Resgate- Texto II- Fortuna e Familía Em Bananal No Século XIX

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Resgate - Uma janela para o oitocentos

Transcript of Resgate- Texto II- Fortuna e Familía Em Bananal No Século XIX

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fíeèe Maria Mattos de Castro Eduardo Schnoor, Sheila de Castro Faria Ana Maria Mauad Essus, Martha Abreu Manolo Florentino e José Roberto Góes

João Luis Fragoso e Ana Maria Lugão Rios

Hebe M aria M attos de Castro

Eduardo Schnoor

RESGATE Uma Janela para o Oitocentos

Copyright © Hebe M aria M attos de Castro. Eduardo Schnoor, Sheila de Castro Faria. Ana M aria M auad Essus. M artha Abreu. M anolo F lorentino e José Roberto Góes, João Luís Fragoso e Ana M aria Lugão Rios

Revisão: Eduardo Schnoor / Hebe Castro / Nanc_\ Faria

Capa: Vietor Burton

Fotolito: M ergulhar Serviços Editoriais

CIF-B rasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.

Resgate: uma janela para o oitocentos / Hebe M aria R 341 M attos de Castro. Eduardo Schnoor (organizadores) ...

[et ui/: fotografias de Jhony Salles. M areia Kranz. — Rio de Janeiro: Topbooks. 1995. 245 p. : il.

Inclui bibliografia e anexo.

1. Vallim. Manoel cie Aguiar. 1870-1878 — biografia. 2. Fazenda do Resgate (Bananal. SP). 3. Bananal (SP) — Condições rurais — Século XIX. 4. Escravidão — Brasil 5. Brasil — História — Século XIX. I. Castro. Hebe Maria M attos de. II. Schnoor. Eduardo.

CDD - 926.395-0706 CDU - 92 (Vallim. M. A.)

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Hebe Maria Mattos de Castro Eduardo Schnoor

(O rg an iza d o re s)

RESGATE Uma Janela para o Oitocentos

Ensaios de

• Hebe Maria Mattos de Castro • Eduardo Schnoor

• Sheila de Castro Faria • Ana Maria Mauad Essus • Martha Abreu • Manolo Florentino e José Roberto Góes

• João Luís Fragoso e Ana Maria Lugão Rios

Fotografias de• Johny Salles • Márcia Kranz

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FORTUNA E FAMÍLIA EM BANANAL NO SÉCULO XIX

Sheila Siqueira de Castro Faria

N ossa história acabou ... perdeu-se no tempo, é verdade.(FREITAS, s.p.)

Já ouvi dizer que em Bananal o verbo ser se conjuga som ente no passa­do: ‘ I udo isto já foi café’, exclam a o neto pobre, num gesto largo que abrange a paisagem nua e erodida. Do passado, ele herdou apenas o nome de fam ília e suas recordações — por ouvir dizer — de um a rique­za tão fugaz que com eçou com seus bisavós, mas nem chegou a ele. (PORTO, p. 10/11)

Estas citações referem-se a Bananal, uma das “cidades mor­tas” do Vale do Paraíba, área que teve com o café grande projeção no cenário brasileiro do século XIX. Mais do que tudo, são “cida­des mortas” porque já foram “cidades vivas” — e muito ricas. O saudosismo com que historiadores regionais e genealogistas de fa­mílias locais tratam o passado de Bananal reflete justamente o sen­timento de perda de uma grande riqueza, chegando alguns a consi­derar histórico somente o período em que a cidade viveu seu “apo­geu”. A pobreza não teria.-PQr.QPQ&ição, história,. —

O município de Bananal conta, hoje, com aproximadamente 13.000 habitantes. Houve um decréscimo de sua população, no decorrer dos anos. Em 1836, tinha 6.599 habitantes, 11.482 em 1854, atingindo seu máximo em 1886, com 17.654, para depois decair para 11.507, em 1920, e 12.932, em 1935.

Em 1987, virou estância turístico-histórica, retirando daí par­te substancial de sua economia. A visão que se tem, quando se entra na pequena cidade, é, nitidamente, histórica. Tudo é muito antigo. Os apetrechos da modernidade poucas vezes são encontrados. Ao mes­mo tempo em que nos sentimos entrando na história, tem-se uma im­pressão de abandono. Parece que a cidade foi imobilizada.

Nas fazendas da região, a sensação é mais ou menos a mes­ma. Em algumas, entretanto, principalmente naquelas, cujos pro­prietários tentam restaurar as marcas do passado, os contornos da antiga riqueza e opulência aparecem com todo o seu esplendor. Deixa-se, com isto, entrever uma ostentação de riqueza poucas

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vezes encontrada em outras regiões, mesmo ricas. O Nordeste açu­careiro colonial, por exemplo, não se preocupou tanto em demons­trar nas casas e seus apetrechos o status econômico-social dos pro­prietários. ^jxisticidade caracterizava as residências, até mesmo dos mais enriquecidos. Esta diferenciação diz respeito mais à épo­ca do que ao tipo de produto. O cale não fazia o proprietário de­monstrar sua riqueza mais do que o açúcar. O que o fazia era a época, o século XIX.

A vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a inclusão do Brasil no circuito comercial inglês de bens industrializados, a influência francesa no mobiliar e no vestir, a criação de faculdades, os primeiros jornais, produzidos internamente, e mais um sem nú­mero de motivos trouxeram mudanças fundamentais nos hábitos da colônia, depois Reino Unido e, finalmente, Império do Brasil.

Neste artigo, serão abordadas a história da ocupação de Ba­nanal, a formação das fortunas locais e suas estratégias familiares de alianças matrimoniais. Tomarei como exemplo uma das famílias mais ricas da região, a de Manoel de Aguiar Vallim, e outras que a ela se ligaram, considerando que, através delas, é possível enten­der a forma como se constituíam e se tentavam manter as fortunas e o poder no Brasil escravista do século XIX.

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Bananal em finais do século XIX. Em primeiro plano a Santa Casa da M isericórdioa e o cemitério. Ao fundo, o solar Aguiar Vallim. Autor anônimo.

Coleçãò Particular. Família Almeida / Vallim

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A Marcha do Café

Em 1822, Saint-Hilaire assim descreveu a pequena localidade de Bananal:

A três quartos de légua do rancho onde passam os a últim a noite alcan­çam os a A ldeia do Bananal, sede de paróquia. Esta vila fica situada num vale bem largo entre m orros cobertos de mata e com põe-se de uma única rua. Pareceu-m e de fundação recente, mas é provável que adquira logo im portância, pois se acha no meio de uma região onde se cultiva muito café e cujos habitantes, por conseguinte, possuem rendas consi­deráveis. (SA IN T-H ILA IR E, p. 104)

Desde o início do século XIX, café e riqueza formavam, no imaginário da época, um par inseparável. Não foi de espantar, por­tanto, que seu cultivo se estendesse por áreas até mesmo pouco propícias, como próximo a praias, na Baixada Fluminense, por exemplo. Valia a pena plantar café, mesmo que de baixa qualidade. Em locais geograficamente mais pertinentes, como no Vale do Paraíba, então, a rapidez de sua implantação chamava a atenção de quem quer que por ali passasse. Foi assim com Saint-Hilaire, que deduziu terem os habitantes da freguesia “rendas consideráveis” por cultivarem café, já que pelo preço do gênero, devem estes fa ­zendeiros ganhar somas enormes.

Nos trechos citados, o autor, ou o tradutor, utilizou errado o termo “vila”, para designar a localidade. A Capela, sob a invoca­ção do Senhor Bom Jesus do Livramento, transformou-se em fre­guesia, desvinculada da Freguesia de Areias, em 1811, ambas liga­das à Vila de Lorena. Com a elevação de Areias a Vila, em 1816, Bananal lhe ficou pertencendo, para, somente em 1832, ser, por sua vez, alçada à categoria de Viia. Virou Cidade do Bananal, em 1849, já no auge de sua produção cafeeira.

A origem do nome “Bananal” tem duas versões. A primeira é a de que seria uma corruptela do termo banani, usado pelos índios Puris para identificar o Rio Paraíba, significando “rio sinuoso”. A segunda, menos confiável, veiculada pela Prefeitura de Bananal, seria a da existência de inúmeros bananais.

A ocupação da região, datada do final do século XVII e início do XVIII, assim como de grande parte do Vale do Paraíba, relacio-

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na-se diretamente com os “caminhos do ouro” . Muitos povoa­dos surgiram a partir de registros, pousos ou estalagens para viajantes da região das minas, com seus habitantes dedicados à lavoura de alimentos. A criação do “Caminho Novo”, da Cida­de do Rio de Janeiro diretamente para as minas, trouxe proble­mas para os núcleos localizados nos limites paulistas do Vale, no que passou então a se chamar “Caminho Velho” . A própria Capitania de São Paulo, em I 748, foi extinta, ficando ligada à do Rio de Janeiro. Em 1765, foi restaurada sob o governo do Morgado de Mateus.

A descoberta de ouro em Mato Grosso e Goiás e um mercado regular de gado, vindo do Rio Grande do Sul para abastecimento das minas, tornaram a região, de novo, passagem obrigatória. Pro­jetou-se, inclusive, o “Caminho Novo da Piedade”, que ligaria as Cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, no intuito de evitar a pas-

i sagem pelo porto de Parati. Problemas com índios e dificuldadesadicionais fizeram com que um trânsito regular entre as duas cida­des fosse estabelecido só no início da década de 1770, época da doa­ção da primeira sesmaria no que viria a ser, mais tarde, Bananal.

Segundo consta, Manoel da Silva Reis, Capitão-Mor de Guaratinguetá, recebedor da sesmaria, tinha também o poder de doar terras neste caminho novo a todos os que tivessem contribu­ído para sua construção. Entre eles, encontravam-se o Alferes Pedro Rodrigues de Almeida Leal e João Barbosa de Camargo. Em 1783, João Barbosa de Camargo e sua mulher, Maria Ribeiro de Jesus, erigiram na sua sesmaria uma capela, dedicada ao Senhor Bom Jesus do Livramento, e, por escritura de 10 de fevereiro de 1785, doaram meia légua, em quadra, para o patrimônio religioso. Em tomo desta capela criou-se o povoado de Bananal, incrustado na Freguesia de Sant’Ana de Areias (criada em 1784).

/ A primeira fase de ocupação do Vale do Paraíba, não só o paulista como o fluminense, caracterizou-se por um povoamento esparso e baseado em lavouras de subsistência, com fraca comercialização do excedente e relativamente pouco escravista.

O quadro mudou rapidamente a partir do início do século XIX. O café passou a delimitar o perfil de toda a região. Transfor­mou-se, também, a composição da população, não só pela entrada

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maciça de escravos, especialmente africanos, como de migrantes das mais variadas origens. O Vale do Paraíba passou a ser o centro de aplicação de grandes capitais, muitos deles originados no co­mércio, e de entrada de gentes de variadas origens étnicas.

Em 1801, a 6a Companhia de Ordenanças da Vila de Lorena (futura Freguesia de Bananal) era composta de 124 fogos (resi­dências), com 978 habitantes, praticamente todos dedicados à pro­dução de mantimentos, como arroz, feijão, milho e mandioca. Em somente sete deles menciona-se a comercialização de excedente. Não há referência a café. Dezesseis anos depois, o quadro já se havia transformado. Em 449 fogos, com 2.926 habitantes, 103 (22,94%) produziam café, ocupando 1.154 (39,44%) pessoas da população. Em 1829, 52,14% dos fogos cultivavam café. Em ter­mos populacionais, 76,24% dos 3.064 habitantes dedicavam-se a esta lavoura. Neste primeiro período de expansão cafeeira, a im­pressão que observadores contemporâneos nos dão é de um movi­mento intenso no investimento em unidades agrárias, deixando pouco ou quase nada para a comodidade doméstica. Saint-Hilaire, em 1822, reproduz um diálogo com um francês, residente na área, sobre o emprego dado aos lucros do café:

Perguntei ao francês (...) em que em pregavam o dinheiro. ‘O Sr. pode ver, respondeu-m e, que não é construindo boas casas e m obiliando-as. Com em arroz e feijão. Vestuário tam bém lhes custa pouco, e nada gas­tam com a educação dos filhos que se entorpecem na ignorância, são inteiram ente alheios aos prazeres da convivência, mas é o café o que lhes traz dinheiro. N ão se pode colher café senão com negros. E pois com prando negros que gastam todas as rendas e o aum ento da fortuna se presta m uito mais para lhes satisfazer a vaidade do que para lhes aum entar o conforto’. C onsiderando-se tudo quanto disse, vê-se, no en­tanto, que não têm luxo algum em suas casas, nada lhes provando a riqueza. (SA IN T-H ILA IR E, p. 103)

Este quadro mudou radicalmente alguns anos depois. De 1835 em diante, inicia-se o período de maior riqueza da área. Em 1836, Bananal era o segundo produtor de café da Província de São Pau­lo, responsável por 11,02% (64.822 arrobas) da produção (o pri­meiro foi Areias, com 102.797 arrobas). Em 1854, já se havia tor­nado o primeiro, com a colheita de 554.600 arrobas. O segundo

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colocado, Taubaté, produziu 354.730. Consolidou-se a riqueza e seus titulares buscavam outras formas de demonstrá-la.

Referindo-se às construções nas fazendas dos cafeicultores abas­tados, Zaluar, no início da década de 1860, nos apresenta um panora­ma muito diferente do traçado por Saint-Hilaire, anos antes:

Os grandes proprietários de terrenos, deixando de freqüentar os povoa­dos, e reconcentrando-se em suas fazendas, que são os verdadeiros castelos feudais do nosso tempo, fazem convergir aí toda a vida, que reflui das povoações para essas moradas ostentosas onde m uitas vezes o luxo e a riqueza disputam prim azia à m agnificiência dos palácios da capital. (ZALUAR, p.46)

Zaluar vai mais além, referindo-se ao bom gosto e à ilustra­ção dos proprietários e de seus familiares: distrações em jogos, jantares e festas, salas e capelas pintadas por artistas estrangeiros e mais um sem-número de observações sobre o cotidiano desses ricos senhores em suas “moradias campestres” . Em termos de instrução, praticamente todos os filhos destes grandes produto­res estudaram nas faculdades do Império do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. Estes novos titulares, muitas vezes filhos de muitos que “não sabiam ler e escrever”, não mais “entorpe­ciam na ignorância”. Foi a geração dos barões do café, títulos generosamente dados pelo Império do Brasil aos proeminentes locais, que fundamentavam a própria existência do Império e do regime escravista.

ORIGEM DAS FORTUNAS

As oscilações da fortuna, no Brasil escravista, eram freqüen­tes. Dificilmente a segunda ou terceira geração repetiam o grau da fortuna paterna. De maneira geral, o ditado popular “pai taberneiro, filho barão e neto mendicante” foi a regra. O enriquecimento, tan­to no período colonial quanto no imperial, dava-se principalmente pelo comércio, lugar por excelência da acumulação de capital. Qualquer área atraía migrantes, mas as em início de atividades eco­nômicas tomavam-se particularmente propícias. O comércio dina- mizava-se rapidamente. Apesar disto, foram surpreendentes os ní-

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veis de abandono das atividades mercantis, passado este momento inicial, em favor da produção rural, mesmo mais trabalhosa e me­nos rentável. A única explicação possível para esta troca economi­camente desvantajosa é a busca de representação social dos envol­vidos. Comerciantes e usurários eram menos prestigiados, no meio social e político, do que os donos de terras, lavouras e escravos, independente do tipo de produção rural escolhida. E certo, tam­bém, que, mesmo os que se dedicavam a alguma atividade mercan­til e eram, ao mesmo tempo, donos de produções agrárias, omiti­am, em suas qualificações, a prática do comércio. Prevalecia sua condição de lavrador.

Este procedimento encontra razão de ser na própria mentali­dade colonial, com lbrte reminiscência medieval. No contexto colonial, o comércio ainda era tomado como indicador de que seus praticantes exerciam algum ofício manual, situação considerada inferior e inibidora das possibilidades de acesso a determinados cargos adm inistrativos e eclesiásticos, bem como a graças honoríficas. Somente com Pombal, na segunda metade do século XVIII, ó Império Colonial Português retirou a proibição de co­merciantes (excetuando-se os que vendiam “a retalho”, ou seja, os que efetivamente “trabalhavam com as mãos”) receberem comendas e títulos, mas, mesmo assim, entre a lei e o fato havia uma grande distância e, ainda no Brasil do século XIX, estas atividades, mes­mo que economicamente preponderantes, continuavam a ser dis­criminadas (ou, pelo menos, dissimuladas).

De qualquer forma, o comércio era o caminho mais seguro para o enriquecimento, situação que só se abandonava em troca de muitas terras e escravos. Muitas vezes, não era abandonada de todo. Os maiores empresários dos oitocentos foram, quase sempre, “fa- zendeiros-capitalistas”, pois associavam à atividade de fazendeiro negócios comerciais e financeiros (empréstimos a juros). Como já dissemos, esta segunda atividade, exercida muitas vezes de forma aparentemente eventual, raramente recebia maior publicidade. Ainda mais se estivesse ligada ao comércio de “almas”, ou seja, ao co­mércio negreiro. Principalmente a partir de 1831, data da abolição oficial do tráfico atlântico de escravos, ser um negociante de es­cravos africanos era prática legalmente proibida, portanto, omitida

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por quem quer que a exercesse. Apesar disto, constata-se ser mui­to lucrativa. Somente em 1850 se aboliu definitivamente o tráfico africano de escravos.

A origem das fortunas dos cafeicultores bananalenses é difícil de ser documentada,.Estudos demonstram que enriquecer muito pela própria atividade agrária, no mundo escravista, era pratica­mente impossível. Verifica-se, inclusive, que as mais bem sucedi­das unidades agrárias escravistas, não só açucareiras como cafeicultoras, tiveram origem no capital mercantil. Isto posto, e na observação de dados da biografia de grandes proprietários de Ba­nanal, pode-se chegar a conjecturas sobre a origem de algumas das maiores fortunas locais.

Todos os livros que tratam de Bananal referem-se, necessari­amente, a Manoel de Aguiar Vallim, um dos maiores cafeicultores da região. Sua fortuna impressiona. Em seu inventário, aberto em 1878, consta ser de 2:847:169S362, incluindo bens móveis, ouro, prata, brilhantes, semoventes, bens de raiz, apólices de dívida pú­blica (algumas até dos Estados Unidos), dívidas ativas e dinheiro. Era dono das Fazendas Resgate (onde fazia sua moradia habitu­al), Bocaina, Três Barras e Independência, além de outros sítios e situações. Tinha quase 400 escravos, além de um palacete de “dezesseis janelas”, casas e o Teatro de Santa Cecília, com seus acessórios, na Cidade do Bananal. No final da década de 1860, Manoel de Aguiar Vallim emprestou a expressiva soma de 453:2325000 ao seu sobrinho, José de Aguiar Toledo (Barão da Bela Vista e depois Visconde de Aguiar Toledo), para liquidar dí­vidas de sua casa comercial, no Rio de Janeiro.

Manoel de Aguiar Vallim foi, indiscutivelmente, muito rico. Apesar da riqueza ser, sem dúvida, um dado social importante, não era condição certa de prestígio. Manoel recebeu somente o título de Comendador, mesmo tendo morrido já em 1878, período em que o Império já enobrecia a muitos que o apoiassem.

A história da família de Vallim começa, no Brasil, com José de Aguiar Toledo, pai de Manoel. Consta que nasceu em Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, chegando ao Brasil em meados do século XVIII. Teria ido para São João Del Rey, minerar ouro, e daí para Sabará e Baependi, transferindo-se para São Tomé das Letras, onde

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se casou com uma senhora de origem francesa, alcunhada de “Ma­ria Formosa” (Maria do Espírito Santo Vallim e Maria Ribeiro de Aguiar são nomes que lhe são conferidos). Em fins do século XVIII, estabeleceu-se nas proximidades do Caminho Novo da Piedade, às margens do Rio Bananal, no local denominado Retiro, onde fun­dou a Fazenda de São Francisco da Formiga, com cultura de anil e trigo. Segundo dados dos mapeamentos populacionais1 de 1817, 1818 e 1 822, José de Aguiar Toledo teria, nestes anos, 17, 18 e 20 escravos, respectivamente, com produções de milho, feijão, arroz e toucinho, tendo chegado a exportar, em 1822, 1.000 arrobas de café. Não poderia, portanto, ser considerado um homem rico. Em 1825, já aparece com 41 escravos, em 1829, com 82 e, por fim, em 1836, com 101, tendo exportado neste último ano 12.000 arrobas de café. No ano de seu falecimento, entretanto, em 1838, seu in­ventário registra a propriedade de 285 escravos, duas fazendas (Resgate e Pinheiro) e a produção de 321.500 pés de café só na Fazenda Resgate2 . Seu enriquecimento, no espaço de 18 anos, foi impressionante. Nos livros genealógicos, consta que José de Aguiar Toledo enriqueceu por ter feito um viveiro e vendido, com suces­so, mudas de café. Nada, neste sentido, está indicado nos mapeamentos populacionais e agrários a que tivemos acesso.

José de Aguiar Toledo não foi o único a enriquecer nesse momento. Praticamente todos os membros desta e de outras famí­lias, de que foi possível acompanhar o volume de produção, de 1817 a 1836, tiveram aumento progressivo e homogêneo do nú­mero de escravos e de arrobas de café. Enriquecia-se com o café. Poucos, entretanto, em curto espaço de tempo, puderam ver suas produções tão multiplicadas como José de Aguiar Toledo.

Luciano José de Almeida teve uma trajetória ainda mais es­pantosa. Em 1817, ainda solteiro, com 21 anos, contava com fogo próprio, com somente 12 escravos e produção diversificada de

1 Os mapeamentos populacionais constam, basicamente, de nomes dos donos das produções e de seus familiares, escravos e agregados, total e tipo da produção, além de dados suplementares, nem sempre homogêneos.

2 O inventário de José de Aguiar Toledo foi feito com “partilha amigável” e, por este motivo, não consta avaliação dos bens, nem referências explicitas ao que havia na Fazenda Pinheiro.

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gêneros alimentícios e exportação, para o porto do Rio de Janeiro, de parcas 40 arrobas de café. Em 1829, já casado, tinha 104 escra­vos e vendeu 3.000 arrobas de café, Em 1854, data de seu faleci­mento, era proprietário, de.8.12 escravos^ das-Fazendas-Bea-Vista, Cachoeira, Córrego Fundo, Fazendinha, Bocaina e mais iniiine.- ros sitiõs e situações, aumento extremamente significativo no espaço de 21 anos. Comprou terras dos irmãos, em 1816 e 1823, compondo a Fazenda Boa Vista (herança dos pais), mas foi na década de 1840 que aumentou de maneira clara seus limites territoriais. Deste período, constam cinco escrituras de compra de terras de pessoas variadas (1844, 1846, 1848, I 848 e 1849), sendo que duas se referiam às Fazendas Cachoeira e Bocaina e as demais, confrontantes com suas propriedades. Os vendedo­res eram, no mais das vezes, herdeiros recentes, impossibilita­dos de manterem as unidades agrárias.

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Manoel de Aguiar Vallim, filho de José de Aguiar Toledo, casou-se, em 1844, justamente com a primeira filha de Luciano José de Almeida, numa aliança clara de filhos de grandes fortunas.

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Não é possível saber sua riqueza neste momento. Manoel já não constava do domicílio de seu pai desde 1822. Em 1830, com 24 anos, solteiro, aparece como chefe de domicílio com somente 3 escravos, tendo exportado 40 arrobas de café e 10 de toucinho para o Rio de Janeiro. No falecimento do seu pai, em 1837, pôde comprar parte substancial da herança dos irmãos, quase toda na Fazenda Resgate. No espaço de 7 anos, Manoel conseguiu meios de fazer estas compras. Seu pai, ainda em vida, lhe havia adiantado 5:642$000, metade dos quais deduzido na época do inventário. José de Aguiar Toledo foi particularmente pouco generoso nos dotes de seis dos seus oito filhos, que já se haviam casado, quando faleceu. Consta, em seu inventário, que uma filha recebeu de dote uma escrava, e outro filho, Antônio Ourique de Aguiar, cinco. Manoel, visivelmente, foi privilegiado.

Mqria Joaquina de Almeida, cognominada "a

1 matriarca de bananal". Quadro a óleo de Barandier, 1844.

Coleção Particular/ Família Almeida / Vallim

Alguns dados esparsos dos mapeamentos analisados nos su­gerem algumas opções de diversificação de investimento, no mo­mento de implantação da lavoura cafeeira na região. O filho mais

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velho de José de Aguiar Toledo, Francisco de Aguiar Vallim, em 1828, aparece qualificado como agricultor, mas há referência de que possui uma venda de molhados, onde empregou 300S000 e lucrou 100$000. O marido de sua irmã, José Gonçalves Pereira, era dono, em 1825, de tropa de mula, com 14 bestas de carga que conduzem gêneros para a Corte. Pequenos investimentos, sem dúvida, mas que nos revelam algumas das atividades possíveis.

O enriquecimento de alguns desses homens pode ter-se dado justamente através da diversificação de atividades. A lavoura cafeeira tornava-se, naquele momento, sem dúvida alguma, lucra­tiva, mas não a ponto de, em curto espaço de tempo, permitir um aumento tão expressivo na fortuna dos produtores. Uma empresa agrícola, segundo contas de alguns historiadores, rendia de lucro anual entre 5% e 10%. Casamentos com dotes e recebimento de herança poderiam ampliar de maneira mais rápida o contingente escravo, o que pode explicar, por exemplo (embora eu não acredi­te muito, pois não há indicação de a família da mulher ter sido especialmente abastada), Luciano José de Almeida ter aumentado

j seu plantei de 12 escravos, em 1817, para 104, em 1829, já que se1 casou em 1825. Outras atividades, mesmo que eventuais, podem ' justificar ter ele conseguido ser senhor de 812 escravos, em 1854.

A diversificação de atividades e a participação eventual em alguns empreendimentos comerciais foi opção privilegiada de em­presários do período escravista. João Fragoso calcula que, apesar da nítida concentração dos negócios mercantis nas mãos de pou­cas empresas, mercadores que faziam somente uma vez algum tipo de comércio, fosse terrestre ou atlântico (de escravos ou de produ­tos), e depois não mais voltavam a fazê-lo, formassem um contingente apreciável no conjunto do comércio da praça mercantil do Rio de Janeiro. Aliado a este perfil da circulação, aparece o empréstimo a juros como característica básica deste mercado, dada sua pequena cir­culação monetária^Constituía-se, assim, uma cadeia de endividamentos que ligava mercadores entre si e produtores, tomando-se um mecanis­mo privilegiado de acumulação de capital.

Tendo como base tal panorama genérico da economia do Brasil escravista, pode-se supor que muitos dos que se transformaram nos maiores produtores de café para exportação tiveram nesta di-

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Manoel de Aguiar Vallim com a comenda da Ordem da Rosa no ano de seu casamento. Quadro a óleo de Barandier, 1844.

Coleção Particular/Família Almeida / Vallim

Domiciana de Almeida Vallim no ano de seu casamento com o Comendador Vallim. Quadro a óleo de Barandier, 1844. Coleção Particular/Família Almeida / Vallim

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versificação de atividades (agrícola, mercantil e usurária), mesmo que eventual, a origem de suas grandes fortunas e de sua própria manutenção. Tanto Luciano José de Almeida quanto Manoel de Aguiar Vallim tinham, à época de seus falecimentos, 9,2% e 4,7%, respectivamente, de suas fortunas compostas por dívidas de pesso­as variadas. Mantinham-se, portanto, credores de valores substanci­ais. Um dos genealogistas das famílias de Bananal, Geraldo Cardoso de Mello, refere-se a Manoel como “capitalista e grande fazendeiro”. O termo “capitalista”, no século passado, referia-se ao exercício de diversas atividades, mas entre elas sobressaía a de usurário.

O caso dos “africanos do Bracuhy” nos pode dar mais pistas sobre outra modalidade de negócios em que estes produtores esta­riam investindo. O caso do Bracuhy é tratado, neste livro, em arti­go específico, mas cabe aqui um pequeno resumo. Em 1853, três anos após a abolição do tráfico atlântico de escravos, foram en­contrados negros africanos em terras de Manoel de Aguiar Vallim e de outros membros da família. Estes africanos fariam parte de um grande carregamento, desembarcado no porto do Bracuhy, em Angra dos Reis. Vallim foi diretamente acusado, juntamente com Joaquim de Souza Breves, de haver importado os africanos. Con­seguiu, entretanto, ser“despronunciado” [sic]. Seu sogro (Luciano José de Almeida) e um genro deste (Pedro Ramos Nogueira), en­tretanto, acusados apenas de terem comprado africanos entrados ilegalmente no país, foram levados a júri (e absolvidos).

O pronunciamento de Vallim, Breves e Luciano José de Almeida, titulares que eram das maiores fortunas não só de Bana­nal, mas do Brasil, na época, nos permite concluir que se tentava dar um castigo exemplar a mais do que compradores de africanos entrados ilegalmente no Brasil. Mais provável, e este é o ponto central, é que se procurava pôr um freio eficaz à teia do tráfico atlântico que, com certeza, como ao tempo em que consistia em uma atividade legal, tinha suas ramificações terrestres. Também Pedro Ramos Nogueira, em 1877, foi denominado, no Jornal Echo Bannanalense, de “importante fazendeiro, proprietário e capitalis­ta deste município”.

É necessário ressaltar que este tipo de atividade, muitas vezes eventual, compôs, durante anos, a própria lógica empresarial do

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período escravista, não ocasionando, necessariamente, mancha social irreversível nos envolvidos. Mesmo depois de 1831, quando se aboliu teoricamente o tráfico, a entrada de africanos no Brasil não só conti­nuou como se ampliou. Sabia-se, embora não mais se registrasse (afi­nal, a lei existia e podia ser, ocasionalmente, empregada), quais eram os envolvidos no comércio de almas. Ajmprensa da Corte, na década de 1840, já com os problemas criados pela Inglaterra ao tráfico de africanos, aliados às argumentações humanísticas e liberais, coloca­das na época, começou a construir argumentos contra os “míseros contrabandistas de carne humana”, nunca antes criticados tão se­veramente. Como Martha Abreu bem desenvolve ainda neste livro, foi a tentativa do Governo Imperial de levar a cabo, de maneira efici­ente, o fim do tráfico atlântico, a partir de 1850, que tomou, definiti­vamente, esta prática mal vista aos olhos contemporâneos, impedindo os envolvidos de terem acesso, pelo menos naquele momento, a títu­los de nobreza, como no caso de Manoel de Aguiar Vallim.

Em 1859, Vallim tentou obter o título de Barão do Bananal, propondo um donativo de 15:000$000 ao Hospício Pedro II. A resposta do Marquês de Abrantes foi feita nos seguintes termos:

Não posso encarregar-m e da pretenção da pessoa de que trata o memorial junto . A vista dos papéis existentes na Secretaria, relativos à questão N egreira do Bracuhy, e exam inados por ocasião da pretensão idêntica d ’outra pessoa, foi-m e insinuado que não propusesse indivíduo algum qu e t in h a [s ic ] s id o p ro n u n c ia d o n a q u e la q u e s tã o , e m b o ra despronunciado ou absolvido depois. Rio, 6 de m arço de 1859.

Dois filhos seus, entretanto, receberam título de barão, am­bos após sua morte (um, em 1884, e outro, em 1888). Tudo indica que, assim como a seu sogro, a nobreza lhe foi vedada.

Provavelmente, Vallim se precipitou. O caso do Bracuhy, em 1859, quando pleiteou o baronato, ainda era recente. Com o tem­po e o fim efetivo do tráfico africano, um dos que foram levados a júri, no processo, Pedro Ramos Nogueira (também genro de Luciano José de Almeida), recebeu o título de Barão da Joatinga, em 1877,24 anos depois de haver sido pronunciado. Nitidamente, agraciar os que se haviam envolvido em tráfico tanto tempo antes não representava mais perigo nem desdouro social.

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Todos esses dados, em conjunto, permitem concluir que a montagem de grandes unidades agrícolas cafeicultoras, em Bana­nal, reproduziu a lógica econômica predominante em todo o perí­odo escravista, com a diversificação de atividades mercantis repre­sentando a forte característica da acumulação de capital, num mer­cado altamente oscilante. José de Aguiar Toledo, Luciano José de Almeida e Manoel de Aguiar Vallim, como todos os outros, faziam parte de seu tempo e, dentro dele, suas opções de investimento de tempo, trabalho e capital resultaram num sucesso econômico in­contestável. Transmitir este sucesso para as gerações seguintes, entretanto, tornava-se tarefa difícil, embora o reflexo de sua fortu­na tenha possibilitado aos seus filhos o prestígio social que eles próprios sonharam, mas que não puderam obter. A geração se­guinte foi toda ela coroada por títulos de nobreza e pela ocupação de altos postos da administração imperial e, mesmo, republicana. Nenhum deles, entretanto, conseguiu uma riqueza nem mesmo pró­xima da que tiveram seus pais.

Um sobrinho de Manoel de Aguiar Vallim, intitulado Barão da Bela Vista e depois Visconde de Aguiar Toledo, era dono de uma casa comercial na Cidade do Rio de Janeiro que, em 1863, estava falida. Morreu pobre. O filho de Luciano José de Almeida, Laurindo José de Almeida, intitulado Visconde de São Laurindo (em 1884), morreu desgostoso e pobre, em 1917. Tendo vivido proporcionalmente mais do que o comum dos homens da sua época, com 52 anos de idade viu a abolição da escravidão e a proclamação da República. Saudosista e conservador, em seu diário particular lamentou ter assistido ao imperador ser banido pelos usurpadores republicanos, pelos ingratos traidores especuladores e covardes, vencedores pela traição dos quar­téis. Vendeu duas fazendas, restando-lhe, somente, quando morreu, com 81 anos, a Fazenda São Geraldo, onde residia. Um genro de Manoel de Aguiar Vallim, o Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza, falecido em 1884, foi Ministro das Rela­ções Exteriores e Presidente da Província da Bahia. Em seu inven­tário , constava uma fortuna de 146:614$356, sendo que 101:097$570 (69%) cabiam à sua sogra, Domiciana Vallim, por empréstimo particular, sem juros, feito à viúva para pagamento

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das dívidas do casal. Restaram, para serem divididos entre a viúva e seus oito filhos, portanto, 45:516$786.

Os exemplos se multiplicam. Na realidade, a grande herança dos filhos e netos dos dois maiores produtores cafeeiros escravistas da Bananal do século XIX foram o prestígio e a escolaridade, o que lhes garantiu acesso a profissões liberais e atividades políticas. Muitos saíram de Bananal, a maioria dirigindo-se para a Cidade de São Paulo e ali falecendo. Distanciaram-se da atividade agrária.

O processo de abolição da escravidão determinou mudanças fundamentais nas zonas agrárias que, durante a segunda metade do século XIX, se baseavam na mão-de-obra servil. Titulares das gran­des fortunas foram paulatinamente vendendo suas terras e migran­do para outras áreas. No caso do café, a transformação foi geográ­fica, atingindo até mesmo a própria região, tomando-a empobrecida e deserta. O café é uma lavoura perversa, desgastando muito o solo. Cafezais com mais de 20 anos são já velhos e é impossível replantá-los no mesmo lugar. Seria necessário uma recuperação do solo, impensável numa época em que ainda havia terras virgens e mais férteis para seu plantio, como o chamado Oeste Novo Paulista ou o Norte da Província do Rio de Janeiro, mesmo que distantes.

Bananal, na década de 1870, começa a ter sensivelmente di­minuída sua produção de café^m situação comum de impossibili­dade de filhos de grandes produtores manterem fortunas iguais ou superiores às dos pais, somava-se o fato conjuntural de mudança de um regime de trabalho e conseqüente encarecimento do preço do cativo. Em outras áreas, como a açucareira do Norte Fluminense, por exemplo, muitos produtores escravistas faliram, mas seus subs­titutos continuaram a plantar cana-de-açúcar. No Vale do Paraíba, mudou-se até mesmo o tipo de produção. A criação de gado to­mou o lugar dos antigos cafezais.

ESTRATÉGIAS FAMILIARES

A fortuna, no Brasil escravista, era acessível a muitos, princi­palmente porque, com freqüência, novas áreas de cultivo se toma­vam promissoras. Dependendo da sorte ou da destreza, alguns homens poderiam vir a ter cabedal para empreendimentos de vul­

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to. Ser economicamente poderoso não significava a certeza de ser considerado um “homem bom” ou de “família principal”. Dentro do que se estabelecia como status social de um indivíduo, inseri­am-se normas de conduta e de representação social que, muitas vezes, não refletiam a situação econômica dos envolvidos. Pobre­za e prestígio podiam, muitas vezes, andar juntos. As estratégias de alianças matrimoniais das famílias mais abastadas incluíam, não raro, aspectos que independiam da fortuna.

Para caracterizar o grupo que se reconhecia e era reconheci­do como “principal”, é necessário levar em conta condições funda­mentais: brancura da pele, prestígio familiar, ocupação de postos administrativos importantes, atividade agrária, acesso à escolari­dade e fortuna anterior ou no presente, senão dos envolvidos, pelo menos de parentes próximos, principalmente no caso de serem herdeiros. Combinando-se algumas ou todas estas condições, os membros recebiam títulos honoríficos e eram nominados com senhoria, resultando no reconhecimento da comunidade ao seu lugar social. Chegar a esta situação dependia, muitas vezes, da escolha certa de genros e noras.

O dote constituía-se em peça chave no arranjo matrimonial. A princípio, podiam-se dotar filhos e filhas, mas a prática que im­perou foi a dotação de mulheres, provavelmente por interesse das famílias em incorporar homens adultos (e, talvez, mais prestigiados) ao círculo de poder e mando de famílias aba.stadas. Diferentemente do século XVII, quando o dote se constituía majoritariamente de bens produtivos, como escravos, terras, animais de serviço e ins­trumentos de trabalho, no século XIX, além de ter diminuído a proporção das famílias que dotavam filhas (e o número das que, na mesma família, recebiam dotes), sua composição mudou. O dote passou a conter, cada vez mais, bens de representação social, como adereços, jóias, roupas e, nos casos dos mais ricos, dinheiro. De qualquer forma, o sentido da dotação permaneceu sendo o de cha­mariz e garantia da possibilidade de escolha dos melhores partidos que as posses da família pudessem conseguir; os mais ricos o usa­ram muito bem na barganha matrimonial. A mulher, desta forma, tinha grande peso estratégico, na medida em que, através dela, ali­anças importantes poderiam ser realizadas. Ficavam, assim, privi­

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legiadas, em relação aos irmãos, já que recebiam bens antes da herança. Esperava-se que os filhos, por sua vez, se tornassem gen­ros de outras pessoas, recebendo dotes de suas noivas. Não deixa­va de ser uma reciprocidade.

No momento da morte dos pais, as filhas ou, melhor dizendo, os genros (“cabeças de casal” ) entravam com a “colação”, ou seja, listavam o que haviam recebido ao casar, que era incorporado ao monte-mor, e descontavam-no de sua parte na herança. O dote era uma antecipação da herança. Houve vários casos, entretanto, em que genros optavam por não serem herdeiros. Era praxe legal ques­tionar a opção de querer ou não ser herdeiro, no caso dos casados. Quando a estimativa era de que o dote fosse maior do que a “legí­tima”, optavam por se dizerem satisfeitos com o que haviam rece­bido. Caso aceitassem e sua parte fosse menor do que o dote, fica­riam devendo aos demais herdeiros, risco que, geralmente, não queriam correr. Com certeza este não foi o caso dos membros das famílias mais ricas de Bananal, como as de Luciano José de Almeida e Manoel de Aguiar Vallim, cujas filhas receberam dotes bastante inferiores às suas “legítimas”. Todas quiseram ser herdeiras.

Uma das filhas de Luciano José de Almeida, casada com o próprio Manoel de Aguiar Vallim, recebeu de dote, em 1844, três escravos, um par de brincos de brilhante, um adereço, um anel de brilhante, uma cadeia de ouro, um colar de ouro, um anel de dedo, dois anéis de dedo de diamantes, um cordão de ouro grosso, um toucador, um tinteiro de prata, um selim, um freio de prata, nove bois, sete e meia braças de terras ao longo do Rosário (na Cidade do Bananal) e 14:420$000 em dinheiro, num total de 20:000$000. Nitidamente, este dote refletia a prática do tempo de se darem bens de representação social em substituição aos de produção, embora alguns resquícios ainda apareçam no caso, com escravos e bois incluídos. Já as filhas da própria Domiciana e de Manoel de Aguiar Vallim, anos depois, foram ainda mais bem aquinhoadas, recebendo um total maior, de 50:000$000, praticamente sem bens de produção:

1 -Francisca Vallim de Almeida, casada com Luiz Antônio deAlmeida:— 11 escravos— um aparelho de prata para chá

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— um faqueiro, castiçais, salva, bacia e jarro, tudo de prata— 36:205$000 em moeda corrente,

2-Amélia de Almeida Vallim, casada com Pedro Luiz Pereirade Souza:— 14 escravos— prata— brilhantes— 31:766$000 em moeda corrente.

Manoel de Aguiar Vallim, previdente, estipulou, como cláu­sula de ambas as dotações, o seguinte:

Pelo falecim ento que prim eiro se realizar de qualquer dos cônjuges do­adores. esses bens e dinheiros irão à colação no seu todo e tão inteira­m ente com o acim a se contém ; serão aquinhoados a donataria que os conferiu e com putados por essa form a para preenchim ento de sua legí­tima, tudo sujeito às disposiçõe gerais das leis em vigor.

Em suma, Manoel previa possíveis reveses em sua fortuna e que, ao dotar generosamente uma das filhas, pudesse prejudicar os seis outros filhos, além, é claro, da mulher. Ao garantir a entrada em colação do dote no monte-mor, por morte dele ou da mulher, não retirava do conjunto dos bens o valor concedido.

Manoel de Aguiar Vallim faleceu em 1878, e a legítima de cada herdeiro foi de 209:940$669, quatro vezes mais do que as filhas receberam em dote. Ressalte-se que esta seria a metade do valor de cada uma, já que a mulher, como meeira do casal, recebeu a outra metade do monte-mor. Somente após a morte da mulher é que os herdeiros entrariam na posse do restante. As suas outras filhas, ainda solteiras na época de seu falecimento, não precisavam mais do dote. Ao se casarem e, como conseqüência, se emancipa­rem, tomavam-se aptas a receber suas legítimas, no caso, a pater­na, dote ainda mais apreciável do que se ele estivesse vivo. Não foi sem razão que uma delas casou imediatamente após o falecimento do pai, no mesmo ano de 1878.

Com pais ainda vivos, um casamento sem o consentimento familiar poderia levar à negação do dote, sendo de se esperar que as filhas, principalmente, mais do que os filhos, aceitassem as im-

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posições dos pais na escolha de seus noivos. Sem dúvida que, caso estivessem mortos, seria mais fácil uma barganha no sentido de escolha própria, mesmo por parte das mulheres. Mas, ainda assim, poderia haver problemas com tutores ou pai/mãe sobrevivente, que colocariam obstáculos legais ou práticos ao recebimento da legíti­ma. Os artifícios eram inúmeros.

A eleição do cônjuge ultrapassava o interesse individual. Pro­cessos de raptos e divórcios, que foram sistemáticos durante o pe­ríodo escravista, sem dúvida alguma desvendam práticas femininas e masculinas que destoavam de orientações impostas pela família. Dentro das hierarquias e moral da época, certamente havia muitos que procuraram e conseguiram buscar espaços onde puderam atu­ar, forjando atitudes próprias e desdenhando dotes c demais bene­fícios ofertados pela família. O mais comum, entretanto, foi a exe­cução de projetos e alianças rituais, de acordo com planos familia­res, inseridos no que a sociedade estabelecia como norma de con­duta aceitável. Constata-se, claramente, que os filhos, de maneira geral, concordavam com os pais no tocante a seus matrimônios. “Casar bem” a si próprio e a seus filhos constituía-se num dos pon­tos fundamentais do ciclo de vida familiar. Estabeleciam-se, com tais alianças, reciprocidades que alicerçavam o poderio das famíli­as da região, em particular as mais ricas.

O século XIX foi especial dentro do panorama escravista. O ca­samento, até então definido pela moral católica — visando a procria­ção — e viabilizado pelas opções familiares, passou a ser objeto tam­bém da literatura, do discurso médico higienista e do plano jurídico, com as discussões sobre o casamento civil. O romantismo, com o casamento por amor, e o “casamento higiênico”, de preferência entre não parentes, passaram a atacar o “matrimônio-negócio”. O dote co­meçou a ser visto e denunciado como um contrato mercantil e que ajudava a que os noivos visassem as fortunas e não as aptidões natu­rais e habilidades pessoais, tão caras ao romantismo. Os efeitos destes ataques não foram, obviamente, imediatos, principalmente porque os que tinham acesso à leitura e ao conhecimento destes temas eram os das famílias principais, justo as mais cuidadosas nas alianças. Mantive­ram-se tratando o casamento como um arranjo social importante, in­dependente das preferências amorosas e sexuais de seus membros.

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Dentro do quadro exposto, era de se esperar que o exercício das paixões amorosas e carnais se dessem, em muitos casos, para além das relações conjugais. Foi o caso, por exemplo, de José Ra­mos Nogueira, cunhado de Luciano José de Almeida, que, em seu testamento, redigido em 1846, já viúvo, mantinha intercurso sexu­al estável com algumas escravas, a ponto de ter tido 10 filhos com uma delas. Em suas palavras:

Declaro que no estado de viúvo em que vivo tive os filhos naturais se­guintes: Joaquim , Francisco, Bárbara, Maria. Luciano, Luiz, João, Maria, M aria e H enrique, filhos de Florinda, parda; José, Rosa e Firmiano, filhos de M arcelina parda; M anoel filho de m inha escrava Claudiana então solteira e hoje casada com meu escravo David de nação mina; e Josefa filha de Francisca parda; ao todo quinze filhos que são de/, com Florinda parda, três com M arcelina parda, um com Francisca parda, e um com C laudiana crioula, os quais todos são m eus herdeiros, e como tais aqui os constituo. D eclaro que as pardas Florinda, M arcelina. e I Francisca mães de meus filhos naturais já há muito se acham por mim libertadas e tais filhos já nasceram livres, e que por isso não têm seus \ valores de entrar no inventário, e nem fazer parte do monte.

José não esqueceu a escrava Claudiana, com a qual teve um fi­lho: “declaro que deixo libertos os meus escravos Claudiana crioula, e seu marido David de nação mina, e seus filhos Eva, e Adão”. Deixou livre, portanto, a mulher com quem havia tido um filho e, reconhecida­mente, a privilegiou, alforriando os que ela tivera com outros. Prova­velmente, a viuvez e a proximidade tão grande com escravos, a ponto de reconhecer todos eles como filhos naturais — diminuição certa da fortuna de seus sete filhos legítimos — fez com que o testador ainda alforriasse mais 29 escravos, entre casados e crianças, deixando, inclusive, a cada casal 100S000. Previdente, estipulou que a David, escravo casado com uma das que com ele tivera um filho, deixava 1:000$000, ficando o mesmo obrigado a ter em sua companhia e tratar como a seus filhos os escravos que liberto e que não tive­rem marido ou pai. José Ramos Nogueira foi Sargento-Mor da Imperial Guarda de Honra de D. Pedro I. Em 1817, indicado como “senhor de engenho”, tinha 21 escravos, em Bananal. Em 1830, acompanhando a marcha do café, contava com 90 escravos e havia exportado 1.900 arrobas de café para a Ilha Grande.

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No inventário de sua mulher, feito em 1836 (apesar de ela ter falecido em 1826), tinha 145 escravos e um monte-mor que soma­va 58:589$457. O dote de uma de suas filhas foi de 3:216$ 160, composto de 2:216$ 160 em dinheiro e duas escravas.

Não tenho seu inventário, mas tudo indica que sua fortuna aumentou muito após a morte da mulher. Podendo dispor livre­mente de um terço de seus bens, pressupõe-se que só esta parte poderia dar conta das inúmeras alforrias que fez, doações significati­vas de dinheiro e escravos a sobrinhos, afilhados e pessoas variadas, e medidas explícitas para salvação de sua alma, compostas de missas e esmolas. Sua fortuna, portanto, deveria ter sido significativa.

Casado com uma irmã de Luciano José de Almeida, José Ra­mos Nogueira casou um de seus filhos, Pedro Ramos Nogueira (envolvido no caso do Bracuhy e identificado também como capi­talista), com uma filha de Luciano. Reproduzia-se, assim, a lógica endogâmica que passam a ter as famílias consolidadas nas regiões e que detinham poder econômico e político.

As alianças matrimoniais dos filhos das famílias de elite de Bana­nal, principalmente as ocorridas em meados do século XIX, represen­tam claramente a estabilidade das famílias, na região, e o interesse em preservar o controle social e político que vinham consolidando.

Dos nove filhos de um cunhado de Manoel de Aguiar Vallim, Laurindo José de Almeida, seis casaram-se com parentes próxi­mos: cinco, com primos — sendo duas com o mesmo primo — e um com uma sobrinha. A endogamia predominava, a exemplo do que ocorria em outras famílias poderosas de outras regiões. ^-.con­solidação do status social permitia o fechamento da elite em tomo de si mesma e se manifestava num sentimento de grupo que, sem dúvida, respaldava as ações de seus membros. Ao mesmo tempo, percebe-se que a diminuição do poder econômico e uma evidente preponderância social e política é que faziam com que os casamen­tos endógenos se multiplicassem.

Os recorrentes casamentos entre membros de uma mesma parentela podem significar, sem dúvida, uma tentativa de manuten­ção da fortuna dentro do círculo familiar. Isto, entretanto, perde o sentido, quando se constata que justamente Luciano e Manoel casaram seus filhos mais com pessoas de fora do que a segunda

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geração, mais empobrecida, embora ainda rica. A terceira, já dis­persa por várias áreas e visivelmente empobrecida, no final do sé­culo XIX, deixou esta tendência endogâmica. Realmente, com a abolição da escravidão, o advento da República e a mudança do status social — incluindo as próprias motivações para o casamento— perde o sentido manter uma estratégia que visava consolidar um poder escravocrata. Novas expectativas de estratégias matri­moniais se manifestam entre as novas elites, já não mais pautadas na ordem senhorial.

Os casamentos realizados fora da parentela representavam alianças precisas e calculadas. Três das sete filhas de Manoel de Aguiar Vallim casaram com outros três irmãos, nas décadas de 1870 e 1880, filhos “do velho político do Império, Comendador João Álvares Rubião”3, de Mangaratiba, Rio de Janeiro. Objetiva- vam-se, certamente, alguns ganhos, provavelmente não de fortu­na, pois não consta ser a família Rubião, neste momento, especial­mente rica. Outros dois casaram-se com parentes próximos, sendo um deles entre tio e sobrinha. Uma outra casou-se com homem letrado e, dentre os genros, o mais ilustre foi Presidente de Provín­cia. Não era rico e morreu pobre, mesmo com dotes e legítima paterna da mulher. O último filho, Eduardo de Aguiar Vallim, ca- sou-se com uma francesa, já na década de 1890, quando o poder econômico dos antigos senhores escravistas já se encontrava em franca decadência. Dos nove filhos de Luciano José de Almeida, somente dois se casaram com parentes. Os outros seis a casar — um permaneceu solteiro — o fizeram com não parentes (ou, pelo menos, com parentesco distante e impossível de ser constatado pela documentação e genealogias analisadas).

Aliar-se por matrimônio a uma família representava estender a este parentesco ritual solidariedades que resultavam em consci­ência de grupo, diferenciado-se dos demais e, principalmente, co­locando-se numa hierarquia bem demarcada. Cisões dentro da pró­pria família certamente existiam, como no caso de Luciano José de Almeida e seu meio-irmão, o Comendador Antônio José Noguei-

! Cf. Mello (1942).

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ra, cada um militando em lados políticos opostos: Luciano, no Par­tido Conservador, e Antônio, no Liberal. Enfrentaram-se no movi­mento de 1842. Todos os genros e filhos de Luciano eram conser­vadores, o mesmo ocorrendo com os do irmão, e as famílias dos dois, politicamente rivais, não casaram entre si. Mantiveram-se em grupos separados, atraindo para cada lado outros membros da pa­rentela que, por sua vez, adotou o respectivo partido.

Ao que tudo indica, as rivalidades entre os irmãos Luciano e Antônio José se originaram ainda na época do recebimento da he­rança do pai. Num processo de 1821, Luciano afirmou que:

Seu irmão A ntônio José Nogueira lhe propõe várias dem andas cíveis e crim inais sobre terras que em partilha couberam a am bos e nas quais estão am bos vivendo em comum, portanto, pelo fato das terras não esta­rem divididas com term os divisórios judiciais, pede Luciano José de A lm eida que o ju iz faça valer seu direito e cite o irmão incontinente para que este exija em ju ízo a folha de partilha, m ostrando assim que as dem andas que seu irmão lhe move são injustas, sob pena de que não com parecendo à audiência de exibição as dem andas se tornem nulas e sem efeito.

Mesmo entre Luciano e o seu já citado cunhado, José Ramos Nogueira, houve desentendimentos, provocados pela vizinhança. Em outro processo, de 1820, Luciano demandou contra o cunha­do nos seguintes termos:

D iz Luciano José de Almeida, m enor de 25 anos, com assistência de seu tutor, que ele quer fazer citar a José Ramos N ogueira para na pri­m eira audiência deste ju ízo falar a um libelo cível no qual m elhor de­clarará a sua intenção a respeito dos bens que por herança e doação pertencem a ele Luciano na qualidade de órfao e herdeiro.

Diz ainda Luciano que é c jm um lavrador que vive não só de suas agri­culturas com o tam bém da criação de diversos gêneros não só para sua utilidade mas tam bém para o seu sustento e de seus escravos, sendo a criação de porcos tam bém de grande utilidade. A fazenda em que mora Luciano pertencente (sic) ao seu falecido pai Luís José de A lm eida toi d ividida entre os dem ais herdeiros seus irmãos e por infelicidade dele Luciano tom ou-o com a partilha vizinho de seu cunhado José Ramos N ogueira por terem os pastos unidos, afirm a Luciano, que seu cunhado

t tem sido m au vizinho pois ao avistar um dos porcos de sua criação logo m anda seus escravos m atá-lo e fazer toucinho dos mesmos. Segundo

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Luciano, seu cunhado tem lhe dado prejuízo a fim de obrigá-lo a se m udar por dem asiadam ente am bicioso e querer ficar com toda a fazen­da. Em vista disso^pede Luciano a quantia de 180$000 referente ao valor de 90 porcos que o seu cunhado tem m atado e com ido sem a sua autorização.

Dono, em 1 854, de uma fortuna avaliada em 2:505:744$51 5, torna-se ridícula a briga por porcos, nos valores apresentados. Embora seja esta somente uma medida forçada de comparação (afi­nal, rivalidades familiares poderiam acontecer pelos motivos, aos nossos olhos, mais ínfimos), constata-se que, naquele momento, Luciano ainda não se havia tornado o homem rico que seria de­pois. Mesmo tendo brigado por porcos, nada impediu que ambos os cunhados litigantes casassem, anos mais tarde, seus filhos entre si: Plácida Maria de Almeida, filha de Luciano, desposou Pedro Ramos Nogueira, filho de José.

As idades bastante diferenciadas entre os cônjuges, além da ausência do dote, podem, provavelmente, induzir a que os filhos tenham mais condições do que as filhas de escolher os cônjuges. Alguns indícios me levam a crer que o mais comum foi o arranjo de casamento se dar entre os pais da noiva e o futuro marido. As mulheres das famílias Almeida e Vallim (foi possível saber a idade de 19 mulheres e 17 homens) casavam com 17 anos, em média, com freqüência maior entre 17 e 19 anos (42%) (ver QUADRO I), seguido dos 14 aos 16 anos (32%). Nenhuma mulher casou com menos de 14 e mais de 22 anos. Os pais dos homens deveriam ser, certamente, consultados, mas a idade média do casamento dos homens, de 27 anos, maiores de idade, em qualquer das duas leis que regulamentavam a possível emancipação dos homens (pelas Ordenações Filipinas, a maioridade ocorria aos 25 anos e, no Có­digo Criminal do Império, de 1831, foi diminuída para 21), pressu­punha que eles adquirissem, legalmente, plena posse de seus atos e bens, podendo ser incluída, aí, a escolha da noiva. Desde 1775, havia a possibilidade de os pais deserdarem os filhos, caso se ca­sassem sem o consentimento paterno. Para filhas, isto já estava estipulado desde as Ordenações Filipinas. Pode-se supor, inclusi­ve, que a maior idade relativa dos noivos, no momento do casa­mento, indicasse que já estavam de posse de alguns bens necessá­

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rios ao estabelecimento de unidades domésticas. Tanto Luciano José de Almeida quanto Manoel de Aguiar Vallim foram chefes de domicílio ainda solteiros.

QUADRO I

F reqüência da Idade de C asam en to dos M em bros das Fam ílias A lm eida e Vallim

Núm ero dc homens: 17 N úm ero de mulheres: 19

Intervalo de Idade

Homens M ulheres

14 a 16 - 32%17 a 19 12% 42%20 a 22 12% 26%23 a 25 17%26 a 28 17%29 a 31 24% -32 a 34 6% -35 a 37 -38 a 40 12% -

Fontes: FR EITA S (1981); Inventário de M anoel de A guiar Vallim (1878); P rocessos de B anhos M atrim oniais (1878).

De qualquer forma, apesar de uma possível autonomia relati­va na escolha, por parte dos homens, o comum parece ter sido a aceitação de sugestões ou de veto às alianças, por parte dos pais dos homens. Seria certo supor que a negação ao casamento entre membros de um mesmo grupo familiar rival, como os irmãos Luciano e Antônio José, se desse tanto por parte dos pais da noiva quanto do noivo. Já no caso de Luciano e José Ramos, o casamen­to entre seus filhos poderia sugerir um arranjo entre Pedro e Luciano, sem o consentimento de José, mas nada indica tal situação, por ter ele casado com 20 anos, necessitando, ainda, do consentimento paterno. Os porcos, sem dúvida, foram esquecidos.

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Já um outro filho de José Ramos Nogueira, José Fragoso, casou sem tal consentimento e teve que arcar com as conseqüênci­as, mesmo que a curto prazo. Em 1837, José Ramos Nogueira arrependeu-se de ter negado o recebimento da legítima ao filho, fazendo urna petição ao Juiz de Órfãos, nos seguintes termos:

Diz o Sargento-M or José Ram os N ogueira, na qualidade de pai e tutor legítim o de seus filhos m enores, que há um ano. segundo consta da certidão jun ta que seu filho José Ramos Fragoso se acha casado à face da Igreja com sua prim a legítim a P lacidina N ogueira da Silva, cujo casam ento foi celebrado sem consentim ento do suplicante nem de V.Sa. e isso por induções do sogro que é hoje do mesm o e por isso e por não ter até então os 20 anos de idade na forma do Parágrafo 19 da Ord. Livro 1". título 88, lhe não quer entregar sua legítim a e nem prestar o consentim ento para tal fim, mas com o há mais de três m eses se tenha voltado para a com panhia do suplicante e tenha com pletado a dita ida­de quer o suplicante entregar sua dita legítim a para o que requer auto­rização de V.Sa. visto que a m ulher com quem se casou em nada lhe desm erece em teres e qualidades, desculpando-lhe V.Sa. igualm ente a falta de cum prim ento à lei a respeito do dito casam ento e em firmeza abaixo se assina o suplicante e espera a bem do m enor seu filho a graça de que implora, de que receberá m ercê (Seguem -se as assinaturas).

O sogro do filho, referido no requerimento, era justamente o irmão liberal de Luciano, Antônio José Nogueira. Placidina era sua filha e, ao que tudo indica, ele insistiu em casá-la com um primo da facção rival. O desprezo de José Ramos Nogueira em não nominar o seu cunhado, irmão de sua mulher, tratando-o como “sogro que é hoje do mesmo [de seu filho]”, demonstra, provavelmente, a op­ção de José em ligar-se ao cunhado Luciano José de Almeida. Ni­tidamente, não considerava o outro como membro de sua família.

O sentimento de pertencer a uma família específica transcen­dia a consangüinidade e se manifestava entre os parentes rituais. Manoel de Aguiar Vallim, em carta ao Conselheiro José Thomaz Nabuco D ’Araújo, referindo-se ao cunhado e sua senhora., nomina- os dois membros de minha família, quando, na verdade, nenhum laço de consangüinidade os unia. A petição ao Conselheiro, datada de 1860, pretendia sua interferência, junto ao Imperador, num pro­cesso contra Laurindo José de Almeida e sua esposa, pelo suposto assassinato de uma escrava. Manoel de Aguiar Vallim propunha

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que o Poder Moderador os anistiasse, alegando que os laudos mé­dicos constataram morte natural, além de argumentar que houve outro caso, na Província de Sergipe, nas mesmas circunstâncias. Independente da veracidade das acusações, o caso principal con­sistia em evitar que os envolvidos fossem a júri,

cujo term inal seria muito vexatório o com parecim ento de ambos sobre­tudo da senhora não obstante estar convencido de que se obteria a abolvição porém muito receam os do Juiz de Direito. Tenho alguma no­tícia de que tais recursos para serem regulam entarm ente interpostos devem ser depois de esgotados todos os do Poder Judiciário, mas quero crer que se poderia alcança-lo como uma espécie de anistia juntando-se algum as considerações bem ponderosas [sic] como sejam as conveniên­cias que se devem guardar no nosso País sendo certo que a escravatura considerará um triunlo se houvesse um êxito desfavorável aos meus parentes [grifo meu] e quem sabe se uma insurreição não seria a conse­qüência funesta que daí seguir-se-ia e quem sabe mesmo se estender-se- ia a destruição a toda fam ília [grifo meu] que reúne em torno de si m ilhares de escravos! e quem sabe mesmo se o contágio na destruição não seria um a calam idade pública?

Manoel continua, ainda, oferecendo, em troca da anistia, uma soma que se destine a qualquer estabelecimento Pio.

Pretendeu, também, indenizar o próprio Conselheiro:

(..) porque V. Exa. além da influência e proteção que tem de despender será igualm ente o encarregado do patrocínio da causa, como advogado nos dirá qual a quantia com que devem os indenizá-lo de tão grande trabalho com o honorário; dissem os francamente porque um serviço desta ordem constitui um a dívida que jam ais poderá saldar-se.

Finaliza o documento a argumentação explícita de se preser­var a ordem senhorial, que tem na família, consangüínea e ritual, o veículo por onde esta representação poderia ser efetivada:

Finalm ente podendo asseverar a V. Exa. que (..)mos a m aior im portân­cia a essa questão por ligar-se a ela a honra de nossa família que não deve perigar seja qual for o preço [grifo meu] e esperam os por isso de V. Exa por um a extrema bondade nos valerá em tão tristes circunstâncias.

Discursos como estes foram constantes na ordem escravocrata, onde senhores irem a júri significava uma grave desonra social,

sendo ou não culpados, quando estavam em causa questões com escravos. Em 1853, já três grandes senhores de Bananal haviam ido a júri, no caso do Bracuhy, inclusive o sogro de Manoel de Aguiar Vallim. Ele próprio foi impossibilitado de receber título de nobreza por ter seu nome envolvido no processo, mesmo não ten­do ido a júri. Em 1860, repete-se o mesmo fato, agora com um cunhado e sua esposa. Preservar a honra e manter a família longe de acusações que trariam desvantagens sociais deveriam ser obje­tivos atingidos a “qualquer preço”, principalmente quando envol­viam, em lados opostos, senhores e escravos. Apesar do processo de 1860, Laurindo José de Almeida, assim como seu cunhado, Pedro Ramos Nogueira, pôde ver reabilitada sua condição quando, em 1884, recebeu o título de Visconde de São Laurindo.

A genealogia das famílias de Luciano de Almeida e Manoel de Aguiar Vallim demonstra que os casamentos faziam parte de uma estratégia que privilegiava o prestígio social. Estes dois gran­des produtores escravistas já haviam feito uma aliança de fortuna entre si. Mais importante do que tudo, quando a riqueza já era um fato, visava-se a garantia de posições políticas e sociais. Pratica­mente todos os filhos, genros e netos de Luciano José de Almeida e de Manoel de Aguiar Vallim formaram-se em faculdades, no Bra­sil ou no exterior, participaram ativamente dos partidos e de car­gos políticos, não só do Império como da República. Alguns foram ministros, presidentes de província, senadores, conselheiros e de­putados federais. Outros, mais modestos, participaram como vere­adores e deputados municipais e provinciais/estaduais. Ainda hou­ve os que, mesmo sem atividade política, conseguiram comendas como as da Ordem da Rosa e títulos de nobreza, além de se colo­carem como letrados e jornalistas de relativo prestígio local.

Mas, entre o Império e a República, alguma coisa mudava, além do lento e ireversível empobrecimento das famílias Almeida e Vallim. A segunda metade do século XIX viu surgir paulatinamen­te o movimento abolicionista, já questionando a legalidade da or­dem escravista. Um dos filhos do sempre conservador Visconde de São Laurindo, Oscar José de Almeida, como estudante de direito, no final da década de 1880, participou do jornal A República, assi­nou artigos contra a escravidão e foi membro do Partido Republi-

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Pedro Luís Pereira cie Souza, poeta e político, genro de

Manoel de Aguiar Vallim, em retraio de L. Sitseipi,

fotógrafo estabelecido em Roma. na Condotti n"4H. s. d.

[século XIXI. Álbum Aguiar Vallim. Coleção P articu lar/

Família Vallim

W a

cano Paulista. Oscar não foi o único que. nascido em uma família de senhores de escravos, discursou contra a monarquia e a escravi­dão. Seu casamento, inclusive, com a filha de um jornalista, de família humilde, atesta não só a decadência econômica dos Almeida como, também, a decadência de uma forma de casamento. O triun­fo moral do casamento por amor, veiculado pelo discurso literário, médico-higienista e político do século XIX, certamente influiu na posição de Oscar, jornalista na juventude e aspirante a poeta, sem dúvida alguma um homem letrado e inserido no seu tempo — no­vos tempos, se comparados ao do seus pais e avós.

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FONTES PRIMÉRIAS MANUSCRITAS

Testamento de José Ramos N ogueira — 1846Arquivo do Foro de Bananal

Inventário de José de A guiar Toledo — 1838Arquivo do Foro de Bananal

Inventário de M aria de A guiar Vallim — 1853Arquivo do Foro de Bananal

Inventário de Luciano José de A lm eida — 1854Arquivo do Foro de Bananal

Inventário de M anuel de A guiar Vallim — 1878A rquivo do Foro de Bananal

Curatela do Barão da Bella Vista para seu sobrinho Pedro A guiar Vallim.Arquivo do Foro de Bananal — 1873

M aços de População — 1817, 1818, 1822, 1825, 1828. 1829. 1830, 1836(Bananal - SP). AFSP.

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/ V o visualizar a necessidade de que este livro fosse escrito, o

em presário Carlos H en riq u e Ferreira Braga pôs em m archa u m »pro jeto que veio a se constitu ir num a con tribu ição das mais

ricas à nossa história social.Resgate — Uma janela para o Oitocentos é um a reunião de

ensaios, escritos p o r alguns dos mais brilhantes historiadores da

nova geração em to rn o de um a proposta com um : trazer luz à com preensão do século X IX no Brasil, a partir da análise e

en tend im en to do cotid iano de um a fazenda de. café — a Fazenda

do Resgate, localizada em Bananal, no Estado de São Paulo.

Valendo-se de diversas m etodologias de pesquisa histórica, am plam ente respaldado em docum entos, e escrito num a

linguagem acessível ao grande público, os ensaios que com põem

Resgate — Urna janela para o Oitocentos revelam ao le ito r fatos até agora inéditos, situações envoltas em m istério, personagens com o

M anoel de A guiar Vallim, p roprie tá rio da Fazenda no seu apogeu, que ao m o rre r detinha 1% do PIB nacional; e m uitos outros

episódios que se inserem de m odo decisivo na história

econôm ica, política e social do século X IX , eom desdobram entos até os dias de hoje.

Resgate — Uma janela para o Oitocentos é u m : livro definitivo,

cativante, bem -docum en tado , destinado a se to rn ar obra de referência em nossa historiografia.

T O P B O O K SE D I T O R A ' -I