O Perfume. Mia Couto.

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    P RFUM

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    Hoje v mos o baileJustino assim se anunciou estendendo em suasmos um embrulho cor de presente. Gloria sua espo-sa nem soube receber.Foi ele quem desatou os nos efez despontar do papel colorido um vestido nao menos

    colorido. A mulher subvivente somava tanta espera queja esquecerao que esperava.Justino guardava ferroviasseu tempo se amalgava f u m o dos f u m o s ponteiroencravado em seu coraco. Ent re marido e mulher otempo meter a colher rancoso roubador de espantos.Sobrara opasto doscansacos desnamoros ramerrames.O amor afinal que utilidade tem ?De onde o espanto de Gloria deixando espar ramejarovestido sobre seucol.Que esperava ela por que naose arranjava? O marido pareca ter ensaiado brincadei-r a . Que Ih e acontecer?O homem sempre dla se

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    MA COUTO

    fazer com o seu prprio cbelo. Mas eu mae-.primei-ro so u mulata. Segundo nunca soube o que isso deliberdade. E riu-se: livre? Era palavra qu e pareca deoutra lngua.So de a soletrar senta vergonha o mesmoembaraco que experimentava em vestir a roupa que omarido Ihe trouxera.Abriu a gaveta venceu a emperradamadeira. E segurou o frasco de perfume antigo anda em-balado. Estava leve o lquido havia j a evaporado. JustinoIh e havia dado o f rasco em inauguraco de namoroanda e la meninava. Em toda a vida aquele fora o ni-co presente. So agora se somava o vestido. Espremeu ovidro do cheiro a ordenhar a s ltimas gotas. Perfumei oque com isto se perguntou lancando o frasco no vazioda janela.

    Nem sei o gosto de um cheiro.Escutou ovelho vidro se estilhacar no passeio. Vol-tou a sala o vestido se desencontrando com o corpo.As bainhasdo pao namoriscavam os sapatos. Tema ocomentario do marido sempre Ihe apontando ousadias.Desta vez porm ele Ih e olhou de modo estranho semparecer crer . Puxou-a pa ra si e Ih e a je i tou a s formasar rebi tando o pao avespando-lhe a c intura. Depoisperguntou: Entao nao passa um arranjo no rosto? U m arranjo? S im urna cor urna tinta.Ela se assombrou. Virou costas e entrou na casa debanho embasbocada . Que doenca sbita dera nele?Onde diabo parava esse bton havia anos que poeiravanaque l a prateleira? Encontrou-o minsculo gasto asbrincadeiras dos midos. Passou o lpis sobreoslabios.Leve urna penumbra de cor.Carregue mais faca valer

    os vermelhos. Era o marido no espelho. Ela ergueu orosto desconhecida. Vamo s ao baile sim. Voc na o costumava dan-car antes? E os meninos?44

    ESTRIAS AB EN SON H AD AS

    Ja organizei com o viz inho nao se preocupa.E foram. Justino ainda teve que tchovar C 1 a carri-nha. Ela como sempre desceu para a judar . Mas o ma-r ido recusou: desta vez nao. Ele sozinho empu r r avaonde que se vira?Chegaram. Gloria pareca nao dar conta da realida-de. Se deixou no assento da ve lha ca r r inha . Jus t inocavalhei rou mo pronta gesto presto abrindo portas.O baile eslava concorrido cheio pelas costuras. A msi-ca transpirava pelo salo em tonturasde casis. Osdoisse s entaram numa mesa. Os olhos de Gloria nao exer-ciam. Apenas sombreavam pela mesa pr-colegiais.Entao se aproximou um homem em boa posturapedindo ao guarda-freio Ih e desse licenca de suaespo-sa pa ra um passo respeitoso. Os olhos a terrados dlaespera ram cair a tempestade. M as nao. Justino contem-plou o moco e Ihe fez ampio sinal de anuencia.A es-posa arguiu: Mas euprefera danzarprimeiro com meu ma-rido. Voc sabe que eu nunca danco...E como e la ainda hesitasse ele Ih e ordenou quaseem sigui de te rnura : Va Glonha se divinaE e la la foi vagarosa espantalhada. Enquanto rodavae la fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fun-do os seus olhose viu neles um abandono sem nomecomo esse vapor que restara de seu pe r fume . Entaoentendeu: o mar ido es tava a ofe rec- la ao mundo .O baile aquele convite e ram urna despedida. Seu pei-to confirmou a suspeita quando viu o marido se levan-ta r e aprontar sada. E la interrompeu a danca e correupara Justino:

    Onde vai marido? U m amigo m e chamou, lafora. Ja volto.

    O Tchovar: empurrar .45

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    V ou consigo,Justino Aquilo lajora nao lugar da s mulheres. Fique,dance co m o mofo. Euja venhoGloria nao vo l tou danca . Sentada na rese rvadamesa levantou ocopodo marido e neledeixou a marcade seu b ton. E ficou a ver Justino se afastando entrea fumarada do salao tudo se comportando longe. V e-zes sem conta el a v i ra esse a f a s tame nto o m a r i d oanonimado entre as neblinas doscomboios. Desta vezporm seu peito se agitou em ba lanco de soluco. Nolimiar da porta Justino ainda virou o rosto e demorounela um ltimo olhar . Com surpresa el e vi u a indital gr ima c in t i l and o na face que ela ocul tava . A lgri-ma agua e so a agua lava tr is teza. Justino sentiu otropeco no peito cinza virando brasa em seu coracao.E f echou a no i te a porta decepando aque la brevedesordem. Gloria colheu a lgr ima com dobra do pr-prio vestido. De quem dentro dla mesma ela se des-pedia?Saiu do baile foi de encontr as trevas. Ainda pro-curou a velha carr inha. Ans iou que ela ainda al i estives-se necessitada de um e mpur r o . M a s d e Jus t ino naorestava vestigio. Voltou a casa sob o crepitar dos gri-los. Ameio do carreiro se descalcou e seus ps rece-beram a caricia da areia quente. Olhou o estrelejo noscus. A sestrelas sao os olhos de quem morreu de amor .Ficam nos contemplando de cima a mostrar que so oamor concede eternidades.Chegou a casa cansada a ponto de nem sentir can-sacos. Por instantes pensou encontrar sinais de Justino.M as o ma r id o se passara por al i levara seu rasto.A G lo r i a nao Ihe apeteceu a casa magoava- lhe o larcomo retrato de ente falecido. Adormeceu nos degrausda escada.Acordou as pr imeiras horas da manha tonteandoentreson esonho. Porque dentro dla em o lfactossoda a l m a ela sentiu o pe r fume. Seria o qu? Efluvios do

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    velho frasco? Nao so podia ser um novo presente d -diva da paixo que regressava. Justino?Em sobressalto correu para dentro de casa. Foiquando pisou os vidros esti lhacados no sop de suajanela. A inda hoje restara no soalho da sala indelveispegadas de quando Gloria estreou o sangue de suafelicidade.

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