Os candidatos e outros devaneios cénicos

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"Um homem, enclausurado numa única sala, na companhia de uma prostituta tailandesa que lhe lê Haikus numa língua por ela inventada, come pregos e vomita fogo, enquanto espera que um relógio assinale o fim do tempo e possa ser reconhecido como herói por uma população qualquer."

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 1

Os candidatos e outros devaneios cénicos

Os candidatos .......................................................................... 3

Deus, ou a alucinação de um moribundo............................ 25

Introsociocaos ........................................................................ 32

Inspiração, ou a falta dela .................................................... 48

Entre a vida e a morte .......................................................... 57

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Os

Candidatos

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Personagens:

Ema

Nuno

Sibel

Velha

Homem

Morte

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CENA I

Do cenário fazem parte algumas confortáveis cadeiras, tipo poltrona ou sofá, e uma pequena mesa com revistas em cima ( cenário típico de uma sala de espera ). Duas pessoas, um homem e uma mulher. Ema, uma sensual rapariga, e Nuno, aguardam impacientes pela sua vez de serem chamados para uma entrevista. Chega, entretanto, uma outra mulher, Sibel, que também se candidatou e espera para ser entrevistada. No espaço que circunda o ocupado pelos personagens estão vários relógios, de vários feitios, e um pouco mais afastada está uma porta. Ema e Nuno folheiam revistas. Entra Sibel.

Sibel: Bom dia. É aqui que estão a receber os candidatos para as entrevistas?

Nuno: É sim, bom dia. Também estamos à espera.

Sibel: Ainda bem que consegui cá chegar da primeira vez que enviei o meu curriculum, e

fui chamada, não encontrei o local onde estavam a fazer as entrevistas e depois, das

duas últimas duas vezes que concorri, não obtive resposta.

Ema: Realmente é complicado encontrar os lugares que eles escolhem para receber os

candidatos, mas talvez seja também uma forma de testar a persistência daqueles que

poderão vir a ser escolhidos.

Nuno: Foi complicado decifrá-lo no mapa.

Ema: Conseguiste encontrar este lugar no mapa?

Nuno: Foi-me enviado um mapa com esta localidade.

Ema: Estranho. Nunca ouvi falar de alguém que tivesse recebido um mapa. Costuma ser

uma descoberta pessoal, em que a pessoa é que escolhe a direcção que julga ser a

melhor, e depois, ou tem sorte ou não.

Sibel: É a primeira vez que concorrem?

Nuno: Para mim é, por isso estou tão nervoso. Mas já conheci pessoas que conseguiram.

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Sibel: E tu?

Ema: Eu? ( sorri ) Já concorri algumas vezes, mais do que tu, bem mais, e espero que

desta seja de vez, aliás, eles já me devem conhecer bem. As minhas qualificações têm

vindo a aumentar e a melhorar, por isso, estou confiante que vou finalmente

conseguir. ( pausa ) Mas desejo-vos boa sorte.

Nuno+Sibel: Obrigado/a

Sibel: Só cá estão vocês, pensei que ia encontrar uma sala cheia de gente… ou já entrou

alguém?

Ema: Para já só estamos nós e ainda não chegou mais alguém. Não me parece que venha

muito mais gente, ou, caso contrário, isto já estaria cheio. Ninguém, se for chamado,

desperdiça esta oportunidade.

Sibel: Pois, é complicado chegar a esta situação, a este estado.

Nuno: ( com voz melancólica ) Estamos todos para o mesmo, acerca disso não restam

dúvidas, e, se já conseguimos ser convocados… ( muda o tom de voz ) ; mas, olhando

para vocês, pela vossa aparência, não me parece que estejam tão necessitadas como

eu. Têm a certeza de que é isto mesmo que querem?

Ema: ( com postura agressiva ) Tu é que és o novato aqui dentro! E tu? Tens a certeza, ou

daqui a pouco vais mudar de ideias e, quem sabe, desperdiçar a oportunidade que

seria tão preciosa a outra pessoa? Não te vejo muito convicto! Tens noção daquilo a

que te propões?

Nuno: Não te exaltes, senhora sensibilidade.

Ema: É isso mesmo, sensibilidade, senhora sensibilidade, por isso mereço mais esta vaga do

que tu.

Sibel: Calma, não vamos discutir. Eles é que vão decidir. Se calhar, nenhum de nós irá ser

seleccionado. Nem sei se ainda existirão mais fases de selecção.

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Ema: Não existem.

Sibel: Melhor. Quais são os vossos nomes?

Ema: Ema.

Nuno: Chamo-me Nuno.

Sibel: Assim já nos conhecemos melhor.

Ema: Ninguém vem cá para fazer amigos.

Nuno: És muito simpática Sibel, demasiado, talvez, para estares aqui connosco.

Sibel: Faz parte de mim, mas isso nunca mudou nada. Além disso, tenho outros defeitos

que superam bastante esta aparente simpatia.

Ema: Pelo menos, aqui, podemos ser sinceros.

Nuno: Mas quem não o é no dia-a-dia também não é junto da sua concorrência que o será.

De um modo geral, acho que a sinceridade é uma conveniência.

Sibel: Mas o que é que não é feito por conveniência hoje em dia?

Ema: Lá dentro não terás hipótese de enganar ninguém, mesmo que queiras, e, caso sejas

estúpido suficiente para o tentar, és imediatamente desqualificado. Eles sabem mesmo

aquilo que tu próprio já esqueceste.

Nuno: O mesmo acontece em outras situações da vida. Por vezes, somos afastados de

certas ilusões pela descoberta da mentira que julgávamos ser indecifrável.

Sibel: A não ser que tornes o acto de mentir numa forma de arte. Conheço várias pessoas

assim, a quem a mentira se tornou numa espécie de membro que ocupa um lugar

especial nos seus cérebros.

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Ema: Inabaláveis pela consciência.

Nuno: São esses que se safam melhor.

Sibel: Mas, também, quando as suas mentiras e intrigas são descobertas essas pessoas

tornam-se repugnantes aos olhos dos outros; não que eu nunca o tenha feito, somos

todos humanos, mas não com as dimensões a que certas pessoas chegam.

Há um tenebroso silêncio.

Nuno: Não comentas Ema?

Ema: Nada tenho a dizer.

Sibel: Vocês já se conheciam?

Ema: Não. Por isso é que não admito provocações a esse estranho.

Nuno: Ema? Peço desculpa se fui mal interpretado, não tenho nenhuma intenção em te

provocar ou ofender. Além disso, estamos numa condição em que esse tipo de coisas

não faz muito sentido.

Ema: Sim, tens razão. Desculpa tu também, é que me exalto com muita facilidade.

Sibel agarra numa revista, que folheia rapidamente, e volta a colocá-la em cima da mesa.

Sibel: Espero que não demorem muito a chamar-me. Estou a ficar sem paciência.

Ema: Alguma vez a tiveste? Eu não.

Nuno: Se a tivesses talvez não conseguisses as qualificações para aqui estar.

Ema: É verdade.

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Sibel: Com paciência ou sem ela só queria que me chamassem para despachar isto

rapidamente.

Nuno: Alguma de vocês sabe com quem é que vamos falar, lá dentro?

Ema: Meu caro ( sorri ), vais falar com a morte. É ela quem vai ter a última palavra, a

derradeira decisão. Já sabias isso, não sabias, Sibel?

Sibel: Para ser sincera, não. Nunca pensei que fosse ela a entrevistar-nos nesta fase.

Ema: E única.

Sibel: Sempre julguei que ela se ocupasse de uma qualquer fase final, que ela fosse o topo

de uma hierarquia.

Ema: De certa forma, é.

Nuno: Diz-nos Ema, tu que és a mais experiente entre nós, já a confrontaste, alguma vez,

cara a cara, não já? Como é que ela é?

Sibel: Sim, diz-nos.

Nuno: Tem um rosto, como nós?

Sibel: Ou tem a tez de uma sombria caveira que nos faz emudecer perante a sua imagem?

Ema: Sempre me intrigou o porquê de lhe chamarmos “a morte”, tratando-a sempre no

género feminino, quando, na realidade, a morte não tem sexo, não é masculino nem

feminino; simplesmente é.

Nuno: Como a vida.

Sibel: Mas diz sem demoras. Qual é o seu aspecto?

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Nuno: Se lhe ouviste a voz deves saber se ela se parece mais com uma voz feminina ou

masculina.

Ema: A voz que lhe vais ouvir é igual à tua, pelo que parecerá que estás a falar contigo

próprio.

Sibel: E como é que ela é?

Ema: Acho que a minha resposta não vos irá saciar a curiosidade, pois o seu aspecto,

segundo me constou, difere também de indivíduo para indivíduo. Cada um tem a sua

figuração particular.

Nuno: Isso já me custa a acreditar. Deve ser um boato qualquer que algum frustrado

lançou após ter sido recusado. A morte deve ser igual para todos, sem espectáculos ou

vestimentas especiais ou o que quer que seja…

Sibel: ( dirigindo-se a Nuno ) A morte sim, mas não a forma de morrer.

( dirige-se a Ema ) Já falaste com outros candidatos, e então, eles não viram a morte na

mesma forma que tu?

Ema: Não propriamente. Sabes, aqueles que conseguem chegar à entrevista não

comunicam muito uns com os outros. O estado de espírito que nos traz aqui não nos

sugere qualquer diálogo. Entras e sais com o teu silêncio. O ambiente é lúgubre e

pesado. Hoje é uma excepção Sibel, tu é que nos motivaste para a conversa.

Sibel: Obrigada.

Nuno: Não sei…

Sibel: Mas ainda não descreveste a forma como que a viste.

Ema: Certo dia, encontrei um velho amigo de infância que também havia sido chamado.

Claro está que, apesar de toda a melancolia que nos arrastava, não hesitamos em ter

uma saudosa conversa acerca das nossas vidas, dos nossos antigos colegas e dos

motivos que nos levavam a concorrer. Devo salientar que foi a última vez que o vi,

pelo que deduzi que ele tivesse ficado com o lugar a que se candidatava. Mas, como

estava a dizer, encontrei-o e, após as nossas entrevistas, bebemos um breve café e

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comentámos o que se passara connosco no interior da sala de entrevistas. Foi quando

percebi que a voz com que a morte nos falava era igual à nossa. O seu aspecto, esse

importante pormenor… Vou-vos contar como ele a viu, pois não me apetece falar

agora dessa fase da minha vida… das formas como ela se apresentou a mim.

Sibel: Sim.

Ema: Primeiro, assim que ele entrou, foi convidado a sentar-se numa cadeira, em frente a

uma sumptuosa secretária, por um homem alto vestido com um fato negro, uma

espécie de homem de negócios. Em seguida, depois de se ter sentado, quando voltou a

olhar em frente para o tal homem, que já se sentara por detrás da secretária, o aspecto

deste mudara, estando agora vestido com um manto negro que não lhe deixava ver o

rosto e aquilo que se podia perceber das suas mãos, que surgiam de umas largas

mangas, era de uma ofuscante palidez.

Sibel: Assustador.

Nuno: Quem chega à fase das entrevistas já deve ter perdido todo o medo, ou então, a

entrevista é a verdadeira prova de que não se está preparado.

Ema: Também acho.

Sibel: Continua Ema.

Ema: Nas minhas entrevistas nunca foi um homem a convidar-me a sentar, mas sim

sempre a mesma mulher, mais ou menos da minha idade…

Sibel: Isso Ema. Partilha connosco as tuas experiências passadas. Desabafa e esquece o

que lá vai.

Nuno: ( com voz intrigada ) Mas sempre uma figura enigmática?

Ema: Com a minha voz.

Sibel: ( com espanto ) Hãããã?

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Ema: Voltando ao meu amigo; então, ele respondeu às perguntas que lhe foram feitas e

fez também as que lhe foram permitidas. No entanto, as mutações do interrogador não

haviam ainda terminado, pois, durante um momento de distracção desse meu amigo,

em que o seu olhar foi desviado por um estranho ruído atrás de si, quando voltou a

mirar o tal personagem, ele assemelhava-se fisicamente a ele, mas com o corpo

ensanguentado. O meu amigo assustou-se com aquele espectro que assim o tentava

aterrorizar, mas, como era bastante perspicaz e corajoso e estava realmente preparado

para aquele lugar, manteve a calma ignorando o aspecto do seu oponente.

Nuno: De facto, é um pouco medonha essa história.

Ema: Tu próprio o disseste: quem tem a hipótese de ser entrevistado já não deve ter medo

algum.

Sibel: Brrrrr!

Nuno: Acho que já percebi o método. Acho que já desvendei a aparência da pessoa que

me vai atender.

Sibel: Da morte, queres tu dizer.

Ema: Não estejas tão certo, pois também sei de quem não tenha experienciado nada disto

e a sua entrevista tenha sido feita, durante todo o seu tempo de duração, por uma

velhinha simpática.

Nuno: Como?

Ema: Aconteceu-me da primeira vez.

Sibel: E das outras?

Ema: Não me apetece falar.

Nuno: A vida é feita de segredos.

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Sibel: Felizmente…

Ema: Ou infelizmente…

Nuno: Cada um tem os seus motivos, por isso é que estamos aqui, as causas e as

consequências.

Sibel: Será que nos dizem se ficámos aptos ou não, a seguir à entrevista?

Ema: Se não ficares, não te preocupes que ficas logo a saber. Se não te disserem

directamente dão-te a entender o resultado.

Nuno: E se formos aceites, o que é que fazem?

Ema: Nunca fui aceite, mas acho que está relacionado com o número de vagas. Se forem

poucas, ou apenas uma, a decisão ainda se prolonga por mais uns dias de ponderação;

se forem muitas, acho que avisam imediatamente a seguir; mas não sei.

Sibel: E tu Ema, por que é que te candidatas?

Ema: Há anos que concorro desesperadamente. Sempre que surge uma vaga não hesito.

Entretanto, vou saltando de psicólogo em psiquiatra e finjo que isso me mantém

calma e estável, vou saltando de medicamento em medicamento. Depois, entro em

depressão e tudo me é insuportável. Como se não bastasse essa sensação, e como sou

um bocado anti-social…

Nuno: …Quem diria…

Ema: As pessoas incomodam-me com as suas insignificâncias. Parece que tenho uma

grande tendência para me envolver em situações complicadas, com as pessoas erradas

e, por mais que tente, acabo sempre por magoar e por afastar aqueles que realmente se

preocupam comigo. Por vezes, é tarde de mais para voltar atrás com certas coisas.

Não aguento todo este caos. Faço sempre tudo mal.

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Sibel: Bem-vinda. Não me contas nada que eu não conheça bem. Também constam do

meu curriculum essas habilitações, mas eu ainda tenho os fiascos familiares e uma

adolescência repleta de episódios inesquecíveis.

Ema: A tragédia do irreversível.

Nuno: São esses os vossos argumentos? Essas meras apoquentações parecem-me fruto de

uma supérflua condução da vida. ( acena negativamente com a cabeça )

Ema: Ó meu senhor! Peço desculpa! Quais são então os seus tão nobres motivos?

Sibel: Aposto que são passionais, aposto!

Ema: ( ironicamente ) Espera. Deixa-o falar.

Nuno: Tens alguma razão, mas não toda. Por vezes, apesar das várias experiências que

possamos ter tido, existem sempre aquelas mais especiais cujo significado se torna

difícil de apagar. A quantas terá cada um de nós direito até encontrar a felicidade? Se

é que ela existe. Não estou aqui por nenhuma situação passional em específico, mas

sim por um conjunto de outros factores que, associados a um último, esse sim

passional, me conduziram a este lugar.

Sibel: Eu não disse!?

Ema: Cada pessoa sente à sua maneira as outras pessoas da sua vida.

Ema e Nuno trocam cumplicemente um longo e penetrante olhar.

Nuno: Uma das coisas que mais me incomoda, nas noites em que a solidão e a insónia

trabalham em conjunto, nas reflexões que julgo que todos temos, é saber que aqueles

fantasmas, a miragem das ilusões e desilusões antigas, permanecerão sempre, durante

toda a nossa vida, à espera dos oportunos momentos da nossa fraqueza para poderem

atacar.

Sibel: Eu também sofro dessa enfermidade.

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Nuno: Até mesmo, quando passamos por uma fase mais feliz, e julgamos ter encontrado

harmonia para a nossa vida, o assalto de uma memória ou a imagem de uma pessoa,

vem lançar um vendaval de conflitos à nossa consciência.

Ema: E voltamos ao ponto de partida. Destruímos o que temos, apesar de nunca vir-mos a

recuperar aquilo que outrora perdemos. Um ciclo vicioso, para mim…( breve pausa em silêncio )

Nuno: Andamos em busca de uma explicação, de um sentido, de algo… eu sempre fui

uma criatura solitária e errante.

Ema: Andamos em busca de um nada que seja o tudo.

Sibel: Cada qual a seu modo.

Ema: De um destino, se é que ele existe.

Nuno: Mas nós já não esperamos algo que não seja esta única hipótese, a qual será a

verdadeira resposta para tudo.

Ema: Talvez sim, talvez não.

Sibel: Existe sempre uma esperança. Ela é a última a morrer.

Ema: Já vi porque não conseguiste ser recebida das outras vezes. Ainda hesitas, ainda

tens esperança, nem todas as luzes se apagaram para ti, existe um “se”.

Nuno: Mas tu também ainda não conseguiste um lugar, apesar das tuas várias tentativas e

entrevistas… ( sorri afavelmente para Ema )

Ema: Como já te disse, desta vez as minhas condições são boas, estou melhor preparada e

mais experiente.

Nuno: ( em tom melancólico ) Sabes o que me é mais complicado, e muito provavelmente a

origem dos meus maiores conflitos e frustrações? O confronto comigo mesmo, as

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decisões entre aquilo que eu sei estar bem ou mal, mas tantas vezes tenho de

contrariar a minha razão com um vago impulso ou uma vazia irreflexão.

Sibel: Precipitações.

Ema: Acho que nunca teremos as respostas correctas para aquilo que queremos, ou, se,

porventura, as avistámos alguma vez, fomos demasiado covardes para nelas confiar.

Sibel: Como um jogo do qual ninguém nos ensinou as regras mas que aos poucos as

fomos aprendendo.

Ema: Ou não tivemos outra hipótese senão aprendê-las.

Nuno: Até ser tarde demais para voltar a esse jogo.

Sibel: Ou perder.

Ema: Ou desistir de jogar.

Nuno: Por isso aqui estamos.

Ema: É complicado…

Silêncio em que eles mexem nas revistam ou distraem-se com qualquer outra coisa.

Sibel: Vocês têm preferência por algum processo especial.

Nuno: Eu escrevi que preferia uma coisa que fosse calma, sem dar grande trabalho nem

demasiada agonia. Uma coisa rápida.

Sibel: Como quem adormece para um sono de paz.

Ema: Um pouco de dramatismo e de espectáculo também não fica nada mal.

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Nuno: Não sou muito adepto de espectáculos de sangue.

Ema: Também não me referi obrigatoriamente a situações que envolvam sangue.

Sibel: Elixires mágicos.

Nuno: Temos um coisa em comum: a coragem que nos impele a esta escolha.

Ema: Ou a covardia.

Sibel: Eu não sou muito corajosa, e talvez por isso nunca me tenham aceite; talvez por

isso as coisas nunca me tenham acontecido como eu desejava que fossem.

Nuno: Quando o optimismo, os sonhos e a ansiedade são uma inconstante e a nossa

cabeça anda aos altos e baixos, o enjoo que daí provém só deixa a vontade para uma

coisa.

Ema: Chegar até aqui.

Nuno: Terminar com a viagem dessa montanha russa.

Ouve-se uma voz que chama por Ema.

Voz: Menina Ema, faça o favor de entrar. Aguardam-na para proceder à sua entrevista.

Sibel: Estão a chamar-te, vai lá, despacha-te.

Ema: Bem, acho que chegou a minha vez. Se não nos voltarmos a ver desejo-vos boa

sorte.

Sibel: Quando saíres ainda vamos cá estar.

Nuno: Boa sorte, Ema.

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Ema: Obrigada Nuno.

Ema sai daquele grupo e dirige-se para a porta que está um pouco mais afastada. Antes de bater à porta lança um olhar a Nuno.

CENA II

Bate à porta e uma voz igual à sua responde-lhe que entre. Lá, encontra-se uma velhinha, da qual não se percebe nitidamente o rosto, que fala com Ema com a mesma voz igual à sua. ( gravação prévia da voz de Ema )

Ema: Dá licença?

Velha: Faça o favor de entrar.

Ema entra e vê uma velhinha sentada atrás de uma mesa. A iluminação salienta agora esta acção.

Ema: ( assim que vê a velhinha ) Ó não!

Velha: O que se passa menina, não está feliz por estar aqui?

Ema: Já sei o que isto significa. Não vou conseguir. E eu que julgava ter chegado mais

perto desta vez.

Velha: Mais perto de quê?

Ema: Deixemo-nos de rodeios, vocês já me conhecem bem e eu já conheço o significado

de algumas das vossas aparições. Esta entrevista escusa de ser feita. Terei de tentar

novamente e já estou farta.

Velha: Sim, conhecemo-la demasiado bem, e devo salientar-lhe que desta vez esteve quase

a conseguir. O seu curriculum estava muito bom mas…

Ema: Mas houve um imprevisto de última hora que mudou tudo.

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Velha: Você é inteligente Ema, percebeu facilmente o porquê de ainda não ter chegado a

sua vez. Para conseguir o lugar é preciso estar liberto de qualquer dúvida ou afecto.

Ema: De qualquer vaga esperança.

Velha: De qualquer enredo. De qualquer jogo ( risos )

Ema: Não percamos mais tempo, então.

Velha: Sim, pode sair. Foi um prazer revê-la. Até à próxima, se é que quer continuar a

concorrer; e eu tenho quase a certeza que o vai fazer. Pode mandar entrar o rapaz que

está na sala de espera, o seu amigo.

Ema lança uma postura sarcástica à velha e sai.

CENA III A iluminação volta a destacar a sala de espera. Ema chega junto dos outros.

Nuno: Então, como é que correu?

Sibel: Foi rápido.

Ema: Ainda não foi desta.

Sibel: Que pena. Deixa lá, hás-de conseguir para a próxima.

Nuno: O que é que te perguntaram?

Ema: Nada de especial, nada de novo, foi muito rápido. Foi uma velhinha que falou

comigo. Disse-me que te mandasse entrar.

Sibel: Boa sorte Nuno. Mantém-te calmo.

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Nuno: ( dirigindo-se a Ema ) Ainda ficas por aqui mais um pouco, só até eu sair.

Ema: Pode ser. Se conseguires podemos ir festejar.

Sibel: Boa ideia!

CENA IV

Nuno caminha para a porta, que ficou entreaberta, e entra. No interior encontra um homem que lhe fala com uma voz igual à sua e que é parecido com consigo.

Nuno: Posso entrar?

Homem: Faça favor.

Nuno: Então o senhor é que é a morte?

Homem: Acha que é esta a aparência da morte.

Nuno: Não sei. Pode ser qualquer coisa.

Homem: ( risos ) Bem, mas deixemos esta conversa e vamos ao que interessa. Analisámos o

seu curriculum com atenção e devo dizer-lhe que temos alguns candidatos com as

mesmas características que você tem…

Nuno: Mas nenhum é igual a mim. Cada pessoa é única.

Homem: Hoje estamos a ter candidatos muito atentos ( diz ironicamente ). Tem razão, por mais

semelhanças que os casos possam ter existe sempre o importante aspecto da

singularidade.

Nuno: Se reparar com atenção, na segunda página do meu curriculum vai ver que tenho

tudo o que é necessário para ficar com este lugar.

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Homem: Permita-me discordar, mas acho que ainda lhe falta mais alguma experiência em

certos aspectos.

Nuno: Isso significa que não vou conseguir já?

Homem: Provavelmente não, mas julgo que dentro em breve terá ajuda ( ri ).

Nuno: Como?

Homem: Nada, nada. Se não tiver alguma coisa a acrescentar pode sair e mandar entrar a

rapariga que está à espera.

Nuno: Nesse caso, vou-me embora.

Homem: Não fique triste, já lhe falta pouco. Despeço-me de si com um até breve.

Nuno: Bom dia. ( caminha para a porta )

Homem: Felicidades. ( diz para si mesmo com ironia )

CENA V

Nuno chega junto das raparigas. Sibel está inquieta e nervosa, enquanto Ema está calma, sentada de perna cruzada.

Nuno: Também não consegui, mas acho que deixei uma boa imagem. Eles tinham boas

referências minhas, mas ainda não estou suficientemente preparado.

Sibel: E então?

Ema: Com quem é que falaste?

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Nuno: Um homem, bem vestido, ainda novo, mais ou menos com a minha idade, mas

também foi uma coisa muito rápida. Ele foi atencioso e disse-me que havia pessoas

mais necessitadas e com tantas ou mais aptidões do que eu.

Ema: O “eu” é sempre mais necessitado do que o “tu”, só que o “ele”, o juiz, é quem

decide.

Nuno: Chegou a tua vez Sibel, mandaram-te entrar.

Sibel: Brrrrr! Até daqui a pouco.

Ema e Nuno ficam sozinhos na sala de espera.

Ema: Vamos sair daqui?

Nuno: E a Sibel?

Ema: Ela fica bem. De qualquer forma, já fomos eliminados e ela ainda pode vir a

conseguir. Agora temos de voltar para as nossas vidas.

Nuno: Mas já nada será igual. Esta experiência…

Ema: Esta experiência não é nova e com o tempo habituas-te. Conheço um café muito

simpático onde se pode falar calmamente sem se ser incomodado; queres vir?

Nuno: Claro que sim.

Saem de cena de mão dada e á medida que se afastam vão ficando mais juntos, até que ele lhe põe o braço sobre os ombros.

CENA VI

Entretanto, Sibel entra na sala de entrevista e encontra uma personagem coberta com um fato negro, com um capuz que lhe esconde o rosto. A voz da personagem é a mesma de Sibel.

Sibel: Olá, bom dia. Posso entrar?

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Morte: Entre Sibel. Finalmente conseguiu chegar aqui.

Sibel: É verdade.

Morte: O seu curriculum é interessante e fez-me pensar bastante, nomeadamente naquela

referência que faz ao facto de não saber o que há-de fazer se não conseguir este lugar.

Diz que não sabe para onde ir quando sair daqui.

Sibel: Mas eu não tenho nada disso no curriculum.

Morte: Mas é o que lhe passa pela cabeça, não é?

Sibel: Sim, é.

Morte: A Sibel é muito comunicativa e não tem dificuldades em conhecer novas pessoas

ou em conviver com quem quer que seja. Não quer ponderar melhor? Nunca se sabe o

que nos reserva o amanhã.

Sibel: Disfarço bem. Se vocês sabem tanta coisa certamente que também sabem que é

assim.

Morte: Sabemos, mas precisamos de ter a certeza que a Sibel o sabe.

Sibel: Não é a primeira vez que tento.

Morte: Das outras não estava convicta, assim como os seus colegas que saíram há pouco, e

nós sabíamo-lo.

Sibel: E desta?

Morte: Poderia sempre tentar de novo, quando saísse daqui.

Sibel: A exaustão causada pelas várias tentativas frustradas não me faz acreditar.

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Ouve-se um grande estrondo. Sibel olha para trás assustada. Quando volta a olhar para a personagem esta, despida do capuz negro, tem o aspecto cadavérico de uma rapariga parecida com ela. A rapariga trata agora Sibel por tu.

Morte: Pensa bem Sibel. É impossível voltar atrás. Tu sempre foste capaz de sorrir ao

desespero, tu nunca foste a covarde que julgas ser. Tu olhas-me nos olhos com

confiança, com a mesma confiança com que ambicionas olhar o Mundo. Se ele te

respondeu, até hoje, só com penosos desafios significa que é chegada a altura de tu o

desafiares a ele. Ignora-lhe as insignificâncias que ele apresenta como tenebrosas

grandiosidades impossíveis de ultrapassar. Aprende a tropeçar sem olhar para trás.

Reflecte na tua importância. Esquece o que está à tua volta e procura a solução dentro

de ti, o único lugar onde a poderás encontrar.

Tu própria estimulaste a conversa entre aqueles volúveis espíritos que aguardavam

na sala de espera. Para o bem ou para o mal, tu influenciaste as suas vidas, pois

ninguém comunica muito nos corredores deste edifício. Pensa bem, recorda todos

aqueles a quem um gesto teu, uma simples palavra, influenciou positivamente.

Extingue o pessimismo que te corrói e aprende a ver tudo com uma nova e especial

atenção. Esquece os teus defeitos passados e encara o futuro com uma atitude mais

positiva.

Sibel: Estou demasiado confusa.

Morte: Esse é o sinal de que ainda não estás preparada. Fiz-te pensar e tu reagiste como eu

esperava.

Sibel: Não consegui?

Morte: Não. Ainda tens muito para fazer e tens boas hipóteses em conseguir ser diferente

daquilo que hoje és. Espero que não voltes a concorrer, mas quem sabe…

Sibel: Devo então ir-me embora?

Morte: Sim, já não tens nada a fazer aqui.

Sibel: Por enquanto.

Morte: Talvez.

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 24

Sibel: Pois, talvez. Adeus e obrigada pela motivação.

Morte: Adeus Sibel.

Sibel abandona a sala da entrevista ao som de uma música calma e, enquanto se passeia pelo palco, ouvem-se sons da natureza, como água, pássaros, entre outros. Sibel está sorridente e atenta a tudo.

FIM

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

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Deus,

ou a alucinação

de um

moribundo

03

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 26

Um homem, de nome Alexandre, está deitado numa cama, moribundo. Ouvem-se fortes ruídos de tempestade, latas a bater, violentos relâmpagos, gritos, entre outros sons, os quais acompanham o homem em contorções espasmáticas. Em seguida, surge uma música muito calma, a qual deixa o homem também calmo. Por trás de si surge uma ofuscante luz. Dessa luz sai uma bela e jovem mulher que se dirige a ele.

Mulher- Bem-vindo Alexandre. Espero que a partida não te tenha sido muito

dolorosa.

Alexandre- ( desconfiado ) Bem-vindo? Onde? O que é que se passa?

Mulher- Ainda não percebeste? Não sabes o que te aconteceu?

Alexandre- Quem és tu? Onde é que eu estou?

Mulher- Acalma-te, acabaste de chegar. É claro que ainda estás confuso, mas isso é

normal, acontece a todos. É a fase de transição, acabarás por te habituar.

Passa-lhe carinhosamente a mão pela cabeça, mas ele afasta-a assustado.

Alexandre- De onde é que surgiste, és alguma médica ou feiticeira? Não te conheço e

não estou a gostar nada disto.

Mulher- Não penses muito, deixa que tudo se explique por si mesmo. Sê paciente.

Alexandre- Deixa-te de enigmas e diz-me quem és.

Mulher- ( sorrindo ) Enigmas, eu?

Alexandre- Já sei. ( sorri também ) És uma prostituta que alguém contratou para dar a

este moribundo os últimos sabores terrenos, mas, devo-te dizer que estou demasiado

doente para essas coisas.

Mulher- ( risos ) Nada disso. A minha função é outra, nada tem a ver com os prazeres

da carne.

Alexandre- Uma sacerdotisa de uma qualquer religião que me veio ouvir ou

confessar?

Mulher- Também não.

Alexandre- Então, o que vieste fazer aqui? Qual o teu objectivo em vir perturbar o

meu descanso?

Mulher- Tu é que viste para cá. Eu, perdi já a contagem das ocasiões em que cá vim,

faço muitas vezes o papel de anfitriã aos recém-chegados. Apesar de não me

conheceres eu conheço-te muito bem, mesmo sem nunca teres acreditado em mim.

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Emanuel R. Marques 27

Alexandre- Acreditado em ti? Não me recordo de ti e já disse que não te conheço.

Estou aqui doente, nesta cama, sem saber se terei muito mais tempo de vida e… ( pausa ) apareces-me tu com essa conversa estranha… ( pausa ) será que…?

Mulher- Será que morreste? Não é isso que queres perguntar?

Alexandre- ( responde inquieto ) Não! Quem é que te enviou para me assustares? Se

isto é uma brincadeira aconselho-te a parar, pois não lhe estou a achar piada e devias

ter mais respeito pelos doentes. Foi algum amigo ou inimigo, quem te enviou?

Mulher- Ninguém me enviou, tu é que vieste, já to disse.

Alexandre- Estou a ficar irritado! Sai daqui!

Mulher- Sim, mas antes responde-me, as dores insuportáveis que ainda há pouco

sentias, ainda as sentes? Ainda agonizas pelas fraquezas do teu corpo?

Alexandre- Não. ( responde assustado )

Mulher- Diz-me então, tens fome, sede, calor, frio, qualquer sensação, algo que não

seja essa tua impetuosa curiosidade?

Alexandre- Isso significa que realmente estou…

Mulher- … estás.

Alexandre- E eu que pensava que a morte me chegaria de outra forma. Tinha

esperança, apesar de ter noção da dimensão da minha enfermidade, que ainda pudesse

viver mais algum tempo. Agora, que penso nisso, acho que se voltasse a viver

mudaria bastantes coisas, experimentava muitas outras coisas. Nem acredito que isto

me aconteceu, nem sei o que pensar.

Mulher- Os seres humanos são peritos nessa arte e sempre a souberam desenvolver.

Alexandre- Qual arte?

Mulher- Pensar.

Alexandre- Espera lá… mas eu estou aqui a falar contigo, estou-te a ver, estou a

pensar…

Mulher- Mas ninguém disse que só os vivos faziam isso.

Alexandre- Mas também me consigo ver a mim, o meu corpo.

Mulher- Por essa lógica, os cegos não existiam, por não se conseguirem ver a si

próprios.

Alexandre- Também me consigo sentir.

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Emanuel R. Marques 28

Mulher- Por enquanto.

Alexandre- Então, isto significa que existe mesmo vida depois da vida?

Mulher- Ninguém disse que estavas vivo, tu é que lhe estás a chamar vida.

As religiões foram o vosso pior entretenimento. Quando os homens começaram a

inventar aquelas coisas percebi que, a partir daí, tudo estava perdido; a necessidade de

ter uma crença, em construir um símbolo da perfeição, mas uma perfeição enquadrada

nos sonhos e limitações do Homem. Depois, vieram as conveniências associadas à

ignorância e à manipulação; uma desgraça. Mas, a imaginação e a capacidade de

inventar e criar, são características inerentes à vossa espécie. Não são meros animais.

Alexandre- És um anjo? Um enviado de Deus?

Mulher- Acreditas mesmo em Deus?

Alexandre- Não, mas, agora, já não sei ao certo no que acredito.

Mulher- Achas que tenho aparência de anjo?

Alexandre- Tens a aparência de uma mulher bonita. Se eu acreditasse em anjos

poderias ser um belo e cândido anjo redentor, que me vinha iluminar, mas também

podes ser um sedutor demónio enviado para me apoquentar.

Mulher- ( rindo ) Não acreditas em Deus e acreditas em demónios?

Alexandre- Não. São apenas deduções vagas. Os ensinamentos de uma vida que me

levam a duvidar e a questionar tudo. Tenho os meus anjos e os meus demónios

pessoais, mas não têm o aspecto nem o misticismo daqueles que várias pessoas

insistem em comungar.

Mulher- Um homem que tem, que cria, os seus deuses e os seus demónios. Pelo

menos, não tentas incutir aos outros os teus medos e fantasmas, como se fossem uma

verdade universal. Mas, não vamos discutir os erros que uma espécie cometeu em

meu nome.

Alexandre- Deixa-me ver se percebo o que se está a passar. Estás-me a tentar

convencer de que és Deus? Então é esta a verdadeira forma de Deus? Criados à sua

imagem…

Mulher- Claro, mas se fosse um cão a criar um Deus, de certeza que o criaria também

à sua imagem.

Alexandre- Mas foi Deus quem criou o Homem ou foi o Homem que criou Deus?

Mulher- Ou criaram-se simultaneamente à imagem um do outro?

Alexandre- Estás-me a confundir ou estás simplesmente a testar as minhas

convicções? Sempre imaginei, aliás, a minha cultura sempre imaginou Deus como um

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velho sábio com longas barbas brancas e uma túnica branca e comprida. Afinal, o

Deus que os crentes julgam ser um homem é, na realidade, uma mulher.

Mulher- Talvez. Mas tu, acreditas mais facilmente num velho de barbas ou numa

mulher sensual?

Alexandre- As palavras de um velho talvez sejam mais credíveis, não só pela sua

longevidade e experiência de vida, mas também, porque em minha opinião, as

mulheres mais bonitas podem ser também as mais traiçoeiras. Teria de fazer uma

análise minuciosa, dependeria de vários factores.

Mulher- E qual dos dois seguirias, prontamente, se te convidasse para um lugar ou

uma acção; qual te convenceria mais facilmente de uma qualquer coisa; … por

exemplo, da existência de Deus?

Alexandre- A mulher bonita teria a capacidade de me enfeitiçar, cativar, controlar

com maior facilidade. Trunfos que o velho nunca poderia jogar. Mas dependeria de

uma série de aspectos, do meu estado de espírito na altura.

Mulher- Sendo assim, Deus teria mais probabilidades em te convencer da sua

existência, em te tornar seu crente, se te aparecesse como uma bela mulher e não

como um sábio ancião.

Alexandre- Custa-me a acreditar que sejas Deus. Um Deus sedutor, não me parece.

Mulher- Também te poderia aparecer sob a forma de um qualquer Deus oriental,

mas, provavelmente, não me reconhecerias e o meu aspecto só te assustaria.

Alexandre- De qualquer forma, nunca me passaria pela cabeça apaixonar-me por um

medonho Deus oriental e, nessa estranha forma, talvez ele estivesse mais perto

daquilo que é concebível num Deus.

Mulher- E por um ocidental, aposto que também nunca te passou pela cabeça

apaixonares-te. Seria uma blasfémia. ( sorri )

Alexandre- Não, mas se tu dizes que és Deus… deve ser fácil o comum dos mortais

apaixonar-se por ti. És jovem, bonita e sensual…

Mulher- Mas tu é que me vês sob esta forma. O Homem vê-me como quer, ou como

lhe é mais fácil, ou como lhe é mais conveniente…

Alexandre- Se é assim como dizes, qual é a tua forma verdadeira?

Mulher- Todas e nenhuma.

Alexandre- Mas deves ter uma que seja a tua identidade pessoal, um reflexo para as

tuas introspecções.

Mulher- Esse conceito de introspecção de que falas é uma criação humana, assim

como inúmeras outras coisas; tantas outras necessidades e insignificâncias.

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 30

Alexandre- Estás-me agora a falar de criação humana? ( sorri ) Mas não és tu o

criador, perdão, a criadora da humanidade e de todos os desígnios do Universo?

Mulher- Sim, eu criei muita coisa, mas nada tenho que ver com aquilo que vocês

fazem, com as causas e consequências dos vossos actos; as leis naturais conduzem-se

por si mesmas.

Alexandre- E quanto à velha batalha entre o bem e o mal?

Mulher- O bem e o mal são coisas vossas, eu estou acima disso.

Alexandre- E o que tens a dizer quanto àquelas situações em que as pessoas precisam

de ajuda, principalmente as que te veneram em cultos e te devotam grande fé? As

pessoas que morrem à fome e os inocentes das guerras…

Mulher- A vida na Terra não é fácil, eu sei, mas, se assim não fosse, também não se

chamaria Terra e chamar-se-ia paraíso. A fé é boa para as pessoas, pois ajuda-as a

terem confiança em si mesmas e a ultrapassar certos obstáculos, mas isso não

significa que, realmente, eu tenha algo a ver com isso. A responsabilidade pelo que

acontece, aquilo que vocês consideram bem ou mal, não deve ser atribuída a uma

entidade, à qual inventam mais do que aquilo que na realidade conhecem.

Alexandre- Estás-me então a confirmar que és Deus? Se assim é, tu estás em todo o

lado, pelo que deves saber tudo de todos, a capacidade de evitar ou indicar certos

passos.

Mulher- O Van Gogh também pode ser encontrado em todos os quadros que pintou e,

no entanto, o rumo que esses quadros levaram nada teve a ver com qualquer

influência por parte do artista. Talvez pudesse ter tido algum papel, se não tivesse

morrido demasiado cedo, no destino de algumas das suas obras, mas nunca no de

todas.

Alexandre- Estou cada vez mais confuso, continuo sem perceber o que está aqui a

acontecer. Gostava que fosses mais explícita, mais simples e concreta no que disseres.

Estou com dificuldade em perceber o que se está realmente a passar.

Mulher- Tudo a seu tempo.

Alexandre- Estou no Céu ou na Terra? É que, se já morri, por que é que ainda estou

nesta cama? E o que é que me vai acontecer? Vou para algum lado, para um céu, um

inferno, um purgatório…?

Mulher- Existirá Terra e Céu, ou será tudo uma vaga ilusão entre um princípio e um

fim? Será que existe mesmo um Deus?

Alexandre- A eterna questão. Mas, afinal, és ou não és Deus, ou Deusa, ou um ser

sagrado?

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Emanuel R. Marques 31

Mulher- Não terás já conhecido o Céu e o Inferno, provado dos seus distintos

sabores? Existirão respostas, ou mesmo perguntas, ou não será este jogo um

complicado passatempo que o Homem finge jogar para se evadir à sua verdadeira

condição?

De súbito, todas as luzes se apagam. O homem deixa de se ver, assim como a mulher que dizia ser Deus, assim como todo o cenário envolvente, que sucumbe para um escuridão total. O final ficou em aberto, inexplicável, …

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Introsociocaos

O4

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Personagens:

Homem ( principal )

Apagador

Mulher, Mulher 2, Homem 2

Jornalista

Deus

Todas as introduções de cena e passagens entre cenas serão acompanhadas de

música/sons originais

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Emanuel R. Marques 34

Um homem, de meia-idade, aspecto pensativo, roupa escura, destacando-se o casaco comprido, passeia-se pelo cenário e fala, quase sob forma de divagação, junto a manequins. Por trás de todos os cenários que vão aparecer existe um grande fundo comum, imagem, que representa um cérebro, mas pintado de várias formas, artisticamente adulterado, mas mantendo a percepção do órgão que é.

I Cena

Está sentado numa cadeira no centro do palco, no centro de todas as atenções e cenários. Começa o seu discurso como se se estivesse a exprimir para um amigo íntimo, sendo-lhe notório o olhar vago. Por vezes desvia o olhar para o chão.

Homem: Acabei de chegar a casa, a uma casa secreta e especial onde tudo é ambíguo e

descontrolado. No entanto, é nela que me sinto bem e por vezes consigo alcançar uma

breve paz que em lugar algum conseguiria encontrar. Aqui, não tenho nome,

ocupação, estado civil, noções do que quer que seja, todas essas coisas, mas, em

contrapartida, tenho vários nomes, ocupações, estados civis, uma amálgama de

conceitos e contradições. Acabei de afirmar que é nela que me sinto bem, mas, se

calhar, nem sempre é assim.

Sei que nesta casa existem fantasmas, anjos, demónios, criaturas horripilantes e

benevolentes que me torturam e fustigam. São impossíveis de distinguir e trocam

várias vezes de indumentária, o que me deixa ainda mais confuso. Mas não faz mal,

São todos iguais. Também eles se confundem entre si. São talvez existencialistas. Mas

não faz mal. Sou o dono da casa.

Alguns, são belos e voluptuosos, outros, ameaçadoras encarnações. Mas não faz

mal, aos poucos, libertam-se de todos os preceitos caracterizadores e é impossível

fazer distinções.

( Breve pausa e levanta-se da cadeira )

Hoje sou nada. Ontem, talvez tenha sido alguma coisa. Amanhã, ainda não sei.

Agora, sou nada, mas um nada demasiado complexo e repleto de desnecessário. Uma

convergência de passado e de futuro.

E a vida são devaneios sociais, onde todos temos a obrigação de ser egocêntricos.

( Caminha calmamente em direcção à sua direita )

II Cena Encontra um homem, com aspecto de professor louco, que apaga frenética e incansavelmente um quadro. Aproxima-se, observa um pouco, e dirige-lhe a palavra. Em frente ao quadro está uma cadeira, onde o homem que apaga por vezes se senta para confirmar a sua limpeza àquela distância. Inúmeros livros empilhados estão espalhados pelo chão.

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Homem: Desculpe a interrupção, mas acho que já está tudo apagado. Pode descansar.

Apagador: Não, não. Não está.

Homem: Daqui não se nota qualquer vestígio de giz.

Apagador: É natural, você ainda está um pouco afastado.

Homem: O que é que falta?

Apagador: Tudo.

Homem: Tudo?

Apagador: Tudo aquilo que não é necessário e deve ser apagado.

Homem: Sinceramente, eu vejo apenas um quadro negro completamente vazio.

( O apagador senta-se na cadeira, a olhar atenciosamente para o quadro ,e responde ao seu interlocutor )

Apagador: É uma questão de prática. Provavelmente, não está habituado a apagar, por isso não

tem uma visão tão apurada, ou, então, não sabe como apagar com minuciosidade.

Sabe, tem de se ser bom a limpar o que não faz falta, o que pode ser prejudicial, mas

compreendo que não seja fácil para quem não está habituado. ( Pega num pano, molha-o num balde, despeja-lhe em detergente e esfrega o quadro )

Homem: Quer-me então dizer que o quadro ainda vai ficar mais limpo do que já está?

Apagador: É preciso prestar atenção aos pormenores, às pequenas coisas que parecem

invisíveis, pois basta um pequeno ponto imperceptível para desencadear o caos.

Homem:

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Vejo que você é um homem obstinado. Eu respeito pessoas assim. Posso ajudá-lo? ( Sorri )

Apagador: Agradeço-lhe, mas tenho de ser apenas eu a limpar este quadro. Além disso, você

não consegue ver ou perceber o que falta apagar. Seria ridículo para si tentar.

Homem: Realmente, sentir-me-ia ridículo a tentar apagar o que não vejo. ( Pausa em que ele se aproxima do quadro e tenta encontrar nele qualquer sombra ou marca ) Tem a certeza

que ainda vê qualquer vestígio?

Apagador: Tão certo como eu estar aqui.

Homem: E acha que vai demorar muito?

Apagador: É provável. Desta vez estava bastante sujo e ainda tem muita coisa. Fico o tempo

que for preciso para deixar este quadro impecável.

Homem: E há quanto tempo é que está aqui?

Apagador: Desde que a lição terminou.

Homem: E isso foi há quantos minutos?

Apagador: Não sei ao certo, mas há volta de 44640.

Homem: Como? ( sorri )

Apagador: Tenho de tê-lo limpo para a próxima. A utilidade das lições é aprendermos com

elas, e não ficarem expostas para que as olhemos eternamente como único dado

adquirido.

( Após uma breve pausa, em que homem observa em silêncio o outro a limpar, continua a caminhar para a sua direita, passando assim ao cenário seguinte )

III Cena

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Emanuel R. Marques 37

Chega junto de três troncos e fala em direcção ao público, como se narrasse um acontecimento. De trás das árvores vão surgindo personagens.

Homem: A história é simples, tudo é uma questão de tempo, oportunidade, de gesto ou

movimento correctos. O mínimo factor pode ter o máximo impacto. A mínima

desatenção pode significar a derrota, o máximo empenho pode culminar na vitória.

Felizes os que acreditam. Infelizes os que provam.

( Surge um bela mulher de trás de um dos troncos e fala em direcção ao homem, fazendo curtas pausas entre cada frase. Gesticula e caminha em redor do homem à medida que fala )

Mulher: Sempre sonhei em visitar países como esses. Sim, é uma visão muito bonita, mas

que sabe melhor se for vivida a dois. Também me preocupo bastante com isso. Tenho

pena que nem todos pensem assim, acho que isso é uma qualidade. Fazes-me rir,

transmites-me boa disposição. És um maluco. Temos de combinar qualquer coisa. Um

cafezinho, um dia destes?

( Surge um outro homem do segundo tronco, cumprimenta o primeiro com um aperto de mão e afasta-se, a mulher dirige-se a ele repetindo as mesmas palavras )

Mulher: Sempre sonhei em visitar países como esses. Sim, é uma visão muito bonita, mas

que sabe melhor se for vivida a dois. Também me preocupo bastante com isso. Tenho

pena que nem todos pensem assim, acho que isso é uma qualidade. Fazes-me rir,

transmites-me boa disposição. És um maluco. Temos de combinar qualquer coisa. Um

cafezinho, um dia destes?

( Surge uma outra mulher do último tronco e dirige as mesmas palavras ao personagem principal, logo após a primeira mulher terminar de as dizer ao segundo homem )

Mulher 2: Sempre sonhei em visitar países como esses. Sim, é uma visão muito bonita, mas

que sabe melhor se for vivida a dois. Também me preocupo bastante com isso. Tenho

pena que nem todos pensem assim, acho que isso é uma qualidade. Fazes-me rir,

transmites-me boa disposição. És um maluco. Temos de combinar qualquer coisa. Um

cafezinho, um dia destes?

( Entretanto, a primeira mulher, junto ao segundo homem, ouve agora a segunda mulher dirigir-se também ao segundo homem proferindo as mesmas palavras. O primeiro homem observa ironicamente )

Mulher 2: Sempre sonhei em visitar países como esses. Sim, é uma visão muito bonita, mas

que sabe melhor se for vivida a dois. Também me preocupo bastante com isso. Tenho

pena que nem todos pensem assim, acho que isso é uma qualidade. Fazes-me rir,

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transmites-me boa disposição. És um maluco. Temos de combinar qualquer coisa. Um

cafezinho, um dia destes?

( O homem caminha para o cenário seguinte dizendo as últimas palavras da cena )

Homem: E tudo não passa de um jogo, ao qual uns dão maior ou menor importância, do qual

uns saem vencedores outros vencidos… um jogo que alguns fingem ser mais do que

isso.

Felizes os que acreditam. Infelizes os que provam.

Cena IV

Atrás de si está um mapa, ou mais do que um, símbolos históricos e bélicos, posters de homens e mulheres nus, representações da evolução humana e objectos de arte.

Homem: No início, o Homem primitivo começou por usar a pedra como matéria-prima para

construir as suas ferramentas, armas e todos os utensílios que viriam a demonstrar a

sua singularidade. Começava então a palpitar o ímpeto da inteligência no Homem, a

evolutiva intelectualidade começava a dar os primeiros passos.

Em seguida, o ferro e o bronze vieram dar uma nova e rica perspectiva a tudo o que

era criado, ou seja, o raciocínio humano demonstrava, cada vez mais, a sua

superioridade em relação às outras espécies. As artes, como a dança, a música, e todas

as outras que se queiram considerar, sempre existiram, mas com objectivos espirituais

e simbólicos, a única forma de comunicar com um mundo incompreensível.

Começam então a ganhar uma importância especial, uma nova perspectiva, ou seja,

também a do entretenimento. O Homem quer a diversão, de preferência, um

espectáculo que envolva outros Homens, outros seres, desgraças e intimidades desses

outros, ou, de preferência, a perfeita junção de um caos que os torne afortunados

espectadores. Uma bruxa da Idade Média afirmou, certa vez, em praça pública, que a

melhor forma de simular sentimentos era vendo televisão. Ninguém a compreendeu,

na altura. Foi queimada.

Mas, retomando a História do Homem, também a pintura, que já o Homem de

Neandertal praticava, começa a ganhar uma nova forma de representação e

aperfeiçoamento – e foi preciso a chegada do séc.XX para que os mais rústicos

artistas pré-históricos fossem imitados em novas e sofisticadas correntes. Foi uma

pena que os milénios os tornassem anónimos e o papel ainda não existisse, e, quem

sabe, talvez hoje houvesse uma rua ou museu baptizados com o nome desses

desconhecidos e a sua arte teria um outro sentido.

Como consequência dos milhares de anos que sucederam estas épocas, e com as

inúmeras capacidades que o Homem continuou a desenvolver, passámos por

civilizações como a Suméria, que desenvolveu os sistemas matemáticos, ou como a

Egípcia, que maravilhou o mundo com as suas riquezas e sumptuosas pirâmides, entre

inúmeras outras que vieram assegurar e provar a constante supremacia humana. Com

os gregos, a valorização do intelecto humano foi levada ao seu auge. As artes, a

filosofia, o ensino e a política vêm comprovar que os Humanos não são apenas

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animais que vivem a limitação do sexo e da caça, a que as outras espécies estão

sujeitas pela falta da valiosa “inteligência racional”. Não mencionarei aqui as

vicissitudes da guerra por esta ter feito parte da evolução de qualquer raça, civilização

ou estado, e também porque esta temática é devidamente conhecida e opinada por

todos os seres racionais do planeta, para aqui ser dissertada. Tenho a certeza absoluta

que hoje existe, neste momento, no mínimo uma guerra a acontecer. Aposto que daqui

a cem, duzentos, quinhentos, mil anos, se alguém voltar a tocar neste assunto, uma

guerra irá estar a ocorrer.

Os romanos, esses magnos conquistadores, garantiam a sua ostentação como

império, através de toda a sabedoria que traziam dos gregos e também com o

inteligentíssimo meio de manipular as massas -“Pão e circo”. ( por falar em pão,

ontem, enquanto me dirigia a uma padaria para ir comprar pão, assisti a um gratuito

combate, no meio da rua, entre dois condutores cujos veículos se haviam tocado

ligeiramente – gladiadores sociais ).

Mas, como todas as grandes civilizações e Impérios, através da ganância e

exagerada ambição de certos homens, a queda foi sempre o culminar daquilo que se

julgava inquebrável.

Até aos nossos dias existiram importantíssimas épocas, plenas em evoluções e

destruições.

Menciono também as relevantes revoluções industriais, que marcaram e

influenciaram fortemente o passado século XX.

Hoje, e amanhã, …, o Homem, através da longa caminhada que fez, e continua a

fazer, constrói sistemas, como os avançados meios de comunicação, os satélites, como

a Internet, que ambicionam uma globalização e uma pacificação mundial. Mas será o

Homem capaz de controlar todo este poder que ele próprio criou? E quem é esse

Homem capaz de compreender e controlar todas as culturas e hábitos do Mundo?

Quem é esse Homem capaz de se conhecer a si mesmo? Se calhar, está na altura de

inventar um novo deus, que seja adequado a esta época. Um novo culto. Desta vez

não se trata de um Império em particular, mas sim, de um planeta… Um caos

organizado. Talvez o antropocentrismo nos tenha conduzido à depressão.

Retomando novamente a minha ode em homenagem à espécie humana, sem

esquecer que também eu lhe pertenço, e sem enveredar por temáticas que dariam para

preencher todo o papel existente no Mundo – e todo aquele que ainda virá a ser

produzido –, não poderia deixar de fazer referência às ridículas motivações que, por

vezes, impulsionam os conflitos. Serão de ordem religiosa? Sim, se isso significar

mais poder. Ou de ordem material? Também, se o domínio capital, e de todos os

factores que giram em seu redor, for o principal motivo do saque.

Um grupo de anarquistas que encarnam o fascismo decidem reinventar um novo

comunismo.

( Afasta-se lentamente e fala calmamente em direcção ao público )

As pessoas idolatram facilmente – de olhos vendados – a intersecção de utopias já

não distingue o trigo do joio. E quem define o que é o trigo?

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Cena V

Aproxima-se de um manequim de homem, que está sentado numa cadeira ( ou, então, em pé ), em frente a uma televisão, e que tem um cordão umbilical que lhe sai do umbigo e que vai ser ligado à televisão. Em seguida, desaperta a camisa ao manequim e coloca-lhe uma venda nos olhos. Enquanto tem estes procedimentos a música que acompanha são ruídos de várias vozes, frases, em concursos e outros programas que se insiram na ideia a expressar. Após ligar o cordão do manequim à televisão senta-se num pequeno banco, entre o boneco e o televisor, e inicia o discurso.

Homem: Um homem, enclausurado numa única sala, na companhia de uma prostituta

tailandesa que lhe lê Haikus numa língua por ela inventada, come pregos e vomita

fogo, enquanto espera que um relógio assinale o fim do tempo e possa ser

reconhecido como herói por uma população qualquer.

Penso, logo existo.

A inteligência é perigosa, por isso todos os sistemas ditatoriais tentam ocultar o

conhecimento aos povos que controlam. Na sociedade dos nossos dias estamos (

subtilmente ) livres de todos estes preconceitos e impedimentos, mas, são as próprias

pessoas que querem ser manipuladas e limitadas e, como vivemos, felizmente, em

democracia, não existe nenhum tipo de justificação para este retrocedimento espiritual

e intelectual. Será que estamos a rejeitar a possibilidade de tentar alcançar uma

resposta para a nossa felicidade em prol de uma apatia destruidora? ( pausa ) Pois…mas o que é a felicidade?

Sim, de facto é complicado, como é que eu posso estabelecer qualquer coisa para os

outros, tendo em conta que apesar de sermos iguais somos também bastante

diferentes, e cada um é um indivíduo.

( Coloca as mãos sobre a cabeça e, depois, exibindo um olhar confuso, continua ) Estarei

eu a endoidecer? A constatação de uma sociedade esgotada. A televisão que nos

assedia. Ordenados por sedentos generais mediáticos. Estaremos nós a voltar à Idade da pedra?

Claro que não! Estamos a enveredar pela Idade do ridículo. ( Levanta-se )

A melhor fórmula para se ser sociável é dizer piadas de cariz sexual e elogiar

constantemente as pessoas com quem se comunica.

( Exclama com um megafone: A glória e o ridículo caminham de mãos dadas

sobre um efémero campo de lodo. )

( Continua, mas já sem o megafone )

O problema do Homem é pensar, pensar demasiado.

O problema do Homem é pensar, pensar demasiado.

O problema do Homem é pensar, pensar demasiado.

E se não pensasse, não saberia qual era o seu problema.

E por mais frases comuns que possa pensar ou dizer, por mais insignificantes e sem

estilo que possam parecer, por mais que as ouça repetirem-se aturdidamente, sinto que

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

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ainda não as conseguimos compreender verdadeiramente, apesar de as sabermos

colocar correctamente numa adequada situação.

( Passa para o cenário seguinte )

Cena VI

Encontra uma sumptuosa poltrona, na qual se senta, e tem uma bengala, na qual se apoia a sua mão direita. Em redor, várias imagens encaixilhadas complementam o cenário.

Homem: Sim, já comecei a morrer. Mas não foi a partir do dia do meu nascimento, como

uma qualquer teoria da existência o pode demonstrar. Foi após perceber que aquilo

que tanto ambicionava para o dia de ontem não aconteceu, e hoje, consciente de tal

inocorrência, percebo ser impossível ter a exacta ambição de outrora, o mesmo

fervoroso desejo. O seu tempo passou. Aprendemos a noção de fracasso. Ainda

podemos vir a concretizar o tal sonho; mas jamais será igual, jamais terá o mesmo

impacto ou habitará na suite presidencial da satisfação. Estará fora do seu tempo, do

seu espaço, do leito que lhe havíamos preparado.

Sim, comecei a morrer quando soube ser isto verdade. Quando olhei não para trás,

mas sim para o presente, na agreste penumbra com que a minha mente se envolveu, e

comparei então os vários aspectos que se amalgamavam nesta minha reflexão. O

conceito de irreversível tornou-se assim tão claro como nunca fora.

Quis correr com a pujança de outrora, mas já não consegui. Quis perceber por que

não havia corrido, mas a resposta era demasiado complicada para que a pudesse

compreender e aceitar.

E podemos tomar os fiascos como experiências construtivas. Sabedoria. Aquilo que

para ontem seria uma certeza é uma lição, uma aprendizagem, mas para um futuro

incerto.

E de que serve o saber, quando é para se saber aquilo que não se pode ter?

Ou para aquilo que se teve e não mais se terá. A ilustre sensação de perda. A cripta

do conhecimento.

( Coloca todas as imagens que estão em redor dentro de um saco de veludo, o qual se encontra junto à poltrona, e fecha o saco com um nó )

( Passa para o cenário seguinte )

Cena VII

Ao continuar, chega junto de duas personagens, uma das quais é um jornalista e está sentado na extremidade de uma secretária, e, a outra personagem, sentada na outra extremidade, é Deus, de quem o aspecto nada tem que ver com o do imaginário comum. Estão copos com água em cima da secretária. Ao deparar-se com estes dois, o homem senta-se na poltrona de psicólogo que está ao lado desta acção, assumindo aí o papel de espectador. A certa altura, Deus levanta-se calmamente da sua cadeira e o homem vai-lhe

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Emanuel R. Marques 42

puxar a cadeira, para o ajudar a sair. Deus senta-se então na poltrona e continua a entrevista como se nada se tivesse passado.

Jornalista: Boa noite, e desde já aproveito para lhe agradecer a disponibilidade e atenção que

teve para com o meu convite, sei que é uma pessoa extremamente ocupada e que

foram poucos aqueles que tiveram a oportunidade de o entrevistar e é, para mim, uma

honra estar aqui.

Vamos então começar?

Deus: Sim, sim, Boa noite, mas, antes de mais, deixa-me apenas acrescentar que é

também para mim uma honra poder partilhar contigo alguns aspectos da minha

existência e do que penso, pois, apesar do que muitos julgam, não foram assim tantas

as oportunidades que tive para expressar as minhas verdadeiras opiniões.

Jornalista: De facto, sendo você…hã…, desculpe, sei que é um pouco estranho e até

engraçado, mas não sei por que nome o hei-de tratar. Deus?, Alá?, Salvador?…

Deus: Há! Há! ( ri )Trata-me por “tu” e não te preocupes com as preferências dos outros.

Jornalista: Também acho que assim é mais fácil, e até torna a conversa mais suave e amistosa.

Mas, como eu estava a dizer, a sua…perdão ( sorri ), a tua condição de eremita, o teu

afastamento, permitiu às pessoas inventar, criar e transformar uma infinidade de

conceitos, regras e sagradas afirmações que nunca proferiste ou fizeste saber. Como é

que te sentes face a estas situações e por que motivo é que nunca reagiste contra essas

difamações?

Deus: Olha, como eu não sou perfeito, aliás, julgo mesmo que esse conceito deveria ser

abolido, por ser uma forma de deformar as mentes, não consegui concluir a espécie

humana como a havia idealizado. Foi frustrante, um engano terrível, só mais tarde me

apercebi disso e, como consequência, estou a pagar por esse erro cada vez que alguém

usa o meu nome para qualquer acção ou para escrever qualquer nova e ridícula

doutrina rotulando-a de sagrada. Muito sinceramente, também não sei o que é que

significa sagrado, mas estou constantemente a ser associado a essa palavra.

Jornalista: Mas nunca pensaste em fazer uma aparição pública em que explicasses tudo, de

uma vez por todas?

Deus: Tentei, mas não tive hipótese. Antes que eu conseguisse terminar a primeira frase,

já eles tinham ouvido, não sei como ou vindo de onde, uma voz que lhes ordenava

uma qualquer lista de tarefas e rituais. Depois, sempre que eu tentava contactar com

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 43

indivíduos diferentes, de vários continentes, era o mesmo. Novas invenções, novas

alucinações, novas escrituras.

Jornalista: Deve ter sido difícil lidar com tudo isso, com essa incompreensão e impossibilidade

de se fazer ouvir e compreender.

Deus: Acho que devia ser nomeado para Prémio Nobel da Literatura, por ter influenciado,

supostamente, tanta gente a escrever obras tão importantes e magníficas. ( sorri )

Jornalista: Podias escrever tu próprio uma obra em que realmente expressasses aquilo que

pensas e, sabes, podias até fazer várias edições e traduções em vários idiomas e

publicavas em vários países.

Deus: Acreditas mesmo que isso funcionaria? Seria imediatamente deturpada, adulterada,

adaptada às vontades e paranóias de cada um.

Jornalista: Usavas um pseudónimo, conseguias um esquema que funcionasse, afinal, tu és

poderoso.

Deus: Não sei se sou assim tão poderoso como vocês pensam e, sinceramente, não gosto

assim tanto de pessoas como julgam, por isso é que me mantenho sempre tão

afastado, os Homens são demasiado perigosos. Até elaboraram criaturas diabólicas

para que exista sempre algo pior do que eles, para que nunca se sintam no fundo do

poço da malvadez e da perfídia, um bode expiatório para aquilo que eles são. Prefiro

ficar em paz, no meu sossego.

Sabes qual era a definição de Homem nos últimos registos que consultei?

HOMEM: Espécie menos evoluída de todas, ainda tem demasiados sentimentos e

emoções ( e contradizem-se quanto tentam falar sobre este assunto ), inventaram os

adjectivos e a ambiguidade na linguagem, vivem na ilusão da superioridade, são o

animal mais traiçoeiro de todos, inclusive, e especialmente, com membros do próprio

grupo, acasalam durante todo o ano e, como se toda esta junção de aspectos não fosse

suficiente, são também os principais causadores da destruição global.

E é esta a imagem que o Homem conseguiu e que o caracteriza e distingue dos

outros animais.

Jornalista: Mas, uma vez que foste tu a dar início à espécie, por que é que não a aperfeiçoaste

ou destruíste?

Deus: O que inicialmente eu criei nada tinha que ver com aquilo que hoje existe. Foi uma

evolução autónoma e eu nada tive a ver com isso, não me sinto responsável. Talvez eu

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tenha perdido o controlo ou o interesse, mas isso não implica as opções e atitudes

humanas. Já falámos nas deturpações que as minhas tentativas de comunicar

sofreram, por isso… também não tenho coragem para destruir tudo e, além disso,

acho que quanto a este aspecto, será apenas uma questão de tempo.

De vez em quando, ainda lanço um olhar, tento fazer algo, mas também me sinto

um pouco desmotivado… e quando não estás bem contigo próprio não consegues

estar bem com os outros, muito menos com o Homem.

Jornalista: E assim, entramos no principal motivo que impulsionou esta entrevista. O centro da

questão. Aquilo por que todos aguardamos. É verdade que estiveste à beira de um

esgotamento nervoso e já sofreste várias depressões?

Deus: Sim, de facto, é uma realidade, mas julgo que é bastante compreensível, tendo em

conta a posição que ocupo, a minha vulnerabilidade a estes problemas. Por mais que

eu me tente afastar do Homem e das complicações adjacentes, acabo sempre por me

preocupar. Além disso, tenho também os meus problemas pessoais, que me afectam

bastante.

Jornalista: Quanto à tua vida pessoal, sempre optaste por a manter em máximo sigilo, certo?

Deus levanta-se e é auxiliado pelo homem, apesar de não comunicarem, e vai-se sentar na poltrona. O homem leva-lhe o copo com água e puxa a cadeira onde Deus estava para si, assistindo assim ao resto da entrevista.

Deus: Sim, e ainda bem. Mesmo assim, olha a quantidade de coisas que inventaram.

Imagina os boatos que surgiriam se se soubesse mais acerca da minha vida íntima.

Jornalista: Não queres então aproveitar agora para partilhar connosco e desmistificar esses

aspectos desconhecidos.

Deus: Prefiro não entrar em pormenores, percebes?

Jornalista: Sim, e respeito essa escolha.

Deus: No entanto, vou tentar mostrar, de um modo geral, aquilo que tenho vindo a sentir e

como isso se tem reflectido na minha existência.

As injustiças que se têm feito e dito sobre mim e em meu nome deixaram-me, em

tempos, completamente paranóico, porque não podia fazer mais do que aquilo que me

era, e é, possível. É a necessidade em atribuir responsabilidades, para assim tentar

enganar o próprio ego. As pessoas esqueceram-se que são elas as responsáveis pelas

suas vidas, que a constroem ou destroem, existe um rumo que é condicionado por

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tudo aquilo que lhes acontece e que elas são, e que não é qualquer coisa, seja ela boa

ou má, que lhes aconteça na vida, que é de minha autoria e responsabilidade. Não

podemos culpar o primeiro homem que descobriu o fogo por todos os incêndios

destrutivos que ocorreram ao longo dos tempos.

Como se não bastasse, tentavam fazer comigo um negócio de almas, e isto, sem eu

ter dado a minha opinião ou ter sido, sequer, convidado a participar nesse acordo, pois

vários representantes meus, cada qual espalhando a sua interpretação daquilo que eu

supostamente pedia, se encarregavam de negociar. Foi triste.

Jornalista: É, realmente, um fardo pesado.

Deus: E como se não bastasse, definem-me como o Deus que tudo perdoa e,

simultaneamente, como o Deus que castiga todos aqueles que não fazem o que ele diz.

Não gosto do uniforme fascista com que me imaginam.

Esquecem-se que são eles que têm de estar em harmonia com a própria consciência,

de encontrar a paz de espírito; não é a mim que eles têm de agradar, é a eles mesmos.

Eu também quero a minha paz de espírito. O arrependimento é uma sensação

individual e a única pessoa a quem o arrependimento deve ser dirigido e útil é à

própria pessoa que o sente.

Jornalista: Por falar em arrependimento, talvez estejas um pouco arrependido de ter oferecido

ao Homem capacidades superiores, em relação a outras espécies.

Deus: Inúmeras foram as capacidades que vocês desenvolveram sozinhos. Foi como

plantar pela primeira vez uma raiz da qual se desconhece a flor.

Jornalista: Voltando à vida pessoal; depois disso…

Deus: Depois… como podes ver a minha aparência é humana, mas isto é só devido a estar

aqui contigo, porque a minha forma varia mediante a minha vontade, o ambiente em

que estou ou com quem estou a comunicar, e isto, por vezes, apesar de me permitir ser

bastante eclético, deixa-me com crises de identidade.

Jornalista: És então como um camaleão?

Deus: Não é bem isso, mas posso-te garantir que a forma como me estás aqui a observar é

a forma que querias ver.

Jornalista: ( sorri ) Seja feita a tua vontade.

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Deus: ( sorri ) Só se tu assim o quiseres.

Jornalista: E se souber realmente qual é essa vontade.

Deus: Exactamente. Por vezes, nem eu próprio me consigo decidir, em relação a certas

coisas que são banais, quanto mais ter o papel de juiz, de salvador ou carrasco, da

população de um planeta.

Jornalista: Quanto à tua vida amorosa…

Deus: Ó, o amor! E que grande ambiguidade essa… não quero falar acerca disso, e que

cada um decida por si.

Jornalista: Muito bem; já percebi que não queres dar opiniões que possam interferir com o

modo como a espécie humana cresceu, presumo, por acreditares que seria catastrófico

derrubar conceitos que nos estão tão vinculados. Mas, voltando à tua fase

depressiva…

Deus: Acho que perdi a confiança em mim, deixei de acreditar em mim próprio e nas

minhas capacidades. Basicamente, é isso. Ando bastante deprimido e estou cansado

de tudo. Só quero ter uma vida normal e poder usufruir das coisas simples da minha

vida. Eu sei que parece estranho… quero ser feliz.

Jornalista: E quanto aos rumores que te ligam ao alcoolismo?

Deus: Não passam disso mesmo, rumores. É-me impossível. Como eu gostaria de poder

ficar embriagado, mas, como deves compreender, é-me complicado atingir esse

estado. Se conseguisse, talvez isso me ajudasse a ser mais relaxado, ou a não dar

demasiada importância a certas coisas.

Jornalista: Certo. Ainda me restam algumas questões, talvez agora apreciasses que

mudássemos de assunto…, compreendes que existem muitas dúvidas acerca de ti, e,

talvez, para sabermos tudo, teríamos de ficar eternamente a conversar até que tudo se

soubesse realmente…

Deus: Peço desculpa, se não te fosse muito incómodo gostava de terminar aqui a

entrevista. É que, estranhamente, estou com uma terrível dor de cabeça.

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( O homem passa para o cenário seguinte )

Cena VIII

O homem volta para a cadeira de onde inicialmente saiu, que está situada no centro de todo o palco. Fala directamente para o público.

Homem: A euforia, o fascínio, a excitação, algo se perdeu no decurso da tua vida. Por vezes,

é até incómodo não poderes, não conseguires expressar esses estados quando alguém

próximo de ti alcança algo de grandioso, um prémio, uma meta que há muito ansiava

e que finalmente alcançou. Finges ainda seres capaz de soltar espasmos de alegria,

felicidade, surpresa, mas não o consegues se fores um mau actor e, para se ser bom

actor, é preciso amar aquilo que se faz. É inevitável. Apesar do orgulho que possas

sentir e das felicitações que queiras dar, nunca o consegues transmitir da maneira

correcta.

Tudo desapareceu, se desvaneceu sem que tenhas a concreta explicação para tal,

apesar de suspeitares de aspectos que assim te tenham tornado. Mas o pior, é quando

não atinges o devido estado de euforia em relação ao que de bom te acontece ou

poderia acontecer na tua vida. És uma criatura.

Em teu redor, todos te são insuficientes ou incómodos, ninguém se compatibiliza

àquilo que tu próprio não és, mas gostarias de ser. Até mesmo os amigos se tornam

banais, com as suas supérfluas depressões típicas de quem tem uma vida preenchida.

No entanto, não cais na loucura extrema, ou, pelo menos, por enquanto a tua

consciência assim to certifica. E a ampulheta continua a disparar irrecuperabilidades.

E a interminável tempestade continua a insurgir-se nos meandros da tua mente.

( vai repartindo esta última frase à medida que sai do palco, alternando apenas o “tua” para “minha” )

E a interminável tempestade continua a insurgir-se nos meandros da tua mente.

E a interminável tempestade continua a insurgir-se nos meandros da minha mente.

E a interminável tempestade continua a insurgir-se nos meandros da tua mente.

E a interminável tempestade continua a insurgir-se nos meandros da minha mente…

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Inspiração,

ou a falta dela

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Emanuel R. Marques 49

Um escritor agoniza em frente à sua máquina de escrever, por não conseguir encontrar uma ideia para transformar em texto. O seu olhar vagueia por todos os lados, passa as mãos pela cabeça, enche compulsivamente, por três vezes, o copo que está junto à máquina e bebe de um só gole, em suma, transmite toda a sua inquietação. De súbito, muito calmamente, uma voz, ou um vulto, sai da sua máquina de escrever e dirige-lhe a palavra. Os dois começam a dialogar.

Máquina de escrever- De que é que estás à espera para começares a escrever?

Escritor- Da inspiração, talvez, não sei. De um impulso criativo.

Máquina de escrever- De um impulso criativo? Mas não tens já uma ideia que

pretendas expressar, um qualquer ponto de partida, ou sentas-te sempre assim, nessa

posição, e aguardas pacientemente que algo te ocorra, assim, sem mais nem menos,

um súbito raio que te indicará como começar?

Escritor- Tenho imensas ideias, uma infinidade de temas, personagens e intrigas,

mas, o principal problema surge do como trabalhar essas ideias, que rumo lhes dar ou

como organizá-las de forma a que se insiram num contexto coerente e compreensível.

E é aqui que surge essa inspiração que eu aguardo, a verdadeira ideia. É uma sensação

inexplicável, tanto podemos estar completamente imersos no vazio como, de repente,

essa inspiração nos ilumina com a fantástica nova ideia que sabemos como

desenvolver. O mais complicado é começar.

Máquina de escrever- E de onde é que achas que surge essa tal manifestação

metafísica, essa sublime iluminação que apelidas de inspiração?

Escritor- Não sei. Mas acho que do seu encanto também faz parte o desconhecimento

da sua origem.

Máquina de escrever- Não será antes uma predisposição da tua mente, do teu

raciocínio, da tua sensibilidade, da tua vontade, um qualquer pensamento que se cruza

com outro que, por sua vez, se irá cruzar com outros e, desta forma, te conduzem

àquilo que entendes como inspiração? Nesse caso, a inspiração não é nenhuma bênção

exterior com que os deuses ou o destino - e viva a poesia e toda a sua beleza -, te

bafejam. É algo que sai de dentro de ti, a que tu te predispões a certa altura…

Escritor- Espera! E quando te apaixonas ou vives uma outra estimulante situação,

seja ela boa ou má, e te sentes com uma enorme vontade de transpor essas sensações

para o papel? Diz-me que não é o exterior, que não é a inspiração que serve de ponte

entre o motivo e a concretização do texto.

Máquina de escrever- Não. Essa ponte de conexão de que falas é a tua cabeça a

funcionar, a forma dos teus pensamentos lidarem com as tuas emoções, uma

complexa rede que engloba as tuas necessidades, enquanto ser humano, as tuas

experiências passadas e o facto de saberes escrever e ser de tua vontade converter

todo esse conhecimento e percepção em texto.

Escritor- E quando estou a criar ficção?

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Máquina de escrever- Continua a surgir de ti, de tudo o que passa por ti e por ti é

interpretado. Tu fazes a mistura daquilo que apreendes à tua volta.

Escritor- Pois, mas eu não tenho controlo algum nesses momentos, aliás, eles é que

me controlam a mim, como um tipo de transe criativo que por mim se exprai. Se fosse

apenas como dizes ser, escreveria sempre sem quaisquer entraves, pois seria a minha

vontade, seria eu a despoletar a ambígua capacidade, e não estaria aqui parado diante

desta folha em branco.

Máquina de escrever- É como ficares à espera de um autocarro que sabes que irá

passar, mas desconheces a hora exacta da sua passagem, pelo que te resta apenas

esperá-lo. Se ele, entretanto, passa, mais tarde ou mais cedo do que previas, poderás

interpretar também a sua passagem como uma inspiração que te levará em viagem até

ao teu destino. Tens um objectivo, que é escrever, e o autocarro chamado inspiração

transportará os teus pensamentos a essa meta.

Escritor- E pelo meio poderão ocorrer acidentes, ou pneus furados.

Máquina de escrever- Ou todos os passageiros saírem antes da desejada paragem. E

tu és o condutor.

Escritor- Mas o autocarro é a inspiração?

Máquina de escrever- Que tu conduzes e que é construído com tudo aquilo que já te

referi. Chegará ao seu destino, se não mudares de opinião e continuares a desenvolver

a ideia em viagem.

Escritor- Não terá antes a ver com a minha consciência? Ou com certas influências

do meu inconsciente?

Máquina de escrever- Essa é uma questão complicada, pois vários estudos referem

já que a consciência é apenas uma ilusão que o Homem tem para se julgar detentor do

controlo sobre si mesmo.

Escritor- Somos então todos doentes, com a ausência de uma consciência ( afirma sarcasticamente ).

Máquina de escrever- Talvez o que realmente exista seja uma forma de

funcionamento mais comum de processamento mental, de funções químicas, físicas e

de tudo aquilo que interfere no cérebro. Mas não entremos nesses campos.

Escritor- Nesse caso, pelo que me tens tentado demonstrar, a inspiração surge do

caos, da amálgama que é a nossa cabeça, o nosso cérebro. Se não existir

consciência…

Máquina de escrever- Também não existe inconsciência.

Escritor- E a inspiração…?

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Máquina de escrever- Surge de uma capacidade de criar socialmente aceite e

definida como normal, fora do normal ou especial. Depende dos vários aspectos que

caracterizam o inspirado, do meio em que se insere e muitos outros factores.

Escritor- Tens consciência do que estás dizer?

Máquina de escrever- Boa pergunta.

Há uma pausa, durante a qual o escritor volta a passar as mãos pelo cabelo e bebe um copo da sua bebida.

Escritor- E se eu estiver hipnotizado, continuarei a escrever?

Máquina de escrever- Há quem diga que sim, mas continuas a ir buscar os

conhecimentos para tal à tua cabeça. Um estado de ausência que te permite deambular

livremente pelo que sabes; pelo que sabes e julgaste estar esquecido, entras num

estado mental de plena concentração em que o teu corpo físico, apesar de crucial para

todo o processo, se torna de importância menor para a tua viagem.

Escritor- Como no Mesmerismo.

Máquina de escrever- Provavelmente, mas não existem certezas acerca destes temas.

O Homem ainda não conhece o suficiente do seu cérebro, muito há por descobrir.

Escritor- E talvez nunca venha a saber tudo e seja melhor assim.

Máquina de escrever- Talvez.

Escritor- Os sonhos também são uma fonte de inspiração, já fiz algumas

composições com base neles.

Máquina de escrever- Referes-te aos sonhos enquanto ambições ou aos que são

provenientes do sono?

Escritor- A ambos, mas estava mesmo a destacar aqueles que são orientados, ou,

mais concretamente, desorientados, durante o sono.

Máquina de escrever- A corrente surrealista tinha-os como influência fundamental.

Existe uma forte ligação entre o sonho e a arte. ( pausa reflectiva ) E não só. Também

existe uma forte ligação entre a realidade e a arte.

Escritor- Inúmeras obras, algumas bastante conceituadas, tiveram como primeiro

impulso um sonho. Só é pena que não nos lembremos sempre dos sonhos que temos

durante a noite.

Máquina de escrever- Imaginas-te a viver todas as noites, com a credibilidade de ser

tudo real, um episódio surrealista em que circulam e se emaranham todos os teus

medos, ansiedades, frustrações, e todo o conjunto de personagens e situações que

conheceste e gostarias de conhecer? E assim todas as noites, toda a loucura que isso te

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daria. Terias como intervalo, entre cada novo episódio, o tempo em que estarias

acordado, a recolher informações para novos episódios.

Escritor- Provavelmente, enlouqueceria e começaria a perder a noção da realidade.

Máquina de escrever- Mas, apesar de não recordares as experiências vividas em

sonhos com uma precisão exacta, isso não significa que todas as componentes do

sonho sejam eliminadas e apagadas da tua mente. Ficam armazenadas num recanto do

teu cérebro, como num armário onde se guardam velhos filmes, dos quais já

esqueceste grande parte do enredo, mas, por qualquer motivo ou associação de

palavras ou imagens, és conduzido à recordação de uma cena de um desses filmes.

Escritor- Um tipo de indução não propositada.

Máquina de escrever- Sim, mas, muitas vezes, tu próprio podes tentar as tuas auto-

induções, estimular o teu espírito criativo a enveredar por certos trilhos.

Escritor- Um ambiente, um local, uma paisagem, uma visão, podem influenciar, e

sei-o bem, a minha vontade e capacidade de escrever acerca de alguns temas.

Máquina de escrever- Sim, podes ser mais facilmente impelido à criação por certos

ambientes ou outras coisas, mas tudo isso só vai ser possível se o teu estado de

espírito assim o permitir. A predisposição de que te falei.

Escritor- E o milagre da criação? Da criação perfeita?

Máquina de escrever- Deus não teve ter terminado o curso da sua aprendizagem, ou

o homem não seria tão imperfeito.

Escritor- Não me estava a referir a nenhum ser superior.

Máquina de escrever- Nem eu. ( sorri ) Estava a louvar o milagre da criação de Deus

por parte das religiões.

Há novamente uma breve pausa.

Escritor- De toda esta conversa, e apesar de tudo o que dissemos, a única certeza que

tenho é que ainda não comecei a escrever e são cinco horas da manhã. Os primeiros

galos anunciam já o final de uma noite infrutífera.

Máquina de escrever- Por que não apontas as situações, as descrições das imagens

ou pessoas a que a tua pesquisa mental te leva? Liberta-te. Sempre ficavas com

qualquer coisa.

Escritor- Coisas demasiado vagas para tornar coerentes. Além disso, apesar de existir

sempre um aspecto pessoal naquilo que se escreve, corria o risco de, neste caso, a

minha narração se tornar demasiado íntima ou confessional. As personagens seriam

demasiado reais e eu não quero escrever um diário.

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Máquina de escrever- Usarias esses esboços apenas como base, como ponto de

partida para uma outra ideia qualquer, para complementar uma outra já iniciada ou

que venha a surgir, semelhante a uma manta de retalhos que, ao início, antes de ser

elaborada, se limita a ser um conjunto de pequenos e insignificantes pedaços de tecido

mas, quando todos os seus pedaços se encontram unificados, torna-se detentora de

uma função, adquire um sentido. Percebes? Como um simples tijolo de banal

singularidade, mas que vai ser peça essencial na edificação da casa.

Escritor- Sim, percebo. Mas tenta também tu perceber o que agora te vou dizer.

Aquilo que discutimos como sendo a inspiração pode ser um desses retalhos, mas não

é um simples retalho que vai ser colado a outros, é um retalho que vai ser como uma

raíz. A raís da qual se ramificará o resto do conteúdo da história. A ideia principal, o

mais importante… aquilo que necessito agora…

Máquina de escrever- …E de que te serve uma boa ideia se não a souberes

desenvolver?; e esse desenvolvimento provém dos outros retalhos que, quer já os

tenhas iniciado em prévios apontamentos ou não, te irão necessariamente surgir como

complemento.

Escritor- Sim, também concordo contigo; e aí é que está a verdadeira questão, o

verdadeiro dilema, é que não consigo encontrar essa raiz fundamental e as folhas que

poderia agora recolher, para depois colar nos ramos de uma árvore em crescimento,

não as absorvo, ou penso, ou acredito nelas, não te consigo explicar ao certo, de forma

nítida, de modo a que eu próprio possa pensar o que penso e traduzir isso em qualquer

anotação. Consegues compreender o que te quero explicar?

Máquina de escrever- Acho que percebi a ideia e acho que estamos a filosofar

demasiado.

Escritor- O importante é chegarmos a conclusões.

Máquina de escrever- O importante é pensarmos as coisas, mesmo que não

cheguemos a conclusão alguma.

Escritor- De facto, as maiores interrogações que o Homem faz são aquelas para as

quais a resposta é, se não impossível, quase impossível de alcançar.

Máquina de escrever- E, no entanto, não deve parar de o fazer, pois, apesar de a

meta parecer, ou mesmo ser, inalcançável, cada passo dado é uma aproximação a ela.

Escritor- Quanto mais não seja, uma aproximação àquilo que se julga ser o mais

correcto.

Máquina de escrever- A satisfação pessoal, ou o avanço de uma espécie, a

elaboração de algo.

Escritor- A auto-descoberta.

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Máquina de escrever- Os problemas e as soluções coabitam invariavelmente. Onde

há uma pergunta há uma resposta, à qual sucederá uma nova pergunta e assim

sucessivamente.

Escritor- Como qualquer ciclo.

Máquina de escrever- Provavelmente, se existir um Deus supremo, também ele deve

ter reflectido bastante acerca daquilo que estava a criar, e ainda hoje se deve

questionar, em busca de soluções para os seus problemas, as suas dúvidas.

Escritor- Só não tem dúvidas quem não pensa, e os pobres dos crentes mais fanáticos

transformaram em pecado a filosofia, a arte dos seres pensadores.

Máquina de escrever- Talvez exista um inferno especial para aqueles que não

querem usar a maior capacidade que o Deus em que acreditam lhes deu.

Escritor- Mas talvez sejam esses também os mais felizes, os que não meditam

demasiado na existência e se deixam levar ao sabor de uma qualquer vaga. Uma

simples vaga chamada vida.

Máquina de escrever- Mas o pensamento faz parte da vida.

Escritor- Os restantes animais não pensam como o Homem, não filosofam, e, no

entanto, também vivem.

Máquina de escrever- São confrontados com dúvidas mais simples, ordenadas pelos

seus instintos, pela sobrevivência.

Escritor- Por isso somos, supostamente, superiores a todos eles.

Máquina de escrever- E perguntamos agora: será que a inteligência é boa ou má,

será uma dádiva divina ou maléfica?

Escritor- Sim, o facto de pensarmos também possuí essa dualidade, essa dupla face.

Máquina de escrever- Claro que sim, como tudo o que existe. Mas as opções não são

boas nem más, são apenas escolhas, caminhos que nos parecem os mais favoráveis e

aprazíveis; as consequências sim, podem ser benéficas ou maléficas, mas aí, já não

são produto do que é pensado, mas sim do que foi pensado e, desta forma, quando

somos obrigados a pensar e a reflectir nessas presentes consequências, estamos a

tentar resolver problemas, solucionar situações, retornando à dualidade que nos

impele a optar pelo que será mais favorável, ou parece ser. Voltamos novamente ao

que já referimos, um complexo ciclo que, apesar de toda a sua complexidade, é

caracterizado por simples movimentos.

Nova pausa, em que o escritor bebe novamente.

Escritor- Achas que o amor inspira?

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

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Máquina de escrever- Estás a pensar em alguma coisa particular, não estás? Por isso

me fazes essa pergunta. Estás a ter alguma ideia que possas aproveitar, algum vago

pensamento ou memória que desejes exorcizar em papel?

Escritor- Não é nada disso! Estou apenas a perguntar!

Máquina de escrever- ( após segundos de silêncio ) Amor? O Homem inventa

inexistências, tenta estabelecer-lhes conceitos e teorias, para depois se esforçar por

acreditar naquilo que ele próprio criou e que, no fundo, sabe não ser real. A

necessidade de acreditar para poder continuar.

Escritor- Serão invenções que inspiram outras invenções.

Máquina de escrever- E tudo é um invenção.

Escritor- Um Mundo complicado, de seres complicados, um Mundo de doces

fantasias, de amargas fantasias, ( pausa ) de fantasias ( pausa ) de realidade

indecifrável.

Máquina de escrever- Provavelmente, a definição para o amor segue as mesmas

coordenadas que a definição de inspiração.

Escritor- Ou seja, não existe.

Máquina de escrever- Existe um conjunto de influências, vivências, apetências

físicas e mentais que podem convergir para aquilo que se especula chamar amor. Tal

como num livro que escreves, tens a ideia inicial, desenvolves, ela vai se

transformando e, quando dás por terminada a última página do livro, percebes que

muita coisa mudou desde que o pensaste pela primeira vez. Poderá ter um final feliz

ou não, apesar de, como criador, saberes bem que nenhum livro está alguma vez

terminado sem que voltes a pensar nele, e o livro que se seguir a esse poderá ou não

ser melhor, apesar de saberes também que a qualidade de um livro não se engloba

num todo, pois podes ter uma boa ideia, mas com uma má gramática ou pobre

capacidade descritiva, e vice-versa.

Escritor- Gostei bastante dessa analogia.

Máquina de escrever- Também é importante não ocupar demasiado tempo com

comparações, negligenciando assim a reveladora atenção e a capacidade de perceber

novas perspectivas e horizontes.

Escritor- Uma receita que envolve o consciente e o inconsciente. ( sorri ) Uma magia.

Máquina de escrever- Um ilusionismo.

Breve pausa.

Máquina de escrever- Por que é que não relês textos que já tenhas elaborado? Como

acabei de te dizer, nunca se tem nada completamente terminado, está tudo em

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 56

constante mutação e, quem sabe, sentir-te-ias impelido a fazer certas transformações e

a enriquecer o que julgavas concluído com novas ideias.

Escritor- Não gosto de remexer naquilo que já terminei. Prefiro deixar o que está

feito de lado, de preferência, bem afastado do meu campo de visão. Não aprecio a

sensação de perceber que poderia ter feito melhor ou de que errei e só agora me

apercebi de tal.

Máquina de escrever- Tens receio de confrontar os teus erros, de tentar remediá-los?

Escritor- É uma sensação auto-destrutiva, eu sei, difícil de explicar. Prefiro…

Máquina de escrever- …Viver na ilusão de que não te enganaste?

Escritor- Não. Prefiro começar uma coisa nova tentando eliminar aspectos em que sei

que posso ter errado; e é complicado ultrapassar certos erros, conviver com a sua

memória.

Máquina de escrever- Mas, nesse caso, não tens a certeza se erraste ou qual foi o teu

erro específico.

Escritor- Deixo que a minha maturidade literária e os novos conhecimentos se

manifestem num processo natural de desenvolvimento.

Máquina de escrever- E em relação aos outros aspectos da vida? Também pensas e

reages assim?

Escritor- Estamos a falar de literatura, não é verdade?

Breve pausa. O escritor boceja.

Máquina de escrever- Não começas a escrever?

Escritor- Acho que não. Estou demasiado cansado e sem inspiração.

Termina a conversa. O escritor continua sentado em frente à máquina de escrever. Adormece sobre a máquina.

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Entre a vida e a

morte

04

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Os candidatos e outros devaneios cénicos

Emanuel R. Marques 58

Um homem entra desesperado num café e pede ajuda ao dono, um corpulento homem que se encontra por detrás do balcão, e ao único cliente, uma sensual mulher vestida de negro que está sentada a uma mesa. Afirma estar a ser perseguido por alguém ou alguma coisa. Os outros mostram-se despreocupadamente complacentes com a sua situação.

Homem- Ajude-me! Preciso de ajuda, ela vem atrás de mim! Tem de me ajudar! Por

favor! ( diz ofegante e arrastando uma das cadeiras do café com a sua entrada )

Dono- ( surpreendido ) Calma homem! O que é que se passa?

Homem- Tem de me ajudar! Têm de me ajudar, a senhora também! Não sei para onde

fugir! Deixem-me esconder apenas por alguns minutos, até ela passar.

A mulher levanta o rosto desinteressadamente, apenas para confirmar que a palavra “senhora” lhe foi dirigida.

Homem- Diga onde me poderei esconder. Se alguém aqui entrar, à minha procura,

responda que não me viu, ou, então, melhor ainda, diga que me viu passar e que segui

para norte. Mas despachem-se, ( e olha agora para a mulher ) se alguém lhe perguntar

por mim diga que não me conhece, que não me viu, invente qualquer coisa.

Mulher- ( petulante ) Mas, realmente, eu não o conheço.

Dono- ( sai de trás do balcão, com um taco de basebol na mão, e fecha a porta do estabelecimento ) Vamos lá ver, aqui ninguém arma confusão. Vou fechar as portas e

ninguém entra, esteja tranquilo, ninguém lhe faz mal, mas diga lá qual é a situação.

Homem- Sim, sim! Eu explico tudo, mas tem de me prometer que não deixa mesmo

entrar, é que, por vezes, ela assume formas capazes de iludir as mentes mais atentas e

perspicazes, é aí que nós somos apanhados desprevenidos. Presas fáceis.

Mulher- É o jogo das presas e dos predadores.

Dono- Minha senhora, mais respeito pelo pobre homem perseguido.

Mulher- Desculpe senhor desconhecido. ( responde em direcção ao homem )

Dono- Quer um copo com água para se acalmar? Está muito cansado?

Homem- Não, obrigado. Também não me irei demorar, pois tenho de continuar a

minha fuga. ( mais calmo, senta-se durante alguns segundos ) Só queria um pouco de paz,

não tenho descanso.

Dono- Mas diga, quem é que o está a perseguir. Não me diga que você é um

criminoso e que está…

Homem- Não, nada disso! Que o meu fado seja mil vezes pior se o estiver a enganar.

É que aproxima-se o derradeiro momento e eu sinto que ela chega galopante e me

persegue para dar a estocada final. Por isso fujo, para que ela não me encontre e o fim

possa ser adiado.

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Dono- Fantástico. ( responde com admiração )

Homem- Penoso.

Mulher- Não seria mais fácil enfrentar esse seu inimigo; resolver a situação por

completo, engendrar uma forma de o eliminar ou convencer de algo, chegar a um

acordo,… não sei… qualquer coisa que lhe permitisse por termo à vida de fugitivo?

Homem- Impensável. Ela não me permitiria qualquer argumentação. Seria suicídio.

Quanto a confrontos, não tenho a menor hipótese de a destruir.

Mulher- Alguma coisa muito má você lhe deve ter feito, não?

Dono- Pois! Nada nos garante que você não seja o mauzão da cena e que nos esteja

aqui a enganar com historiazinhas.

Homem- Nada disso! Peço-vos, acreditem em mim.

Mulher- Subterfúgios.

Dono- Se calhar, estamos a cometer um erro.

Mulher- Acho que não. Veja como ele treme, os seus gestos e a sua atitude desde que

aqui entrou nunca poderiam ser de alguém perigoso. Ele está mesmo com medo.

Homem- Juro-lhes que não sou perigoso. Dou-lhes a minha palavra. Se quiser, ( olhando para o dono e tirando a carteira do bolso das calças ) pago-lhe em dinheiro por me

ter deixado esconder no seu café.

Dono- Deixe estar. Não quero dinheiro nenhum. Eu acredito em si. Só queria ter a

certeza.

Mulher- Mas o motivo para a perseguição… indelével? ( diz em direcção ao homem )

Dono- Inde… quê? Senhora, se quer ajudar não se ponha com palavras difíceis, ou,

então, deixe-me tratar disto.

Homem- Indelével, inapagável, indestrutível. ( diz em direcção à mulher ) Tem razão.

Mulher- Manchas difíceis de apagar. É preciso aprender a viver com elas.

Homem- Mas umas são maiores do que outras e a dimensão da minha é indescritível.

Dono- Olhe! Acha que ela já passou?

Homem- Não me parece. Está tudo ainda demasiado calmo. Costumo sentir a sua

presença.

Dono- Hããã. Está bem.

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Emanuel R. Marques 61

Homem- A casa tem alguma porta nas traseiras, para o caso de eu precisar de fugir

rapidamente?

Dono- Tem, tem! Não se preocupe com isso. De qualquer forma, volto a dizer,

( caminha para a porta e espreita pelo vidro, desviando a cortina que impede a visão ) aqui

ninguém entra!

Mulher- Como é que “ela” é, a sua perseguidora? Qual o seu aspecto físico? Vem

armada?

Homem- Não sei. Nunca a vi.

Dono- Como?

Homem- Nunca a vi e sei que no dia em que a vir, esse será o meu último dia.

Mulher- Não me diga que anda a fugir de alguém que nunca viu. Como é que você

sabe, então, de quem é que deve fugir e de quem se deve esconder?

Dono- Se calhar tem uma fotografia.

Mulher- Como é que se foge daquilo que não se conhece?

Homem- Ninguém me compreende.

Dono- Então…? Não me digam que o rapaz é tolinho. ( fala dirigindo-se à mulher )

Mulher- É o que não falta por aí.

Homem- Não sou louco!

Ouvem-se ruídos de caixas a serem arrastadas, garrafas e outros sons. Os personagens exaltam-se, com excepção da mulher que se mantém calmamente no seu lugar.

Dono- Ouviram isto.

Homem- É a morte! É da morte que eu tenho vindo a escapar e sei que ela anda em

minha busca, numa demanda pela minha vida. Felizmente, tenho conseguido escapar-

lhe. Deve ser ela. Têm de me ajudar.

Mulher- ( ri com algumas gargalhadas )

Dono- Minha senhora, o que este cavalheiro está a tentar explicar é que alguém o quer

matar, acho que isso não é motivo de riso. ( afirma um pouco irritado )

Homem- Esperem! Ouçam! É a própria morte que vem para me levar. Eis o motivo

porque nunca antes a vi, nunca morri, por isso não sei como ela é.

Mulher- Nunca ouvi falar em alguém que conseguisse escapar à morte, quando esta

decidiu que assim devia ser. Se sobreviveu até aqui foi por que ela assim o definiu.

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Homem- Falem mais baixo.

Dono- ( aproximando-se novamente do vidro da porta ) Vejo uma mulher vestida de

branco a caminhar nesta direcção. É ela? Não me parece perigosa e acho que vem

desarmada.

Homem- Ela tem inúmeros disfarces, pode muito bem ser. ( exaltado )

Dono- É apenas uma rapariga. Não se preocupe.

Homem- Indique-me a porta das traseiras, por favor.

Dono- Xiiiiiiiiu!

Mulher- Se for realmente a morte não há como lhe fugir, por isso, não se exalte. Não

pode ser tão desconfiado. Assim, pode perder o verdadeiro sentido da… .

Dono- Xiiiiiiiiu! Já está perto.

Homem- Não abra a porta.

Dono- Podemos fingir que não está ninguém.

Mulher- Podemos fingir que estamos mortos. ( sorri )

Homem- Nunca experimentei essa hipótese.

Mulher- Não seja ridículo! Estava a gozar consigo.

Dono- Xiiiiiiiiu!

Ouve-se então uma voz feminina e uma rapariga vestida de branco aproxima-se do lado exterior da porta. Bate à porta.

Rapariga- Abram, por favor! Preciso de falar urgentemente com um homem de nome

Edgar e sei que ele se encontra aí dentro. É uma emergência!

Dono- É você? ( inquire o homem em voz baixa )

Homem- Sou.

Mulher- Ela sabe que estamos aqui.

Homem- Se ficarmos em silêncio pode ser que desista.

Rapariga- Abram. É um caso de vida ou morte.

Mulher- Se for a morte não há como a fazer desistir.

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Dono- É apenas uma menina senhor Edgar. Não pode ser assim tão terrível. Além

disso, tenho aqui o meu taco.

Homem- Técnicas ludibriantes; um cavalo de Tróia. Não percebem que a aparência

nem sempre demonstra a realidade das coisas?!

Mulher- A aparência não é aquilo que as coisas são, é a forma como as vemos e

interpretamos.

Dono- Eu vejo uma menina que quer falar consigo. Pode ter algum recado da sua

família ou de alguém que lhe seja querido.

Homem- Impossível. Vou fugir pelas traseiras.

Rapariga- Peço desculpa, mas informaram-me que ele se encontra neste café!

Abram, é urgente! Edgar, se estiver aí, peço-lhe, deixe-me falar consigo! Não imagina

a importância do que tenho para lhe dizer. O tempo urge.

Mulher- Que mal poderá ocultar uma cândida e doce rapariga, a não ser o das paixões

que pode despertar a todos os que a vislumbrem?

Dono- Senhor Edgar, acho que desta vez a senhora tem razão. É apenas uma jovem

que lhe quer falar, qual é o perigo?

Homem- ( desesperado ) Não percebem! É o fim!

Mulher- Eu percebo que está na presença de uma mulher feita e teme a entrada de

uma simples inocente rapariga.

Dono- Também ninguém disse que era inocente. ( volta a confirmar com um olhar de soslaio pelo vidro da porta )

Homem- ( dirigindo-se à mulher ) Não tenho tempo nem paciência para provocações.

Enquanto a rapariga continua a bater à porta, o homem corre para as traseiras do

estabelecimento, deixando os outros dois sozinhos. Segundos depois aparece

novamente, pois a porta estava fechada à chave.

Rapariga- São só alguns minutos. Depois ir-me-ei embora.

Homem- A porta está fechada! Tem de vir abri-la!

Dono- Não sei se será possível.

Homem- O quê? Como é que eu vou sair daqui?

Dono- A minha mulher levou a chave quando saiu e só volta às oito.

Homem- Acho que não aguento ficar aqui fechado até essa hora, com ela do outro

lado.

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Mulher- Pode tentar sair pela chaminé.

Dono- Quem é que disse que vamos ficar aqui fechados até às oito. Tenho clientes

para servir e a sua história está-me a parecer cada vez mais esquisita. Se quiser

chamar a polícia, tudo bem, mas eu é que não tenho nada a ver com isto. Se você não

se decidir vou abrir a porta e garanto-lhe que não vai haver problema. ( acena com o bastão )

Homem- Não faça isso! Encontraremos outra solução.

Rapariga- Estou bastante preocupada consigo, Edgar! Tem de me deixar falar-lhe!

Mulher- Já é altura de terminar com este jogo. Daqui a pouco tenho um compromisso

importante e vou precisar de sair.

Dono- Desculpe, vou abrir.

Homem- Mas não diga que eu estou aqui, vou-me esconder, invente qualquer coisa e

finja que não me conhece. A senhora também.

Mulher- Mas agora eu já o conheço. ( sorri sinistramente )

O dono começa a desbarricar a entrada e prepara-se para abrir a porta. Entretanto, o homem esconde-se atrás do balcão.

Dono- ( a falar para a rua ) Já vai! Já vai!

Mulher- Finalmente.

Dono- ( para a rapariga, já com a porta aberta ) Diga lá então, qual é o motivo da pressa?

Rapariga- ( à medida que vai entrando ) Preciso urgentemente de falar a um homem de

nome Edgar, é muito importante. Já perdi a conta aos meses, se não anos, em que

ando a tentar falar-lhe. Disseram-me que ele estava aqui.

Dono- Não está armada, pois não?

Rapariga- Nada disso. As minhas intenções são pacíficas, aliás, o meu objectivo é

mesmo zelar pela sua…

Mulher- Ele está ali, atrás do balcão, baixado. Demasiado covarde para se levantar.

As duas mulheres olham-se com mais atenção durante alguns segundos. O homem começa a surgir.

Homem- Sou eu, o homem de nome Edgar que persegues há inumeráveis dias.

Aquele que sempre te conseguiu escapar, mas que agora, pela ignorância destas

pessoas, se deixou apanhar. Nunca pensei que fosse acabar num sítio destes.

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Dono- Deixe a rapariga falar e não seja mal agradecido.

Mulher- Sim, deixe-a falar.

Rapariga- Edgar, venho-lhe pedir desculpa por não o ter encontrado a tempo. Não sei

como isto aconteceu mas foi-me extremamente complicado chegar até si. Tenho pena

de não ter chegado a tempo. Muito lhe estava reservado, mas não houve possibilidade.

Homem- Eu sei. Fui eu, foi a minha agilidade que me permitiu fugir-te durante todo

este tempo, mas agora está tudo terminado.

Rapariga- Sim. Vejo que sim. ( e olha para a mulher ) Nada há a fazer.

Dono- Menina, desculpe interromper, mas é realmente a morte? Andou em

perseguição deste senhor para o levar consigo?

Rapariga- A morte? Não. Eu sou a vida. Andei desesperada a tentar comunicar e

explicar a este senhor os desígnios, as venturas e desventuras da existência, mas, pelos

vistos, foi ele que preferiu assim, fugir-me. Fugir da vida para se vir sentar num café

com a morte por companhia.

Dono- Diga?

Homem- Como?

Mulher- ( rindo ) Sim. É isso mesmo. Ninguém consegue escapar à morte, foi você

próprio, Edgar, que comigo veio ter. No entanto, à vida, podemos sempre fugir, ou

escondermo-nos dela como se ela pudesse conter algo de tão inevitável como a morte.

Homem- Isso significa que…

Rapariga- Que viveu a vida a fugir dela, caminhando em direcção à morte.

Homem- Não a deixem chegar perto de mim!

Rapariga- Não há como lhe escapar. Agora, é demasiado tarde. Tentei dar-lhe a mão

enquanto ainda havia tempo, mas não foi possível, para minha tristeza.

Homem- E minha também.

Mulher- O arrependimento não modifica o passado. Pode mudar o futuro…, mas só

quando este ainda pode vir a existir. Lamento.

Rapariga- Eu não lamento. Nada tenho a lamentar. É assim. Resta-me prosseguir

para outro lado, a outras funções.

Mulher- Eu também não lamento. Nada tenho a lamentar. O meu lamento é apenas

uma demonstração de espanto perante a condição a que este homem se subjugou.

Homem- Eu lamento. ( faz um olhar piedoso a ambas as mulheres )

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Dono- Mas afinal o que é que se está a passar? Senhor Edgar, foi esta rapariga que lhe

causou tanto medo, ou, afinal, é esta senhora que o assusta? Não estou a perceber

nada, alguém me pode explicar?

Mulher- Nada há a explicar. Ainda não chegou a sua vez.

Dono- Significa que ele vai morrer?

Mulher- Ou talvez já tenha morrido sem saber.

A rapariga aproxima-se do homem, Edgar, e dá-lhe um beijo na face. Em seguida, abandona o café e desaparece.

Rapariga- Adeus.

Mulher- Até à próxima.

Homem- Espera um pouco…

A mulher pega na mão de Edgar.

Mulher- Chegou o momento. ( dá-lhe um beijo na outra face )

Ele deixa que ela o conduza para fora do café, como se estivesse hipnotizado ou, simplesmente, conformado com a situação. Ambos desaparecem também. O dono do café, agora sozinho, pega numa vassoura e começa a varrer o chão.

Dono- Então bom dia pra vocês também! ( mas já ninguém o ouve ) Coisas estranhas se vêem nos dias de hoje. Pessoas estranhas e complicadas.

Entram-me por aqui dentro, armam uma grande confusão, que é a morte e que é a

vida, e, no fim, saem todos de mãos dadas. Tanta coisa, ái ái que ela vem aí… ái ái

que eu preciso de ajuda… e é o que se vê. Ainda por cima são mal agradecidos, saem

sem dizer uma palavra simpática, principalmente o sujeito, que me obrigou a ter a

casa fechada. ( pausa ) Será que ele morreu mesmo? Nã! Esta malta nova inventa

muita coisa, estão sempre a inventar histórias e a gozar com o sagrado. Se calhar, até

estavam drogados. Quando a minha Maria chegar nem vai acreditar.

Ao menos, podiam ter feito despesa.

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