regime subjetivo, ps-significante, passional. O primeiro se define por um incio insidioso, umcentro oculto manifestando foras endgenas em torno de uma idia; depois,por um desenvolvimento em rede em um continuum amorfo, uma atmosferaescorregadia onde o mnimo incidente pode ser capturado; uma organizaoradiante em crculos, uma extenso por irradiao circular em todos ossentidos, onde o indivduo salta de um ponto a outro, de um crculo a outro,

    se aproxima do centro ou dele se afasta, faz prospectiva e retrospectiva; poruma transformao da atmosfera, seguindo traos variveis ou centrossecundrios que se reagrupam em torno do ncleo principal. O segundoregime se define, ao contrrio, por uma ocasio exterior decisiva, por umarelao com o fora que se exprime mais como emoo do que como idia, emais como esforo e ao do que como imaginao ("delrio de atos mais doque de idias"); por uma constelao limitada, operando em um nico setor;por um "postulado" ou uma "frmula concisa" que o ponto de partida deuma srie linear, de um processo, at o esgotamento que marcar a partida deum novo processo; em suma, pela sucesso linear e temporal de processo

    finito, mais do que pela simultaneidade dos crculos em expanso ilimitada9.9Cf. Srieux et Capgras, Les folies raisonnantes, Alcan 1909; Clrambault, Oeuvre psychiatrique,

    reed. PUF; mas Capgras acredita em uma semitica essencialmente mista ou polimorfa, enquantoClrambault destaca abstratamente duas semiticas puras, mesmo reconhecendo sua mistura de fato.Sobre as origens dessa distino de dois grupos de delrios, cabe consultar principalmente Esquirol, Desmaladies mentales, 1 838 (em que medida a "monomania" separvel da mania?); e Kraepelin,Lehrbucbder Psychiatrie (em que medida a "querelncia" separvel da parania?). A questo do segundo grupode delrios, ou delrios passionais, foi retomada e exposta historicamente por Lacan, De Ia psychoseparanoiaque, Ed. du Seuil, e por Lagache,La jalousie amoureuse, PUF.

    Essa histria de dois delrios sem diminuio intelectual bastanteimportante, pois no vem perturbar uma psiquiatria preexistente, mas est,isto sim, no centro da constituio da psiquiatria no sculo XIX, e explica ofato de o psiquiatra ter nascido, desde seu comeo, como nunca deixar deser: nasce encurralado, preso a exigncias humanitrias, policiais, jurdicasetc, acusado de no ser um verdadeiro mdico, suspeito de considerar loucosaqueles que no o so e de no ver aqueles que o so, ele mesmo s voltascom dramas de conscincia, a ltima bela alma hegeliana. Se consideramos,de fato, os dois tipos de delirantes intactos, podemos dizer que algunsparecem completamente loucos, mas que no o so: o presidente Schreberdesenvolve em todos os sentidos sua parania irradiante e suas relaes comDeus; ele no louco dado que permanece capaz de gerir sabiamente suafortuna, e de distinguir os crculos. No outro plo, existem aqueles que no

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    parecem absolutamente loucos, mas que o so, como o demonstram suasaes sbitas, querelas, incndios, assassinatos (por exemplo as quatrograndes monomanias de Esquirol: ertica, raciocinante, incendiaria,homicida). Em suma, a psiquiatria no se constituiu absolutamente emrelao ao conceito de loucura, nem mesmo com um remanejamento desseconceito, mas, antes, com sua dissoluo nessas duas direes opostas. Eno a dupla imagem de todos ns que a psiquiatria nos revela assim, ora ade parecer louco sem ser, ora a de s-lo sem parecer? (Essa duplaconstatao ser ainda o ponto de partida da psicanlise, sua forma de se

    imbricar com a psiquiatria: parecemos loucos mas no somos, veja-se osonho; somos loucos mas no parecemos, veja-se a vida cotidiana.) Ento opsiquiatra foi levado ora a implorar a indulgncia e a compreenso, asublinhar a inutilidade do internamento, a solicitar hospcios open-door; ora,ao contrrio, a exigir uma vigilncia intensificada, hospcios especiais desegurana, mais duros ainda para os loucos que no o pareciam10. No poracaso que a distino dos dois grandes delrios, de idias e de aes,coincide, em vrios pontos, com a distino das classes (o paranico que notem tanta necessidade de ser internado , antes de tudo, um burgus, aopasso que o monomanaco, o reivindicador passional, , o maisfreqentemente, oriundo das classes rurais e proletrias, ou de casosmarginais de assassinos polticos). Uma classe de idias radiantes,

    irradiantes (forosamente) contra uma classe reduzida s aes locais,parciais, espordicas, lineares... Nem todos os paranicos so burgueses,nem todos os passionais ou monomanacos so proletrios. Mas, nasmisturas de fato, Deus e seus psiquiatras so encarregados de reconheceraqueles que conservam uma ordem social de classe, mesmo delirante, eaqueles que trazem a desordem, mesmo estritamente localizada, incndio demoinho, assassinato de parente, amor ou agressividade deslocados.

    10 Cf. Srieux e Capgras, p. 340 sq. e Clrambault, p.369 sq.: os delirantes passionais soincompreendidos, mesmo no hospcio, porque so tranqilos e astutos, "afetados por um delrio deveraslimitado para que saibam como ns os julgamos"; ainda mais necessrio mant-los internados; "taisdoentes no devem ser questionados, mas manobrados, e para manobr-los, h apenas um meio:emocion-los".

    11Esquirol sugere que a monomania uma "doena da civilizao" e segue uma evoluo social:

    comea sendo religiosa, mas tende cada vez mais a se tornar poltica, assediada pela polcia (Desmaladies mentales, t.I, p.400). Cf. tambm as observaes de Emmanuel Regis, Les rgicides danslhistoire et dans le prsent, 1890.

    Procuramos ento distinguir um regime de signos desptico, significantee paranico, e um regime autoritrio, ps-significante, subjetivo oupassional. Seguramente o autoritrio no a mesma coisa que o desptico, opassional no a mesma coisa que o paranico, o subjetivo a mesma coisa

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    que o significante. O que ocorre no segundo regime, em oposio ao regimesignificante, anteriormente definido? Em primeiro lugar, um signo ou umgrupo de signos se destaca da rede circular irradiante, comea a trabalharpor sua conta, a correr em linha reta, como se adentrasse em uma estreita viaaberta. O sistema significante j traava uma linha de fuga ou dedesterritorializao que excedia o ndice prprio de seus signosdesterritorializados; mas a essa linha, justamente, ele atribuiu um valornegativo, fazendo nela fugir o emissrio. Dir-se-ia, agora, que essa linharecebe um signo positivo, que est efetivamente ocupada e seguida por todo

    um povo que nela encontra sua razo de ser ou seu destino. E certamente,ainda aqui, no fazemos histria: no dizemos que um povo inventa esseregime de signos, mas somente que efetua em um dado momento o agencia-mento que assegura a dominncia relativa desse regime em condieshistricas (e esse regime, essa dominncia, esse agenciamento podem serassegurados em outras condies, por exemplo patolgicas ou literrias, ouamorosas, ou completamente cotidianas etc). No dizemos que um povo sejapossudo por tal tipo de delrio, mas que o mapa de um delrio,considerando-se suas coordenadas, pode coincidir com o de um povo,considerando-se as dele. Como o fara paranico e o hebreu passional? Como povo judeu, um grupo de signos se destaca da rede imperial egpcia da qualfazia parte, comea a seguir uma linha de fuga no deserto, opondo a

    subjetividade mais autoritria significncia desptica, o delrio maispassional e o menos interpretativo ao delrio paranico interpretante, emsuma opondo "o processo ou a reivindicao" lineares rede circularirradiante. Sua reivindicao, seu processo essa ser a palavra de Moissa seu povo, e os processos se sucedem em uma linha de Paixo 12. Kafkaextrair da sua prpria concepo da querelncia ou do processo, e asucesso dos segmentos lineares: o processo-pai, o processo-hotel, oprocesso-barco, o processo-tribunal...

    12 Deutronome, I, 12, Dhorme, em La Pliade, precisa: "Vossa reivindicao,literalmente vosso processo".

    No podemos negligenciar aqui o acontecimento mais fundamental ou

    mais extensivo da histria do povo judeu: a destruio do templo, que se fazem dois tempos (587 a.C. - 70 d.C). Toda a histria do Templo, em primeirolugar a mobilidade e a fragilidade do Arco, depois a construo de uma Casapor Salomo, sua reconstruo com Dario etc, s adquirem seu sentido emrelao a processos renovados de destruio, que encontram seus doisgrandes momentos com Nabucodonosor e com Tito. Templo mvel, frgilou destrudo: o arco no mais do que um pequeno pacote de signos que

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    alguns carregam consigo. O que se tornou impossvel uma linha de fugasomente negativa, ocupada pelo animal ou pelo bode, enquanto carregadocom todos os perigos que ameaavam o significante. Que o mal recaia sobrens a frmula que escande a histria judaica: somos ns que devemosseguir a linha mais desterritorializada, a linha do bode, mudando-lhe o signo,tornando-a a linha positiva de nossa subjetividade, de nossa Paixo, de nossoprocesso ou reivindicao. Ns seremos nosso prprio bode. Ns seremos ocordeiro: "o Deus que, como um leo, era honrado com sangue dossacrifcios, deve agora ser colocado em segundo plano, para que o Deus

    sacrificado ocupe a cena. (...) Deus se tornou o animal imolado ao invs deser o animal que imola"13.

    13D.H. Lawrence,L'Apocalypse, Balland, captulo X.

    Seguiremos, esposaremos a tangente que separa a terra e as guas,separaremos a rede circular e o continuum escorregadio, faremos nossa alinha de separao para traar nela nosso caminho e dissociar os elementosdo significante (a pomba do Arco). Um estreito desfiladeiro, um entre-doisque no uma mdia, mas uma linha afilada. Existe toda uma especificidade

    judaica, que se afirma j em uma semitica. Essa semitica, entretanto, no menos mista do que uma outra. Por um lado, est em relao ntima com asemitica contra-significante dos nmades (os hebreus tm todo um passado

    nmade, toda uma relao real com a organizao numrica nmade na qualse inspiram, todo um devir-nmade especfico; e sua linha dedesterritorializao retoma muito da linha militar de destruio nomdica14).Por outro lado, est em relao essencial com a prpria semiticasignificante, cuja nostalgia no cessa de atravess-las, elas mesmas e seuDeus: restabelecer uma sociedade imperial ou a ela se integrar, dar-se um reicomo todo mundo (Samuel), reconstruir um templo enfim slido (David eSalomo, Zacarias), fazer a espiral da torre de Babel e reencontrar o rosto deDeus, no somente parar a errncia, mas transpor a dispora que s existe,ela mesma, em funo de um ideal de grande agrupamento. Pode-se somenteassinalar aquilo que, nessa semitica mista, d testemunho do novo regimepassional ou subjetivo, ps-significante. A rostidade sofre uma profundatransformao. O deus desvia seu rosto, que ningum deve ver; porm,inversamente, o sujeito desvia o seu, transido de um verdadeiro medo dedeus. Os rostos que se desviam, e se colocam de perfil, substituem o rostoirradiante visto de frente. nesse duplo desvio que se traa a linha de fugapositiva. O profeta o personagem desse agenciamento; ele tem necessidadede um signo que lhe garanta a fala divina, sendo ele mesmo marcado por umsigno que designa o regime especial ao qual ele pertence. Foi Spinoza quem

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    elaborou a mais profunda teoria do profetismo, abrangendo essa semiticaprpria. Caim, desviado de Deus que desviava dele, j segue a linha dedesterritorializao, protegido pelo signo que o faz escapar morte. Signo deCaim. Castigo pior do que a morte imperial? O Deus judaico inventa osursis, a existncia em sursis, o adiamento ilimitado15. Mas, igualmente,positividade da aliana como nova relao com o deus, visto que o sujeitopermanece sempre vivo. Abel, cujo nome vaidade, no nada, mas Caim o verdadeiro homem.

    14Cf. Dhorme,La religion des Hbreux nmades, Bruxelas. E Mayani,Les Hyksos et le

    monde de Ia Bible, Payot. O autor insiste nas relaes dos hebreus com os habiru, nmadesguerreiros, e com os quenianos, ferreiros nmades; o que prprio a Moiss no o princpiode organizao numrica, tomado dos nmades, mas a idia de uma conveno-processo, deum contrato-processo sempre revogvel. Essa idia, precisa Mayani, no vem nem deagricultores enraizados, nem de nmades guerreiros, nem mesmo de migrantes, mas de umatribo em marcha que se pensa em termos de destino subjetivo.

    15Cf. Kafka, O processo. o pintor Titorelli que elabora a teoria da moratria ilimitada.Deixando de lado a quitao definitiva, que no existe, Titorelli distingue a "quitaoaparente" e a "moratria ilimitada" como dois regimes jurdicos: o primeiro circular eremete a uma semitica do significante, ao passo que o segundo linear e segmentar,remetendo semitica passional.

    No mais absolutamente o sistema do truque ou da trapaa, queanimava o rosto do significante, a interpretao do adivinho e os

    deslocamentos do sujeito. o regime da traio, da traio universal, onde overdadeiro homem no cessa de trair a Deus tanto quanto Deus trai ohomem, em uma clera de Deus que define a nova positividade. Antes desua morte, Moiss recebe as palavras do grande cntico da traio.Contrariamente ao sacerdote-adivinho, at mesmo o profeta fundamentalmente traioeiro, e realiza assim a ordem de Deus melhor doque o faria um fiel. Deus encarrega Jonas de ir a Nnive para convidar oshabitantes a se corrigir, eles que no cessaram de trair a Deus. Mas oprimeiro gesto de Jonas o de tomar a direo oposta: por sua vez, ele trai aDeus e foge "longe da face de Adonai". Pega um barco em direo a Tarsis edorme, como um justo. A tempestade suscitada por Deus faz com que sejalanado na gua, engolido pelo grande peixe, cuspido para o limite da terra e

    das guas, o limite de separao ou a linha de fuga que j era a da pomba doArco (Jonas precisamente o nome da pomba). Mas, ao fugir do rosto deDeus, Jonas fez exatamente o que Deus queria, tomou para si o mal deNnive, e fez melhor do que Deus teria desejado, antecipou a Deus. Foi porisso que dormiu como um justo. Deus o mantm vivo, provisoriamenteprotegido pela rvore de Caim, mas fazendo morrer por sua vez a rvore,visto que Jonas reconstituiu a aliana ocupando a linha de fuga16. Jesus

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    quem torna universal o sistema da traio: traindo o Deus dos judeus, traindoos judeus, trado por Deus (por que me abandonaste?), trado por Judas, overdadeiro homem. Tomou o mal para si, mas os judeus que o matam tomamtambm o mal para eles mesmos. A Jesus pede-se o signo de sua filiaodivina: ele invoca um signo de Jonas. Caim, Jonas e Jesus formam trsgrandes processos lineares nos quais os signos se imbricam e se alternam. Hmuitos outros. Em toda parte, o duplo desvio na linha de fuga.

    16Jrme Lindon foi o primeiro a analisar essa relao do profetismo judeu e da traio,no caso exemplar de Jonas,Jonas, Ed. de Minuit.

    Quando o profeta recusa a tarefa que Deus lhe confia (Moiss, Jeremias,Isaas, etc), no porque essa tarefa seja por demais pesada para ele, maneira de um orculo ou de um adivinho de imprio que recusasse umamisso perigosa: , antes, maneira de Jonas, que antecipa a inteno deDeus, ocultando-se e fugindo, traindo, muito mais do que se tivesseobedecido. O profeta no pra de ser forado por Deus, literalmente violadopor e