Texto Áurea Carolina - Seminário Plug Minas - 16nov2011

download Texto Áurea Carolina - Seminário Plug Minas - 16nov2011

of 5

Transcript of Texto Áurea Carolina - Seminário Plug Minas - 16nov2011

  • 8/3/2019 Texto urea Carolina - Seminrio Plug Minas - 16nov2011

    1/5

    1

    Seminrio Juventudes: protagonismos, transformaes e desafios

    Plug Minas | 16 de novembro de 2011

    Contribuio mesa Juventude, Juventudespor urea Carolina de Freitas e Silva

    Democracia e cidadania so daquelas palavras que ns adoramos, porque emalguma medida expressam valores e princpios que desejamos que sejam respeitadose vividos em nossa sociedade. Nem todos ns nos sentimos plenamente cidads ecidados, muito menos acreditamos fazer parte de um Estado realmentedemocrtico, mas seguimos defendendo essas ideias que parecem guardar o DNA dedias melhores. Democracia e cidadania so tambm daquelas palavras que repetimos

    a torto e a direito, como curingas que servem aos mais variados propsitos, o quepode dar margem a manipulaes e confuso. Dependendo de quem fala e dosinteresses em jogo, esses dois conceitos podem ser potencializados na suacomplexidade ou, ao contrrio, reduzidos e esvaziados de sentido, at cair no lugar-comum. assim que, em determinados contextos, democracia e cidadania passam arechear discursos politicamente corretos e perdem a sua fora transformadora.

    Alis, a prpria noo de politicamente correto ilustra bem como alinguagem objeto de disputa e dominao. De um lado, as crticas de movimentossociais ao emprego de palavras e expresses discriminatrias so ridicularizadas por

    setores conservadores, que alegam sofrer um patrulhamento contra o queconsideram ser manifestaes espontneas da lngua. De outro, h uma assimilaoaparente e parcial dessas crticas por diferentes segmentos, que chegam a reproduzirno discurso formas tidas como politicamente corretas, mas no tm compromissocom o seu contedo. Em nome da convenincia, muitas das ideias caras s lutassociais so usurpadas e distorcidas por quem no pretende mexer nas estruturasenferrujadas de poder.

    Esse tipo de conflito pode nos ajudar a compreender algumas dasencruzilhadas que atravessam o tema do seminrio de hoje. J faz um tempo que aspalavras juventudes e protagonismo entraram na dana das convenincias, sendoutilizadas com fartura no linguajar do meio especializado em juventude. Para situaro problema, cabe recuperar que a temtica da juventude consolidou-se como campode conhecimento e atuao poltica no Brasil ao longo da ltima dcada, quando asdiscusses entre movimentos juvenis, universidades e poder pblico comearam aproduzir um referencial especfico, que foi sendo legitimado e difundido medidaque o campo se constitua. A nfase na diversidade juvenil, consagrada na noo dejuventudes, representava uma importante questo conceitual e poltica naquelemomento e veio acompanhada de uma srie de debates afins. Sem ignorar que taisdebates abrigaram vrias tendncias e discordncias, pode-se afirmar, porm, que

    dali saiu um consenso mdio sobre o assunto.

  • 8/3/2019 Texto urea Carolina - Seminrio Plug Minas - 16nov2011

    2/5

    2

    Em linhas gerais, o consenso o seguinte: existem diversas maneiras de serjovem; logo, a diversidade inerente condio juvenil, que tem sentido em simesma e no apenas preparao para a vida adulta. O Estado brasileiro devevalorizar e promover essa diversidade, criando oportunidades para que os/as jovensse desenvolvam no presente, por meio de polticas pblicas de juventude. Aliado a

    isso, est o entendimento inovador de que os/as jovens so sujeitos de direitos.Protagonismo vem em seguida, como um atributo prtico: protagonista aqueleagente que faz acontecer, toma decises e constri uma trajetria autnoma. Nombito poltico, protagonismo denota a importncia da participao juvenil natomada de decises coletivas.

    Sabemos que essas ideias tm sido apropriadas de diferentes maneiras, pordistintos sujeitos sociais, com importantes consequncias. Se, inicialmente, ainsistncia de especialistas e movimentos juvenis em falar de juventudes, no plural,explicitava uma preocupao com as desigualdades de toda ordem e pautava o

    reconhecimento e a valorizao das culturas e identidades juvenis, hoje j se verificaum esvaziamento do termo, sobretudo em boa parte das polticas de juventudeexistentes no nosso entorno. O mesmo acontece com protagonismo, cujo significadotem sido cada vez mais desgastado e banalizado nas esferas institucionais.

    Em relao ao termo juventudes, eu penso que um dos mais srios sintomasdesse esvaziamento a ausncia de perspectiva de gnero em quase todas as aesdirigidas s mulheres e aos homens jovens de Belo Horizonte, seja por iniciativa dosgovernos municipal, estadual ou federal. A questo aparece resolvida nos discursosde senso comum, sob a falcia de uma suposta igualdade formal, em que todos

    teriam os mesmos direitos, bastando juventude pobre agarrar as oportunidadesmaterializadas em projetos socioculturais, cursos de qualificao profissional eprogramas de preveno criminalidade, para ficar nos exemplos mais conhecidos.Raramente se discute as implicaes do machismo, do sexismo e do racismo para ospblicos atendidos por tais aes (eu disse pblicos atendidos), e menos ainda soefetivadas medidas concretas para assegurar os direitos humanos dos/as jovens.Dessa maneira, no h que se falar em juventudes, pois a experincia tem mostradoa incapacidade do poder pblico em dar respostas transversais s desigualdadesenfrentadas pelos/as jovens.

    Desde o meu ponto de vista, a desigualdade de gnero um dos principaistemas negligenciados pelas polticas de juventude no Brasil. Como o debate extenso, vou me ater a apenas dois aspectos crticos do problema. Antes, devo dizerque eu compreendo gnero como um sistema de relaes socioculturais, estruturadoa partir de significados e valores atribudos s diferenas sexuais, o que origina aconstruo simblica do feminino e do masculino e, ao mesmo tempo, condiciona aspossibilidades de acesso ao poder e aos recursos (materiais e imateriais) pormulheres e homens em todas as instituies de uma sociedade. Trocando em midos, o sistema de gnero que explica a baixa presena das mulheres na poltica, aaceitao do trabalho domstico e de cuidados como coisa de mulher, os altos

    ndices de mortes de homens no trnsito, a maioria absoluta de homens na populaocarcerria mundial, a falta de apoio ao futebol feminino no pas do futebol, a

  • 8/3/2019 Texto urea Carolina - Seminrio Plug Minas - 16nov2011

    3/5

    3

    violncia contra a mulher e por a vai. Tudo isso resultado de uma construo socialque diz, grosso modo, que o homem naturalmente forte e feito para a vida pblica,enquanto a mulher naturalmente frgil e feita para a vida privada. Mas, por sorte,o sistema que conhecemos no imutvel. precisamente porque ele socialmenteconstrudo que os comportamentos podem e devem ser transformados.

    nesse sentido que a perspectiva de gnero se torna to valiosa. Eu defino aperspectiva de gnero como um enfoque analtico e metodolgico sobre umarealidade concreta, com a inteno de identificar, visibilizar, criticar e eliminarassimetrias de gnero presentes nessa realidade, considerando mltiplos eixos dedesigualdade, como raa, etnia, idade, orientao sexual, situao socioeconmica,entre outros. , portanto, uma ferramenta para detectar e reduzir os impactosnocivos do sistema de gnero sobre mulheres e homens, no se limitando adiagnosticar situaes de discriminao contra as mulheres.

    Agora vamos aos dois aspectos que eu mencionava. O primeiro tem a ver como desconhecimento da realidade juvenil brasileira em perspectiva de gnero e aomisso do poder pblico frente ao assunto. H uma escassez de estudos, pesquisas,publicaes e dados regulares e confiveis a respeito. Tambm no se costumaavaliar os impactos diferenciais das polticas de juventude para mulheres e homens,a partir desse enfoque. A pergunta a seguir resume o ponto: qual tem sido a realcontribuio das polticas de juventude para a eliminao da violncia contra amulher, a construo de uma cultura humanitria de segurana pblica, o fim dogenocdio dos jovens negros nas periferias, a ampliao da participao feminina napoltica, a reduo da mortalidade materna, a valorizao da corresponsabilidade

    entre mulheres e homens nos cuidados de crianas, idosos/as e pessoas dependentes,entre outros desafios marcados pelas desigualdades de gnero? Ou, inversamente,como o conjunto das polticas pblicas, de todas as reas, tem contribudo para asuperao desses desafios entre a populao jovem?

    Em minha opinio, as contribuies so tmidas. Alm do mais, falta vontadepoltica para desvendar um universo to polmico, tendo em vista a influncia dossetores conservadores nessa seara. As cruzadas comandadas por grupos religiososcontra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e da populao LGBT, emparticular, do uma dimenso da conjuntura. Em meio a campanhasfundamentalistas, com ampla adeso da grande mdia, a discusso descamba para ocerto e o errado, o moral e o imoral, jogando por terra a separao constitucionalentre as religies e o Estado. Muito longe de um Estado laico, o que vemos, naprtica, a persistente obstruo da cidadania dos segmentos mais vulnerados, emfavor de dogmas religiosos que no so compartilhados por toda a sociedadebrasileira.

    O segundo aspecto trata da simplificao das questes de gnero como umproblema de mulheres e da falta de reconhecimento das mulheres e dos homensjovens nas polticas de juventude. Por mais que as desigualdades de gnero sejammuito mais prejudiciais a ns mulheres, notadamente por restringir o nosso acesso ao

    poder e aos recursos, os homens tambm saem perdendo com essa histria. O modelohegemnico de masculinidade tem custos, causa sofrimentos e oprime

  • 8/3/2019 Texto urea Carolina - Seminrio Plug Minas - 16nov2011

    4/5

    4

    principalmente aqueles homens que querem desenvolver atitudes mais igualitriase/ou fora da expectativa padro do que ser homem. O papel tradicional do homemdominador que sustenta a casa e mantm a famlia sob controle tem sido colocadoem xeque, medida que surgem outros tipos de famlia, como as monoparentais, aschefiadas por mulheres e as homoafetivas, ao lado de novos arranjos no mundo do

    trabalho e no campo dos valores socioculturais. Com isso eu no estou dizendo que omachismo, a homofobia e a violncia contra a mulher esto com os dias contatos,porque a cultura patriarcal tem razes profundas e demandar muitos esforos paraser extinta. Contudo, eu acredito que preciso trazer os homens para o lado dedentro da discusso. Urge promover polticas de igualdade de gnero, a exemplo daspolticas de igualdade racial, para favorecer o engajamento e a participaocorresponsvel dos homens. As polticas de juventude no podem se furtar disso.

    Para avanar nessa direo, fundamental reconhecer as mulheres e oshomens jovens nas suas especificidades, bem como identificar suas necessidades e

    demandas em perspectiva de gnero. To importante quanto dar visibilidade aosproblemas que afetam desigualmente mulheres e homens jovens a criao deestratgias especficas para a sua abordagem, combinadas com estratgiastransversais. Assim, uma oficina de rap pode ser mais do que escrever uma letra efazer um som, abrindo espao de reflexo sobre a desigual participao de mulherese homens no movimento Hip Hop e no meio cultural como um todo. Dentro de umcurso profissionalizante, pode-se problematizar a segregao ocupacional, asdesigualdades salariais e as consequncias do acmulo de jornadas para muitasjovens negras e pobres que, alm de trabalhar fora, trabalham no ambientedomstico, estudam e cuidam de pessoas dependentes. As diversas polticas de

    subveno e incentivo podem adotar critrios mais justos e aes afirmativas nadistribuio de recursos, de modo a combater a desigualdade de gnero no mbito dooramento pblico destinado juventude. A construo de equipamentos pblicospara a juventude pode considerar as diferentes formas de apropriao dos espaos ecirculao de mulheres e homens jovens pela cidade. Uma pista de skate, porexemplo, com certeza um equipamento importante para a juventude, mas nonecessariamente ser igualitrio, dado que a cultura do skate ainda majoritariamente masculina. A questo no deixar de fazer a pista de skate,obviamente, e sim criar outros equipamentos que favoream as prticas esportivas

    das jovens, para que mulheres e homens sejam igualmente contemplados. Seguindoessa lgica, qualquer poltica de juventude pode desenvolver estratgias,metodologias e contedos para promover a igualdade de gnero.

    J caminhando para o final da minha interveno, quero voltar rapidamente questo do protagonismo. So inmeros os casos de projetos e programas pblicosque afirmam estimular e acolher a participao juvenil, mas em que medida isso temrealmente acontecido? A juventude tem tido suficiente autonomia e poder paracriticar, propor e influenciar os rumos dessas aes? Mesmo nos melhores cenrios, osentraves participao so tpicos da lgica estatal, tendo origem nas diretrizespolticas dos governos, passando pelas hierarquias institucionais at chegar aos

    limites dos processos cotidianos. As dificuldades atingem no apenas os/as jovens

  • 8/3/2019 Texto urea Carolina - Seminrio Plug Minas - 16nov2011

    5/5

    5

    atendidos/as pelas polticas de juventude, mas tambm os/as jovens educadores/ase oficineiros/as de projetos socioculturais.

    A situao dessa nova classe de jovens profissionais que atuam na execuode ponta de algumas polticas de juventude me parece especialmente delicada. Por

    um lado, a proliferao de oficinas e cursos para jovens nos ltimos anos abriu umnicho de trabalho e gerao de renda para jovens de periferia que j tinhamexperincia em movimentos e grupos culturais, permitindo uma maior valorizaodos seus saberes e uma aproximao entre as iniciativas do poder pblico e aslinguagens juvenis. A entrada massiva do Hip Hop nesses projetos emblemtica:vrios grafiteiros, b.boys, DJs e MCs se tornaram arte/educadores e passaram asobreviver disso. Por outro lado, as condies habituais de trabalho ofertadas pelosprojetos socioculturais geralmente so precrias, com baixos salrios e contratostemporrios, sem falar nas deficincias metodolgicas, operacionais e deinfraestrutura. Para melhorar a renda, comum que o/a educador/a ou oficineiro/a

    atue em dois, trs, quatro projetos simultneos, assumindo jornadas exaustivas.Esses/as jovens trabalhadores/as no contam com uma representao sindicalapropriada e, que eu saiba, no existe uma organizao da classe na RegioMetropolitana de BH. Alm do mais, a presena de jovens profissionais nas polticasde juventude no garante maior abertura ao dilogo e estmulo ao protagonismo,mesmo porque esses jovens dificilmente tm poder de deciso dentro delas.

    Para encerrar, deixo com vocs alguns flashes dos atuais dilemas daparticipao juvenil na nossa cidade, segundo a minha percepo. O ConselhoMunicipal de Juventude, desativado h trs anos, o carto de visitas do momento.

    As tentativas dos movimentos juvenis em estabelecer canais de interlocuo com opoder pblico tm sido frustradas. BH vive um retrocesso histrico em termos depolticas sociais e culturais. Os partidos polticos no parecem ser uma alternativaatraente para a maioria da juventude. Os espaos institucionais esto cada vez maisdesacreditados. Muita gente est saindo s ruas para mostrar a sua insatisfao.Entretanto, o discurso dos governantes locais de que BH no para de melhorar. Deduas, uma: ou BH no para de melhorar para eles, os tecnocratas da vez, ou ajuventude no faz parte do projeto poltico local, j que est bastante excludadessa melhora. Pensando bem, as duas coisas.

    Muito obrigada.