Semantica Ufmg Roteiro de Estudos Cap 2

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1 TEORIA PRAGMÁTICA – CURSO 2o SEMESTRE DE 2010 PROFA. MÁRCIA CANÇADO ROTEIRO DE LEITURA DE: LEVINSON, S. 2007. Pragmática. Tradução: Luís Carlos Borges e Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes. (Livro texto) CAPÍTULO 2 – A DÊIXIS 1. Introdução Dêixis é um termo emprestado da palavra grega que significa apontar, indicar. Os exemplos de dêiticos mais típicos são os demonstrativos, os pronomes da 1ª e 2ª pessoas, o tempo verbal, os advérbios de tempo e lugar, e uma variedade de outros traços gramaticais ligados à circunstâncias da situação. A dêixis diz respeito às maneiras pelas quais as línguas codificam ou gramaticalizam traços do contexto da enunciação ou do evento da fala. Por exemplo, o pronome isto não nomeia nem se refere a nenhuma entidade específica; ele é apenas um marcador de lugar para alguma entidade específica do contexto (um gesto, por exemplo). A dêixis é importante para lembrar aos linguistas de que as línguas naturais se destinam à comunicação face a face e, portanto, as línguas devem ser analisadas como tal. Segundo Raso (2010), na aquisição da linguagem, a dêixis ostensiva, ou seja, que se vale de gestos, é uma das primeiras coisas a ser aprendida e em patologias da fala são as últimas a se perderem. Uma boa ilustração do papel da dêixis na língua é quando falta a informação dêitica no discurso. Por exemplo, vamos ao gabinete de um professor procurá-lo, e esse professor divide esse gabinete com outro professor; encontramos o seguinte bilhete: “Volto já.” Não poderemos saber se é o professor procurado que voltará, ou se é o outro. Também, não podemos saber o momento em que o bilhete foi escrito e, por isso, não saberemos o que significa . A referência da pessoa e do momento não estão sendo apontadas no contexto, e, por isso, as palavras dêiticas falham em seu papel de comunicação. Os aspectos da dêixis são tão comuns em línguas naturais e tão gramaticalizados que é impossível se pensar que a dêixis não é parte da semântica. Entretanto, a interpretação adequada da dêixis depende exclusivamente do contexto do enunciado. Provavelmente, a dêixis se encontra na fronteira semântica/pragmática. Essas palavras/expressões tem um sentido único que é “um roteiro para encontrar referentes” (Ilari e Geraldi, 1987), entretanto, a referência de cada expressão será variada e dada somente pelo contexto.

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Semantica Ufmg Roteiro de Estudos Cap 2

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TEORIA PRAGMÁTICA – CURSO 2o SEMESTRE DE 2010 PROFA. MÁRCIA CANÇADO ROTEIRO DE LEITURA DE: LEVINSON, S. 2007. Pragmática. Tradução: Luís Carlos Borges e Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes. (Livro texto) CAPÍTULO 2 – A DÊIXIS 1. Introdução Dêixis é um termo emprestado da palavra grega que significa apontar, indicar. Os exemplos de dêiticos mais típicos são os demonstrativos, os pronomes da 1ª e 2ª pessoas, o tempo verbal, os advérbios de tempo e lugar, e uma variedade de outros traços gramaticais ligados à circunstâncias da situação. A dêixis diz respeito às maneiras pelas quais as línguas codificam ou gramaticalizam traços do contexto da enunciação ou do evento da fala. Por exemplo, o pronome isto não nomeia nem se refere a nenhuma entidade específica; ele é apenas um marcador de lugar para alguma entidade específica do contexto (um gesto, por exemplo). A dêixis é importante para lembrar aos linguistas de que as línguas naturais se destinam à comunicação face a face e, portanto, as línguas devem ser analisadas como tal. Segundo Raso (2010), na aquisição da linguagem, a dêixis ostensiva, ou seja, que se vale de gestos, é uma das primeiras coisas a ser aprendida e em patologias da fala são as últimas a se perderem. Uma boa ilustração do papel da dêixis na língua é quando falta a informação dêitica no discurso. Por exemplo, vamos ao gabinete de um professor procurá-lo, e esse professor divide esse gabinete com outro professor; encontramos o seguinte bilhete: “Volto já.” Não poderemos saber se é o professor procurado que voltará, ou se é o outro. Também, não podemos saber o momento em que o bilhete foi escrito e, por isso, não saberemos o que significa já. A referência da pessoa e do momento não estão sendo apontadas no contexto, e, por isso, as palavras dêiticas falham em seu papel de comunicação. Os aspectos da dêixis são tão comuns em línguas naturais e tão gramaticalizados que é impossível se pensar que a dêixis não é parte da semântica. Entretanto, a interpretação adequada da dêixis depende exclusivamente do contexto do enunciado. Provavelmente, a dêixis se encontra na fronteira semântica/pragmática. Essas palavras/expressões tem um sentido único que é “um roteiro para encontrar referentes” (Ilari e Geraldi, 1987), entretanto, a referência de cada expressão será variada e dada somente pelo contexto.

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2. As abordagens filosóficas Uma grande questão que se coloca para os filósofos, estudiosos da dêixis, é como a semântica verifuncional lida com certas expressões da língua natural. Por exemplo, observe a sentença: (1) Josefina foi a mulher de Napoleão. Se equipararmos o conteúdo semântico da sentença com suas condições de verdade, a verdade da sentença dependerá simplesmente dos fatos da história. Entretanto, se temos a sentença: (2) Ela foi a mulher de Napoleão. Não podemos avaliar a verdade dessa sentença, sem levarmos em conta quem é a pessoa que está sendo indicada. A verdade dessa sentença, além de certos fatos da história, precisa também de detalhes sobre o contexto em que a sentença foi enunciada. Um fato interessante a se notar é que praticamente toda enunciação tem essa dependência do contexto, que se deve em grande parte ao tempo verbal. Por exemplo, se falamos: (3) Há bons alunos aqui na FALE. Essa enunciação só será verdadeira se eu estiver me referindo aos alunos do momento da fala. Por exemplo: (4) Houve bons alunos na FALE. Essa sentença só pode ser verdadeira se for verdade que em um momento anterior ao da fala houvesse tido bons alunos na FALE. O grande interesse dos filósofos sobre a dêixis surgiu das seguintes questões básicas: a) se todas as expressões indiciais podem ser reduzidas a uma única expressão primária; b) se esse resíduo pragmático pode ser traduzido em uma língua artificial livre de contexto. Russel, por exemplo, em relação à a, propõe que a redução seria possível se traduzíssemos todos os indiciais em expressões que contivesse a palavra isso; o pronome eu , por exemplo, seria traduzido “como a pessoa que está experimentando isso”. Reichenbach , em relação à a e b, propõe que todos os indiciais envolvem um elemento de reflexividade à

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ocorrência; por exemplo, eu significa “a pessoa que está enunciando esta ocorrência da palavra eu”. Essas análises podem parecer atraentes, mas apresentam grandes problemas (ver Bar-Hillel, 1970; e Lyons, 1977). A questão b, do ponto de vista lingüístico, determinar se todas as expressões dêiticas podem ser traduzidas em termos independentes do contexto, parece ser uma miragem filosófica. Afinal de contas, o que interessa é o fato de que as línguas naturais possuem indiciais e cabe a análise lingüística descrever e explicar como estes são usados. Se houver a intenção, como parte de um programa geral de análise semântica, de ampliar as técnicas lógicas para lidar com as sentenças que contém indiciais, deve-se atentar para a sua dependência do contexto. Levinson propõe alguns tipos de análise semântica em que tratariam o contexto como um conjunto de índices pragmáticos, coordenadas ou pontos de referência. Ou, então, uma análise em que a semântica não diz respeito diretamente à língua natural, mas apenas às proposições, entidades abstratas, que as sentenças e os contextos selecionam em uma operação conjunta (Montague, 1970). Como última observação, Donnellan (1966) levanta a questão se certas descrições definidas também não seriam indiciais. Veja a sentença: (5) O homem que está bebendo champanhe é Lord Godophin. Essa sentença é muito semelhante à: (6) Aquele homem (o falante indica o homem que bebe champanhe) é Lord Godophin. Quando ouvimos a sentença em (5), somos convidados a olhar e identificar o referente. Se isso for verdade, o papel da pragmática aumenta ainda mais na análise semântica. 3. Abordagens descritivas 3.1 Centro dêitico Os sistemas dêiticos nas línguas naturais não são organizados aleatoriamente em torno de traços do contexto em que as línguas são usadas. Há uma escolha essencial do contexto conversacional face a face. Além do mais, é geralmente (não invariavelmente) verdade que a dêixis é organizada de “forma egocêntrica”. Quando pensamos nas expressões dêiticas como ancoradas a pontos específicos do acontecimento comunicativo, supomos que os pontos de ancoragem não marcados no discurso, que constituem o centro dêitico são: - a pessoa central é o falante; - o tempo central é o tempo em que o falante produz a enunciação;

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- o lugar central é a localização do falante no tempo da enunciação; - o centro do discurso é o ponto em que o falante se encontra presentemente na produção de sua enunciação; - o centro social é a posição social e o grau hierárquico do falante, ao qual são relativos a posição e o grau hierárquico dos destinatários ou referentes. Entretanto, há exceções a isso: por exemplo, algumas línguas tem expressões dêiticas organizadas parcialmente em torno da localização de outros participantes que não os falantes. Exemplo disso é o português, no uso da expressão dêitica aí. Esse dêitico só pode ser entendido em relação à posição do destinatário: lugar próximo ao destinatário. Diferentemente de aqui e lá, que são interpretados a partir do ponto central do falante. A interpretação para essas expressões, respectivamente, seria: lugar próximo ao falante e lugar distante do falante. 3.2 Uso gestual, uso simbólico e uso não-dêitico Expressões dêiticas se referem a unidades lingüísticas ou morfemas para as quais o uso dêitico é central, entretanto, essas expressões também podem ter um uso não-dêitico. Primeiramente, entre as expressões dêiticas, vamos dividir as expressões dêiticas de uso gestual e de uso simbólico. Os usos gestuais só podem ser interpretados com referência a um monitoramento físico do acontecimento. Exemplo desses dêiticos seriam os pronomes demonstrativos. Observe o enunciado: (7) Este é genuíno, mas este é uma falsisficação. O exemplo em (7) só pode ser interpretado se acompanhada de uma indicação gestual. Em geral, as línguas tem palavras que só podem ser usadas gestualmente: voici do francês, ou fórmulas usadas para brindar, como cheers do inglês. Os usos simbólicos requerem para sua interpretação apenas o conhecimento dos parâmetros espaço-temporal básicos do acontecimento discursivo. Por exemplo, basta conhecer a localização geral dos participantes para interpretar um enunciado como: (8) Esta cidade é muito bonita. Ou conhecer o conjunto dos destinatários na situação para interpretar: (9) Vocês podem vir comigo. Ou ainda saber quando o enunciado foi pronunciado, para interpretarmos o ano a que se está fazendo referência:

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(10) Não podemos sair de férias este ano. Analisemos alguns exemplos de usos gestuais, em (11a), usos simbólicos, em (11b), e usos não-dêiticos, em (11c): (11) a. Você e você estão dispensados, mas você não. b. O que você falou? c. Você nunca sabe o que irá acontecer amanhã. Os dêiticos são usados anaforicamente quando um termo elege como referente a mesma entidade (ou classe de objetos) que algum termo anterior selecionou no discurso: (12) O João chegou e ele acendeu a luz. O ele se refere ao termo anterior João. Também, Lyons (1977) observa que um mesmo termo pode ser usado dêitico e anaforicamente: (13) Eu nasci em Londres e vivo lá desde então. O termo lá pode ser uma anáfora de Londres, mas também é usada de uma forma dêitica simbólica em relação ao espaço, localizando a enunciação fora de Londres. E, ainda, o uso anafórico pode ser usado simultaneamente com o uso dêitico gestual: (14) Eu cortei um dedo: este aqui. O termo este está em uma relação anafórica com um dedo, mas também é usado de uma forma dêitica gestual. Façamos uma pequena tabela, resumindo os usos possíveis de palavras dêiticas: (15) dêiticos -> a. gestuais b. simbólicos não-dêiticos -> a. não anafóricos b. anafóricos Exercícios: 1. Explique nas sentenças abaixo se as expressões grifadas são exemplos de uso dêitico gestual, uso dêitico simbólico, ou se as mesmas palavras estão sendo usadas de uma forma não dêitica:

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1. Esta cidade é maravilhosa. 2. Veja esta rua: que sujeira! 3. Sempre tem esta ou aquela desculpa. 4. Olha que gata, aquela menina. 5. Agora vamos nós. 6. Vamos agora mesmo. 7. Não faça agora, mas agora. 8. O João está aí? 9. Aí tem coisa. 10. Coloque a mesa aí, não aqui. 2. Identifique se os pronomes estão sendo usados dêitico ou anaforicamente: 1. Ele veio e falou: que alegria! 2. O João entrou e depois de muita discussão ele aceitou a argumentação. 3. Ele falou para o técnico arrumar o computador. 4. Ela fala muito de si mesma. 5. A Maria pediu para ela sair da sala. 3.3 Dêixis de pessoa A dêixis de pessoa se reflete mais geralmente nos sistemas pronominais do português e exibem uma tríplice distinção: - para a 1ª pessoa, a inclusão do falante (+F); - para a 2ª pessoa, a inclusão do destinatário (+D); - para a 3ª pessoa, a exclusão do falante e do destinatário (-F, -D) Essas diferenças nem sempre são gramaticalizadas de maneira muito óbvia. Portanto, esse sistema pode apresentar muitas facetas diferentes. Por exemplo, assim como os falantes mudam, também o centro dêitico, do qual depende o resto do sistema dêitico, desloca-se abruptamente de participante para participante. Quando A fala, o centro dêitico está localizado em A; mas quando B responde, esse centro se desloca para B. Temos que desenvolver uma estrutura pragmática de possíveis papéis dos participantes, independente da gramática, para percebermos como esses papéis são gramaticalizados nas diferentes línguas. Essa estrutura teria que distinguir: - a fonte pode ser diferente do falante ou porta-voz de uma enunciação; - o receptor diferente do alvo de uma enunciação; - os ouvintes ou pessoas que estão por perto diferentes dos alvos.

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Essa diferenciação pode ser ilustrada com os seguintes exemplos: uma aeromoça dando as instruções de vôo: “Vocês devem apertar os cintos agora.” Ela é a falante ou porta voz das instruções, mas não a fonte. Em chinook, nem a fonte (por exemplo, um chefe), nem o alvo (os espíritos) estão necessariamente presentes ao ritual que se passa entre as pessoas dessa comunidade. Assim, os falantes não coincidem com a fonte e nem os ouvintes coincidem com o alvo. Vou assumir, portanto, que falante e alvo estão mais marcados gramaticalmente; fonte, receptor e ouvinte fazem parte do discurso. Para o português e inglês é importante perceber que a categoria tradicional do plural não é aplicada simetricamente à 1ª pessoa (we, nós) da mesma maneira que é aplicada à 3ª pessoa (they, eles). A categoria nós somente tem uma leitura inclusiva; já eles remetem a mais de uma entidade de 3ª pessoa. O pronome nós, em inglês ou português, também pode estar se referindo a uma única pessoa. Por exemplo, em textos acadêmicos, mesmo sendo um único autor, existe o emprego do pronome no plural. Também, nós pode ser a inclusão de quem fala com quem está escutando; pode ser quem fala e alguém diferente do ouvinte; e ainda pode ser que a pessoa que esteja falando não esteja incluída: por exemplo, alguém falando de seu time: (16) Nós jogamos muito bem hoje. Segundo Raso (2010), os pronomes de primeira e segunda pessoa, tanto singular quanto plural, são de natureza diferente daqueles de terceira pessoa. Somente o pronome de terceira pessoa pode substituir um nome. Pode-se dizer: (17) A professora chegou./ A Márcia chegou./Ela chegou. (o mesmo para o plural) Entretanto, não se pode dizer: (18)*A Márcia estou alegre. O mesmo para ocorre a segunda pessoa. Ainda observa Raso (2010), a dêixis pessoal, pelo menos nas línguas em que há uma rica morfologia verbal (e que são chamadas de pro-drop, ou seja não precisam expressar sintaticamente o sujeito), pode ser expressa através das desinências verbais: (19) Como pão todo dia. Enquanto para línguas que não tem a característica pro-drop, como o inglês, devemos expressar o pronome necessariamente:

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(20) a. I eat bread every day. b. *Eat bread every day). Existem alguns sistemas pronominais que são bem mais complexos do que o sistema do português ou inglês. Algumas línguas, por exemplo, exibem até 15 pronomes básicos. Outro exemplo é o japonês que distingue os pronomes pelo sexo do falante, pela posição social do referente e o grau de intimidade com o referente. O pronome de 2ª pessoa kimi pode ser glosado como “você, a quem se dirige este falante masculino e íntimo”. O tâmil, língua dos povoados, tem até seis pronomes da 2ª pessoa do singular, conforme o nível hierárquico relativo entre o falante e o destinatário. Outro caso a ser analisado é quando ocorre uma distinção adicional pela concordância morfológica, que não é feita ostensivamente pelo pronome. É o caso do francês. O pronome vous de 2ª pessoa do plural é usado em duas ocasiões; pode denotar realmente que o destinatário é mais de uma pessoa ou somente que o destinatário é uma pessoa: (21) Vous parlez français? (Você(s) falam francês?) (22) Vous êtes le professeur? (O senhor é o professor?) Além dos pronomes e a concordância dos predicados, a pessoa ou o papel do participante pode ser marcado de forma diferente. Por exemplo, os termos de parentesco muitas vezes apresentam uma forma na interpelação (vocativo) e outra forma na referência. Exemplo disso em português, mamãe pode ser usado somente para a interpelação; o termo para se referir a alguém é mãe. Os vocativos também tem um comportamento interessante, pois são sintagmas nominais que se referem ao destinatário, mas não são sintática nem semanticamente incorporados como argumentos de um predicado. Ao contrário, eles vem separados prosodicamente do corpo de uma sentença. Os vocativos podem ser divididos em chamamentos (convocações) ou apelativos: (23) Ei você, pode me dizer as horas? (= uso gestual) (24) A verdade, senhora, é que tudo mudou. (uso simbólico) Observem que os cumprimentos, despedidas e diversas fórmulas rituais (Saúde!) podem ser consideradas como de natureza vocativa. Outro ponto a ser observado na dêixis de pessoa é quando se perde o contato face a face. Por exemplo, quando me encontro face a face com alguém, posso dizer: (25) Eu sou a Márcia. Mas se estiver falando ao telefone, usaria a concordância de 3ª pessoa:

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(26) Aqui é a Márcia quem fala. Observem, ainda, que os vários exemplos dados acima podem envolver as organizações sobrepostas das cinco categorias básicas de dêixis: os cumprimentos, por exemplo, geralmente envolvem dêixis de tempo, pessoa e discurso; os demonstrativos envolvem dêixis de espaço e pessoa; os vocativos envolvem dêixis de pessoa e social, etc. Exercícios 1. Faça um pequeno texto em que teríamos as coordenadas 1ª pessoa -> (+F) (centro dêitico), 2ª pessoa-> (+D) e 3ª pessoa -> (-F, -D). 2. No texto da p. 83, explicitar os dêiticos e o sistema em que eles estão inseridos. 3. Dê três exemplos, em forma de pequenos textos, em que o falante é diferente da fonte de uma enunciação e o receptor diferente do alvo. 4. Veja o exemplo em que o contexto muda o valor dos dêiticos e explicite a referência dessas expressões: 1. No tempo em que nós vivíamos na caverna, o mundo era muito diferente. 2. Nós ganhamos a copa em 1970. 3. Nós podemos falar agora? 4. A tia vai falar agora! Prestem atenção! 5. Diga se os vocativos são chamamentos ou apelativos. Dê outros exemplos: 1. Ei você, apague a luz. 2. E como eu ia dizendo, pessoal, esse assunto é muito complexo. 3. Olá, como vai você? 4. Felicidades! 3.4 Dêixis de tempo Em geral, as bases para computar e medir o tempo na maioria das línguas parecem ser os ciclos naturais de dia e noite, os meses lunares, as estações e os anos. Tais unidades podem ser usadas como medidas relativas a alguns pontos de interesse fixo, ou podem ser usadas em relação a um calendário. São com essas medidas temporais que a dêixis interage.

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A dêixis de tempo faz referência ao papel do participante e o tempo de sua fala. A palavra agora pode ser glosada como “o tempo em que o falante está produzindo a enunciação que contém agora”. Vamos estabelecer que o momento da enunciação ou tempo de codificação será TC e o momento da recepção ou tempo de recebimento será TR. Em situações de fala canônicas, podemos supor que TR será o mesmo de TC. Quando alguém diz algo como: (27) Eu vou estudar agora. O tempo da emissão (TC) é o mesmo do tempo em que receptor escuta esse enunciado (TR). Portanto, nesse exemplo, TC=TR. Quando há um desvio dessa sobreposição, temos que determinar se o centro dêitico permanecerá no TC ou será projetado no TR. Exemplos dessa mudança são: (28) Este programa está sendo gravado hoje, dia 26 de agosto, quinta-feira, para ser transmitido na próxima sexta-feira, dia 27 de agosto. (29) Estou escrevendo essa carta agora, para que você a leia daqui a 2 dias. Nos exemplos, o TC não coincide com o TR e marcamos o TC como o centro dêitico do tempo. Entretanto, podemos deslocar o centro dêitico temporal para TR e aí teremos: (30) Este programa foi gravado dia 26 de agosto, quinta-feira passada, para ser transmitido hoje, sexta-feira, dia 27 de agosto. (31) Escrevi essa carta há 2 dias atrás, para que você a leia hoje. 3.4.1 Os advérbios Existem alguns advérbios que também são usados de maneira gestual ou simbólica, mudando assim a interpretação do tempo. Veja os exemplos: (32) a. Aperte o gatilho agora! (no exato momento gestual) b. Agora estou trabalhando no meu doutorado (no momento simbólico) Os advérbios hoje, amanhã e ontem pressupõem uma divisão de tempo em segmentos de um dia. Podemos glosar hoje como sendo o segmento de um dia que inclui o TC, ontem como sendo o segmento de um dia que precede hoje, e amanhã como sendo o segmento de um dia que segue hoje. Contudo, esses advérbios tem dois tipos de referentes: podem se referir ao segmento inteiro, como em (33), ou podem se referir a um ponto dentro do segmento, como em (34): (33) Amanhã é quinta-feira. (34) O João acertou a vidraça com uma bola ontem.

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É interessante observar que as palavras dêiticas hoje, ontem e manhã tem precedência sobre os dias do calendário. Veja o enunciado: (35) Eu te vejo na quinta! O exemplo em (35) só pode ser interpretado como alguma próxima quinta, pois do contrário, se o dia em que o falante quisesse encontrar o receptor do enunciado fosse o próprio dia do TC, o falante só poderia usar o dêitico hoje. Vale observar que as línguas diferem no que diz respeito a esses tipos de advérbios dêiticos. O chinantec, uma língua ameríndia, tem nomes para quatro dias antes e depois de hoje; o japonês tem três dias antes de hoje e dois depois; o híndi tem a mesma palavra para hoje e amanhã. Outra maneira de as línguas expressarem a dêixis é através de adjuntos adverbiais complexos como segunda-feira passada, próximo ano, esta tarde. Esses adjuntos são compostos de um modificador dêitico esta, próximo, passada, etc, juntamente com um nome não-dêitico de medida. A interpretação desses sintagmas complexos também pode ser ambígua entre uma leitura exclusivamente calendarial, exemplo em (36) e a medida entre os 365 dias, exemplo em (37): (36) Este ano terá 366 dias. (leitura calendarial) (37) Este ano terminarei o meu doutorado. (leitura de um ponto dentro do ano) Também, os advérbios hoje, amanhã e ontem tem precedência sobre esses adjuntos complexos, se o dia em que o falante estiver, for o mesmo da dêixis. 3.4.2 O tempo verbal Nas línguas em que existe a categoria tempo verbal, este é um dos principais fatores que asseguram que quase todas as sentenças, quando enunciadas, estão deiticamente ancoradas a um contexto de enunciação. Observe a sentença: (38) Escreverei um roteiro de estudos. A interpretação da sentença como um acontecimento que se refere a um tempo que segue TC, é ancorado pelo tempo verbal futuro que é refletido em português pelo tempo flexional futuro. É relevante, então, que façamos uma distinção, primeiramente, do tempo verbal que denota semanticamente o tempo e o tempo verbal que é apenas uma flexão verbal. Nos exemplos:

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(39) Dois e dois são quatro. (40) As iguanas comem formigas. Temos o tempo verbal flexional, nas marcas dos verbos são e comem, mas não podemos dizer que temos um tempo denotado semanticamente. Também, esse tempo flexional não exibe a característica dêitica. Vamos estabelecer, então, que os tempos verbais que trazem a marca dêitica são o passado (acontecimento completado anteriormente ao TC), o presente (acontecimento cuja extensão inclui o TC) e o futuro (acontecimento que vem depois do TC). É importante observar que os tempos verbais semânticos não se encaixam de uma maneira tão simples nos tempos verbais flexionais, pois esses codificam também traços aspectuais e modais. O aspecto em português pode ser entendido como a maneira que um evento ocorre no mundo, dependendo da forma contínua ou pontual. Existem várias maneiras de uma língua denotar o aspecto, e uma delas é codificá-lo gramaticalmente no verbo. Em português, temos as seguintes formas, conhecidas como imperfeito, para a forma contínua e perfeito, para a forma pontual: (41) a. O João escrevia/estava escrevendo um livro (imperfeito) b. O João escreveu um livro. (perfeito) Reparem que, as flexões verbais, além de denotarem o tempo semântico passado, também, denotam o aspecto perfectivo e imperfectivo do enunciado. Portanto, as duas sentenças acima tem o mesmo tempo semântico, apesar de terem duas formas verbais flexionais diferentes, denotando diferentes aspectos gramaticais. O modo pode ser definido semanticamente como atitudes do falante em relação ao conteúdo factual do enunciado, como incerteza, vagueza, possibilidade. Gramaticalmente, o modo pode ser expresso por advérbios, por auxiliares ou por marcas flexionais do verbo. Podemos apontar em português três modalidades específicas de flexão verbal: o indicativo (marca a certeza), o subjuntivo (marca o incerto) e o imperativo (marca uma ordem, pedido). Entretanto, como observa Lyons, é provável que os tempos verbais futuros contenham invariavelmente um elemento modal e mais a marca de tempo: (42) Eu farei isso, se for possível. Às vezes, afirma-se que existem algumas línguas que não apresentam tempo verbal verdadeiro, como o chinês, por exemplo. Entretanto, o que essas línguas não apresentam é o tempo verbal flexional, a marca gramatical. O tempo verbal semântico é denotado por advérbios de tempo ou palavras semelhantes. Não existe língua que não tenha um sistema de tempo verbal.

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3.4.3 Considerações finais Devemos mencionar que a dêixis de tempo é importante para vários outros elementos dêiticos de uma língua. Por exemplo, os cumprimentos geralmente sofrem restrições quanto ao tempo: (43) Bom dia! Só pode ser usado pela manhã, etc. No inglês, por exemplo: (44) Good night! Só pode ser usado como despedida, à noite. Temos, então, uma interação da dêixis de tempo com a dêixis do discurso, que veremos à frente. Exercícios 1. Dê 2 exemplos em que o TC coincide com o TR, e 2 exemplos em que o TC não coincide com TR. 2. Explicite se os advérbios de tempo estão sendo usados de maneira gestual ou simbólica: - Acenda a luz já! - Eu chego já. - Agora eu vou fazer um mestrado. - Agora! Lance a bola! 3. Dê 3 exemplos em que os advérbios ontem, hoje, amanhã se referem a um segmento inteiro ou a um ponto dentro do segmento. 4. Dê 2 exemplos em que o tempo verbal flexional não denota semanticamente o tempo e 2 exemplos em que o tempo verbal marca deiticamente o tempo. 5. Explique como o aspecto e o modo são componentes que tornam a relação tempo verbal semântico e tempo verbal flexional não-convergentes.

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3.5 Dêixis de lugar 3.5.1 Introdução A dêixis de lugar ou espaço diz respeito aos pontos de ancoragem no acontecimento discursivo. A importância desse tipo de dêixis se revela no fato de que parece haver duas maneiras básicas de fazer referência aos objetos – descrevê-los ou nomeá-los por um lado ou localizá-los por outro. Devemos distinguir as localizações que podem ser especificadas relativamente a outros objetos ou pontos de referências fixos, como em: (45) O Mineirão fica a 500 metros da universidade. (46) Belo Horizonte fica a 800 metros acima do nível do mar. E as relações que podem ser especificados relativamente à localização dos participantes no momento da fala (TC), como em: (47) A próxima cidade fica a 3 km daqui. (48) O ponto do ônibus fica ali. Nos casos em (45) e (46), a localização é fixa; nos casos em (47) e (48), a interpretação depende do lugar do falante no momento da enunciação. 3.5.2 Palavras dêiticas que expressam lugar Existem algumas palavras dêiticas que expressam puramente o lugar. No português, essas palavras são os advérbios aqui, cá, ali, lá, aí e os pronomes demonstrativos esse(a), aquele(a). O uso simbólico de aqui pode ser glosado como “a unidade de espaço pragmaticamente dada que inclui a localização do falante no TC”: (49) Estou tendo muitas alegrias na minha visita aqui. O uso gestual de aqui deve ser glosado de maneira um pouco diferente, como “o espaço pragmaticamente dado, próximo da localização gestualmente indicada pelo falante”. Observe que a precisão da localização depende do espaço pragmaticamente dado pelo gesto do falante. A palavra aqui dita por um cirurgião ou por um pedreiro em determinada situação pode ter implicações bem distintas: (50) Coloque isto bem aqui.

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Os advérbios aqui, ali e lá, podem ser classificados como um contraste entre proximal/não tão proximal/distal, a partir da localização do falante no TC: (51) Traga o livro aqui e depois leve a estante dali para lá. Entretanto, se queremos especificar um ponto em relação ao destinatário da nossa enunciação, não usamos, em português, o advérbio lá, mas usamos o aí (diferentemente do inglês, que usa o mesmo advérbio there): (52) Como vão as coisas aí? (53) Pega isso para mim, aí. Portanto, podemos afirmar que o português apresenta uma mudança de eixo dêitico do falante para o destinatário. Diferentemente do inglês ou francês. Também podemos observar o uso anafórico de lá. Veja o enunciado: (54) Ontem fomos para SP. Chegando lá, fomos direto para a USP. Os pronomes demonstrativos este/isto e esse/isso em português brasileiro, atualmente, não refletem mais a dimensão proximal/distal. Podemos afirmar que esse/isso é usado para as duas localizações e o que pontua a proximidade ou a distância são os advérbios de lugar : (55) Pega esse livro/isso aqui. (próximo do falante) (56) Pega esse livro/isso ali. (distante do falante e do destinatário) (57) Pega esse livro/isso aí. (distante do falante e próximo do destinatário) Os únicos pronomes que parecem manter a denotação distal é aquele, aquilo, mas também aparecem ancorados pelos advérbios de lugar: (58) Pega aquele livro/aquilo ali para mim. (mais distante do falante e do destinatário) Fazendo uma síntese dos advérbios e pronomes, temos para o português a seguinte estrutura dêitica de espaço: perto do falante -> aqui, cá / esse (a), isso não tão perto do falante -> ali / aquele(a), aquilo longe do falante e perto do destinatário -> aí / esse (a), isso longe do falante e longe do destinatário -> lá / aquele(a), aquilo Algumas línguas possuem demonstrativos com sistema ainda mais complexos, apresentando uma distinção quádrupla na dimensão proximal/distal. Por exemplo, a língua

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tlingit, da América do Norte, possuem demonstrativos que podem ser glosados como: “este, bem aqui”, “este, perto daqui”, “aquele lá”, e “aquele lá longe”, enquanto o malgaxe tem um contraste sêxtuplo na mesma dimensão. E assim temos muito mais exemplos desse tipo. Os pronomes demonstrativos também se combinam com termos não-dêiticos de organização espacial para produzir complexas descrições dêiticas de localização. A organização conceitual não-dêitica do espaço inclui todas as distinções entre superfícies, espaços, espaços fechados, recipientes, dianteiras, traseiras, topos, laterais, largura, comprimento, altura, etc. Assim temos: (59) Cola esse lado da caixa! Esse lado pode significar “a superfície da caixa que pode ser chamada de lado que está mais próxima da localização do falante no TC”. Ou: (60) Olha esse lado da árvore! Esse lado pode significar “a área da árvore visível do ponto em que o falante está no TC”. A diferença entre as glosas de (59) e (60) dependem claramente das caixas terem lados intrínsecos e as árvores não. Ainda, dependendo do tipo de objeto, eles podem ter esse tipo de referência usada deiticamente ou não: (61) O gato está atrás do carro. Esse enunciado pode ser interpretado deiticamente, ou seja, o gato está localizado entre o falante e o carro); ou pode ser interpretado não-deiticamente, ou seja, o gato se encontra na parte traseira intrínseca do carro. 3.5.3 Verbos de movimento Existem verbos de movimento que tem um componente dêitico embutido. Por exemplo, os verbos ir e vir, em português, fazem uma distinção entre a direção do movimento relativo aos participantes no acontecimento discursivo. Por exemplo: (62) Ele está vindo. A interpretação do enunciado é “ele está se movendo rumo à localização do falante no TC”, portanto, tem uma leitura dêitica. Enquanto a interpretação de: (63) Ele está indo.

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tem como glosa “ele está se afastando da localização do falante no TC”. Também podemos fazer uso desses verbos em um tempo de referência diferente do TC: (64) Quando eu estiver nos EUA, você pode ir me visitar. Onde ir pode ser glosado como “movimento rumo à localização que o falante terá, diferente necessariamente da localização do falante no TC, no tempo de outro acontecimento especificado”. Podemos fazer o mesmo tipo de análise para verbos do tipo trazer e levar. Ainda, se o falante está em movimento, é possível usarmos termos temporais para referências de localização dêiticas, como: (65) A cidade fica a 10 minutos daqui. (66) A distância daqui até a cidade é de 2 horas. Exercícios: 1. Dê 2 exemplos de localização fixa e 2 exemplos de localização relativa à localização dos participantes no TC. 2. Qual a diferença entre o uso gestual e o uso simbólico do dêitico aqui? Exemplifique. 3. Como é a divisão do sistema dêitico espacial no PB? Exemplifique. 4. Explique a diferença do uso dos pronomes demonstrativos este, esse e aquele no PB. Exemplifique. 5. Fazer a distinção da dêixis embutida nos verbos ir e vir no PB. Exemplifique. 6. Dê um exemplo de deslocamento de TC no uso dêitico do verbo ir. 7. Dê um exemplo em que usamos dêixis temporal para nos referirmos à localização. 3.6 Dêixis de discurso A dêixis do discurso, ou to texto, refere-se ao uso de expressões em um enunciado para fazer referência a alguma parte do discurso que contém esse enunciado. Podemos, também, incluir na dêixis de discurso várias outras maneiras pelas quais um enunciado assinala sua relação com o texto em que está inscrito. Por exemplo, a expressão de

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qualquer maneira no início da enunciação parece indicar que a enunciação não diz respeito ao discurso imediatamente precedente, mas a um ou mais passos atrás (ver Fillmore, 1975 e Lyons, 1977). Como o discurso se desenrola no tempo, parece natural que palavras dêiticas relativas ao tempo possam ser usadas para fazer referência a parte do discurso. Assim analogamente a na semana anterior, no próximo sábado, temos no parágrafo anterior, no próximo capítulo. Temos, também, termos dêiticos de lugar reutilizados no texto, especialmente os pronomes demonstrativos esse(a) e este(a). O pronome esse(a) faz referência a alguma parte anterior do texto, como em (67), e o pronome este(a) faz referência a uma parte que ainda virá no texto, como em (68): (67) Aposto que você ainda não ouviu esta estória. (68) Essa foi a estória mais engraçada que ouvi. 3.6.1 Anáfora X Dêixis de discurso Nesse ponto é necessário fazermos uma distinção entre dêixis de discurso e anáfora. A anáfora faz uso geralmente de um pronome para falar do mesmo referente de um termo anterior: (69) a. O João chegou; ele está exausto. Dizemos que João e ele são correferenciais, isto é, selecionam o mesmo referente. A anáfora pode atuar dentro de sentenças, de sentença para sentença e de turno de fala para outro, dentro de um diálogo. As expressões dêiticas, por outro lado, são usadas para introduzir um referente. Portanto, quando um pronome se refere a uma expressão lingüística ou a uma porção do texto em si, ele é dêitico; quando um pronome se refere à mesma entidade que uma expressão lingüística anterior, ele é anfórico. 3.6.2 Palavras dêiticas de discurso Há muitas palavras e expressões em inglês e, certamente, para o PB também que indicam a relação entre uma enunciação e o discurso anterior: (70) mas, dessa maneira, portanto, concluindo, por outro lado, entretanto, além do mais, de qualquer maneira, ainda, também... O que essas palavras parecem indicar, muitas vezes de uma maneira complexa, é como a enunciação que as contém é uma resposta ou uma continuação de alguma porção do discurso anterior: (71) Ele explicou tudo, entretanto não convenceu.

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(72) Você estudou muito, portanto deve saber bem do que eu estou falando. (73) ...Concluindo, temos muito ainda que fazer. 3.6.3 Tópico do discurso Algumas línguas, como o japonês, por exemplo, possuem marcadores de tópico. Veja a sentença: (74) ano-hon-wa-John-ga-kat-ta Aquele livro –tópico- John –sujeito- comprou A sentença acima significa: quanto àquele livro (ou, falando daquele livro), John o comprou, onde wa marca o tópico, e ga marca o sujeito gramatical. Podemos concluir, então, que uma função importante da marcação de tópico é justamente relacionar o enunciado marcado com algum tópico específico posto em evidência no discurso anterior, ou seja, executar uma função dêitica no discurso. Para o português, ou inglês, podemos observar esse tipo de marcação de tópico com o deslocamento de SNs à esquerda, conforme observado por Ross (1967): (75) Aquela blusa, it´s simply stunning! Aquela blusa, é simplesmente fantástica! Estudos parecem demonstrar que itens colocados nessa posição realmente correlacionam-se com o tópico do discurso, ou seja, com aquilo “sobre o quê” as pessoas estão conversando, executando também os sintagmas dessa posição uma função dêitica de discurso. As observações feitas sobre a dêixis do discurso apenas esboçam um amplo domínio (de anáfora a tópicos) que uma teoria adequada da dêixis de discurso deveria explicar. Exercícios: 1. Fazer a distinção entre anáfora e dêixis do discurso, exemplificando. 2. Dê exemplos de palavras dêiticas do discurso, explicando qual é a relação dêitica. 3. Dê exemplos de dêixis do discurso em relação à topicalização de sentenças. 3.7 Dêixis social

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A dêixis social, segundo Levinson, diz respeito a aspectos da estrutura da língua que codificam as identidades sociais dos falantes ou a relação social entre eles, ou entre um deles e pessoas ou entidades a que se fez referência. Existem, naturalmente, muitos aspectos do uso lingüístico que dependem dessas relações, mas esses usos só são importantes para o tópico da dêixis social na medida em que são gramaticalizados. Exemplos evidentes de tal gramaticalização são os pronomes e formas de tratamento polidas: vossa majestade, vossa excelência, senhor(a)...Podemos falar de honoríficos apenas quando a relação diz respeito ao nível hierárquico, mas há muitas outras qualidades da relação que podem ser gramaticalizadas, por exemplo, as relações de parentesco. As informações socialmente dêiticas geralmente são absolutas e relacionais. As relacionais, mais comuns, são expressas entre: - falante e destinatário: a distinção tu/vous do francês - falante e ambiente: nível de formalidade, gramaticalizado no japonês Enquanto na relação entre falante e destinatário o centro dêitico é o falante, ou seja, relativo à posição social do falante, a formalidade talvez seja mais bem compreendida como envolvendo uma relação entre todos os participantes e a situação. As informações sociais dêiticas absolutas são aquelas em que temos os falantes autorizados. Por exemplo, em tailandês, o morfema khráb éuma partícula polida que só pode ser usadas por falantes do sexo masculino, sendo khá a forma reservada para os falantes do sexo feminino. Outro exemplo, é que existe uma forma do pronome de primeira pessoa reservada para o uso do imperador japonês. Podemos pensar também nos receptores autorizados. Por exemplo, em inglês, quando falamos com o presidente da nação, usamos a expressão Mr.President. Seria interessante tentarmos delimitar a descrição da dêixis social com o estudo da sociolingüística. A dêixis social está interessada no significado e na gramática de certas expressões lingüísticas (por exemplo, o problema de concordância com os honoríficos), enquanto a sociolingüística está interessada em como esses itens são efetivamente usados em contextos sociais concretos. Um outro ponto importante em relação ao estudo da dêixis social é que, embora o estudo do inglês (ou mesmo português) possa não sofrer nenhum prejuízo óbvio sem a descrição desse sistema dêitico, em línguas como o japonês, javanês ou coreano não existe uma única sentença que possa ser adequadamente descrita do ponto de vista lingüístico sem uma análise da dêixis social. Exercícios 1. Dê exemplos de dêixis social relacional e diga que tipo de relação foi estabelecida. 2. Dê exemplos de dêixis social absoluta.

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4. Conclusões sobre o capítulo 2 Um ponto importante que fica dos estudos sobre os vários aspectos da dêixis é que ainda existem poucos estudos efetivos e que realmente descrevam esse aspecto tão importante da língua. Também, um ponto a refletir é sobre onde se situa o estudo da dêixis: na semântica ou na pragmática. Contudo, seja o que for que se decida a respeito da dêixis de pessoa, lugar e tempo, há pouca dúvida em relação à dêixis de discurso e à dêixis social; com certeza, os aspectos encontrados nesses estudos se encontram fora de uma semântica de condições de verdade.