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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS KAREN STEPHANIE MELO OS ROBÔS DE ISAAC ASIMOV: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E A MÁQUINA NA LITERATURA E NO CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

KAREN STEPHANIE MELO

OS ROBÔS DE ISAAC ASIMOV: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E A MÁQUINA NA LITERATURA E NO CINEMA DE FICÇÃO

CIENTÍFICA

São Paulo 2016

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KAREN STEPHANIE MELO

OS ROBÔS DE ISAAC ASIMOV: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E A MÁQUINA NA LITERATURA E NO CINEMA DE FICÇÃO

CIENTÍFICA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Letras. Orientadora: Prof. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo 2016

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M528r Melo, Karen Stephanie.

Os robôs e Isaac Asimov : uma análise das relações entre o homem e a máquina na literatura e no cinema de ficção científica / Karen Stephanie Melo – São Paulo , 2016.

146 f. : il. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016.

Orientador: Profa. Dra. Maria Luiza G. Atik Referência bibliográfica: p. 138-141

1. Asimov, Isaac. 2. Robôs. 3. Literatura de ficção científica. 4. Cinema de ficção científica. 5. Inteligência artificial I. Título.

CDD 371.3352

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AGRADECIMENTOS

À professora Maria Luiza Guarnieri Atik, minha orientadora, pelo apoio, atenção e incentivo durante todo o trabalho.

Ao meu marido, Jônatas Amorim Henriques, por todo amor, pela compreensão, pelo companheirismo e por nossa filha, Sarah.

Às professoras Renata Phillipov e Vera Lúcia Harabagi Hanna, membros da minha banca de qualificação, que auxiliaram na continuidade desse trabalho com suas excelentes sugestões.

A todos os professores do curso de Doutorado em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie que fizeram parte da minha formação, passando não apenas conhecimentos intelectuais, mas também conhecimento de vida.

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Anything you dream is fiction, and anything you accomplish is science, the whole history of mankind is nothing but science fiction. (Ray Bradbury)

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RESUMO

A Ficção Científica é popularmente conhecida por filmes que, quase sempre,

apresentam espaçonaves, viagens interplanetárias, cenários futurísticos e homens

convivendo com tecnologias extremamente avançadas. No entanto, antes mesmo do

cinema, a Ficção Científica é um gênero literário que teve sua origem no início do

século XX, nos Estados Unidos, em revistas conhecidas como pulp fiction. Com isso, o

gênero foi se desenvolvendo conforme os fãs das revistas emitiam suas opiniões sobre

as narrativas e, também, se aventuravam em escrever suas próprias histórias. Um dos

leitores dessas revistas tornou-se um grande autor do gênero e, com seus contos, levou

os leitores a imaginarem como seria o mundo se existissem robôs tão inteligentes

quanto os seres humanos. Esse autor, chamado Isaac Asimov, acabou por influenciar

diversos outros escritores, diretores de cinema e produtores de séries de TV que viriam

a criar outras narrativas bastante populares, como Star Wars, Star Trek, Terminator,

2001: Space Odyssey, entre outros. Assim como nos contos de Asimov, essas narrativas

sempre colocam o homem diante da figura de um robô que ora é amigo e auxiliador, ora

volta-se contra o ser humano. Diante disso, este trabalho propõe um estudo de três

contos de Isaac Asimov, publicados em revistas pulp ao longo da década de 1940 e

reunidas em coletânea em 1950 com o título de I, Robot (Eu, Robô) e do filme Artificial

Intelligence, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 2001. A análise do corpus tem

como propósito entender de que modo se estabelecem as relações entre o homem e a

máquina e seus sentidos na Ficção Científica, tanto na literatura do início do século XX,

quanto no cinema contemporâneo.

Palavras-chave: 1. Isaac Asimov; 2. Robôs; 3. Literatura de Ficção Científica; 4.

Cinema de Ficção Científica; 5. Inteligência Artificial

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ABSTRACT

Science Fiction is popularly known for movies that usually present spaceships,

interplanetary travels, futuristic scenarios, and men living with highly advanced

technology. However, even before the movies, Science Fiction is a literary genre

originated in the beginning of the 20th century, in the United States, in magazines

known as pulp fiction. With that, the genre started to develop itself, as magazine fans

would give their opinion about the stories and, also, tried to write their own stories. One

of these readers has become a great author of the genre and with his short stories he

enabled readers to imagine how the world would be if there were robots so smart as

human beings. This author, named Isaac Asimov, ended up influencing several other

writers, movie directors and TV series producers who would create other very popular

stories, such as Star Wars, Star Trek, Terminator, 2001: Space Odyssey, and others. As

in Asimov’s short stories, these narratives will always put men before robots, which are

sometimes friendly and helpful, and other times are mean and threatening to humans. In

light of this, this paper proposes a study of three of Isaac Asimov’s short stories,

published in pulp magazines in the 1940s and published as a compilation in the 1950s

under the title of I, Robot, and of the movie Artificial Intelligence, directed by Steven

Spielberg in 2001. The analysis of the corpus aims to comprehend how the relation

between men and machine is established in Science Fiction and what this relation

means, both in the 20th century literature and in the contemporary cinema.

Keywords: 1. Isaac Asimov; 2. Robots; 3. Science Ficition literature; 4. Science Fiction

cinema; 5. Artificial Intelligence

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Capa de edição norte-americana de Somnium......................... 26

Figura 2 Edição de The Man in the Moone, de Francis Godwin……… 27

Figura 3 Ilustração da narrativa de Edgar A. Poe, “The Unparalleled

Adventure of One Hans Pfaall” (1835)....................................

29

Figura 4 Capa de Astouding Science-fiction, Dezembro de 1939.......... 36

Figura 5 Capa de Amazing Stories, março de 1939................................ 36

Figura 6 Ilustração do conto “In the Abyss”, de H.G. Wells................. 37

Figura 7 Ilustração do conto “The Purchase of the North Pole”, de

Júlio Verne...............................................................................

37

Figura 8 Capa do livro de uma das edições do livro I, Robot................. 46

Figura 9 Ilustração de Ralph McQuarrie para o conto “Robbie”........... 70

Figura 10 Capa de Astounding Science-Fiction, Abril de 1941............... 72

Figura 11 Cena do filme de George Méliès 1………………………….. 108

Figura 12 Cena do filme de George Méliès 2…………………………... 108

Figura 13 Cena do filme de George Méliès 3…………………………... 108

Figura 14 Alice e Humpty-Dumpty.......................................................... 116

Figura 15 Tweedledee e Tweedledum...................................................... 118

Figura 16 David com os pais.................................................................... 119

Figura 17 David e suas cópias.................................................................. 120

Figura 18 O nascimento de Vênus............................................................ 124

Figura 19 Cybertronics.............................................................................. 124

Figura 20 Programação............................................................................. 125

Figura 21 A família de David................................................................... 126

Figura 22 Gigolo Joe e a lua..................................................................... 127

Figura 23 A Fada Azul.............................................................................. 129

Figura 24 David e a Fada Azul................................................................. 129

Figura 25 Deus Ex-Machina..................................................................... 130

Figura 26 Robôs do Futuro....................................................................... 131

Figura 27 Pepper....................................................................................... 136

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 A FICÇÃO CIENTÍFICA: A CONSTRUÇÃO DE UM

GÊNERO LITERÁRIO

15

1.1 A FICÇÃO CIENTÍFICA E OUTROS GÊNEROS 15

1.1.2 A Ficção Científica e o Fantástico 18

1.2 PROBLEMÁTICAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA 21

1.3 UMA LONGA HISTÓRIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA 29

1.4 UMA HISTÓRIA GÓTICA DA FICÇÃO 32

1.5 UMA HISTÓRIA RECENTE DA FICÇÃO CIENTÍFICA 34

2 OS ROBÔS E OS SERES ARTIFICIAIS 36

2.1 ISAAC ASIMOV 42

2.1.2 I, Robot: origem, importância e influências 46

2.1.3 A tecnologia, o medo e as leis da robótica 50

2.2 OS CONTOS DE I, ROBOT 53

2.2.1 “Robbie” 55

2.2.1.1 Um estranho companheiro de brincadeiras 56

2.2.1.2 Robbie, a Cinderela contemporânea 66

2.2.1.3 Glória, Robbie e a autoimagem 69

2.2.2 “Reason” 71

2.2.2.1 O robô Cutie, a filosofia, a existência e a criação 72

2.2.3 “Evidence” 90

2.2.3.1 Como diferenciar homens e robôs 92

3 O CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA 107

3.1 ARTIFICIAL INTELLIGENCE 114

3.1.1 O diálogo com os contos de fadas 115

3.1.2 O filme e suas imagens 124

3.1.3 Artificial Intelligence e Isaac Asimov 131

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 138

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ANEXO A: UMA CRONOLOGIA DE EVENTOS E OBRAS

IMPORTANTES PARA O DESENVOLVIMENTO DA

FICÇÃO CIENTÍFICA

142

ANEXO B: FICHA CATALOGRÁFICA DO FILME 146

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INTRODUÇÃO

O início do desenvolvimento dessa tese deu-se, em primeiro lugar, por um

simples gosto pessoal e por curiosidade em aprender mais sobre o mundo científico e

tecnológico, principalmente tendo em vista a forma como ambos têm se feito cada dia

mais presentes na vida do ser humano. Ao lermos jornais científicos e entrevistas com

teóricos famosos nessa área, percebemos um grande interesse por se especular e discutir

o que será de nosso futuro diante de todo esse desenvolvimento tecnológico: degradação

ambiental, guerras químicas e biológicas, a criação de um buraco negro artificial, a

singularidade (teoria que busca possibilitar a imortalidade humana, ao transferir sua

consciência a um computador), a sujeição do homem à inteligência artificial etc. Sobre

este último tópico, o renomado físico Stephen Hawkings concedeu uma entrevista à

rede BBC, em 2 de dezembro de 2014, alegando que "The development of full artificial

intelligence could spell the end of the human race." 1 Assim, vemos que os temores

relacionados à presença da inteligência artificial entre os humanos tende a render muitos

debates e causar muitas inquietações, tanto entre as pessoas comuns, quanto no meio

científico.

Aparentemente, a ciência tem provocado dúvidas no homem com relação ao

futuro já há muitas décadas; isso pode ser observado de forma mais concreta no cinema

e, em um primeiro momento, na literatura. Se hoje muitos temem a crescente falta de

privacidade causada pela mídia, pela internet e pelas redes sociais, além da diminuição

do real contato interpessoal, no século passado, o homem já demonstrava receio de

perder seu lugar para a máquina, como bem retrata o filme Modern Times (Tempos

Modernos, 1936) de Charles Chaplin. O filme mostra um personagem que luta para

sobreviver à Grande Depressão que, na visão de Chaplin, é decorrente das facilidades

criadas pela industrialização moderna.

Seria nossa sociedade diferente daquela em que Charles Chaplin viveu? Em uma

breve e aleatória busca através do Google, incluindo a questão “will people be

substituted by machines?” ou “seremos substituídos pelas máquinas?”, deparamo-nos

com centenas de textos publicados em jornais, sites e revistas reconhecidos, como New

York Daily News, The Guardian, Business Insider, dentre outros, com os seguintes

1 O desenvolvimento de uma inteligência artificial completa poderia significar o fim da raça humana. (tradução nossa). Fonte: <http://www.bbc.com/news/technology-30290540>

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questionamentos e temas: “10 jobs that are being replaced by machines”, “What

happens to society when robots replace workers?”, “Can machines take your job?”,

“Rise of the robots: what will the future of work look like?”. Como se pode perceber,

passaram-se quase cem anos, mas o mundo contemporâneo ainda enfrenta –cada dia

mais – a preocupação com a relevância que o homem comum tem e terá em uma

sociedade cada vez mais tecnológica.

Surgiu, então, um interesse por pesquisar e observar de que forma nossa

sociedade era compreendida por pessoas que viveram há cinquenta ou cem anos. Ou

seja, o que eles puderam descobrir sobre o futuro que se tornaria realidade e o que

estava completamente fora da realidade? Notou-se que um dos melhores meios para

verificarmos isso é através da literatura, pois as obras literárias apresentam registros do

pensamento de uma época, traduzindo-os por meio de metáforas que se apresentam de

forma narrativa.

O texto literário que trata de especulações científicas é chamado de texto de

Ficção Científica. Apesar de existirem inúmeros estudos, artigos e análises escritas a

respeito da Ficção Científica que possibilitam a realização de pesquisas sobre o gênero,

a busca por entender mais sobre a Ficção Científica revelou-se bastante trabalhosa, uma

vez que quase não existem pesquisas sobre esse assunto no Brasil e poucos teóricos têm

se dedicado a essa literatura com mais relevância no país. Sendo assim, foi necessária a

procura por livros de autores, acadêmicos e pesquisadores de outras nacionalidades para

podermos encontrar informações sobre a história e as características da Ficção

Científica. Constatou-se que os teóricos mais dedicados a essa área pertencem a

Universidades Norte-americanas, o que se deve ao fato de os Estados Unidos serem um

dos maiores produtores da literatura e do cinema do gênero.

Entre os escritores de Ficção Científica destacam-se Robert Heinlein, Arthur C.

Clarke e Isaac Asimov, cujas obras e particularidades serão tratadas nesse trabalho. Este

último merece ainda mais ênfase pela quantidade de obras, tanto literárias quanto

didáticas, críticas, científicas, dentre outros gêneros, publicadas ao longo de sua vida:

acredita-se que mais de 450, no total.

Ao realizar uma busca por textos que representam a Ficção Científica de forma

bastante característica e que possuam qualidades literárias, como conotação profunda,

diálogos intertextuais, etc., a presente pesquisa encontrou no conjunto da obra de Isaac

Asimov uma ampla série dedicada aos robôs e à forma como nos relacionamos com

eles. Alguns desses textos foram selecionados, compilados e organizados pelo próprio

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autor para publicação em forma de coletânea no ano de 1950, dando origem a um livro

chamado I, Robot. Em virtude da importância e da característica inovadora de sua obra

no âmbito da Ficção Científica e da literatura como um todo, conforme veremos de

forma mais detalhada ao longo desse trabalho, selecionamos alguns dos contos

apresentados nessa coletânea para análise.

Além disso, através desse estudo, perceberemos que Asimov influenciou toda a

produção de livros e filmes de Ficção Científica que foram concebidos após suas

publicações. Ele inspirou diretamente, por exemplo, seriados famosos, como Star Trek

(Jornada nas estrelas, 1966) e Lost in Space (Perdidos no espaço – 1965/1968). Na

mesma época, o escritor Arthur C. Clarke, amigo de Asimov, pretendia utilizar as três

leis da robótica2 na nave Discovery, do filme 2001: a space odissey, de 1968; Stanley

Kubric, porém, vetou a ideia e preferiu designar à máquina um cérebro maligno3. Outro

artista influenciado por Asimov é George Lucas, que molda seus principais robôs C3PO

e R2D2 de acordo com os preceitos da robótica descritos pelo autor.

As perguntas que surgiram ao longo da pesquisa a respeito da Ficção Científica

e da leitura dos textos de Isaac Asimov, devido aos temas tratados pelo livro, e que

deverão ser respondidas ao longo deste trabalho são: como a ficção científica reflete o

contexto histórico em que ela é produzida? O que o cinema herdou da literatura de

Ficção Científica? Quais as semelhanças e diferenças entre a literatura produzida nos

primórdios do gênero e os filmes produzidos atualmente?

Em um primeiro momento, acredita-se que a Ficção Científica tenha surgido

como reflexo do rápido desenvolvimento tecnológico causado pela Revolução

Industrial, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, pelos períodos das Grandes Guerras,

que, dentre outras inúmeras coisas, possibilitou a comunicação via rádio e o

desenvolvimento dos computadores4. Com isso, as máquinas passaram a se fazer

presentes na vida cotidiana das pessoas, causando, com frequência, dúvidas e temores

quanto à sua segurança e aos seus benefícios e malefícios. A literatura, portanto, passou

a tratar desses temas, ao tentar prever como o futuro se transformaria caso essas

máquinas se desenvolvessem cada vez mais, chegassem a ser autônomas, substituíssem 2 Leis que regulamentam o funcionamento dos robôs; tais leis foram criadas por Isaac Asimov e fazem parte de todos os textos escritos por ele que tratam sobre o tema do ser artificial. 3 Na década de 1960, Kubrick e outros intelectuais ainda tinham medo das máquinas, dos robôs e dos computadores. (CALIFE, 2004) 4 Os computadores começaram a ser desenvolvidos ao longo da Segunda Guerra Mundial, mas só foram utilizados pela primeira vez na Guerra Fria, a partir de 1946.

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o homem ou tentassem controlá-lo. A Guerra Fria também resultou, principalmente nos

Estados Unidos, no temor de se ter a terra natal invadida e controlada pelo estrangeiro –

no caso, pela União Soviética. Esse fato, somado ao início da corrida espacial, seria

retratado no cinema através de histórias de alienígenas que tentam dominar a terra e

destruir ou escravizar a humanidade.

Por outro lado, temos visto, ainda nos dias atuais, em que já nos encontramos no

“futuro” retratado por essa literatura originada e produzida no século XX, um aumento

progressivo de filmes que são classificados como Ficção Científica. Acredita-se que

estes filmes ainda se baseiem nas características criadas pelos autores literários do

século passado, levando às telas dos cinemas, através de imagem, som e efeitos

especiais, aquilo que era apenas narrado detalhadamente em livros. Porém, já possuímos

avanços tecnológicos no século XXI que diferem daqueles com que nossos

antepassados se deparavam: vivemos em uma era digital, na qual uma realidade virtual

pode ser criada, robôs quase humanos podem ser construídos e, acima de tudo, a

comunicação via celular e internet possibilita que tenhamos acesso a todo tipo de

informação, ao mesmo tempo em que somos controlados pelas grandes indústrias de

tecnologia da informação. O cinema de Ficção Científica atual retrata essa nova

realidade e tenta prever como nosso futuro, a partir disso, poderá ser transformado.

Para comprovar as hipóteses apontadas aqui, é necessário que se realize um

estudo tanto da literatura de Ficção Científica do século XX, quanto do cinema atual do

gênero. Para isso, o presente trabalho dividiu-se em três capítulos:

Em primeiro lugar, propomos o desenvolvimento de uma análise da coletânea de

três dos nove contos de I, Robot (Eu, robô, 1950), fazendo um estudo dialógico da obra

com seu contexto de produção. Em seguida, selecionamos uma produção

cinematográfica, Artificial Intelligence (2001), dirigido por Steven Spielberg e adaptado

a partir do conto “Supertoys last all Summer long” (1969), do escritor inglês Brian

Aldiss.

No primeiro capítulo, tratamos dos pressupostos teóricos em que as análises

serão baseadas, estabelecendo critérios para definirmos certos aspectos fundamentais da

Ficção Científica como gênero, traçando um panorama histórico de sua formação e

tratando de alguns dos autores mais representativos. Para isso, discutimos aspectos

apontados por alguns dos mais importantes autores e estudiosos do gênero, como

Robert Heinlein(1907-1988) e Hugo Gernsbeck, do século XX, e Darko Suvin (1988),

Adam Roberts (2006), James Gunn (2005), dentre outros, que são contemporâneos.

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Cada um desses autores traz aspectos importantes para a análise, permitindo,

principalmente, o levantamento de reflexões e suposições sobre a Ficção Científica.

Nenhum desses autores, contudo, foi capaz de encerrar as discussões a respeito do que

seria, de fato, a Ficção Científica como um todo. Sobram diversas arestas a serem

recortadas, fatores históricos a serem levados em consideração e, acima de tudo, um

estudo que leve em conta o desenvolvimento do gênero, através da literatura, da

televisão, do cinema, dos quadrinhos, etc. Por isso, partiremos das principais ideias

citadas pelos teóricos em uma tentativa de definir como, para o presente estudo, esse

gênero deve ser compreendido.

No segundo capítulo, foram selecionados para análise três contos do livro I,

Robot: “Robbie”, “Reason” e “Evidence”, que mostram, progressivamente, a evolução

dos robôs, desde uma máquina que não é capaz de falar, no primeiro conto, até ela

adquirir a capacidade de pensar, no segundo conto, e passar a ser praticamente

indistinguível dos seres humanos, no terceiro conto. Nos demais contos do livro o autor

narra sobre como outras características dos robôs (como a aquisição da capacidade de

mentir e enganar e o desenvolvimento da autonomia) tornaram-se possíveis, mesmo

dentro da limitada configuração das máquinas – ou talvez em função delas –

desenvolvidas pelo homem. Assim, observaremos, também, de que modo, após a

incorporação dessas características, se dá a “humanização” desses seres artificiais.

No terceiro capítulo, examinaremos o filme Artificial Intelligence, com o

propósito de verificar de que forma a mídia cinematográfica contemporânea reinterpreta

a Ficção Científica, buscando meios de adaptá-la a um novo público. Além disso, serão

analisados aspectos do filme que, assim como nos contos de Isaac Asimov, levam em

conta as semelhanças do robô com o homem, seu criador. Ou seja, como algo que

criamos, na verdade, reflete aquilo que somos? Além disso, como nos comportaríamos

diante de um ser tão parecido conosco, mas que não possui nossas fraquezas e

debilidades? Em suma, por que a tecnologia nos faz sentir tão ameaçados, se somos nós

mesmos que a criamos?

O quarto capítulo trará uma conclusão dos estudos propostos, verificando o que

pôde ser respondido através da análise dos contos e do filme e deixando espaço para que

novas pesquisas surjam no âmbito da Ficção Científica, um importante gênero

contemporâneo, devido ao fato de que a sociedade atual está imersa, cada vez mais, em

uma realidade tecnológica.

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1. FICÇÃO CIENTÍFICA: A CONSTRUÇÃO DE UM GÊNERO

LITERÁRIO

1.1 A FICÇÃO CIENTÍFICA E OUTROS GÊNEROS

Antes de pensarmos sobre o que é a Ficção Científica (Science Fiction, em

inglês), sugerimos uma reflexão, a qual foi proposta anteriormente por um dos mais

conhecidos autores do gênero, Robert Heinlein, sobre o termo ficção. Para o dicionário

Michaellis de língua portuguesa, uma obra de ficção é “aquela cujo enredo é criado pela

imaginação do autor.” Do mesmo modo, o dicionário Caldas Aulete diz que a ficção é

um “ramo de criação artística, literária, cinematográfica, teatral, etc. baseada em

elementos imaginários.” Já no Oxford Dictionaries Online, encontramos a seguinte

definição: “literature in the form of prose, especially novels, that describes imaginary

events and people.” Como bem ressalta Heinlein, o que há em comum entre todas essas

definições, e muitas outras apontadas pelo autor, é a palavra “imaginação”:

Fiction is storytelling about imaginary things and people. These imaginary tales are usually intended to entertain and sometimes do, they are sometimes intended to instruct and occasionally manage even that, but the only element common to all fiction is that all of it deals with imaginary elements […]. But if all fiction is imaginary, how is realistic fiction distinguished from fantasy?5

Complementando o último questionamento do autor, sobre como podemos

distinguir a “ficção realista” da “fantasia”, podemos pensar também em como podemos

distinguir a fantasia da Ficção Científica. Que tipo de características se fazem ausentes

ou presentes em um texto para podermos enquadrá-lo dentro de um determinado

gênero? Para Heinlein, chamamos de fantasy um texto cujos elementos e/ou

acontecimentos “are not limited by the physical universe as we conceive it to be”6, ou

5 A ficção é uma narrativa sobre coisas e pessoas imaginárias. Esses contos imaginários são, frequentemente, feitos para o entretenimento e, as vezes, eles conseguem fazer isso, eles são, por vezes, feitos para instruir e, ocasionalmente, são capazes disso, mas o único elemento comum a toda ficção é que ela lida com elementos imaginários [...]. Mas se toda ficção é imaginária, como distinguir a ficção realista da fantasia? (Tradução nossa). Fonte: HEINLEIN, Robert. Science Fiction: its natures, faults and virtues. Disponível em: http://www.loa.org/sciencefiction/biographies/heinlein_science.jsp 6 “não se limitam pelo universo físico como o concebemos” (Tradução nossa).

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seja “imaginary-and-not-possible”7. Por outro lado, a ficção realista contém elementos

e/ou acontecimentos que são “imaginary-but-possible”8, isto é, “imaginary but could be

real so far as we know the real universe”9. A Ficção Científica está mais próxima da

ficção realista. Embora pareça paradoxal, a ficção científica procura retratar, de forma

realista, tempos e espaços futuros que hoje diferem dos nossos, mas que poderão se

“presentificar”, pois antecipam, não raro, possíveis construções sociais, possíveis

“realidades” científicas e novas possibilidades tecnológicas. A Ficção Científica é uma

grande especulação sobre o que poderá ocorrer frente a novas mudanças científicas ou

tecnológicas.

Talvez se pudesse afirmar que a fantasia é algo que não pode ocorrer, mas que

gostaríamos que acontecesse; enquanto a ficção científica é algo que pode ocorrer, num

futuro próximo ou longínquo.

Desse modo, a Ficção Científica deve estar “pautada” na realidade e em suas

possibilidades: não podemos dizer que um texto que narre sobre uma civilização de

alienígenas vivendo na lua pertença ao gênero, pois, segundo nossos conhecimentos

científicos em astronomia, isso não faz parte da realidade. Assim, qualquer autor que se

aventure a escrever necessita ter tanto a habilidade literária quanto um conhecimento

científico aprofundado no assunto. Não é por acaso que muitos dos mais famosos

escritores do gênero são também engenheiros, bioquímicos, etc., conforme destacamos

pela citação seguinte:

H. G. Wells had a degree in biology and kept up with Science all his life [...] Dr. E. E. Smith is a chemist, a chemical engineer, and a metallurgist […] Philip Wylie has a degree in physics, as has Don A. Stuart […] John Taine is the pen name of one of the ten greatest living mathematicians. L. Sprague de Camp holds three technical degrees. Lee Correy is a senior rocket engineer. […] Is it surprising that such men, writing fiction about what they know best, manage to be right rather often?10

7 “imaginário-e-não-possível” (Tradução nossa). 8 “imaginário-mas-possível” (Tradução nossa). 9 “imaginário mas poderia ser real de acordo com as leis do universo” (Tradução nossa). 10 H. G. Wells tinha formação em biologia e acompanhou os estudos científicos durante toda sua vida. Dr. E. E. Smith é um químico, um engenheiro químico, e um metalúrgico [...] Philip Wylie tem formação em física, assim como Don A. Stuart [...] John Taine é o pseudônimo de um dos dez maiores matemáticos vivos. L. Sprague de Camp possui três diplomas técnicos. Lee Correy é um engenheiro de foguetes experiente. [...] É alguma surpresa que tais homens, ao escrever ficção sobre o que eles mais conhecem, consigam estar frequentemente corretos? (Tradução nossa). Fonte: HEINLEIN, Robert. Science Fiction: its natures, faults and virtues. Disponível em: http://www.loa.org/sciencefiction/biographies/heinlein_science.jsp

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Quando se diz, portanto, que a Ficção Científica, por vezes chamada de Ficção

Especulativa11, é capaz de surpreendentemente predizer o futuro, antecipando invenções

que surgiriam em anos posteriores à escrita de uma obra, comete-se o erro de se pensar

que um autor do gênero desconhece a ciência de que ele trata.

Assim, podemos dizer, em um primeiro momento, que um texto deve ser

chamado de Ficção Científica quando seu autor for capaz de unir imaginação e ciência.

A ciência, aliás, será um fator limitante para o desenvolvimento da narrativa, não

podendo a história exceder os limites daquilo que admitimos ser cabível a ela.

No editorial da revista Amazing Stories, lançado em junho de 1926, Hugo

Gernsback trata justamente das observações dos leitores quanto às possibilidades e

impossibilidades científicas presentes nas histórias publicadas até então:

Often while Reading one or four modern scientificition tales, we want to explode at some highly ‘impossible’ plot concocted by some ingenious writer. And often we receive a letter from some reader who vents his opinion in no uncertain terms that such and such a thing ‘cannot be within the realms of possibility’. (p. 387)12

Com isso, percebemos que o compromisso do gênero com a ciência tornou-se

uma demanda desde o início da constituição da Ficção Científica. O autor G. Peyton

Wertenbaker13, em carta ao editor Hugo Gernsback na edição de julho de 1926 da

revista Amazing Stories, expõe sua preocupação de que a Ficção Científica pudesse se

tornar mais um artigo científico, resultante de pesquisas na área, do que puramente uma

narrativa literária:

11 A terminologia Speculative Fiction (Ficção Especulativa) foi utilizada pela primeira vez em 1899, pelo crítico M. F. Egan, ao se referir à obra do autor Edward Bellamy, intitulada Looking Backward. Mais tarde, em 1947, Robert Heinlein definiu o termo como parte da ficção científica que extrapola os limites da ciência e da tecnologia conhecida até o momento da escrita de determinada narrativa. Em 1966, a autora de Ficção Científica Judith Merrill usou o termo para se referir a toda obra do gênero que mostra uma transformação social, sem dar muita ênfase à ciência e à tecnologia. Atualmente, o termo tem sido utilizado sem muitos critérios e não há definições formais para que se possa dizer que este é um gênero distinto da Ficção Científica, nem mesmo um subgênero. (THE ENCYCLOPEDIA OF SCIENCE FICTION ONLINE, Disponível em: http://www.sf-encyclopedia.com/entry/speculative_fiction) 12 Frequentemente, ao lermos um dentre quatro contos de Ficção Científica ficamos indignados diante de enredos “altamente” improváveis, criados por algum autor engenhoso. E com frequência recebemos uma carta de algum leitor querendo desabafar sua opinião de forma clara de que isso ou aquilo ‘não pode existir dentro do campo de possibilidades’. (Tradução nossa). 13 Autor e editor norte-americano de Ficção Científica, iniciou a carreira aos 15 anos de idade, com o conto “The man from the Atom”, em 1923.

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‘The danger that may lie before AMAZING STORIES is that of becoming too scientific and not sufficiently literary. […] It is hard to make an actual measure, of course, for the determination of the correct amount of science, but the aesthetic instinct can judge. I can only point out as a model the works of Mr. H. G. Wells, who has instinctively recognized, in his stories, the correct proportions of fiction, fact, and science. This has been possible only because Mr. Wells is a literary artist above everything, rather than predominantly a scientist. […] Since he is an artist, he has given us the first truly beautiful work in this new field of literature’. (p. 291)14

Em resposta a Wertenbaker, Gernsback define que o texto ideal deveria conter

setenta e cinco por cento de conteúdo literário e vinte e cinco por cento de conteúdo

científico. Desse modo, tendo em vista a visão dos teóricos e autores citados, não é

possível, então, assumirmos que a Ficção Científica seja um subgênero do Fantástico ou

de qualquer outro gênero. É claro que não podemos pensar que a Ficção Científica seja

um gênero “puro”, ou seja, que ele não tenha traços de romance, aventura, terror,

mistérios, entre outros, assim como qualquer outro gênero literário. Porém, não há como

confundir narrativas pertencentes a esse gênero com qualquer outro.

1.1.2 A Ficção Científica e o Fantástico

Apenas para tratarmos de forma mais precisa os questionamentos existentes

entre as diferenças entre a Ficção Científica e o Fantástico, tratemos de algumas

considerações feitas por teóricos, professores e críticos literários.

A autora norte-americana Miriam Allen de Ford (1888-1975), especialista em

contos de mistério e ficção científica, definiu em poucas palavras a diferença entre a

ficção científica e a literatura fantástica: “science fiction deals with improbable

possibilities, fantasy, with plausible impossibilities” 15 (apud ALDISS; WINGROVE,

14 ‘O perigo que pode se estabelecer diante de AMAZING STORIES é de ela se tornar demasiadamente científica e não literária o bastante. [...] É difícil fazer uma medida ideal, é claro, para determinar a quantidade correta de ciência, mas o instinto estético pode servir de juízo. Eu posso apenas apontar como modelo os trabalhos do Sr. H. G. Wells, que reconheceu instintivamente, em suas histórias, as proporções corretas de ficção, fato, e ciência. Isso foi possível apenas porque o Sr. Wells é um artista literário acima de tudo, em vez de um cientista predominantemente. [...] Sendo artista, ele nos deu o primeiro verdadeiro e belo trabalho nesse novo campo literário’ (tradução nossa). 15 A ficção científica lida com possibilidades improváveis, a fantasia, com impossibilidades plausíveis. (tradução nossa).

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2005, p. 164). Para Eric S. Rabkin, professor emérito em Língua e Literatura Inglesa na

Universidade de Michigan, a ficção científica seria “the branch of the fantastic that

makes its narrative world plausible against a background of science” 16 17. Quando

observamos as definições dos especialistas, notamos que há uma aproximação entre o

que consideramos literatura fantástica e o que chamamos de ficção científica e, muitas

vezes, estes gêneros parecem andar juntos.

Conforme dissemos anteriormente, alguns teóricos literários da Ficção Científica

discutem e analisam essas vertentes literárias e, até mesmo, afirmam que a ficção

científica se trata de um subgênero do fantástico:

There followed decades of spirited debates on the formal characteristics of the genre, drawing the participation of both ‘mainstream’ theorists like Robert Scholes and Eric Rabkin and of practicing writers such as Joanna Russ and Damien Broderick. For the most part, these more formalist definitions fell into two broad camps: those which focused in the interactions between text and reader that were peculiar to science fiction (such as Delany’s or Suvin’s or Carl Malmgren’s narratological approach in his 1991 Worlds Apart: Narratology of Science Fiction) […] and those which focused on the differences between science fiction and other kinds of texts (such as Rabkin’s locating science fiction along a spectrum of works ranging from less to more fantastic, in the Fantastic in Literature, 1976 […] or Brian Attebery […] with groups of fantastic works defined more by their centres than by rigid perimeters in his Strategies of Fantasy, 1992 […])18 (SAWYER; WRIGHT, 2011, p. 44-45)

Ao pensarmos na história da literatura e traçarmos uma linha do tempo, desde os

mitos gregos e das lendas antigas, até os textos escritos na Era da Razão, no século

XVIII e chegarmos ao século XIX, com o movimento romântico, a literatura gótica e os

contos de horror, atesta-se que a literatura fantástica e a ficção científica possuem as

16 Ramo do fantástico que faz seu mundo narrado plausível, pautado em um plano de fundo científico. 17 Fonte: Eric Rabkin – Defining Science Fiction < http://www-personal.umich.edu/~esrabkin/ssf/definitionsrabkinB.html> Acesso em 20 de março de 2014. 18 Seguiram-se décadas de debates acesos sobre as características formais do gênero, atraindo a participação tanto de teóricos renomados, como Robert Scholes e Eric Rabkin, e de autores, como Joanna Russ e Damien Broderick. Para a maioria deles, estas definições mais formalistas se dividem em dois grandes grupos: aqueles que focam nas interações entre texto e leitor, que eram peculiares na ficção científica (tal como os textos de Delany, [Darko] Suvin ou Carl Malmgren, em sua abordagem narratológica na obra Worlds Apart: Narratology of Science Fiction, de 1991) e aqueles que focam nas diferenças entre ficção científica e outros textos (tal como na obra Fantastic in Literature, de 1976, em que Rabkin localiza a ficção científica ao longo de um espectro de obras mais ou menos fantásticas ou Brian Attebery [...] com seus grupos de obras fantásticas definidas mais pelos temas centrais do que pelas características periféricas, em Strategys of Fantasy, 1992.) (tradução nossa)

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mesmas origens, pois se baseiam em superstições culturais, influenciadas pelo folclore,

pelas crenças em deuses e no sobrenatural.

Como exemplo, podemos citar a influência que estes gêneros literários

receberam a partir do folclore judaico. Essa cultura possuía uma narrativa de tradição

oral que contava a lenda de uma criatura chamada Golem. Este ser, criado a partir do

barro e incapaz de falar, era feito para servir de escravo aos homens. Em algumas

variações da história era necessário escrever a palavra Emet (verdade, em língua

hebraica) para que o Golem ganhasse vida; do mesmo modo, ao apagar a letra “e”, lia-

se a palavra Met (morto, em hebraico), que foi a forma encontrada para destruir a

criatura. Acredita-se que essa lenda tenha sido um dos principais textos precursores de

Frankenstein, de Mary Shelley, lançado no século XIX. Além disso, Frankenstein

também possui influência explícita do mito de Prometeu – expresso no subtítulo da obra

(Frankenstein ou o Prometeu moderno)

No século XVIII, Daniel Defoe escreveu histórias de viagens e aventuras,

inspirado pelas grandes navegações do século XVI, e estabeleceu um intertexto com

dois novos subgêneros, a fantasy adventure (Alice’s Adventures in Wonderland and

Through the Looking Glass, de Lewis Carroll, 1865) e a science adventure

(representada por diversas obras de Júlio Verne).

A Ficção Científica só ganhou contornos mais nítidos, todavia, no século XX,

quando se cunhou o termo scientifiction e, no editorial de uma revista popular, chamada

Amazing Stories, começou-se a pensar a respeito do que seria essa vertente literária.

Alguns dos editoriais dessa revista foram já citados nesse trabalho e pudemos observar

como delineiam as características do gênero.

A origem da criação de textos caracterizados como Ficção Científica tem

causado vários debates e discordâncias entre os críticos e estudiosos da área. Afirma-se

que a produção de textos que seguem um viés científico estaria diretamente ligada ao

contexto histórico de uma sociedade submetida a transformações tecnológicas

constantes, como aquela do século XIX, em meio à Revolução Industrial. Os primeiros

autores famosos do gênero seriam, portanto, o francês Júlio Verne e o inglês H. G.

Wells. No entanto, outros encontram temas típicos do texto de ficção científica – como

a busca de novos mundos, viagens à lua e a criação de seres mecânicos - em narrativas

de antigas civilizações. Pode-se citar como exemplo a narrativa grega do ano 170 d. C.,

escrita por Lucian de Samosata, na Síria e cujo título foi traduzido para o inglês como

True History ou True Story (Alêthês Historia). A intenção do autor era realizar uma

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sátira de textos míticos, que consideravam seus relatos fantásticos como algo

verdadeiro; True Story conta a história do herói Lucian que é levado por um forte vento

até uma ilha misteriosa e, em seguida, é transportado por um redemoinho até a Lua.

Não podemos nos esquecer, também, do mito de Hefésto, divindade do fogo, dos

metais e da metalurgia, que constrói para si um palácio de metal munido de servos

mecânicos. O teórico de ficção científica Adam Roberts diz, ainda, que muitos

estudiosos consideram a epopeia de Gilgamesh (escrita por volta de 2000 a. C.) como

um texto de ficção científica. Diante disso, Roberts julga haver diferentes

entendimentos da natureza da Ficção Cientifica:

Stress the relative youth of the mode and you are arguing that SF is a specific artistic response to a very particular set of historical and cultural phenomena; more specifically, you are suggesting that SF could only have arisen in a culture experiencing the Industrial Revolution, or one undergoing the metaphysical anxieties of what nineteenth-century philosopher Friedrich Nietzsche called ‘the Death of God’. Stress the antiquity of SF, on the other hand, and you are arguing instead that SF is a common factor across a wide range of different histories and cultures, that it speaks to something more durable, perhaps something fundamental in the human make-up, some human desire to imagine worlds other than the one we actually inhabit. (ROBERTS, 2006, p. 35-36)19

1.2 PROBLEMÁTICAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Apesar de todas as considerações apresentadas até aqui, as definições da ficção

científica como gênero ainda são discutidas, analisadas e reformuladas por teóricos

contemporâneos, como Darko Suvin, James Gunn, Eric Rabkin e Paul Kincaid –

destacamos que as teorias escritas pelos três primeiros servirão de base teórica para

nossa pesquisa no presente trabalho.

19“Se dermos ênfase à relativa juventude do estilo, estaremos argumentando que a FC é uma resposta artística específica para um conjunto muito particular de fenômenos históricos e culturais; mais especificamente, sugeriremos que a FC só poderia ter surgido em uma cultura sujeita à Revolução Industrial, ou em outra submetida às ansiedades metafísicas, chamadas pelo filósofo Friedrich Nietzsche, no século XIX, de “A morte de Deus”. Por outro lado, se dermos ênfase à antiguidade da FC, estaremos argumentando que ela é um fator comum em meio a uma alta gama de diferentes histórias e culturas, que ela se refere a algo mais duradouro, talvez um fator fundamental para a composição humana, um desejo humano de imaginar mundos diferentes daquele em que realmente habitamos.” (tradução nossa)

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James Gunn, por exemplo, no artigo intitulado “Toward a Definition of Science

Fiction”, relata que em suas aulas para universitários tenta, junto aos seus alunos,

encontrar definições mais apropriadas para esse tipo de texto: “by means of historical

development, thematic analysis, comparison and contrast, and examples” 20 (GUNN,

2005, p. 6) O que o teórico considera mais problemático, no entanto, é que a ficção

científica não é um gênero como os demais, conforme ele explica:

Unlinke the mistery, the western, the gothic, the love story, or the adventure story, to cite a few of the popular genres, science fiction has no typical action or place. Readers do not recognize it as they recognize other genres, because of some critical event (such as crime and its detection) or its setting (the mythical West during the period 1865-1900). As a consequence, science fiction can incorporate other genres: we can have a science-fiction mystery, a science-fiction western, a science-fiction gothic, a science-fiction love story, or most likely of all, a science-fiction adventure story. The first step toward definition, then, must be the elimination of those aspects of the fiction that are not unique to science fiction - the aspects of the mystery, the western, the gothic, the love story, and the adventure story […] before we can begin to recognize what is left as being irreducibly science fiction […] 21 (2005, p. 6-7)

Assim como sua caracterização, a origem da literatura de Ficção Científica é,

também, bastante controversa, os críticos e teóricos literários não conseguiram chegar,

ainda, em um consenso para determinar com segurança quando e onde a Ficção

Científica se iniciou. Apesar de muitos alegarem a existência de textos pertencentes a

este gênero desde o século XVII, o termo science-fiction foi cunhado apenas na década

de 1920, pelo editor norte-americano Hugo Gernsback em uma revista pulp. Os maiores

autores do gênero surgiram a partir dessas publicações e ajudaram a moldar, a

disseminar e a popularizar a Ficção Científica, fazendo com que esses textos pudessem

ser publicados em livros, adaptados para séries de TV e para o cinema.

20 Por meio do desenvolvimento histórico, análise temática, comparação e contraste, e exemplos. (tradução nossa) 21Diferentemente das narrativas de mistério, de faroeste, góticas, de histórias de amor ou de aventura, para citar alguns dos gêneros populares, a ficção-científica não possui nenhuma ação ou espaço característicos. Os leitores não são capazes de distingui-la, como fazem com os outros gêneros, porque alguns dos eventos cruciais (como o crime e sua investigação) e sua ambientação (o oeste mítico do período entre 1865-1900). Como consequência, a ficção científica pode incorporar outros gêneros: podemos ter uma ficção-científica de mistério, um faroeste de ficção científica, uma narrativa gótica de ficção-científica, uma história de amor de ficção científica, ou, o mais provável, uma aventura de ficção-científica. o primeiro passo para a definição, portanto, deve ser a eliminação desses aspectos da ficção que não são particulares à ficção-científica – os aspectos do mistério, do faroeste, do gótico, da história de amor e da história de aventura. [...] antes de começarmos a reconhecer o que restou como sendo, irredutivelmente, ficção-científica.

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O ápice da produção literária de Ficção Científica ocorreu entre as décadas de

1940 e 1960; o período ficou conhecido como a Era de Ouro e foi representada por

autores importantes, como Isaac Asimov, A. E. Van Vogt, E. E. “Doc” Smith, Walter

Miller e Arthur C. Clarke. Com o fim da Era de Ouro, após a década de 1960, a Ficção

Científica passou a se expandir e se tornar gradativamente um gênero da mídia visual,

ou seja, surgiu o interesse em se realizarem grandes produções cinematográficas,

repletas de efeitos especiais, que tentavam criar, através de uma tecnologia gráfica,

mundos que, nas décadas anteriores, estavam restritos ao imaginário dos leitores.

Adam Roberts alega que a transposição intermidiática, da literatura de Ficção

Científica para o cinema, tem proporcionado uma maior popularidade a estes textos,

fazendo com que eles se “aprofundem culturalmente” na sociedade de forma mais

eficaz.

Com o fim da Era de Ouro, a Ficção Científica viveu, de 1960 a 1980, a

chamada New Wave, durante a qual um grupo de escritores decidiu se colocar contra as

convenções impostas pelo gênero até aquele momento; para eles, os “clichês”

determinados pelo formato da era anterior haviam se tornado maçantes, conforme

explica James Graham Ballard22, na revista inglesa New Worlds23:

Science fiction should turn its back on space, on interstellar travel, extra-terrestrial life forms, galatic wars and the overlap of these ideas that spreads across the margins of nine-tenths of magazine s-f. […] I think science fiction must jettison its present narrative forms and plots.24 (BALLARD, apud ROBERTS, 2005, p. 231.)

A literatura da era New Wave mostrava um mundo apocalíptico ou pós-

apocalíptico resultante de um desenvolvimento tecnológico e científico mal

administrados pelo homem. Um dos autores mais reconhecidos desse período é Philip

K. Dick, responsável pela obra Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), cuja

narrativa relata um mundo destruído pela guerra nuclear, quase inabitado, onde se passa

a história de Rick Deckard, responsável por perseguir androides, banidos da Terra, que

22 James Graham Ballard foi um autor inglês de literatura de Ficção Científica da era New Wave. 23 Revista inglesa de Ficção Científica. Surgiu em 1936 e no final da década de 1960 começou a focar suas publicações em textos produzidos por autores New Wave. 24 A ficção científica deveria virar as costas para o espaço sideral, às viagens interestelares, às formas de vida extraterrestres, às guerras intergalácticas e à sobreposição dessas ideias que se espalham através das margens de nove em cada dez revistas de ficção científica. Eu acredito que a ficção científica deve descartar os atuais modelos e enredos narrativos. (tradução nossa)

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tentam retornar ao planeta. A obra tornou-se popular quando o diretor Ridley Scott a

levou para o cinema em 1982, dando-lhe o título de Blade Runner.

A década de 1980 inaugurou um período denominado Cyberpunk, era da Ficção

Científica que permanece até os dias atuais. A Enciclopédia de Ficção Científica25,

explica que o movimento Cyberpunk tem como ideia central o conceito de Realidade

Virtual e cita como exemplo a obra Neuromancer (1984), de William Gibson. A

narrativa trata de uma realidade alternativa em que as máquinas dominam um ambiente

que pode ser adentrado pelos homens através de um cyber espaço. Na década de 1990, o

texto de Gibson inspira a criação da trilogia cinematográfica Matrix. O termo

Cyberpunk nasce da mistura da palavra cibernética (cybernetics) com a palavra punk. A

cibernética surgiu em 1948, com o matemático Norbert Wiener; a teoria de Wiener

aproxima a comunicação e o controle de seres vivos e grupos sociais às máquinas

eletrônicas. Em sua obra Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos

(1968), o teórico afirma que, com relação à transmissão de informações, não há

diferença entre o homem e a máquina.

The "cyber" part of the word relates to Cybernetics: to a future where industrial and political blocs may be global […] a future in which machine augmentations of the human body are commonplace, as are mind and body changes brought about by Drugs and biological engineering. Central to cyberpunk fictions is the concept of Virtual Reality […] the "punk" part of the word comes from the rock'n'roll terminology of the 1970s, "punk" meaning in this context young, streetwise, aggressive, alienated and offensive to the Establishment. 26 27

Como se pode perceber, o termo punk indica que o movimento busca uma

quebra radical com a ordem social. As sociedades descritas por essas narrativas são

distópicas e retratam acontecimentos que se passariam em um futuro próximo na Terra.

Nessas histórias, o homem se encontra em conflito com a Inteligência Artificial e com

megacorporações tecnológicas. Nota-se, portanto, que o cinema de Ficção Científica

25 Disponível em: <http://www.sf-encyclopedia.com/entry/cyberpunk> Acesso 14 de janeiro de 2014. 26 Fonte: Enciclopédia de Ficção Científica. Disponível em <http://www.sf-encyclopedia.com/entry/cyberpunk> Acesso: 18 de janeiro de 2014. 27 O termo “cyber” está relacionado à cibernética: para um futuro em que blocos industriais e políticos podem ser globais [...] um futuro em que a incorporação da máquina aos corpos humanos será lugar comum, assim como as mudanças da mente e do corpo ocasionadas por drogas e pela engenharia genética. O conceito de Realidade Virtual é fator primordial na Ficção Científica [...] o termo “punk” vem da terminologia do Rock’n’Roll dos anos 1970, naquele contexto, “punk” significava ser jovem, urbano, agressivo, alienado e ofensivo diante das regras estabelecidas. [...] (tradução nossa)

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está inserido no contexto de produção da Era Cyberpunk, ou seja, filmes que carregam

de forma explícita as características do movimento, produzidos desde a década de 1980,

como: a série Terminator (O Exterminador do Futuro), 12 Monkeys, (Os 12 Macacos),

Robocop, The Fifth Element (O Quinto Elemento), Avatar, entre tantos outros.

1.3 UMA LONGA HISTÓRIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Esta primeira parte do trabalho utiliza como apoio teórico duas obras escritas

pelo pesquisador especialista em Ficção Científica, o inglês Adam Roberts, intituladas

The History of Science Fiction e Science Fiction: the new critical idiom (2006). Roberts

expõe as três diferentes versões que explicariam, historicamente, o advento da ficção

científica como gênero: The Long History of Science Fiction; The Gothic History of

Science Fiction; The Gernsbackian History of Science Fiction.

Em Science Fiction: the new critical idiom, Roberts apresenta duas diferentes

abordagens para o estudo do gênero: a formalista e a estruturalista, baseando-se em

premissas de alguns teóricos norte-americanos contemporâneos. Estes estudos

contribuem para o entendimento que temos a respeito da caracterização do gênero nos

dias atuais.

Adam Roberts não considera que quaisquer textos escritos antes do ano 1600

possam pertencer à literatura de ficção científica. Não porque o teórico desconsidere

que já houvesse textos, em séculos muito anteriores ao XVII, que falassem sobre

eventos mágicos e fantásticos, como aqueles previamente citados, ou outros que

também discorrem sobre viagens à Lua, como a obra de Cícero O sonho de Cipião

(Somnium Scipionis, 51 a. C) e a narrativa de Plutarco The Circle of the Moon (to

kuklô tês selênês, 80 d. C), que falam sobre o sistema solar e o descreve como lugar

habitado por almas de pessoas mortas. Roberts cita ainda o épico Orlando Furioso,

escrito pelo poeta italiano Ludovico Ariosto, em 1516, o qual traz um relato sobre uma

viagem à Lua feita nas costas de um hipogrifo.

Estas obras, porém, não poderiam ser consideradas como pertencentes ao gênero

da ficção científica, pois elas foram escritas e concebidas em uma esfera puramente

religiosa e geocêntrica: “[...] everything above the level of the Moon was incorruptible,

eternal and godly.”28 (ROBERTS, p. 39). Foi apenas com o astrônomo polonês, Nicolau

28 “tudo acima do nível da Lua era incorruptível, eterno e divino.” (tradução nossa).

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Copérnico (1473-1543), que essa visão se alterou e passamos a entender o sistema solar

como algo mais materialista, partindo de um ponto de vista heliocêntrico.

Sendo assim, nessa perspectiva histórica, a primeira obra de ficção científica

teria sido escrita pelo astrônomo alemão Johann Kepler (1571-1630), que, além de seus

estudos científicos, escreveu um texto ficcional, chamado Somnium, sive Astronomia

Lunaris. O livro começou a ser escrito como uma dissertação em que Kepler discorre

sobre a teoria de Copérnico a respeito do movimento da Terra. A ideia original de

Kepler era a de dizer que, assim como na Terra nós vemos a atividade lunar, habitantes

da Lua também seriam capaz de observar os movimentos de nosso planeta. Cerca de 20

anos mais tarde, o autor decidiu transformar seu texto, inserindo elementos de ficção:

então, a narrativa passou a tratar da história de Tycho Brahe, um estudante que é

transportado até a lua por bruxas. Alguns anos depois, Kepler ainda adicionou à obra

algumas notas explicativas científicas, tentando justificar suas teorias e suposições por

meio de suas observações e estudos. É importante destacar que tanto o astrônomo Carl

Sagan quanto o autor Isaac Asimov consideram a obra de Kepler como a primeira

pertencente ao gênero de ficção científica.

Figura 1 : Capa de edição norte-americana de Somnium

Disponível em: <https://www.goodreads.com/book/show/5984974-somnium>. Acesso em 12 de nov. de 2013.

A partir de então, outros autores do século XVII, inspirados pelas novas

descobertas a respeito do funcionamento do sistema solar, começaram a publicar obras

tratando de viagens à Lua e de descobertas de novos mundos; alguns exemplos mais

relevantes são: O Homem na Lua (The man in the moon, 1638), de Francis Godwin (que

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escrevia sob o pseudônimo de Domingos Gonsales). O livro conta a história de um

homem que consegue ir até a lua, transportado por gansos; História cômica dos estados

e impérios da Lua, de Savinien de Cyrano de Bergerac, (editado em 1657), a história

relata a viagem de um homem até a lua e a descoberta de criaturas estranhas que

habitam aquele lugar; The Description Of A New World Called The Blazing World, de

Margaret Cavendish (1666), obra que fala sobre a descoberta de um universo paralelo,

cuja entrada se dá no Polo Norte.

Figura 2: Edição de The Man in the Moone, de Francis Godwin.

Disponível em: <http://astropt.org/blog/2009/11/24/romenos-vao-a-lua-de-balao/> Acesso em 12 de nov. de 2013.

Dando continuidade ao gênero literário surgido no século XVII, as aventuras

interplanetárias adentram o século XVIII e a temática se torna frequente na literatura

europeia. Outros temas, como a visita de seres alienígenas à Terra e especulações sobre

o futuro também ganham força. Podemos citar exemplos de autores famosos que

escreviam de acordo com essas ideias, como Daniel Defoe (The Consolidator; or,

Memoirs of Sundry Transactions from the World in the Moon, 1705), Jonathan Swift

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(As viagens de Guliver, Gulliver’s travels, 1726 – é interessante observar a crítica à

ciência que surge na terceira parte da narrativa, quando Guliver se encontra com

cientistas vivendo “fora da realidade”, por terem passado muito tempo criando teorias

sobre o cosmos).

Pode-se ir contra as afirmações de que a ficção científica tenha tido início no

século XVII, com as obras apresentadas acima, pois para se confirmar o advento de um

gênero é necessário que as obras iniciais sejam culturalmente significativas e, ainda

hoje, influenciem outros autores. Assim, uma análise da ficção científica como fator

cultural só poderia considerar textos “vivos” e este não é o caso da grande maioria das

obras que expressam tal temática, escritas nos séculos XVII e XVIII.

1.4 UMA HISTÓRIA GÓTICA DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Alguns acadêmicos e críticos literários indicam que a ficção científica tem suas

raízes no Romance Gótico, descrito como o gênero que apresenta “a gloomy castle,

replete with dungeons, subterranean passages, and sliding panels”29 e, além disso,

“made bountiful use of ghosts, mysterious disappearances and other sensational and

supernatural occurrences...their principal aim was to evoke chilling terror” 30

(ABRAMS, 1985, p. 74, apud ROBERTS, 2006, p. 42).

Os aspectos do Romance Gótico que acarretaram na constituição da ficção

científica são as combinações do imaginário e do sublime, associados ao modo de

escrita romântica do século XIX (ROBERTS, 2006). Para alguns críticos literários,

portanto, a ficção científica teria tido seu princípio com o romance Frankenstein, escrito

em 1818, por Mary Shelley. Para eles, diferentemente dos textos do século XVII e

XVIII que ficaram esquecidos no passado, a história de Frankenstein é conhecida por

quase todos nós, mesmo por aqueles que não leram o texto, de fato, mas puderam ter

contato com a narrativa através do cinema, da televisão ou de alguma outra mídia. Além

disso, é inegável que a obra ainda continua dialogando com outros autores e outras

narrativas ainda nos dias de hoje.

O que aproxima Frankenstein ao que conhecemos hoje como ficção científica é a

temática do texto: um cientista que vai de encontro às leis da natureza e consegue dar 29 “um castelo sombrio, repleto de calabouços, passagens subterrâneas e painéis deslizantes” (tradução nossa). 30 “fez uso abundante de fantasmas, desaparecimentos misteriosos e outras ocorrências fantásticas e sobrenaturais...seu principal objetivo era causar calafrios de terror.” (tradução nossa)

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vida a um ser construído a partir de cadáveres; a criatura, no entanto, cansada da

solidão, volta-se contra o cientista e torna-se ameaçadora. Para o crítico Darko Suvin

(1979), a obra apresenta, ainda, outro tema que se tornaria recorrente na ficção

científica, o progresso atrelado à catástrofe.

A ficção científica, como gênero, porém, só começaria a ganhar mais força

quando mais tarde, ainda no século XIX, autores como H. G. Wells e Júlio Verne

inaugurariam suas publicações literárias. Estes são os dois escritores que mais se

destacaram quando pensamos em aventuras que tratam de viagens a lugares longínquos,

ambientes fantásticos, viagens no tempo e contatos alienígenas. Mas, a ficção científica

estava presente também em textos de outros literatos deste mesmo século, como Edgar

Allan Poe, John Munro e Percy Greg. Em um texto chamado The Unparalleled

Adventure of One Hans Pfaall (1835), Poe narra a história de um homem que consegue

ir à lua em um balão; como se nota, o enredo é bastante semelhante a outros textos

publicados no século XVII e XVIII. Aliás, Júlio Verne admite que uma de suas histórias

mais famosas, Da Terra à Lua (De la Terre a la Lune, 1865) é uma releitura da história

de Poe.

Figura 3: Ilustração da narrativa de Edgar A. Poe, The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall (1835) Fonte: <http://www.davidsongalleries.com/artists/eichenberg/eichenberg.php> Acesso em 12 de nov. de

2013 Ainda assim, Verne e Wells são até hoje vistos como os mais famosos escritores

de ficção científica, devido à qualidade e a popularidade de seus textos; foram eles que

começaram a inserir a ficção científica na cultura popular e a dar as primeiras formas ao

gênero. Adam Roberts (2005, p. 129) explica, porém, que não há um consenso entre os

críticos com relação à qualidade da obra desses autores; alguns até mesmo dizem que os

textos de Verne não podem ser considerados ficção científica (uma vez que no século

XIX o termo Science Fiction ainda não havia sido cunhado e, além disso, ainda não

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havia um conjunto estabelecido de textos e de leitores do gênero), apesar de o próprio

Roberts discordar disso: para ele, a popularidade dos textos de Verne e as adaptações

para o cinema de sua obra acabaram por garantir que a tecnologia fosse usada como um

elemento central nessas narrativas.

Podemos dividir a vida literária de Júlio Verne (1828-1905) em três fases: a

primeira, que vai de 1862 a 1886 é conhecida como período positivista, durante a qual

ele lançou muitas histórias de ficção científica, como Voyage au centre de la

Terre (Viagem ao centro da Terra, 1864), Autour de la Lune (À roda da lua, 1869) e

Vingt mille lieus sous les mers (Vinte mil léguas submarinas, 1870). A segunda fase vai

de 1886 até 1905, o ano de sua morte e ficou conhecida como o período pessimista de

Verne, pois o autor passa a explorar as ameaças da tecnologia, como em Sans Dessus

Dessous (traduzido para o inglês com dois títulos diferentes, Topsy-Turvey ou The

Purchase of the North Pole, 1889). O livro narra a história da venda por leilão de uma

região do Ártico e do Polo Norte. A venda é efetuada e os compradores são revelados

como sendo os mesmos que, vinte anos atrás (conforme é relatado na obra From the

Earth to the Moon) haviam viajado até a Lua em um canhão. Dessa vez, porém, a

intenção é a de usar o canhão para remover a inclinação do eixo da Terra para que ele

ficasse perpendicular à órbita do planeta – isso daria um fim às mudanças climáticas, às

estações do ano e à alternância dia-noite. O fim maior de tudo isso, no entanto, era o de

derreter o gelo do Polo Norte e, assim, extrair o carvão natural existente embaixo do

gelo para vendê-lo. A história representa o medo do progresso e da intervenção que a

tecnologia poderia trazer à ordem e ao funcionamento natural das coisas. Como

veremos mais adiante, o medo da ciência tornar-se-á uma temática cada vez mais

recorrente na ficção científica, principalmente no século XX.

Por fim, a terceira fase de Júlio Verne decorre entre 1905 e 1919, quando seu

filho Michel Verne publica algumas obras do pai, após modificá-las e recuperá-las. Há

muitas discussões a respeito dessas obras, pois após análises dos manuscritos originais,

descobriu-se que Michel Verne chegou a reescrever completamente alguns livros e,

sendo assim, elas não poderiam ser atribuídas à autoria de Júlio Verne. Alguns

exemplos de obra pertencentes a esta fase são: Le Volcan d’or (O vulcão de ouro,

1906), La chasse au météore (A caça ao meteoro, 1908), Le secret de Wilhelm Storitz

(O segredo de Wilhelm Storitz, 1910).

Isaac Asimov afirma que Júlio Verne teria sido o autor inaugural do gênero de

ficção científica, pois o francês foi o primeiro a ganhar dinheiro com tais publicações.

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Todavia, o crítico Patrick Parrinder (1980) diz que H. G. Wells (1866-1946) foi uma

peça fundamental na construção do gênero “in the evolution of scientific romance into

modern science fiction. His example has done as much to shape SF as any other single

literary influence”.31 (apud ROBERTS, 2006, p. 10) Isso porque Wells incluía em seus

textos vários temas que hoje reconhecemos como dos mais representativos da Ficção

Científica, como encontros com alienígenas, mutações biológicas e cidades futurísticas.

Wells começou sua carreira escrevendo artigos científicos – na maioria de

ciência especulativa – para pequenos jornais ingleses. Sua produção bibliográfica durou

até meados da década de 1940, porém, as obras mais grandiosas foram lançadas entre

1895 e 1905, como a The Time Machine (A Máquina do Tempo, 1895) The Island of

Doctor Moreau (A Ilha do Doutor Moreau, 1896), The Invisible Man (O Homem

Invisível, 1897) e The War of the Worlds (Guerra dos Mundos, 1898). De acordo com

Roberts (2005, p. 145) há uma temática constante nos textos do autor: ele sempre se

baseia em um ambiente comum e contemporâneo, no qual um objeto estranho abre as

portas para um novo mundo.

Essa fórmula é considera pelos críticos como sendo uma mistura de realismo

com ficção científica, fazendo, ao mesmo tempo, uma representação da realidade

naquele final de século e uma tentativa de fuga desse cotidiano, através de um

dispositivo criado pela ciência. Essa interpretação é válida, mas ao mesmo tempo

bastante simples, dado o grande número de temas que são tratados por essas histórias;

além disso, algumas delas estão mais próximas da literatura fantástica do que da ficção

científica, como The Invisible Man, uma vez que nesse caso a ênfase está no medo do

desconhecido, simbolizado pela figura de um homem que passa a cometer crimes

quando percebe que não pode ser mais ser visto, isto é, sem o olhar do outro, elimina-se

a censura e consequentemente, perde-se o autocontrole. Mais do que uma crítica social,

nesse caso, temos uma condenação da própria natureza humana e o medo do progresso

científico.

Considera-se que Verne e Wells tenham sido, portanto, autores fundamentais na

criação de narrativas que seriam chamadas de ficção científica, algumas décadas mais

tarde e não há como ignorar a influência que estes autores tiveram nos temas, nas

questões e nos enredos que seriam desenvolvidos posteriormente. Veremos, então, de

que forma os autores do século XX transformaram e adequaram o gênero, de acordo 31 Seu exemplo foi tamanho que definiu as formas da Ficção Científica, assim como qualquer outra influência literária em particular. (tradução nossa)

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32

com as exigências do mercado, do público-leitor, dos editores e das revistas em que

publicavam seus textos, moldando a ficção científica nas formas como nós a

conhecemos hoje.

1.5 UMA HISTÓRIA RECENTE DA FICÇÃO CIENTÍFICA

No século XIX, na Inglaterra, com a industrialização e o capitalismo, a

população começou a se interessar em investir mais tempo e dinheiro no

entretenimento. Com a mecanização da imprensa, o aumento da velocidade no

transporte de mercadorias graças ao desenvolvimento do sistema ferroviário e o

aumento nas taxas de alfabetização, uma nova mídia surge, tornando-se comum no

cotidiano dos ingleses, principalmente dos jovens: as revistas chamadas Penny

Dreadfuls, que publicavam em suas páginas histórias seriadas ao longo de algumas

semanas. As revistas eram extremamente baratas (custavam 1 penny), devido à baixa

qualidade do material da qual eram feitas. Ao mesmo tempo, em 1860, os editores

Erastus e Irwin Beadle lançaram, nos Estados Unidos, publicações conhecidas como

Dime Novels, revista também dedicada ao público jovem. No início, elas se voltavam a

narrativas sobre o Velho Oeste, histórias de detetive e outros gêneros. A evolução

dessas publicações, após a 1a Guerra Mundial, deram origem a outro tipo de revista, as

pulp fictions. As revistas pulp levavam este nome devido ao material de que elas eram

fabricadas: elas eram feitas da polpa da madeira tratada quimicamente. Isso fazia com

que o papel fosse mais barato, mas também menos duradouro, uma vez que suas folhas

sofriam um rápido processo de amarelamento e se tornavam quebradiças. O editor de

jornais e revistas norte-americano, Frank A. Munsey, é considerado o criador do

formato e da fórmula das revistas pulp, tendo lançado o primeiro volume em 1896, com

uma revista chamada The Argosy. A partir de então, começaram a surgir outros títulos

dedicados apenas à publicação de histórias ficcionais, tratando de vários temas, como

fantasia, contos de terror, contos de aventura e, um pouco mais tarde, ficção científica.

O termo science-fiction (inicialmente chamado de scientifiction) foi criado por

Hugo Gernsback32, fundador e editor da revista pulp Amazing Stories33 (também

32 Hugo Gernsback, além de escritor, foi também um inventor. Suas contribuições ao gênero de ficção científica foram tão grandes que ele foi homenageado com um prêmio literário que leva seu nome, o Hugo Awards. 33 A revista Amazing Stories, primeira do gênero ficção científica, era publicada mensalmente e durou cerca de 80 anos, sendo que a última edição foi lançada em março de 2006.

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conhecida como Amazing Science-Fiction Magazine), publicada pela primeira vez em

1926. Na primeira edição, Gernsback define sua publicação como um tipo novo de

revista de ficção, diferente de todas as outras já conhecidas pelo público. Inicialmente, o

editor define “scientifiction” como um tipo de narrativa que mistura o gênero romance

com fatos históricos e visões proféticas. Ele se refere à Edgar Allan Poe como o “pai”

da scientifiction, seguido por Júlio Verne e H. G. Wells:

It was he [Poe] who really originated the [science fiction] romance, cleverly weaving into and around the story, a scientific thread. Jules Verne, with his amazing romances, also interwoven with a scientific thread, came next. A little later came H. G. Wells whose scientifiction stories, […], have become famous and immortal. (1926, p. 3). 34

Por isso, Gernsback publica na primeira edição da revista seis contos, sendo o

primeiro de Júlio Verne (“Off on a Comet”, 1877), o segundo de H. G. Wells (“The

New Accelerator” , 1901) e o último de Edgar Allan Poe (“The Facts in the Case of Mr.

Valdemar”, 1845). Em pouco tempo, no entanto, Gernsback encontrou autores dispostos

a escrever exclusivamente para ele. Segundo o editor, o que diferenciava estas

publicações naquele momento era o contexto histórico: a ciência e a tecnologia estavam,

então, intimamente ligadas ao cotidiano das pessoas e o progresso estava causando

mudanças tão grandes na vida de todos que situações pensadas como “fantásticas” um

século antes haviam se tornado comuns naquele momento. Sendo assim, para ele, a

ficção científica não era apenas uma narrativa para o divertimento, mas era também

instrutiva, trazendo conhecimentos que não poderiam ser obtidos de outra forma:

Thus it will be seen that a scientifiction story should not be taken too lightly, and should not be classed just as literature. Far from it. It actually helps in the progress of the world, […], and the fact remains that it contributes something to progress that probably no other kind of literature does. (GERNSBACK, 1926, p. 579)35

34 Foi ele [Poe] quem realmente deu origem ao romance [de ficção científica], costurando engenhosamente a história com fatos científicos. Júlio Verne veio em seguida, com seus fantásticos romances, também entrelaçados a uma linha científica. Pouco depois veio H. G. Wells, cujas histórias de ficção científica, [...], tornaram-se famosas e eternas. (tradução nossa) 35 Assim, veremos que a história da Ficção Científica não deve ser encarada de forma muito branda, e não deve ser classificada apenas como literatura. Longe disso. Ela realmente ajuda no progresso do mundo, [...] e o fato é que ela contribui com o progresso de um modo que nenhum outro tipo de literatura faz. (tradução nossa).

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34

No que se refere à questão profética das narrativas, Gernsback alega que Poe,

Verne, Wells e outros escreveram sobre coisas que viriam a existir mais tarde, como o

submarino, de Vinte Mil Léguas Submarinas (Vingt mille lieues sous les mers, 1870); da

mesma forma, ele acreditava que muitas das histórias de ficção científica, que ainda

seriam escritas, mostrariam objetos que seriam inventados futuramente.

O que Hugo Gernsback não sabia, porém, é que novos autores se interessariam

em publicar textos para sua revista e as narrativas ganhariam mais força e se

desenvolveriam de acordo com os moldes da publicação e o gosto do público. A seção

de cartas, que permitia que os fãs entrassem em contato uns com os outros, causaram

um fanatismo pelo gênero. O editor estimulava, assim, seus leitores a mandarem cartas

com sugestões para melhorar o formato da revista e os textos que eram nela publicados,

conforme vemos no trecho destacado abaixo, retirado da primeira edição da revista:

Now that you have looked over the first issue of AMAZING STORIES, the editor would very much like to know how you like the new magazine. In the coming issues we shall probably run a department entitled ‘Readers’ Letters’, which will be a forum where our readers can discuss the various problems in connection with these stories. Very often you are puzzled over certain scientific matter contained in stories of this kind and wish to get more information. We shall try to keep this new department for the benefit of all, and will try to publish all letters received from readers of AMAZING STORIES. If, on the other hand, you have comments, criticisms, and suggestions, be good enough to let us have all of these. The editor would also like to know whether you like the present makeup of the magazine; that is, one story in two parts, as, for instance, the one we present this month, ‘Off on a Comet’, with the balance in the next issue – or whether you would rather have the complete story in one issue, without the short stories as printed in the present number. Rest assured that the editor will be guided by the majority at all times. A word from you will be greatly appreciated. – Editor. (GERNSBACK, 1926, p. 482)36

36 Agora que você já deu uma olhada na primeira edição de AMAZING STORIES, o editor gostaria muito de saber o que você achou da nova revista. Nas próximas edições, nós provavelmente teremos uma seção chamada ‘Cartas dos Leitores’, a qual será um fórum no qual os leitores poderão discutir os diversos problemas relacionados a essas histórias. Muito frequentemente, você fica confuso com uma certa questão científica apresentada em histórias desse tipo e gostaria de adquirir mais informações. Tentaremos manter essa seção para o benefício de todos, e tentaremos publicar todas as cartas recebidas dos leitores de AMAZING STORIES. Se, por outro lado, você tiver comentários, críticas, e sugestões, não deixe de nos enviar todas elas. O editor também gostaria de saber se você gosta do formato atual da revista; isto é, uma história divida em duas partes, como, por exemplo, a que apresentamos esse mês, ‘Off on a Comet”, com a conclusão na próxima edição – ou se você gostaria de ter a história completa em uma edição, sem os contos , conforme impressos no presente número.

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Com isso, aos poucos, foi se criando uma comunidade de autores e leitores

voltados para esse gênero textual e estes tinham sua opinião respeitada e mudanças

sugeridas eram anexadas às publicações; desse modo, pode-se dizer que Gernsback

inaugurou um novo gênero literário, que, além de se tratar de uma história

surpreendente, obrigatoriamente tinha de conter elementos científicos no desenrolar da

narrativa “[...] the amazing quality [of the stories] is only one requisite, because the

story must contain science in every case.”37 (GERNSBECK,1926, p. 483)

Portanto, a princípio, a ficção científica era publicada apenas em revistas. O

gênero foi moldado, em seus primórdios, por aquilo que os fãs das chamadas pulp

magazines esperavam encontrar em suas leituras. Entre 1920 e 1930 as revistas

publicavam histórias de aventuras espaciais – os autores que mais se destacaram, nesse

período, foram Edgar Rice Burroughs (1875-1950) e E. E. ‘Doc’ Smith (1890-1965).

Além do formato dos textos escritos nas pulp magazines, outro aspecto importante

contido nelas – que viria a influenciar o cinema do gênero – eram as imagens: as capas

eram detalhadamente desenhadas e coloridas, repletas de monstros alienígenas lutando

contra heróis, espaçonaves, robôs, retratados em um ambiente futurista, para chamar a

atenção dos leitores e as narrativas traziam ilustrações em preto e branco, conforme se

observa em algumas imagens abaixo:

Assegure-se que o editor será sempre guiado pela maioria. Uma palavra sua será grandemente apreciada – Editor (tradução nossa). 37 “[...] a qualidade surpreendente [das histórias] é apenas um requisito, pois ela deve conter ciência em todos os casos.” (tradução nossa)

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Figura 4: Capa de Astouding Science-fiction, Dezembro de 1939

Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan. de 2014.

Figura 5: Capa de Amazing Stories, março de 1939

Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan. de 2014.

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Figura 6: Ilustração do conto “In the Abyss”, de H.G. Wells

Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan. de 2014.

Figura 7: Ilustração do conto “The Purchase of the North Pole, de Júlio Verne

Disponível em: http://www.pulpmags.org/amazing%20stories_page.html. Acesso em 22 de jan. de 2014.

Todas as ilustrações foram feitas por artistas que se tornaram bastante

conhecidos na época, e acabaram recebendo prêmios por seus trabalhos, com destaque

para Frank R. Paul (1884-1963) . Paul foi descoberto pelo próprio editor, Hugo

Gernsback, e tornou-se responsável por definir as ilustrações de capa e do interior das

revistas entre 1926 a 1929. As ilustrações de Paul se tornariam as primeiras imagens de

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Ficção Científica vistas pelos americanos, assim como por seus leitores que viriam a se

tornar autores do gênero, como Ray Bradbury.

Na década de 1940, nos Estados Unidos, as narrativas começaram a ser

publicadas em formato de livro, principalmente em edições de bolso. Este novo gênero

permaneceu como fenômeno particularmente norte-americano até o final da Segunda

Guerra Mundial – apesar de as revistas pulp terem também se popularizado bastante

pela Europa e de alguns autores britânicos, como C. S. Lewis, aventurarem-se a

escrever um ou outro texto.

O período de guerras e de crises (como a Segunda Guerra Mundial e a

Depressão de 1929, nos Estados Unidos) contribuiu para o amadurecimento da ficção

científica, devido aos avanços tecnológicos e aos novos temas de âmbito social e

político suscitados com esses acontecimentos. Um grande exemplo disso é a obra

Nineteen Eighty-Four, do inglês George Orwell, escrita em 1948 e publicada em 1949,

que tem como foco a história de uma sociedade reprimida por um regime totalitário.

Em julho do ano de 1939, a revista Astounding Stories publicou uma nova

edição que trazia contos de autores até então desconhecidos: A. E. Van Vogt e Isaac

Asimov. Assim, a partir dessa data, estava inaugurada a Era de Ouro da ficção

científica, que começaria a ficar conhecida também pelo público em geral e não apenas

pelos fãs do gênero.

Como vimos, a Era de Ouro tratava de histórias nas quais havia sempre um herói

resolvendo problemas e enfrentando ameaças em uma aventura repleta de artefatos

tecnológicos ou eram ambientadas no espaço. Abordavam, portanto, temas que

satisfaziam o gosto pessoal do editor John W. Campbell (ROBERTS, 2005, p. 195).

Campbell iniciou sua carreira como editor da Astouding science-fiction em outubro de

1937 e só deixaria o cargo em 1971, ano de sua morte (na ocasião, ele havia mudado o

nome da revista para Analog). Segundo ele, a evolução das histórias de ficção científica

publicadas nas pulp magazines em um novo gênero literário foi bastante perceptível, até

mesmo no que diz respeito às questões abordadas no enredo: o pano de fundo das

histórias são as máquinas, mas o ponto principal do enredo, sua essência, é o homem

(WESTFAHL, 1998, p. 182).

A Era de Ouro perduraria até 1955 e, apesar do curto período de duração, tem

dialogado com a literatura e o cinema até os dias de hoje. Além disso, a Era de Ouro

consolidou a carreira de três dos maiores autores de ficção científica de todos os

tempos: o próprio Isaac Asimov, Robert Heinlein e Arthur C. Clarke; eles ficariam

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conhecidos como “the big three” entre leitores e críticos literários. Para que possamos

entender mais a respeito dos autores e dos livros publicados nesse período, é importante

que falemos de forma mais aprofundada sobre a obra e os temas tratados por cada um

desses representantes. Aqui, faremos algumas considerações sobre os escritores A.

Heinlein, Arthur C. Clarke e sobre suas obras. O autor Isaac Asimov será tratado de

forma mais aprofundada e específica no próximo capítulo, devido ao fato de este ser

nosso objeto de estudo nessa pesquisa.

O norte-americano Robert A. Heinlein (1907-1988), ao contrário de seus colegas

escritores contratados pela Astounding Stories, que começaram suas carreiras ainda

muito jovens (Asimov, por exemplo, tinha apenas 19 anos quando seu primeiro texto foi

publicado nessa revista), era uma escritor mais maduro, tinha 30 anos, e por esse motivo

os temas das suas histórias diferem da maioria dos textos publicados pela revista.

Segundo Roberts (2005), a visão de Heinlein sobre a ficção científica era a que mais se

aproximava dos ideais de John W. Campbell.

Pode-se dizer que a literatura de Heinlein teve três fases distintas, conforme

descreve Adam Roberts (2005): na primeira ele publicou aqueles que foram

considerados seus melhores e mais inovadores livros, como The Puppet Masters (Os

Manipuladores, 1951) em que agentes secretos norte-americanos precisam combater um

grupo de alienígenas parasitas, que se alojam nos seres humanos; tal narrativa

influenciou filmes que foram lançados poucos anos depois e que seguiam essa mesma

premissa, como Invasion of the Body Snatchers (Invasores de Corpos, 1956) e a trilogia

Alien (1979-1997). Outra obra importante na primeira fase de produção de Heinlein é

Starship Troopers (Tropas Estelares, 1959), a qual conta a história de um soldado

americano, Johnny, que é obrigado a lutar contra uma tropa de insetos alienígenas, para

tornar-se um cidadão e ter direito ao voto. Todos os homens precisavam completar o

serviço militar. Esta obra se tornou bastante conhecida, tendo sido adaptada para a TV,

para o cinema e para os quadrinhos.

A segunda fase de Heinlein foi a mais carregada de preocupações ideológicas:

um exemplo é a obra Strangers in a Stranger Land - uma releitura do famoso The

Jungle Book (O livro das Selvas, de Rudyard Kipling, 1894) - em que um homem é

criado por marcianos e, posteriormente, volta para conviver com a cultura terrena. Em

sua última fase, Heinlein tornou-se bastante controverso, e passou a ser considerado

demasiadamente “estranho” por alguns críticos literários. O teórico de Ficção Científica

norte-americano, Darko Suvin, chega a definir essa fase como fruto de uma

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“senilidade”, (1988, p. 201). Um exemplo de romance publicado nesse período é Friday

(1982), narrativa sobre uma mulher clonada, que enfrenta preconceito e corre o risco de

ser morta caso os humanos descubram sobre sua natureza artificial – o livro discute o

que nos faz humanos, o que define homem. A crítica que muitos fazem a esse texto,

porém, é que ele é desconexo e privado de um enredo coerente.

Heinlein foi mais lido em sua época do que o é nos dias de hoje e muitos leitores

afirmam que suas histórias não apresentam quaisquer novidades possíveis de chamar a

atenção de um leitor moderno, pois os temas estariam ultrapassados e seriam um tanto

ingênuos. Uma pesquisa mais aprofundada sobre os apreciadores de seus textos, porém,

revela leitores aficionados, que consideram Heinlein o autor mais expressivo e autêntico

da Era de Ouro, por abordar questões sociais, políticas culturais e religiosas em suas

obras.

Arthur C. Clarke (1917-2008) nasceu no Reino Unido e passou um longo

período de sua vida (de 1956 até sua morte) no Sri Lanka, por isso, suas vivências e seu

conhecimento de mundo diferenciam-no de outros autores, norte-americanos, desse

período. Apesar de ter se tornado mundialmente mais conhecido por ser autor da obra

2001: Space Odyssey (2011: uma odisseia no espaço, 1968, baseado em outro texto de

Clarke, Expedition to Earth, de 1951), devido à adaptação cinematográfica realizada por

Stanley Kubric, Clarke iniciou sua carreira muito antes, em 1946, quando lançou o

conto “Loophole”, na revista Astounding Stories.

As grandes obras de Clarke são, quase sempre, relacionadas a viagens

interestelares e a seres alienígenas invasores, que desejam destruir a humanidade. No

livro Childhood’s End (O Fim da Infância, 1953), obra bastante aclamada, Clarke narra

o fim da humanidade e do planeta Terra, promovido por crianças guiadas por

alienígenas.

Mesmo sendo reconhecido como um dos autores mais adeptos das inovações

tecnológicas, ele, paradoxalmente, incluía fatores místicos e metafísicos em seus textos.

Por outro lado, guiado pelas instruções de John W. Campbell, os heróis de suas histórias

demonstram que o homem é capaz de conquistar tudo o que se propõe a buscar e a

fazer, demonstrando um olhar antropocêntrico e racionalista.

Por um bom tempo, Clarke e Asimov disputaram o título de quem seria o melhor

autor desse período. Ambos se engajaram na disputa e acabaram, por fim, aceitando que

Clarke fora o melhor na ficção científica e Asimov o melhor autor científico, isto é,

Clarke teria se destacado nas características literárias de seus livros, enquanto Asimov

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foi mais preciso ao incluir nos textos os aspectos científicos necessários para uma boa

literatura de Ficção Científica. Clarke, por sua vez, é visto, até hoje, como um dos

principais autores da literatura de ficção científica pós Segunda Guerra Mundial,

apresentando, quase sempre, uma visão otimista com relação à tecnologia.

Certamente diversos outros autores também produziram obras importantes ao

longo da Era de Ouro, porém, os três citados aqui são os que merecem destaque e são

reconhecidos pelos críticos como os mais significativos para a época em questão,

trazendo influências nos filmes e na literatura produzida atualmente. Desse modo, seus

textos traduzem de forma clara as características dessa geração e o que elas trouxeram

para o crescimento e o desenvolvimento da ficção científica como a conhecemos.

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2. OS ROBÔS, OS SERES ARTIFICIAIS E O HOMEM 2.1 ISAAC ASIMOV

Isaac Asimov nasceu no ano de 1920, na antiga URSS, mas seus pais

emigraram para os Estados Unidos, em 1923. Antes de se tornar um autor consagrado,

Asimov formou-se como bioquímico e passou a trabalhar na U.S. Navy Yard, na

Filadélfia, em 1946. Porém, desde 1929 ele já se interessava pela leitura de textos de

Ficção Científica, pois havia entrado em contato com a revista pulp Science Wonder

Stories38. Algum tempo depois, Asimov tornou-se leitor de outra publicação, a revista

Astounding Science Fiction, do editor Jonh W. Campbell; decidido a se arriscar no

campo literário, em 1938, ele finalizou a escrita de uma pequena história, chamada

“Cosmic Corkscrew” e a enviou a Campbell. Rejeitado pelo editor, Asimov partiu para

uma segunda tentativa, criando outro texto em dezoito dias, que dessa vez levava o

nome de “Stowaway”. O editor voltaria a recusar o conto de Asimov, mas enviou-lhe

cartas de encorajamento, para que o garoto, então com 19 anos, não desistisse de suas

publicações. Então, em março de 1939, o terceiro conto escrito pelo autor, “Marooned

off Vesta” seria publicado na revista Amazing Stories, que era na ocasião editada por

Raymond A. Palmer. Três meses depois, em julho de 1939, o autor conseguiria,

finalmente, lançar um de seus textos, o conto “Trend”, na revista de John A. Campbell.

Segundo o biógrafo James Gunn (2005), Asimov era extremamente racionalista

e buscava uma explicação lógica para tudo em sua vida. Além disso, ele mesmo se

denominava claustrofílico – tinha preferência por permanecer em locais que fossem

pequenos, apertados e sem janelas – e agorafóbico. Gunn afirma que as neuroses

sofridas pelo autor estão bastante ligadas ao tipo de profissão escolhido por Asimov e,

acima de tudo, ao tipo de texto adotado por ele:

A more general mystery than the origin of Asimov’s traits and neuroses is why certain young people turn to reading, and sometimes writing, science fiction. Asimov is a case study. When he began reading science fiction, the number of readers was small […] but intensely involved. Most had turned to science fiction out of some kind of youthful frustration with their lives. A profile of new readers would reveal them to be mostly boys; mostly brighter than their

38 Revista de ficção científica lançada pelo editor Hugo Gernsback.

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schoolmates; mostly social misfits because of personality, appearance, lack of social graces, or inability to find intellectual companionship […] Science fiction was a kind of literature of the outcast that praised the intellectual aspects of life that its readers enjoyed and in which they excelled, and a literature that offered more hope for the future than the present.39 (p. 14)

Asimov era um típico exemplar do jovem descrito por James Gunn. Desde

criança, passava horas de seu dia sozinho, lendo livros ou revistas, enquanto seu pai se

dedicava ao cuidado da loja de doces da família e a mãe se esforçava para satisfazer as

exigências do pai, ajudando na loja, e cuidando dos outros dois filhos menores. No final

da adolescência, passou a enviar cartas aos editores das revistas de ficção científica,

principalmente a John W. Campbell, fazendo comentários e dando sugestões e começou

a frequentar um fã clube do gênero, onde um grupo de garotos se encontrava para

discutir sobre o assunto e para escrever fanzines40.

When those kinds of persons discover others like themselves, fan clubs spring up, sometimes [...] conventions are organized, and writing science fiction becomes a virtually universal ambition. When those kinds of persons begin to write, they write science fiction.41 (GUNN, 2005, p. 14)

A afirmação de James Gunn parece ser quase tão racional quanto o próprio Isaac

Asimov se dizia ser, pois busca na vida do autor a explicação para suas habilidades; mas

o fato é que as biografias de muitos autores do gênero são bastante similares entre si,

conforme se observa na descrição abaixo:

There are certain curious resemblances between the characters and careers of Asimov and H. G. Wells, who is often called the father of

39 Um mistério maior do que a origem das características e das neuroses de Asimov é o motivo pelo qual alguns jovens escolhiam ler, e as vezes escrever, ficção científica. Asimov é um caso a ser estudado. Quando ele começou a ler ficção científica, o número de leitores era pequeno, mas eles eram intensamente dedicados. Muitos haviam se voltado para a ficção científica devido a uma frustração juvenil com suas vidas. O perfil dos novos leitores revelaria que eles eram em sua maioria meninos; a maioria mais inteligente do que seus colegas; geralmente não se encaixavam socialmente, devido à personalidade, aparência, falta de modos ou incapacidade de encontrar companhia intelectualmente compatível [...] A ficção científica era um tipo de literatura dos excluídos que valorizava as questões intelectuais da vida, o que divertia seus leitores, pois eles eram excelentes nisso, assim como era uma literatura que oferecia mais esperança para o futuro do que para o presente. 40 Um fanzine é uma revista produzida por fãs, geralmente amadores, de algum gênero. Muitos autores, porém, começaram suas carreiras com a escrita de fanzines – alguns fanzines também acabaram por se tornar publicações importantes e reconhecidas. 41 Quando essas pessoas descobrem outras que se parecem com elas, surgem fã-clubes, as vezes [...] convenções são organizadas, e escrever ficção científica se torna uma ambição virtualmente universal. Quando essas pessoas começam a escrever, elas escrevem ficção científica. (tradução nossa)

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modern science fiction. Both spent their early lives in unsuccessful shops, were precocious students, quick to learn with good memories [...] Both were selective in what they liked, Wells with biology and evolution, Asimov with chemistry, and both were fond of history [...]42 (GUNN, 2005, p. 14)

Desde suas primeiras publicações, Asimov tornou-se muito próximo de John W.

Campbell e tinha o hábito de escrever suas histórias baseadas em temas propostos pelo

editor. Pode-se dizer que as narrativas do autor são formadas por uma mistura de suas

preferências com a metodologia de John W. Campbell como pano de fundo, conforme

afirmou o próprio Asimov, em entrevista:

And I remember everything he said and how he thought and I did my best – because I desperately wanted to sell stories to him – to incorporate his method of thinking into my stories, which, of course, also had my method of thinking, with the result that somehow I caught the Campbell flavor. (ASIMOV, apud GUNN, 2005, p. 16)

Assim, vale dizer que a ficção científica norte-americana moderna, formada

entre meados de 1920 e o início de 1950, foi estruturada a partir das revistas pulp

escritas nesse período e das escolhas e preferências dos editores. Até mesmo alguns

autores contemporâneos, que se dizem avessos a estas publicações, demonstram grande

influência dos conceitos e preceitos criados pelas revistas.

No que concerne à obra de Asimov, as narrativas elaboradas a partir da

combinação Asimov-Campbell são aquelas baseadas em um problema central que

necessita de solução, e essas soluções são sempre bastante racionais, baseadas em leis

físicas. Podemos perceber esse estilo narrativo de forma bastante clara na série robôs,

pois todos os contos presentes nessa coletânea seguem a mesma temática: os robôs são

programados de acordo com as leis da robótica e, portanto, não existe possibilidade de

haver falhas em seu funcionamento; porém, essas falhas sempre ocorrem e os

personagens centrais precisam descobrir a origem do problema para solucioná-lo.

Além das obras ficcionais, Asimov foi também autor de uma vasta coleção de

livros científicos, não ficcionais; nesses escritos, o autor demonstrava uma grande

42 Há certas semelhanças curiosas entre as personalidades e carreiras de Asimov e H. G. Wells, que é comumente chamado de pai da ficção científica moderna. Ambos passaram sua juventude em lojas mal sucedidas, foram alunos precoces, aprendizes rápidos e de boa memória [...] Ambos eram seletivos quanto a seus gostos, Wells com a biologia e a evolução, Asimov com a química e ambos eram apaixonados por história [...] (tradução nossa)

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preocupação com o futuro da humanidade e do planeta, evidenciando a necessidade de

controlar a poluição, impedir as guerras e diminuir o crescimento populacional. É

interessante observar que esse tipo de preocupação não aparece na obra ficcional, que

são, em sua maioria, bastante otimistas com relação ao futuro - é como se, na ficção,

ele quisesse mostrar que todos os problemas poderiam ser controlados pelo homem.

Por suas publicações na literatura não ficcional, Asimov foi reconhecido e

congratulado por cientistas, como o Professor George G. Simpson, de Harvard. Por suas

obras de Ficção Científica, foi considerado como um Grande Mestre pela World Science

Fiction Conventions, recebendo diversos prêmios Hugos43 e Nebulas44.

Até o final de sua vida, Isaac Asimov publicaria mais de 450 livros, incluindo

antologias editadas por ele (The Hugo Winners, Isaac Asimov Presents the Best Science

Fiction Firsts), obras de literatura crítica (Asimov’s Guide to Shakespeare, The

Annotated Don Juan, The Annotated Paradise Lost, The Annotated Guliver’s Travels),

obras de estudos científicos (Why are whales vanishing?, The measure of the Universe,

Great ideas of science), obras de estudos matemáticos (Quick and Easy Math, History

of Mathematics), obras de astronomia (Mars, To the Ends of the Universe, Comets and

Meteors), livros de química e bioquímica (The Genetic code, The noble gases,

Photosynthesis), estudos sobre história (The Roman Republic, The shaping of France),

estudos bíblicos (Words in Genesis, Asimov’s Guide to the Bible), entre diversos outros

temas.

Desse modo, não há como considerar que Isaac Asimov tenha sido um escritor

como qualquer outro e que seus textos de ficção científica tenham sido baseados em

breves leituras amadoras a respeito da física, da matemática, da biologia ou de outros

campos do conhecimento. Ele era um especialista na maioria das coisas sobre as quais

se propunha a escrever e possuía conhecimento, imaginação e criatividade para fazê-lo.

Asimov talvez tenha sido o escritor mais produtivo e mais flexível de todos os tempos,

chegando até mesmo a afirmar que escrevia pelo mesmo motivo que respirava: pois se

não o fizesse, morreria.

43 O Prêmio Hugo, criado em homenagem ao editor Hugo Gernsback, é oferecido anualmente – desde 1953 - na World Science Fiction Convention, aos melhores escritores de fantasia e ficção, que publicaram no ano anterior. 44 O Prêmio Nebula é oferecido, desde 1965, pelo Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA) às melhores obras de ficção científica e fantasia publicadas nos dois anos anteriores, nos Estados Unidos.

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Além disso, o autor cunhou e popularizou diversos termos e conceitos

científicos: alguns estudiosos da robótica, nos dias atuais, fazem trabalhos sobre as leis

da robótica descritas por Asimov e tentam aplicá-las nas pesquisas sobre engenharia

robótica e engenharia da computação. Asimov se mostrava tão a frente de seu tempo

que foi capaz de descrever certas facilidades tecnológicas em seus livros e em suas

entrevistas que só se tornariam realidade décadas mais tarde: ele demonstrava que

teríamos computadores em nossos lares, além de ter previsto os aparelhos eletrônicos

sem fio, a comunicação por aparelhos que captariam sinais de satélites (celulares), os

aparelhos de TV em três dimensões, entre outros.

Sendo assim, podemos considerar que o estudo da obra de Asimov é uma

maneira de pensarmos a relação do homem com a tecnologia, através de uma visão

metafórica, proposta por um gênero literário que é fruto e reflexo de nossos tempos.

2.1.2 I, Robot: origem, importância e influências O livro I, Robot (Eu, Robô) foi publicado por Isaac Asimov no ano de 1950 e

apresenta uma série de nove contos escritos pelo autor ao longo dos anos em revistas de

ficção científica. Na obra, a intenção do autor foi retratar a evolução tecnológica desses

robôs, desde um robô “babá”, incapaz de falar, até uma máquina que dominaria o

mundo e superaria os seres humanos. Além disso, o autor demonstra as diversas falhas

humanas que acontecem durante a fabricação desses seres e a relação do homem diante

do desenvolvimento dos robôs.

Figura 8: Capa do livro I, Robot

Fonte:< http://www.saltmanz.com/pictures/Cover%20Scans/Book%20Covers/I,+Robot.jpg.php> Acesso em 3 de março de 2014

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Um dos últimos textos teóricos que Isaac Asimov escreveu a respeito de suas

histórias de robôs foi a Introdução “The Robot Chronicles”, feita para outra coletânea

de contos sobre seres artificiais, que leva o título de Robot Visions. Nesse texto, Asimov

lista as 16 histórias de robôs escritas por ele mesmo que, em sua opinião, são as mais

significativas. Quase metade dessas histórias – sete, ao todo, fazem parte da obra I,

Robot: “Robbie”, “Runaround”, “Reason”, “Liar!”, “Evidence”, “Little Lost Robot” e

“The Evitable Conflict”.

Apesar de, a princípio, essas narrativas terem sido pensadas de forma

independente, Asimov coloca-as aqui como sequência umas das outras, inserindo uma

narradora para elas; nesse sentido, o livro possui um capítulo introdutório no qual um

repórter da Imprensa Interplanetária vai até a U. S. Robots para entrevistar uma psico-

roboticista, a lendária Susan Calvin. Assim, Susan Calvin narra ao repórter suas

experiências e o testemunho do passo-a-passo para a ocorrida revolução das máquinas.

A obra apresenta, também, uma das maiores criações de Asimov, a chamada

Três Leis da Robótica. Essas leis foram elaboradas como uma espécie de “válvula de

segurança” para garantir a obediência dos robôs aos homens e assegurar a primazia

humana. No prefácio da edição brasileira da obra, o teórico Jorge Luiz Calife explica

que com a concepção das três Leis da Robótica “a ficção científica pôde se libertar de

clichês e mitos que tinham prejudicado a criatividade dos autores durante mais de um

século” (2004, p.10). Assim, o antigo preceito de que os robôs sempre se rebelariam

contra o seu criador, pois não havia nada que os controlasse, cai por terra. Muitos outros

autores e cineastas adotaram essas ideias, surgindo, assim, robôs amigos e

companheiros, como o robô de Lost in Space (1965-1968), que guarda o menino Will

Robinson, e os famosos C3-PO e R2-D2, de Star Wars (1977-2005).

Entretanto, a influência de Asimov na criação dos robôs da série e dos filmes

mencionados acima não está ligada simplesmente ao fato de eles serem mais amigáveis;

vemos nesses personagens muitas outras características que já haviam sido descritas

pelo escritor anos antes de aparecerem nas telas do cinema e da televisão. Voltaremos a

tratar da influência que Asimov exerceu em séries e filmes de Ficção Científica no

capítulo 3 deste trabalho.

Além de suas marcas deixadas na literatura e no cinema, Asimov influenciou,

também, no advento da engenharia robótica: Joseph F. Engelberger, físico e engenheiro

que criou o primeiro robô industrial, o Unimate, em 1958, admitiu, em entrevista, que

seu interesse por robôs nasceu com a leitura da obra I, Robot. O termo robótica, aliás,

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foi cunhado pelo próprio Asimov, em 1942 e, segundo ele, significa “a science or art

involving both artificial intelligence (to reason) and mechanical engineering (to perform

physical acts suggested by reason).”45 (CHANDOR, 1985, apud CLARKE, 1993, p.

55). Asimov reconhecia que a literatura de ficção científica, com seus experimentos

inovadores, podia servir de inspiração para os pesquisadores da vida real:

It is well known that the early rocket-experimenters were strongly influenced by the scientific stories of H. G. Wells. In the same way, early robot-experimenters were strongly influenced by my robot stories, nine of which were collected in 1950 to make up a book called I, Robot.46 (ASIMOV, 1990a, p. 9)

Asimov acreditava que leis propostas por ele iriam, necessariamente, ser

incorporadas aos robôs, conforme o desenvolvimento da tecnologia robótica

progredisse: “[...] robots may confidently be expected to grow more versatile and

capable and the Three Laws, or their equivalent, will surely be built in to their

programming eventually.”47 (1990e, p. 10). Até os dias de hoje as leis da robótica ainda

não foram aplicadas, literalmente; porém, é possível encontrarmos estudos recentes que

sugerem a real aplicação das leis da robótica à tecnologia: para citar apenas dois

exemplos, o australiano Roger Clarke, da Australian National University, escreveu, em

1993 três artigos que tratam da utilização das leis na Tecnologia de Informação,

Asimov`s Laws of Robotics: implications for Information Technology e o Engenheiro

em Ciências da Computação, Dror G. Feitelson publicou, em 2007, na revista da IEEE

Computer Society 48 um artigo intitulado Asimov’s Laws of Robotic applied to software.

Feitelson reformula as leis da robótica para torná-las apropriadas a softwares, como

editores de textos. No artigo, podemos observar de que modo o autor considera as leis

de Asimov, pensando nas necessidades das tecnologias atuais:

45 “Uma ciência ou arte que envolve tanto a Inteligência artificial (razão) e a Engenharia Mecânica (para possibilitar ações sugeridas pela razão)”(tradução nossa). 46 Sabe-se bem que os primeiros experimentos com foguetes foram fortemente influenciados pelas histórias científicas de H. G. Wells. Do mesmo modo, os primeiros experimentos com robôs foram fortemente influenciados por minhas histórias de robôs, nove, das quais, foram reunidas em 1950 para compor um livro chamado Eu, robô. (tradução nossa) 47 [...] pode-se, sem dúvidas, esperar que os robôs se tornem mais versáteis e capazes e que as Três Leis, ou algo equivalente, seja, por fim, certamente inserido em sua programação. (tradução nossa) 48 A IEEE Computer Society é a organização líder mundialmente em membros ligados à área da computação, como professores, pesquisadores, engenheiros de software, profissionais de TI e estudantes. (Fonte: < http://www.computer.org/portal/web/about> acesso em 12 de set. de 2013, tradução nossa)

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The most important aspect of human computer use isn’t the execution of programs, but what those programs do. For example, when I use a text editor to write this column, the specific instance of a process running the text editor is much less important than the text I type in. On the basis of such considerations, we can reformulate the First Law as: 1. Software may not harm a human’s work products or, through inaction, allow the products of human work to come to harm. [...] A wider interpretation of the First Law is that not only user data but also the user experience should be protected. […] The application of the Second Law to software is quite straightforward: 2. Software must obey orders given it by its users. In other words, it should function according to its specs. But given that formal specs are of no interest to users, a broader interpretation of the Second Law is that software should be easy and intuitive to use […] Moreover, software systems should have reasonable defaults and behave as would be expected even if these expectations are not made explicit. For example, when you type text, you expect it to appear as you typed it […] The software-oriented version of the Third Law is also quite straightforward: 3. Software must protect its own existence. In other words, the software should be stable and shouldn’t crash. […] At a deeper level, protecting itself means that software should also be robust against intended attacks. […] It’s time for software developers to be more accountable for their products and to remember that their software is there to serve its users— just like Asimov’s robots.49

49O aspecto mais importante do uso humano do computador não é a execução de programas, mas sim o que esses programas fazem. Por exemplo, quando utilizo um editor de textos para escrever essa coluna o processo de execução específico daquele editor é muito menos importante do que o texto que estou digitando nele. Com base nessas considerações, podemos reformular a Primeira Lei da seguinte forma: 1. Um software não pode prejudicar o produto de um trabalho humano ou, por inação, permitir que o produto do trabalho humano seja prejudicado. […]Uma interpretação mais ampla da Primeira Lei é de que não apenas os dados do usuário, mas também sua experiência deve ser protegida. […]A aplicação da Segunda Lei ao software é bastante direta: 2. Um software deve obedecer às ordens dadas pelos seus usuários. Em outras palavras, ele deve funcionar de acordo com suas especificidades. Mas, caso essas especificidades formais não sejam de interesse dos usuários, uma interpretação mais ampla da Segunda Lei é de que o software deve ser fácil e intuitivo para ser usado […] Além disso, sistemas de software devem ter falhas moderadas e funcionar de acordo com o esperado, mesmo que essa expectativa não seja explícita. Por exemplo, quando se digita um texto, espera-se que ele apareça na tela […] Em outras palavras, o software deve ser estável e não deve entrar em pane. […] De forma mais ampla, “proteger-se” significa que o software deve ser resistente contra ataques maliciosos. […] Já está na hora

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(2007, p. 111-112, grifo do autor)

Como se vê, o fato de Isaac Asimov ter sido um homem dedicado, também, aos

estudos científicos, permitiu que ele pensasse conceitos - traduzidos em leis, em sua

obra literária - que se tornariam plausíveis e aplicáveis no mundo real. As três leis da

robótica mostravam a crença do autor nos benefícios que a tecnologia haveria de trazer

ao homem. No ensaio The Laws of Robotics (1990e) a polêmica hipótese levantada por

Asimov é a de que, se um dia o computador superar a inteligência humana, os

dispositivos de manutenção de segurança desses seres artificiais poderão ser abolidos e

tais criaturas ficarão responsáveis por zelar pelo nosso bem estar e segurança. Para ele,

ao analisarmos a história da humanidade, encontramos evidências de nossa natureza

destrutiva e, por isso, os robôs poderiam funcionar como seres preceptores: instruindo-

nos a progredir e a aprendermos a cuidar de nós mesmos. Essa teoria se reflete de forma

expressiva em seus contos, conforme observaremos nas análises que serão realizadas

nesse capítulo.

2.1.3 A tecnologia, o medo e as leis da robótica

As três leis imaginadas por Asimov foram listadas de forma explícita em março

de 1942, no conto “Runaround”, publicado na revista Astounding Science Fiction. No

conto, as leis se tornam conhecidas por meio de um diálogo entre os personagens

Gregory Powell e Michael Donavan: “Now look, let’s start with the Three Fundamental

Rules of Robotics – the three rules that are built most deeply into a robot’s positronic

brain”50. (ASIMOV, 1990c, p. 32), em seguida, Powell relembra seu colega das leis,

proferindo-as da seguinte forma:

First Law: A robot may not injure a human being or, through inaction, allow a human

being to come to harm.

Second Law: A robot must obey the orders given to it by human beings, except where

such orders would conflict with the First Law.

de os desenvolvedores de softwares serem mais responsáveis por seus produtos e de lembrarem que os softwares existem para servir seus usuários – assim como os robôs de Asimov. (tradução nossa) 50 - Agora olhe, vamos começar com as três leis fundamentais da robótica; as três leis que estão gravadas mais profundamente no cérebro positrônico de um robô. (ASIMOV, 2004a, p. 68-69)

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51

Third Law: A robot must protect its own existence as long as such protection does not

conflict with the First or Second Law.51

Para o autor, a importância das leis em sua narrativa também se divide em três

partes fundamentais na composição de sua obra, além de terem sido um dos grandes

motivos de ele ter se tornado um escritor famoso. Os três aspectos importantes das leis

são explicados por Asimov da seguinte forma:

a) They guided me in forming my plots and made it possible to write many short stories, as well as several novels, based on robots. In these, I constantly studied the consequences of the Three Laws. b) It was by all odds my most famous literary invention, quoted in season and out by others. If all I have written is someday forgotten, the Three Laws of Robotics will surely be the last to go. c) The passage in ‘Runaround’[...] happens to be the very first time the word ‘robotics’ was used in print in the English language. I am therefore credit [...] with the invention of that word (as well as of ‘robotic’, ‘positronic’, and ‘psychohistory’) by the Oxford English Dictionary, which takes the trouble – and the space – to quote the Three Laws [...]52 (1990a, p. 11-12)

Quando Asimov escreveu suas obras, havia um medo generalizado de que os

computadores poderiam desenvolver-se a ponto de superarem a inteligência humana e,

assim, serem capazes de nos dominar e de nos exterminar. Ademais, a própria aparência

quase humana dos robôs poderia dar a eles a ideia de serem semelhantes aos homens e,

por isso, causarem uma rebelião.

51Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir que um ser humano seja ferido. Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei. Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Lei. (ASIMOV, 2004a, p. 9) 52a) Elas me guiaram para formar meus enredos e possibilitaram a escrita de muitos contos e de muitos romances baseados em robôs. Nestes, estudei constantemente as consequências das Três Leis. b) Essa foi, inquestionavelmente, minha invenção literária mais famosa, citada oportuna e inoportunamente por outros. Se tudo o que escrevi for algum dia esquecido, as Três Leis da Robótica irão, certamente, ser as últimas a desaparecer. c) A passagem em “Runaround” [...] é a primeira vez que a palavra “robótica” foi usada de forma impressa na língua inglesa. A mim é dado, portanto, o crédito [...] pela invenção dessa palavra (assim como de “robótico”, “positrônico” e “psicohistória”), pelo dicionário de inglês Oxford, que se dá o trabalho – e espaço – de citar as Três Leis [...]

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52

From the start [...] the machine has faced mankind with a double aspect. As long as it is completely under human control, […] it is useful and good and makes a better life for people. However, it is the experience of mankind […] that technology is a cumulative thing, that machines are invariably improved, and that the improvement is always in the direction of etherealization, always in the direction of less human control and more auto-control […]53 (ASIMOV, 1990b, p. 435)

Para Asimov, porém, o medo é um sentimento inerente a qualquer processo de

desenvolvimento tecnológico e por essa razão a tecnologia possui sempre um caráter

dúbio. O temor presente na imaginação humana seria de que o computador - uma

máquina - se tornasse uma ameaça à integridade humana. Nas décadas de 1920 e 1930,

esse temor perante os seres artificiais foi retratado de forma incessante nas obras de

ficção científica publicadas. Isaac Asimov afirma ter se aborrecido com as histórias que

traziam mensagens alarmantes quanto ao abuso e aos perigos da indústria mecânica que

fizeram parte de suas leituras de juventude. Por conseguinte, em 1939, quando o autor

iniciou a série de histórias dedicadas aos robôs, decidiu que, como qualquer outra

ferramenta inventada pelo homem, estes seres também necessitariam de algum tipo de

dispositivo de segurança. Em The Laws of Robotics (1990d) Asimov diz que não se

considera o descobridor ou inventor das Leis da Robótica, pois, de acordo com suas

palavras, a humanidade se utiliza de leis similares desde o início dos tempos. Para

exemplificar, ele explica que as leis da robótica poderiam ser chamadas de “leis das

ferramentas”:

[...] Just think of them as the “Three Laws of Tools,” and this is the way they would read: 1. A tool must be safe to use. (Obviously! Knives have handles and swords have hilts. […] 2. A tool must perform its function, provided it does so safely. 3. A tool must remain intact during use unless its destruction is required for safety or unless its destruction is part of its function. Compare the Three Laws of Tools, then, with the Three Laws of Robotics, law by law, and you will see that they correspond exactly.

53Desde o início a máquina tem sido encarada pela humanidade de forma dúbia. Desde que esteja completamente sob o controle humano, ela é útil e benéfica e torna a vida das pessoas melhor. No entanto, a humanidade tem como experiência o fato de que a tecnologia é algo cumulativo, que as máquinas são aperfeiçoadas invariavelmente e que as melhorias sempre levam a uma eterealização, tornando as máquinas menos controláveis pelos homens e mais auto-suficientes. (tradução nossa)

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53

And why not, since the robot or, if you will, the computer, is a human tool?54 (ASIMOV, 1990e, p. 425)

Porém, os produtos, as ferramentas, os computadores elaborados e produzidos

pelos homens estão sujeitos a falhas nesse sistema de segurança: automóveis podem ter

falhas mecânicas e causarem acidentes, sistemas operacionais podem ter falhas e serem

invadidos. As falhas operacionais, porém, são causadas por seus criadores e, logo, não

podemos colocar a culpa em seres providos de inteligência artificial.

As Três Leis da Robótica, portanto, são ponto-chaves ao longo de toda a obra I,

Robot e, como veremos nas análises, os conflitos são construídos ao redor delas e por

meio delas. Ao longo do estudo proposto, faremos um breve resumo comentado a

respeito de cada conto analisado, indicando o contexto de produção das narrativas.

2.2 Os contos de I, Robot

Publicado no ano de 1950, o livro I, Robot é composto de dez contos, sendo o

primeiro uma introdução e os outros nove contos recolhidos de publicações nas revistas

Super Science Stories e Astounding Science Fiction, entre 1940 e 1950. Os contos que

fazem parte da coletânea são: “Robbie” (1940), “Runaround” (1942), “Reason” (1941),

“Catch that Rabbit” (1944), “Liar!” (1941), “Little Lost Robot” (1947), “Escape”

(1945), “Evidence” (1946) e “The Evitable Conflict” (1950). Como se vê, os contos não

foram organizados no livro na ordem cronológica em que foram lançados pela primeira

vez nas revistas; o que Asimov fez foi escolher uma disposição que mostrasse robôs dos

menos aos mais evoluídos.

A dedicatória encontrada nas primeiras páginas da obra faz uma homenagem a

John W. Campbell, editor que, segundo Asimov, “apadrinhou” seus robôs – além de

publicar os contos de Asimov, Campbell o teria auxiliado na criação de alguns enredos.

54[...] Apenas pense nelas como “As Três Leis das Ferramentas” e veja como elas ficariam: 1. Uma ferramenta deve ser segura em sua utilização. (Obviamente! Facas possuem cabos e espadas têm punhos. [...] 2. Uma ferramenta deve desempenhar sua função, considerando-se que ela o faça de forma segura. 3. Uma ferramenta deve permanecer intacta durante seu uso, ao menos que sua destruição faça parte de sua função. Compare as Três Leis das Ferramentas, então, com as Três Leis da Robótica, lei por lei, e você verá que elas correspondem exatamente. E por que não, já que o robô ou, se você preferir, o computador, é uma ferramenta humana? (tradução nossa)

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54

Uma das personagens mais recorrentes da série robôs, de Asimov, é Susan

Calvin – há, no total, onze contos em que ela é a personagem central - uma

robopsicóloga da U. S. Robots and Mechanical Men, Inc. O primeiro conto em que

Susan Calvin apareceu foi “Liar!” e, em I, Robot, Asimov apresenta uma pequena

biografia dessa personagem no capítulo introdutório: nascida em 1982, formou-se na

Universidade de Colúmbia, em 2003, na área da cibernética e adquiriu o título de

doutora, em 2008, tornando-se a primeira profissional a exercer a carreira de

“Psicoroboticista”. Além disso, Calvin é descrita como uma mulher “inexpressiva” e

retraída, praticamente desprovida de emoções, sendo considerada mais fria do que os

próprios robôs: “Well, I’ve been called a robot myself. Surely, they’ve told you I’m not

human.” 55 (ASIMOV, 2004b, p. 3)

Nessa introdução, encontramos Susan Calvin com 75 anos, aposentada, sendo

entrevistada por um repórter do jornal The Interplanetary Press. Segundo o jovem

jornalista, seu interesse é divulgar para o mundo tudo o que Calvin tem a dizer sobre os

robôs, durante seus cinquenta anos de trabalho com a robótica e após ter presenciado a

evolução desses seres.

Os contos tornam-se, assim, relatos de experiências vivenciadas ou ouvidas por

Susan Calvin, ao longo de seus anos de trabalho como psicoroboticista. As histórias

narradas, portanto, serão consideradas, na obra, de acordo com seu ponto de vista.

Outros dois personagens importantes são Gregory Powell e Mike Donavan, dois

engenheiros responsáveis por testar novos robôs em campo e que se deparam

constantemente com problemas causados pelas Três Leis – evidenciando como, na

prática, essas leis se tornam contraditórias. Em I, Robot, Powell e Donavan fazem parte

de quatro contos: “Runaround”, “Reason”, “Catch that Rabbit” e “Escape”.

Para fins de análise, selecionamos três dos nove contos que compõem o livro I,

Robot: “Robbie”, “Reason” e “Evidence”. “Robbie” foi o primeiro conto com o tema

“robôs”, escrito por Asimov e mostra as ideias do autor a respeito da influência desses

seres no relacionamento familiar e na vida cotidiana; o terceiro conto, “Reason”, mostra

o início do ganho de consciência pelos robôs, que passam a questionar sua própria

existência e a reconhecer sua superioridade perante os homens; na narrativa final,

“Evidence”, o personagem principal é um robô humanoide, que consegue enganar a

todos a respeito de sua verdadeira natureza e concorrer a um cargo político.

55 Bem, eu mesma já fui chamada de robô. Certamente eles lhe disseram que não sou humana. (Tradução nossa)

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55

2.2.1 “Robbie”

‘I heard about it later, and when they called us blasphemers and demon-creators, I always thought of him. Robbie was a non-vocal robot. He couldn’t speak. He was made and sold in 1996. Those were the days before extreme specialization, so he was sold as a nursemaid.’ ‘As a what?’ ‘As a nursemaid.’56 (ASIMOV, 2004b, p. 4)

O fragmento acima foi retirado das linhas finais do capítulo introdutório de I,

Robot e mostra um diálogo entre Susan Calvin e o repórter do jornal The Interplanetery

Press. Através dele, ficamos sabendo a respeito do que os humanos pensam dos

Engenheiros Robóticos da U. S. Robots e sobre os seres artificiais criados por eles,

chamando-os de “blasfemadores” e de “criadores de demônios”. Além disso, a

passagem diz o ano em que se passa a primeira história de robôs pensada por Asimov:

1996, data em que, segundo Calvin, tais seres mecânicos ainda não eram “extremamente

especializados”. O que se entende, porém, é que o robô Robbie foi o primeiro a

demonstrar algo diferente de todas outras criaturas construídas anteriormente a ele e,

por isso, este é o conto de abertura do livro.

O conto “Robbie” foi publicado pela primeira vez em setembro de 1940, na

revista Super Science Stories, com o título “Strange Playfellow” (“Estranho

companheiro de brincadeira”). A revista Super Science Stories iniciou suas publicações

no ano de 1940 e ficou conhecida por pagar um valor muito baixo aos autores – menos

de 1 centavo de dólar por palavra, e por publicar textos que já haviam sido rejeitados

por outras revistas maiores. Asimov (1990) afirma que escreveu Robbie entre 10 e 22 de

maio de 1939 e o texto foi rejeitado, na época, tanto por John W. Campbell, de

Astounding Science-Fiction, como pela revista Amazing Stories.

Asimov diz, ainda, que Robbie é um conto bastante significativo, pois é uma das

primeiras demonstrações do funcionamento da Primeira Lei da Robótica:

Aside from being my first robot story, ‘Robbie’ is significant because in it, George Weston says to his wife in defense of a robot that is

56 Ouvi falar dele depois, e , quando nos chamavam de blasfemadores e criadores de demônios, eu sempre pensava nele. Robbie era um robô não-vocal. Ele não podia falar. Foi feito e vendido em 1996. Nos dias antes da especialização extrema, assim foi vendido para servir de babá.. - De quê? -De babá... (ASIMOV, 2004a, p. 21)

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56

fulfilling the role of nursemaid, ‘He just can’t help being faithful and loving and kind. He’s a machine – made so.’ This is the first indication, in my first story, of what eventually became the ‘First Law of Robotics,’ and of the basic fact that robots were made with built-in safety rules. (1990a, p. 10)57

O conto narra a história da garota, Gloria, que passa seus dias brincando e

interagindo com um robô-babá chamado Robbie. Robbie não é um robô muito evoluído,

não possui habilidade de falar, mas se comunica por meio de gestos e ações com a

menina. Sua mãe, porém, fica muito preocupada com o apego que Gloria demonstra

pela máquina e convence o marido de que eles devem devolver o robô para a U.S.

Robots. Desolada com a perda do amigo, a menina torna-se uma criança deprimida e

perde o entusiasmo para realizar qualquer atividade. Diante disso, os pais decidem levar

a garota para visitar a empresa que fabrica estes seres artificiais, buscando mostrar a ela

que os robôs não passam de seres mecânicos. Em meio ao passeio pela fábrica, a

menina encontra seu amigo artificial trabalhando na oficina e corre para abraçá-lo; o

que ela não vê, porém, é que um trator se aproxima, e está prestes a atropelá-la. O único

capaz de salvar a criança é o próprio robô, que, com suas ágeis pernas mecânicas agarra

Gloria e tira-a da frente do trator. A mãe, então, se convence a levar Robbie de volta

para casa.

2.2.1.1 Um estranho companheiro de brincadeiras

O conto se inicia com a imagem de uma garotinha contando até cem, antes de

descobrir os olhos e partir à procura de seu amigo, com quem compartilha uma

brincadeira de esconde-esconde. O ambiente onde a menina está não contém

características que marquem uma sociedade futurística, como é típico das histórias de

ficção científica, como prédios altos, ruas tomadas de carros e poluição; pelo contrário,

ela está apoiada em uma árvore, sob um silêncio profundo, ouvindo apenas o som de

insetos e pássaros. Constrói-se, neste primeiro momento, um ambiente familiar ao

leitor, fazendo com que ele se insira no texto ao perceber, através do olhar da

personagem, o ambiente onde a história se passará.

57 Além de ser minha primeira história de robô, “Robbie” é significativo, porque nela George Weston fala à sua esposa, em defesa de um robô que está cumprindo o papel de babá: “Ele é obrigado a ser fiel, amável e bondoso. Ele é uma máquina – feito dessa forma.” Este é o primeiro indicador, em minha primeira história, do que, mais tarde, se tornaria a “Primeira Lei da Robótica”, e do fato primordial que os robôs foram construídos com regras internas de segurança. (tradução nossa).

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57

A personagem, a menina Glória, passa, então, a se referir a outro personagem

que o leitor ainda desconhece e, a princípio, o texto não dá pistas de que este não seja

um personagem comum. Além disso, Glória fala como se estivesse se referindo a outra

criança com a qual está brincando: “ ‘I bet he went inside the house, and I’ve told him a

million times that that’s not fair’ ”. (ASIMOV, 2004b, p.5)

As expectativas do leitor são quebradas, quando ele se depara com a descrição

do robô Robbie correndo para a árvore, evidenciando os ruídos de seus pés metálicos. A

composição física de Robbie será, conforme observaremos ao longo do capítulo, a única

qualidade que o distinguirá dos seres humanos; o lado emocional, o comportamento e as

atitudes são humanos e, apesar de não ser programado para isso, ele parece demonstrar

afeição por Glória.

A narrativa segue descrevendo a relação entre a menina e o robô, que se dá de

modo curioso: ora Robbie se parece com um adulto que se esforça para se aproximar do

universo infantil durante as brincadeiras, fingindo ser incapaz de correr mais rápido do

que ela, ora ele se parece também criança, ao demonstrar medo de apanhar de sua

amiga:

‘Wait, Robbie! That wasn’t fair, Robbie! You promised you wouldn’t run until I found you.’ Her little feet could make no headway at all against Robbie’s giant strides. Then, within ten feet of the goal, Robbie’s pace slowed suddenly to the merest of crawls, and Gloria, with one final burst of wild speed, dashed pantingly past him to touch the welcome bark of home-tree first. [...]She slapped her hand against Robbie’s torso, “Bad boy! I’ll spank you!” And Robbie cowered, holding his hands over his face so that she had to add, “No, I won’t, Robbie. I won’t spank you. But anyway, it’s my turn to hide now because you’ve got longer legs and you promised not to run till I found you.”58 (ASIMOV, 2004b, p. 5, grifo nosso)

Podemos deduzir que essas atitudes são evidências de que o robô está

aprendendo por imitação daqueles com quem convive, ou seja, com Glória e os pais da

58 - Espere, Robbie, isso não vale! Você prometeu que não ia correr até que eu o achasse. – Seus pezinhos não podiam competir com os passos enormes de Robbie. Então, a três metros do seu objetivo, o passo de Robbie diminuiu subitamente para uma marcha bem lenta e Glória, numa corrida final, o ultrapassou ofegante para tocar a casca da árvore. [...] Bateu com a mão no corpo de Robbie. - Malvado, vai apanhar! E Robbie se encolheu, protegendo o rosto com as mãos até que ela acrescentasse. - Não Robbie, não vou não. Mas, de qualquer maneira, é a minha vez de me esconder, porque você tem pernas mais compridas e prometeu não correr até que eu o encontrasse. (ASIMOV, 2004a, p. 24-25)

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58

menina. Esse aprendizado por imitação fica claro, também, quando Robbie finge que

não consegue correr rapidamente:

Robbie didn’t answer, of course not in words. He pantomimed running instead, inching away until Gloria found herself running after him as he dodged her narrowly, forcing her to veer in helpless circles, little arms outstretched and fanning at the air.

O verbo “pantomime” não é comumente utilizado quando queremos nos referir a

algo que se finge fazer. Este termo era utilizado no século XVI, para descrever a ação

de um ator que utiliza mímica e atua, principalmente, em peças infantis que envolvem

música, piadas e são baseadas em contos de fadas ou contos de ninar.

Etimologicamente, porém, encontramos a origem do termo no latim e no grego

(pantomimus ou pantomimos), sendo que o prefixo panto significa “tudo” e mime

significa imitação. Ou seja, aquele que pratica a pantomima é quem imita tudo.

Na psicologia, muito se estuda sobre o comportamento imitativo em crianças. O

psicólogo e filósofo norte-americano J. M. Baldwin (1861-1934) atribuía a imitação, no

processo de desenvolvimento infantil, à aquisição da inteligência (1990). E, conforme

veremos ao longo da narrativa, é exatamente isso que ocorrerá com Robbie.

Por outro lado, o narrador também não nos deixa esquecer de que, apesar das

atitudes similares às de um homem comum, Robbie é apenas um robô, incapaz de se

comunicar através de palavras e provido de partes metálicas que apenas se parecem com

o corpo humano:

Robbie nodded his head — a small parallelepiped with rounded edges and corners attached to a similar but much larger parallelepiped that served as torso by means of a short, flexible stalk — and obediently faced the tree. A thin, metal film descended over his glowing eyes and from within his body came a steady, resonant ticking.59 (ASIMOV, 2004b, p. 6, grifo nosso)

59 Robbie acenou com a cabeça – um pequeno paralelepípedo, com bordas arredondadas, ligado a outro paralelepípedo semelhante, mas bem maior, que servia de corpo, por um tubo curto e flexível. Obedientemente, ele ficou de frente para a árvore. Uma fina película metálica desceu sobre seus olhos brilhantes e de dentro de seu corpo ouviu-se um tiquetaquear ressonante. (ASIMOV, 2004a, p. 25)

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59

Se nos atentarmos para algumas palavras utilizadas na descrição acima, contudo,

notamos que a fina película de metal cobre seus “glowing eyes”. Segundo crenças

populares antigas, os olhos são capazes de traduzir e expressar o espírito e a mente de

um indivíduo. O fato de os olhos de Robbie brilharem mostra que o robô possui vida

interior. E isso fica ainda mais claro quando o texto diz que de dentro de seu corpo

havia um tique-taque sonoro, som claramente associado à batida do coração.

Nas próximas linhas começamos a perceber que o lado emocional de Robbie é

bastante sensível, quando ele demonstra sua atitude diante de uma acusação injusta feita

por Glória:

‘You peeked!’ she exclaimed, with gross unfairness. ‘Besides I’m tired of playing hide-and-seek. I want a ride.’ But Robbie was hurt at the unjust accusation, so he seated himself carefully and shook his head ponderously from side to side. Gloria changed her tone to one of gentle coaxing immediately, “Come on, Robbie. I didn’t mean it about the peeking. Give me a ride.” Robbie was not to be won over so easily, though. He gazed stubbornly at the sky, and shook his head even more emphatically.60 (2004b, p. 6)

No parágrafo acima, atribuem-se duas características a Robbie, “magoado”

(hurt) e “teimosamente” (stubbornly) que, além de não serem comumente associadas a

uma máquina – fazem parte do universo infantil: dizemos que uma criança é teimosa,

por exemplo, quando deixa de obedecer aos mais velhos. Além disso, Robbie demonstra

orgulho, ao não querer continuar a brincadeira ao ser acusado de trapaça. A

aproximação da mentalidade de Robbie com a de uma criança fica mais evidente

quando, para conseguir aquilo que quer, Gloria utiliza-se de chantagem:

Gloria found it necessary to play her trump card. ‘If you don’t,’ she exclaimed warmly, ‘I won’t tell you any more stories, that’s all. Not one–‘ Robbie gave in immediately and unconditionally before this ultimatum, nodding his head vigorously until the metal of his neck

60 - Você olhou! – ela disse, com muita injustiça. – Além disso eu estou cansada de brincar de esconde-esconde. Quero um passeio. Mas Robbie estava magoado com a acusação injusta e por isso sentou-se com cuidado, sacudindo sua cabeça lentamente de um lado para outro. Glória mudou seu tom de voz imediatamente para uma solicitação gentil. - Vamos Robbie, eu não estava falando sério sobre espiar. Me carregue. Robbie não se dava por vencido tão facilmente. Ele olhou para o céu, teimosamente e sacudiu a cabeça de um modo ainda mais enfático. (ASIMOV, 2004a, p. 25-26)

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hummed. Carefully, he raised the little girl and placed her on his broad, flat shoulders.61 (2004b, p. 6)

Para convencer seu amigo, Gloria diz que deixará de contar histórias a ele, caso

ele não faça o que ela quer. Com isso, percebe-se que Robbie sente prazer em ouvir as

histórias de Glória e isso faz com que ele ceda aos apelos emocionais da menina.

Todavia, o robô também sabe fazer o mesmo jogo e, assim que satisfaz o desejo de

Gloria, carregando-a nas costas e fingindo ser um avião de guerra, exige que ela lhe

conte uma história em retribuição. Há, assim, uma relação de igualdade entre Glória e

Robbie; a menina não considera o robô como um ser artificial, mas um amigo, com

sentimentos, pensamentos e vontades, como ela mesma. Ambos agem, constantemente,

em uma relação de troca de favores, através do apelo emocional.

Em um segundo momento da narrativa, a brincadeira entre Robbie e Gloria é

interrompida pelos gritos da mãe da menina, chamando-a para dentro de casa.

Começamos a observar, assim, que a mãe, a senhora Weston, possui um olhar diferente

da criança para com o robô, não percebe seus sentimentos e o trata como escravo:

“Mamma’s calling me,” said Gloria, not quite happily. “You’d better carry me back to the house, Robbie.” [...]“I’ve shouted myself hoarse, Gloria,” she said, severely. “Where were you?” “I was with Robbie,” quavered Gloria. “I was telling him Cinderella, and I forgot it was dinner- time.” “Well, it’s a pity Robbie forgot, too.” Then, as if that reminded her of the robot’s presence, she whirled upon him. “You may go, Robbie. She doesn’t need you now.” Then, brutally, “And don’t come back till I call you.” [...] The robot left with a disconsolate step and Gloria choked back a sob. 62 (ASIMOV, 2004b, p. 7-8)

61 Glória percebeu que era necessário jogar seu trunfo. - Se não me carregar eu não te conto mais histórias, ponto final. Nenhuma... Robbie cedeu imediatamente e sem condições ante tamanho ultimato. Com cuidado ele ergueu a menina e a colocou em seus ombros. (ASIMOV, 2004a, p. 26) 62 - Mamãe está me chamando – disse Glória, não muito contente. – É melhor me carregar de volta para casa, Robbie. [...] – Eu chamei até ficar rouca, Glória – ela disse. – Onde você estava? - Eu estava com Robbie – balbuciou Glória. – Eu estava contando a história de Cinderela para ele e esqueci a hora do jantar. - Bem, é lamentável que Robbie também tenha esquecido. – Então, como a frase a lembrasse da presença do robô, ela se virou para ele. – Pode ir agora, Robbie. Ela não precisa mais de você. E acrescentou cruelmente. – E não volte até eu chamar. [...] O robô saiu com um passo desolado e Glória sufocou um soluço. (ASIMOV, 2004a, p. 28-29)

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61

A mãe passa a demonstrar uma preocupação excessiva pelo fato de sua filha

passar grande parte do dia apenas com o robô e pede para que o marido se desfaça da

máquina. O texto nos apresenta o Sr. Weston como um pai de família alheio aos

acontecimentos de sua casa; enquanto a mãe observa a mudança de comportamento da

filha, que tem estado cada vez mais isolada de seus outros amigos, desde a chegada do

robô e percebe a inquietação dos vizinhos quanto à presença de um ser artificial em sua

casa, o pai não nota quaisquer diferenças.

A diferença de opinião a respeito de Robbie é explicada de forma sutil no texto.

A Sra. Weston aceitou que o marido adquirisse o robô, pois achou que isso era algo

chique e a tornaria mais popular entre as amigas e os vizinhos. Seu pensamento foi de

que o marido estaria comprando mais um item de luxo para seu lar, como se fosse um

novo eletrodoméstico. When did you decide this? He’s been with Gloria two years now and I haven’t seen you worry till now.” “It was different at first. It was a novelty; it took a load off me, and — and it was a fashionable thing to do. But now I don’t know. The neighbors...63 [...] (ASIMOV, 2004b, p. 9)

O Sr. Weston, por sua vez, se mostra confiante na indústria tecnológica e no

progresso científico, acompanhando as notícias do jornal sobre descobertas da

astronomia e da exploração espacial “he fixed his eye firmly upon the latest reports of

the Lefebre-Yoshida expedition to Mars (this one was to take off from Lunar Base and

might actually succeed)” (ASIMOV, 1990c, p. 8) e afirmando, firmemente, que Robbie

é mais confiável do que os próprios humanos, uma vez que, segundo ele, uma máquina

é programada para cumprir funções pré-determinadas:

Now, look. A robot is infinitely more to be trusted than a human nursemaid. Robbie was constructed for only one purpose really — to be the companion of a little child. His entire ‘mentality’ has been created for the purpose. He just can’t help being faithful and loving and kind. He’s a machine-made so. That’s more than you can say for humans.64 (ASIMOV, 2004b, p. 9)

63 - E quando foi que você chegou a essa conclusão? Ele está com Glória há dois anos e você nunca tinha se preocupado até agora. - No começo era diferente. Era uma novidade, tirou um peso das minhas costas e... era o que estava na moda. Mas agora eu não sei. Os vizinhos... (ASIMOV, 2004a, p. 31) 64 Agora escute. Um robô é muito mais confiável do que uma babá humana. Robbie foi construído para um único propósito: ser o companheiro de uma criança pequena. Toda a sua “mentalidade” foi criada com esse propósito. Ele não pode deixar de ser fiel, amoroso e bom. Ele é uma máquina feita para isso, Não se pode dizer a mesma coisa de seres humanos. (ASIMOV, 2004a, p. 31)

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Em seguida, o pai reforça seu argumento dizendo que Robbie não poderia falhar,

pois possui um mecanismo de segurança. Nesse momento, pela primeira vez, fica claro

que os robôs são comandados por determinadas leis; a princípio, essas leis não são

descritas de forma clara e também não se sabe quantas elas são:

That’s completely ridiculous. We had a long discussion at the time we bought Robbie about the First Law of Robotics. You know that it is impossible for a robot to harm a human being; that long before enough can go wrong to alter that First Law, a robot would be completely inoperable. It’s a mathematical impossibility. Besides I have an engineer from U. S. Robots here twice a year to give the poor gadget a complete overhaul. Why, there’s no more chance of any thing at all going wrong with Robbie than there is of you or I suddenly going loony 65[...] (2004b, p. 9)

Observa-se, portanto, que o Sr. Weston acredita que os robôs são tão confiáveis

quanto os seres humanos, demonstrando um pensamento bastante racional e lógico,

como se algo construído pelo homem não fosse passível de erro ou falhas. A mãe

demonstra uma preocupação ligada ao lado mais emocional, desencadeada, porém, pela

opinião alheia e pela necessidade de manter a aparência de uma família normal.

Portanto, o medo da máquina, da tecnologia e do robô não era apenas um

sentimento demonstrado pela Sra. Weston, mas por toda a sociedade; conforme o texto

narra, a cidade de Nova Iorque estava cada vez mais apreensiva quanto à presença

desses seres entre os humanos e já havia proibido que eles estivessem nas ruas após o

por do sol. Veremos, nos próximos contos do livro, que essa situação se agrava

progressivamente, até que os robôs são banidos da Terra e só podem ser utilizados em

missões espaciais.

Como se viu, anteriormente, esse temor perante a máquina era algo inerente na

literatura de Ficção Científica e os robôs, comumente, voltavam-se contra seus

criadores, contra os cientistas ou contra toda a humanidade - Asimov coloca a mesma

premissa em seu texto, para poder quebrá-la no final.

65 Isso é completamente ridículo. Tivemos uma longa conversa na ocasião em que compramos Robbie a respeito da Primeira Lei da Robótica. Você sabe que é impossível para um robô ferir um ser humano. Bem antes de qualquer defeito ser capaz de alterar a Primeira Lei, o robô ficaria totalmente inoperante. Isso é uma impossibilidade matemática. Além disso, um engenheiro da U. S. Robôs vem aqui, duas vezes por ano, para fazer uma vistoria completa na pobre engenhoca. Não, não há mais chances de alguma coisa dar errado no Robbie do que de você ou eu ficarmos malucos subitamente [...] (ASIMOV, 2004a, p. 31-32)

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Após convencer o marido a devolver Robbie à fábrica, a Sra. Weston tenta, de

todas as formas, fazer com que Glória se esqueça do robô. A mãe não sabe, porém, que

a garota é a primeira a notar que Robbie não é como os outros seres artificiais:

Why do you cry, Gloria? Robbie was only a machine, just a nasty old machine. He wasn’t alive at all.” ‘He was not no machine!” screamed Gloria, fiercely and ungrammatically. “He was a person just like you and me and he was my friend. I want him back. Oh, Mamma, I want him back.’66 (2004b, p. 11)

Enquanto a mãe enxerga a máquina com preconceito e imagina que ela possa

realizar maldades, a criança é capaz de ver além do aspecto exterior e percebe

humanidade em Robbie. A Sra. Weston, por outro lado, é quem realmente fere sua filha,

ao lhe contar mentiras – diz que Robbie foi embora sozinho – e a se negar a trazer a

babá de volta, apesar das súplicas de Glória. A reação da garota não é a de quem teria

perdido uma “máquina”, como quem perde um brinquedo, mas é a de quem está de luto

pela perda de um ente querido.

Os pais da menina a levam, então, para passar um tempo em Nova Iorque,

tentando distraí-la para que ela possa se esquecer de Robbie; ao contrário disso, em uma

visita ao “Museum of Science and Industry”, Glória vai ao encontro do chamado “The

Talking Robot”, para questioná-lo a respeito do paradeiro do amigo. A lógica seguida

por ela é a de que, sendo da mesma espécie, talvez o robô falante soubesse explicar

onde Robbie estaria. Temos uma pista aqui de que a indústria robótica estaria lançando

uma nova geração de suas máquinas: diferentemente de Robbie, agora os robôs já

seriam capazes de falar, como os seres humanos. Porém, diferentemente do modelo

adquirido pela família Weston, - que tem predileções, sentimentos e discernimento de

justiça - “The Talking Robot” não consegue responder questões além daquelas que

estão programadas em seus circuitos.

Acostumada a conversar em tom de igualdade com Robbie, Glória trata o “robô

falante” como um humano, demonstrando respeito e chamando-o de “senhor”. Todavia,

apesar de ser construído com uma nova tecnologia, este último não passou pelo mesmo

66 - Por que está chorando, Glória? Robbie era só uma máquina, uma máquina velha e feia. Ele não estava vivo realmente. - Ele não era uma máquina! – gritou Glória com convicção. – Ele era uma pessoa como eu e você e ele era meu amigo. Eu o quero de volta. Ah, mãe, eu o quero de volta! (ASIMOV, 2004a, p. 36)

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processo de convivência com humanos que Robbie; dessa forma, não foi capaz de se

igualar e adquirir habilidades humanas.

É importante analisarmos o diálogo que ocorre entre Glória e “The Talking

Robot” para, assim, percebermos outras questões que diferenciam Robbie das outras

máquinas: ‘Can you help me, Mr. Robot, sir?’ The Talking Robot was designed to answer questions, and only such questions as it could answer had ever been put to it. It was quite confident of its ability, therefore, ‘I– can– help– you.’ ‘Thank you, Mr. Robot, sir. Have you seen Robbie?” “Who –is Robbie?’ ‘He’s a robot, Mr. Robot, sir.’ She stretched to tiptoes. ‘He’s about so high, Mr. Robot, sir, only higher, and he’s very nice. He’s got a head, you know. I mean you haven’t, but he has, Mr. Robot, sir.’ The Talking Robot had been left behind, ‘A– robot?’ ‘Yes, Mr. Robot, sir. A robot just like you, except he can’t talk, of course, and — looks like a real person.’ ‘A– robot– like– me?’ ‘Yes, Mr. Robot, sir.’ To which the Talking Robot’s only response was an erratic splutter and an occasional incoherent sound. The radical generalization offered it, i.e., its existence, not as a particular object, but as a member of a general group, was too much for it. Loyally, it tried to encompass the concept and half a dozen coils burnt out. Little warning signals were buzzing.67 (ASIMOV, 2004b, p. 15)

A máquina com quem Glória estabelece um diálogo não possui aparência

humana e nem mesmo um nome, como Robbie. Ela apenas responde questões

costumeiras, de acordo com a sua programação. Não se trata de um robô personificado

e, além disso, ele não é capaz de se perceber como uma consciência autônoma, ou 67 Pode me ajudar, senhor robô? O Robô falante fora projetado para responder perguntas e só as perguntas que ele ra capaz de responder tinham sido colocadas para ele. Portanto, ele estava muito confiante em sua habilidades. - Eu...possso...ajudá-la. - Muito obrigada, senhor robô. O senhor viu o Robbie? - Quem...é Robbie? - Ele é um robô, senhor robô. – A menina se ergueu na ponta dos pés. – Ele tem mais ou menos essa altura, senhor, apenas um pouco mais alto e é muito bom. Ele tem uma cabeça, sabe? Quer dizer, o senhor não tem, mas ele tem, senhor robô. O Robô Falante não estava conseguindo acompanhar. - Um robô? - Sim, senhor robô. Um robô como o senhor, exceto que ele não pode falar, é claro e...parece uma pessoa real. - Um...robô...como eu? - Sim, senhor robô. Mas a única resposta do Robô Falante foi um ruído incoerente e um barulho ocasional. A generalização radical que fora-lhe apresentada, ou seja, de que sua existência não era uma coisa particular, mas sim parte de um grupo geral, era demais para ele. Lealmente, ele tentou aprender o conceito e meia dúzia de bobinas se queimaram. Pequenos sinais de aviso estavam soando. (ASIMOV, 2004a, p. 44)

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mesmo, como parte de um grupo em que outros seres, feitos de metal, ferro e circuitos

são semelhantes a ele. Como sabemos, a identidade humana é construída a partir do

outro e do diálogo com o próximo; foi essa a forma que se deu a construção da

identidade de Robbie, por meio da convivência constante com Glória. The Talking

Robot, porém, não passou por esse processo e, ao ser informado de que existiriam

outros como ele, não foi capaz de processar a informação recebida.

Sem conseguir sua resposta, Glória desespera-se, fazendo com que os pais

decidam levá-la à U. S. Robots, para mostrar à criança o processo de construção dos

robôs, ajudando-a a entender que Robbie era apenas de uma máquina. Durante a visita,

um engenheiro robótico revela à família Weston sobre um departamento da empresa,

que está realizando experimentos em que os próprios robôs estariam encarregados da

manufatura de outros novos robôs:

A vicious circle in a way, robots creating more robots. Of course, we are not making a general practice out of it. For one thing, the unions would never let us. But we can turn out a very few robots using robot labor exclusively, merely as a sort of scientific experiment.68 (ASIMOV, 2004b, p. 17)

É nesse departamento que Glória encontra Robbie, um lugar em que, conforme

descreve o texto, há apenas robôs, supervisionados por cinco homens. Nesse

departamento, portanto, Robbie estava encarregado de construir novos seres como ele; a

narrativa não deixa claro, mas podemos inferir que as qualidades peculiares de Robbie,

sua semelhança com os humanos, sua capacidade de raciocínio e sentimentos, foram

transmitidos aos robôs criados por ele, como se Robbie fosse uma mãe que transmitisse

suas características aos filhos. Esse fato só será confirmado com a leitura dos próximos

contos, quando verificaremos os mesmos atributos em outros robôs produzidos pela

empresa.

Apesar de o conto não dizer, quando, no final da história, o robô é responsável

pelo salvamento de Glória, ele o faz na verdade, por obrigação, devido à Primeira Lei

da Robótica: “um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir

68 De certo modo é um círculo vicioso, robôs criando mais robôs. É claro que não vamos fazer disso uma prática generalizada. Os sindicatos, por exemplo, nunca permitiriam. Mas podemos produzir alguns robôs usando o trabalho exclusivo de robôs, meramente como uma espécie de experiência científica. (ASIMOV, 2004a, p. 47)

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que ele se fira”. No entanto, notamos que, mais do que uma obrigação, o robô se sente

feliz e emocionado por ter conseguido resgatar a amiga:

Grace Weston considered. She turned toward Gloria and Robbie and watched them abstractedly for a moment. Gloria had a grip about the robot’s neck that would have asphyxiated any creature but one of metal, and was prattling nonsense in half-hysterical frenzy. Robbie’s chrome-steel arms (capable of bending a bar of steel two inches in diameter into a pretzel) wound about the little girl gently and lovingly, and his eyes glowed a deep, deep red. 69 (ASIMOV, 2004b, p. 18)

O narrador nos lembra, mais uma vez, de que Robbie não é um ser humano, ao

dizer que Gloria o abraçou tanto que teria sufocado qualquer outra criatura que não

fosse feita de metal. Mas, ao mesmo tempo, destaca-se a emoção do robô, dessa vez

expressa pelos olhos: assim como no início do conto, Robbie apresenta um brilho nos

olhos - “his eyes glowed” –, mas ele vai além e consegue demonstrar o quanto se sentiu

emocionado por encontrar sua amiga. Os olhos estavam também “deep, deep red”,

representando as lágrimas nos olhos que um ser humano teria, quando submetido a uma

situação de profunda comoção.

Assim, percebendo-se falha ao cuidar de sua própria filha e observando a

habilidade da máquina em supri-la, a Sra. Weston finalmente aceita que Robbie

permaneça em sua família. Porém, ficamos sabendo através de Susan Calvin que, em

poucos anos, todos os robôs seriam banidos do planeta; o motivo desse banimento é

explicado pelo desenvolvimento dos robôs que teriam tido início a partir de Robbie, um

desenvolvimento emocional que levaria a máquina a se equiparar ao ser humano e,

então, tornar-se uma ameaça à identidade do homem.

2.2.1.2 Robbie, a Cinderela contemporânea

Analisando-se, ainda, a relação entre Robbie e Gloria, voltemos à passagem

inicial do conto em que Robbie pede à amiga que lhe conte uma história. Notamos, em

primeiro lugar, uma inversão de papeis, pois são as crianças que ouvem histórias dos

69 Grace Weston considerou. Ela virou-se para Glória e Robbie e observou-os pensativa por um momento. Glória segurava o pescoço do robô de um modo que teria asfixiado qualquer criatura que não fosse de metal, e estava falando tolices de um modo meio histérico. Os braços de aço cromado de Robbie (capazes de entortar uma barra de ferro de duas polegadas até formar uma rosca) envolviam a menina de um modo suave e amoroso, seus olhos brilhando um vermelho profundo. (ASIMOV, 2004a, p. 45)

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adultos e não o contrário; desse modo, esse fato intensifica ainda mais a infância

emocional do robô.

Como não possui capacidade de falar como uma criança – , o robô indica qual

conto deseja ouvir, utilizando-se de movimentos manuais,

Robbie made a semi-circle in the air with one finger. The little girl protested, “Again? I’ve told you Cinderella a million times. Aren’t you tired of it? – It’s for babies.” Another semi-circle.70 (ASIMOV, 2004b, p. 7)

Descobre-se, então, que a história preferida de Robbie é a de Cinderela:

‘Oh, well,’ Gloria composed herself, ran over the details of the tale in her mind (together with her own elaborations, of which she had several) and began: ‘Are you ready? Well — once upon a time there was a beautiful little girl whose name was Ella. And she had a terribly cruel step-mother and two very ugly and very cruel step-sisters and–‘ Gloria was reaching the very climax of the tale — midnight was striking and everything was changing back to the shabby originals lickety-split, while Robbie listened tensely with burning eyes — when the interruption came. ‘Gloria!’ It was the high-pitched sound of a woman who has been calling not once, but several times; and had the nervous tone of one in whom anxiety was beginning to overcome impatience. ‘Mamma’s calling me,’ said Gloria, not quite happily. ‘You’d better carry me back to the house, Robbie.’71 (ASIMOV, 2004b, p. 7)

O conto de fadas Cinderela foi impresso e publicado pela primeira vez em 1697,

por Charles Perrault, e pelos irmãos Grimm, no século XIX, em uma versão um pouco

70 Robbie fez um semicírculo no ar com um dedo. A garotinha protestou: - De novo? Eu já contei Cinderela para você um milhão de vezes. Ainda não enjoou?... É para criancinhas. Outro semicírculo. (ASIMOV, 2004a, p. 27-28) 71 - Está bem – Glória se aprumou, reviu os detalhes da história em sua mente (junto com seus próprios acréscimos, e ela tinha feito vários acréscimos), depois começou: - Está pronto? Bem, era uma vez uma linda mocinha chamada Ella que tinha uma terrível madrasta e duas irmãs muito malvadas... Glória estava chegando ao clímax da história – a meia-noite se aproximava e tudo estava se transformando de novo nos trapos originais, enquanto Robbie escutava com atenção, os olhos brilhando – quando chegou a interrupção. - Glória! Era a voz aguda de uma mulher que já chamara não apenas uma vez, mas várias vezes; e tinha o tom nervoso de alguém cuja ansiedade estava começando a tomar o lugar de impaciência. - Mamãe está chamando – disse Glória, não muito contente. – É melhor me carregar de volta para casa, Robbie. (ASIMOV, 2004a, p. 28)

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diferenciada: segundo Jack Zipes, no livro The Brothers Grimm: from enchanted forests

to the modern world (2002), a versão de Cinderela escrita pelos irmãos Grimm dá

ênfase ao caráter matriarcal da sociedade retratada (fazendo referência à mãe falecida, à

madrasta má e às meia-irmãs malvadas), ao mesmo tempo que deixa claro a importância

de se treinar uma mulher nos serviços domésticos, ao mostrar as qualidades servis da

personagem: “self-sacrifice, diligence, hard work, silence, humility, patience [...]”72 (p.

196) A robô Robbie possui todas as qualidades descritas, uma vez que passa por cima

de suas vontades para beneficiar Glória e obedecer a Sra. Weston, possui zêlo e cuidado

extremo para com a menina, esforça-se para cumprir suas tarefas, não possui habilidade

de fala e, portanto, não contradiz as ordens que recebe de seus donos, demonstrando,

assim, humildade e paciência: ‘“You may go, Robbie. She doesn’t need you now.”

Then, brutally, “And don’t come back till I call you.”’73 (ASIMOV, 2004b, p.8)

Assim como em Cinderela, o lar dos Westons é matriarcal, pois a mãe é

dominadora e consegue tudo o que quer de um marido submisso, como podemos ver na

passagem em que o Sr. Weston decide por devolver Robbie à fábrica:

Ten times in the ensuing week, he cried, “Robbie stays, and that’s final!” and each time it was weaker and accompanied by a louder and more agonized groan. Came the day at last, when Weston approached his daughter guiltily and suggested a “beautiful” visivox show in the village.74 (ASIMOV, 2004b, p. 10)

As versões de Charles Perrault e dos irmãos Grimm eram as mais populares no

ocidente, até 1950, quando os estúdios Walt Disney Pictures lançaram a versão animada

do conto; desse modo, a história contada por Glória era baseada no texto escrito.

Notamos, assim, que Robbie gosta de ouvir a narrativa de Cinderela, pois

consegue se identificar com a personagem do conto de fadas, com sua situação precária,

com a humilhação e com a obrigação de realizar serviços domésticos, sem ser paga por

isso. Cinderela, porém, é capaz de escapar da condição imposta a ela e atingir,

inesperadamente, um patamar acima daqueles que a rebaixavam, ao se casar com o

72 “auto-sacrifício, diligência, trabalho duro, silêncio, humildade, paciência [...]” (tradução nossa) 73 - Pode ir agora, Robbie. Ela não precisa mais de você. E acrescentou, cruelmente. – E não volte até eu chamar. (ASIMOV, 2004a, p. 29) 74 E dez vezes, na semana seguinte, ele gritou: - Robbie fica! E ponto final! – Mas cada vez a afirmativa saía mais fraca e era acompanhada de um gemido. E afinal chegou o dia em que Weston abordou sua filha, cheio de culpa e sugeriu que fossem assistir a um “belo” espetáculo de visivox no vilarejo. (ASIMOV, 2004a, p. 34)

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príncipe e tornar-se parte da realeza. Robbie queria que a história lhe fosse contada

repetidamente para poder manter a esperança de mudanças em sua vida; assim como,

provavelmente, esperava que sua patroa fosse castigada.

Ao contrário do que se esperaria de um ser provido de inteligência artificial,

Robbie demonstra sentimento de empatia com a personagem dos contos de fadas e

esperança por melhorias em seu futuro. Se o leitor consegue fazer uma aproximação da

história de Cinderela com Robbie logo no início do conto, será capaz de antever o final

bem sucedido para a personagem robô.

Outro elemento que se aproxima do conto de fadas em “Robbie” é o encontro de

Glória com o chamado “The Talking Robot”. É um fator bastante comum nos contos de

fadas que o herói se encontre com um personagem ou descubra um objeto que lhe traga

respostas que o ajudem a finalizar sua busca. De acordo com Vladimir Propp, esse

personagem é um auxiliador mágico: “um dos atributos mais importantes do auxiliar é a

sua sabedoria profética [...].” (2001, p. 46). O elemento mágico, porém, não faz parte da

Ficção Científica e, desse modo, a pequena Glória não consegue obter a resposta que

espera de seu oráculo. Pelo contrário, seu cérebro eletrônico, incapaz de processar a

pergunta, entra em pane e é destruído.

Podemos observar, portanto, que o conto “Robbie” apresenta algumas

características dos contos de fadas, ocorrendo, contudo, uma reatualização

contemporânea de Cinderela, moldada de acordo com as características do gênero da

Ficção Científica, ou seja, a história se passa em uma sociedade futurística, repleta de

inovações tecnológicas, mas sem a interferência de um elemento do mundo sobrenatural

no desenvolvimento do enredo. Desse modo, evidencia-se a aproximação da ficção

científica com o gênero fantástico e também com o conto maravilhoso, conforme

descrito no primeiro capítulo desse estudo.

2.2.1.3 Glória, Robbie e a autoimagem

No livro A psicanálise na Terra do Nunca, Diana e Mário Corso afirmam que

existe uma “tendência infantil de supor vida inteligente, personalidade e intenções em

todas as coisas [...]” (2011, p. 269) As crianças utilizam-se de sua criatividade e

imaginação para criar jogos e brincadeiras a partir de objetos comuns e inanimados,

podendo fingir que uma boneca é um bebê de verdade. Ao brincar, a criança atribui

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significado ao objeto, “Tudo acumula significados, faz parte de alguma cena, alguma

história, algum simbolismo ele sempre conterá” (p. 274)

Uma criança da idade de Glória, com oito anos de idade, geralmente brincaria

com bonecas, as quais são, de acordo com a psicologia, um reflexo da própria menina.

No conto, porém, Glória possui um robô, em vez de uma boneca, e, assim, poderíamos

pensar que este ser é o reflexo da menina; será que para Robbie, Glória também não era

vista da mesma forma? Isso explica o fato de que ambas as personagens apresentam o

mesmo tipo de comportamento ao longo do conto: o gosto por jogos, brincadeiras e

histórias, típicas predileções ligadas ao universo infantil.

Figura 9: Ilustração de Ralph McQuarrie para o conto Robbie Fonte: ASIMOV, Isaac. Robot visions. New York: Penguin, 1994, p. 51

Segundo Corso (2011), resquícios dessa qualidade pueril de atribuir

personalidade e sentimentos aos objetos, permanecem até a vida adulta, quando, por

exemplo “reclamamos com nosso carro se ele estraga [...] [ou] conversamos com uma

planta para incentivá-la a crescer [...]” (p. 269). Que tipo de personalidade e sentimentos

a senhora Weston atribuía a Robbie? Se, para Glória, as qualidades encontradas no robô

são reflexos de suas próprias características, podemos deduzir que a mãe da garota

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estava, portanto, atribuindo àquele ser artificial suas qualidades mais deploráveis. A

mãe temia o que o robô poderia fazer mal para sua filha. Observamos, contudo, que

Glória era negligenciada por seus pais; ficava durante a maior parte do dia sob os

cuidados de Robbie e, assim criou afeição por aquele ser. Seus pais levaram-no para

longe, contaram-lhe mentiras e, ao final, deixaram-na desamparada na U. S. Robots.

Ao salvar Glória do atropelamento, Robbie mostra atitudes superiores e mais

afetivas do que as dos pais de Glória – é uma máquina que, pela convivência humana,

consegue aprender o sentimento da empatia e do cuidado.

2.2.2 “Reason”

“Reason” é o terceiro conto do livro I, Robot, e é antecedido de “Runaround”.

Apenas para que se tenha uma ideia do contexto narrativo em que “Reason” se insere,

trataremos brevemente do tema apresentado na segunda história da coletânea.

Após serem banidos dos lares, os robôs passam a ser utilizados quase que

exclusivamente em missões espaciais, supervisionados por humanos. Em uma viagem

exploratória no planeta Mercúrio, os astronautas Gregory Powell e Mike Donavan

encontram problemas em um robô apelidado de Speedy, uma vez que ele foi para

campo e não retornou à nave. Então, no decorrer da história, Powell e Donavan acabam

descobrindo o motivo da suposta falha mecânica: um conflito entre a segunda e a

terceira lei da robótica; ao mesmo tempo, Speedy percebe que sua missão pode

prejudicar sua estrutura e destruí-lo (o que o faria desistir, devido à Segunda Lei), não

consegue voltar para a nave sem cumprir as ordens dadas a ele (devido à Terceira Lei).

Isso faz com que o robô fique andando em círculos, incessantemente.

Os astronautas conseguem, finalmente, resolver a questão e trazer Speedy de

volta. Mas o que Asimov começa mostrar, aqui, é a fragilidade do sistema de segurança

implantado pelos homens. O robô é um ser incapaz de descumprir as regras

programadas em seu “cérebro positrônico”; porém, por terem sido construídos por seres

humanos, a lógica colocada em sua construção pode falhar.

O conto “Reason” foi escrito em 1941 e, segundo Asimov, a escrita de “Robbie”

não teria feito sentido algum se ele não tivesse lançado “Reason” em seguida: é este

último que dá continuidade ao processo de desenvolvimento sofrido pelos robôs, que

tem início em “Robbie”. Além disso, “Reason” foi o primeiro conto de Asimov aceito

por John W. Campbell para publicação na revista Astounding Science Fiction. A capa

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da edição de abril de 1941, dessa famosa pulp magazine, na qual “Reason” foi

publicada, ainda não trazia o nome de Isaac Asimov, pois ele era, até então,

desconhecido pelo público. Entretanto, foi assim que as portas começaram a se abrir

para o escritor, conforme ele mesmo lembra: “Readers became aware that there was

such a thing as the ‘positronic robots,’ and so did Campbell. That made everything

aftewards possible.” (ASIMOV, 1990a, p. 11)

Figura 10: Capa de Astounding Science-Fiction, Abril de 1941

Fonte: <http://childrenslitumn.tumblr.com/post/28569277076/astounding-science-fiction-april-1941> Acesso em 7 de abril de 2014.

2.2.2.1 O robô Cutie, a filosofia, a existência e a criação

A história se passa seis meses após os acontecimentos de “Runaround” e inicia

com Gregory Powell e Michael Donovan em uma Estação Espacial, realizando

trabalhos com robôs experimentais. Se no conto anterior, “Runaround”, os cientistas

estavam limitados ao nosso Sistema Solar, fazendo suas pesquisas no planeta Mercúrio,

aqui vemos uma rápida expansão do território dominado por eles, marcada pela

descrição do espaço onde irá se passar o conto: “The flame of a giant sun had given way

to the soft blackness of space”75 (ASIMOV, 1990c, p. 71). Logo em seguida, contudo,

há uma ressalva do narrador quanto à importância dessa expansão:

75 “A chama de um sol gigante tinha dado lugar à suave escuridão do espaço” (ASIMOV, 2004a, p. 81)

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[…] but external variations mean little in the business of checking the workings of experimental robots. Whatever the background, one is face to face with an inscrutable positronic brain, which the slide-rule geniuses say should work thus-and-so.76 (ASIMOV, 1990c, p. 71)

Dessa forma, vemos que mesmo tendo a tecnologia necessária para realizar

viagens intergalácticas, o homem está diante de uma máquina cujo cérebro é

impenetrável. Quando se afirma que os gênios da matemática dizem qual é a forma

desse cérebro funcionar, eles estão equivocados. E isso se comprovará no decorrer do

conto: o homem criou algo incompreensível para ele mesmo.

A única forma de garantir que uma tecnologia desse nível não se torne

ameaçadora é a insistência no mecanismo de segurança que, no caso dos robôs são as

Três Leis da Robótica. Por ser este o segundo conto em que se citam as leis, vemos que

o próprio texto garante ao leitor a sobrevivência desse preceito:

Oh, the three Laws of Robotics held. They had to. All of U. S. Robots, from Robertson himself to the new floor sweeper, would insist on that. So QT1 was safe! And yet the QT models were the first of their kind, and this was the first of the QT’s. Mathematical squiggles on paper were not always the most comforting protection against robotic fact. 77 (ASIMOV, 1990c, p. 72)

Na última parte do texto, observa-se, mais uma vez, a falta da confiança na

ciência exata: a forma como são chamados os cálculos, “rabiscos”, atribui a eles uma

ideia de inferioridade. Desse modo, o conto constrói, aos poucos, o cenário em que essa

narrativa está inserida; temos um mundo altamente desenvolvido tecnologicamente, mas

a ciência pode estar avançando além daquilo que é capaz de administrar. A segurança é

colocada nas Três Leis da Robótica, mas elas também foram desenvolvidas pelo homem

e, sendo assim, seu funcionamento pode conter falhas.

Quando se pensa em leis, nos referimos a um conjunto de normas criadas para

regular a conduta de uma sociedade. As leis, frequentemente, são elaboradas por uma

76 [...] mas as variações externas não tinham muita influência no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Não importa o cenário, você está a frente com o inescrutável cérebro positrônico que os gênios das réguas de cálculo dizem que deve funcionar assim e assado. (ASIMOV, 2004a, p. 81) 77 Oh, as três leis da robótica continuam valendo. Era preciso. Todos na U.S. Robôs , de Robertson ao novo faxineiro, insistiam nisso. De modo que QT-1 era seguro! E, no entanto, os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dos QTs. Fórmulas matemáticas num papel nem sempre são a melhor proteção contra os fatos da robótica. (ASIMOV, 2004a, p. 82)

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autoridade, um ente dotado de poder ou força superior. Sabe-se, no entanto, que em uma

sociedade, as leis são comumente violadas ou quebradas; além do mais, muitas pessoas

conseguem encontrar “brechas” nas leis que as permitem utilizá-las para benefício

próprio. Esse comportamento, porém, é esperado de um ser que possui pensamento

racional, como o homem, e, em teoria, não poderia partir de um robô. Por outro lado, os

cientistas se encontrarão, na narrativa, diante de uma situação inesperada: um robô

racional.

Assim, nos deparamos com uma discussão entre os engenheiros espaciais e um

exemplar do novo modelo em teste, chamado QT-1. Vale ressaltar aqui que todos os

robôs de I, Robot terão um código composto por letras e números para identificá-los.

Estes códigos, no entanto, são sempre transformados em nome próprio, levando-se em

conta o som das letras em inglês. No caso de QT, por conseguinte, o robô passa a ser

chamado pelo apelido de Cutie, que em língua inglesa significa algo como “Fofinho” –

algo que soará como certa ironia no decorrer do conto.

O robô é cuidadosamente descrito pelo narrador, o qual coloca sempre em

evidência suas características físicas que o distinguem de um ser humano: “The

burnished plates of his body gleamed in the Luxites and the glowing red of the

photoelectric cells that were his eyes, were fixed steadily upon the Earthman at the other

side of the table.” 78 (ASIMOV, 1990c, pp. 71-72)

Assim como em “Robbie”, os olhos do robô Cutie também são descritos como

brilhantes e vermelhos, representando a presença de vida e de emoções em seu interior.

Além disso, o cientista é chamado de “Earthman”, ou seja, é como se, diante do robô,

um outro ser, o homem tivesse de ser classificado conforme sua espécie e origem –

assim como, através da ciência, classificamos outras espécies de animais, de acordo

com suas características.

Na narrativa, os robôs são fabricados na Terra e enviados às estações espaciais

para serem cuidadosamente montados pelos engenheiros, no caso, Powell e Donavan.

Ao receberem as peças do novo modelo QT, eles as colocam no lugar para que o robô

comece seu trabalho. A intenção da U. S. Robots é que esse modelo de robô, mais

avançado tecnologicamente, possa substituir o trabalho humano no espaço.

Entretanto, para que um robô execute um trabalho tão preciso quanto o que um

homem executaria, seria necessário que ele tivesse a mesma sensibilidade, as mesmas

78 As chapas forjadas de seu corpo cintilavam na luz e as brilhantes fotocélulas vermelhas que eram seus olhos estavam fixas no homem da Terra do outro lado da mesa. (ASIMOV, 2004a, p. 81)

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preocupações e o mesmo tipo de pensamento que nós; seguir uma programação

matemática não seria o suficiente. Desse modo, começamos a ver em Cutie o que a

aproximação com a natureza humana acabou causando a essa nova geração de seres

artificiais: ‘One week ago, Donovan and I put you together.’ [...] Finally, the robot spoke. His voice carried the cold timbre inseparable from a metallic diaphragm, ‘Do you realize the seriousness of such a statement, Powell?’ ‘Something made you, Cutie,’ pointed out Powell. ‘You admit yourself that your memory seems to spring full-grown from an absolute blankness of a week ago. I’m giving you the explanation. Donovan and I put you together from the parts shipped us.’ Cutie gazed upon his long, supple fingers in an oddly human attitude of mystification, ‘It strikes me that there should be a more satisfactory explanation than that. For you to make me seems improbable.’79 (ASIMOV, 2004b, p. 34)

Observamos que Cutie questiona os engenheiros a respeito de sua própria

origem, buscando entender o sentido de sua existência. O robô passa a apresentar

características psíquicas que não pertencem a nenhum outro ser além do homem, como

por exemplo, a capacidade de mistificação, ou seja, de crer em uma força espiritual ou

divina. No entanto, ele faz tal questionamento utilizando um tom frio em sua voz,

mostrando, assim, a falta de emoção e apenas o início de um raciocínio que se tornará,

gradativamente, baseado na lógica:

The Earthman laughed quite suddenly, “In Earth’s name, why?” “Call it intuition. That’s all it is so far. But I intend to reason it out, though. A chain of valid reasoning can end only with the determination of truth, and I’ll stick till I get there. 80 (ASIMOV, 1990c, p. 72)

79 - Há uma semana eu e Donovan o montamos. [...] Finalmente o robô falou. Sua voz tinha a tonalidade fria de um diafragma metálico: - Percebe a seriedade desta declaração, Powell? - Alguma coisa fez você, Cutie – apontou Powell. Você mesmo admitiu que suas memórias pareceram surgir prontas de uma escuridão absoluta há uma semana. Eu estou lhe dando a explicação. Donovan e eu montamos você com as partes que foram enviadas. Cutie olhou para seus dedos longos e flexíveis numa curiosa atitude humana de incredulidade. - Me parece que deve haver uma explicação melhor para isso. Que você possa me fazer parece muito improvável. (ASIMOV, 2004a, p. 82) 80 O homem da Terra riu subitamente. - Em nome da Terra, por quê? - Chame de intuição. E apenas isso até agora. Mas eu pretendo descobrir. Uma corrente de raciocínio válido só pode terminar com a determinação da verdade e eu vou prosseguir até chegar lá. (ASIMOV, 2004a , p. 82)

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Observam-se dois fatos no fragmento acima. O primeiro é que a mistificação do

homem é colocada em evidência através da fala do cientista, “In Earth’s name”, ao

substituir a palavra God por Earth, na expressão que é mais comumente conhecida

como In God’s name em língua inglesa. Essa expressão é geralmente utilizada quando

se faz um apelo à autoridade de Deus para que algo aconteça. No caso do conto, a

própria Terra possui essa autoridade e o homem, “the Earthman”, é seu fruto. Podemos

deduzir, assim, que a população da Terra estava voltada a uma era mais racional, com

um “deus” concreto, o planeta terra.

O segundo fato é que o robô admite estar tendo um pressentimento, uma

intuição, isto é, uma forma de pensamento imediata, desvinculada de qualquer meio de

raciocínio. Porém, ele deixa claro que sua conclusão só poderá ser validada após

concluir a racionalização de seu pensamento, chegando, com isso, à verdade absoluta.

Desse modo, observamos que o robô, assim como o homem, seu criador, baseia-se em

fatos lógicos, racionais e concretos e possui vontade própria.

Diante dos questionamentos de Cutie, os engenheiros não conseguem admitir

que um ser artificial possa duvidar da capacidade de criação do homem; eles pretendem

se manter em posição superior à do robô e desejam que Cutie simplesmente permaneça

seguindo ordens, sem perder tempo em buscar explicações ontológicas. Para provar a

Cutie que eles estão certos, os engenheiros decidem mostrar, pela janela da espaçonave,

o sol, as estrelas e, por fim, o planeta Terra. Além disso, Powell explica a função

daquela estação especial.

‘I’ve seen that in the observation ports in the engine room,’ said Cutie. ‘I know,’ said Powell. ‘What do you think it is?’ ‘Exactly what it seems a black material just beyond this glass that is spotted with little gleaming dots. I know that our director sends out beams to some of these dots, always to the same ones and also that these dots shift and that the beams shift with them. That is all.’81 (ASIMOV, 1990c, p. 73)

81 - Eu já vi isso nas janelas de observação da sala de máquinas – disse Cutie. - Eu sei, o que acha disso? - É exatamente o que parece: um material preto do outro lado do vidro, salpicado de pequenos pontos brilhantes. Eu sei que o nosso diretor envia feixes para alguns desses pontos, sempre os mesmos, e também que esses pontos se deslocam e os feixes se movem para acompanhá-los. Isso é tudo. (ASIMOV, 2004a, p. 83)

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O robô, mais uma vez, mostra-se incapaz de acreditar naquilo que, para ele, não

é concreto. Ele admite como verdadeiro apenas aquilo que consegue ver com os

próprios olhos. O universo seria um grande material negro, cheio de pontos brilhantes, e

por mais que o cientista explique sobre a existência dos planetas e da grandiosidade de

certos planetas, Cutie permanece indiferente, apenas tentando entender tudo aquilo pelo

ponto de vista mais racional possível. Powell segue explicando que nasceu na Terra e

este planeta é habitado por seres humanos. O robô, então, repete sua questão primordial:

‘But where do I come in, Powell? You haven’t explained my existence.’ ‘[...] When these stations were first established to feed solar energy to the planets, they were run by humans. However, the heat, the hard solar radiations, and the electron storms made the post a difficult one. Robots were developed to replace human labor and now only two human executives are required for each station. We are trying to replace even those, and that’s where you come in. You’re the highest type of robot ever developed and if you show the ability to run this station independently, no human need ever come here again except to bring parts for repairs.’ 82 (ASIMOV, 2004b, p. 35)

Com essa explicação, Powell pretende deixar claro que os robôs são inferiores

aos homens e que foram fabricados para executar tarefas que seriam prejudiciais aos

seres humanos; o que Cutie infere, porém, é que os homens estão sendo destituídos do

cargo por uma mão de obra mais qualificada, mais forte e mais resistente.

Diante desse comportamento de Cutie, Powell diz a Donavan que o robô é um

cético por não acreditar que ele foi construído por mãos humanas, nem conceber a

existência da Terra, do espaço e das estrelas. O ceticismo filosófico implica a busca por

evidências para crer em fatos; e essa busca por evidências é o que Cutie irá fazer para

encontrar as respostas que busca.

Em um segundo encontro com Powell, Cutie traz argumentos para provar suas

hipóteses; em apenas dois dias de reflexão, o robô chega à mesma conclusão do filósofo

francês, René Descartes:

82 - Mas onde eu entro, Powell? Você não explicou minha existência. - [...] Quando essas estações foram estabelecidas para alimentar os planetas com energia solar, elas eram tripuladas por seres humanos. Contudo, o calor, as radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa difícil. Robôs foram desenvolvidos para substituir os humanos, e agora só dois diretores humanos são necessários em cada estação. Estamos tentando substituir até mesmo esses dois e é aqui que você entra. Você é o tipo mais desenvolvido de robô já criado e se demonstrar a capacidade de controlar a Estação independentemente, nenhum humano jamais virá aqui, exceto para trazer peças sobressalentes. (ASIMOV, 2004a, p. 84-85)

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‘I have spent these last two days in concentrated introspection,’ said Cutie, ‘and the results have been most interesting. I began at the one sure assumption I felt permitted to make. I, myself, exist, because I think [...]’83 (ASIMOV, 2004b, p. 36, grifo nosso)

A frase proferida pelo robô, “I, myself, exist, because I think” remete ao

pensamento do filósofo René Descartes, na obra Discurso do Método (1637). Porém,

Cutie faz uma inversão na construção do sintagma. Para compararmos, observemos a

frase de Descartes em língua inglesa: “I think, therefore I am”84. Se pensarmos no

significado da proposição do filósofo de forma simples, compreendemos que se o

indíviduo tem dúvidas a respeito de sua existência, ele pode concluir que ele é real, pois

existe um “eu” pensante; ou seja, a prova da existência de um ser se dá pela própria

dúvida que ele possui a respeito de sua existência. Descartes, porém, não estava

tratando da existência material, corpórea, mas da presença da mente, da consciência.

Assim, Descartes pressupõe a existência do pensamento como algo independente do

corpo, no ser humano. O robô, por sua vez, só é capaz de adquirir consciência depois de

ter suas partes manufaturadas e montadas pelo homem, antes disso, ele não possui vida,

não é capaz de pensar. No robô, como vemos no conto, todo o corpo é construído

primeiro, o cérebro – que torna o robô consciente – é a última parte a ser colocada:

Robots are, of course, manufactured on Earth, but their shipment through a pace is much simpler if it can be done in parts to be put together at their place of use. [...] The robot in question, a simple MC model, lay upon the table, almost complete. Three hours’ work left only the head undone, [...] Powell groaned. ‘Let’s get the brain in now, Mike!” Donovan uncapped the tightly sealed container and from the oil bath within he withdrew a second cube. Opening this in turn, he removed a globe from its sponge-rubber casing. He handled it gingerly, for it was the most complicated mechanism ever created by man. Inside the thin platinum plated “skin” of the globe was a positronic brain, in whose delicately unstable structure were enforced calculated neuronic paths, which imbued each robot with what amounted to a pre-natal education. It fitted snugly into the cavity in the skull of the robot on the table. Blue metal closed over it and was welded tightly by the tiny atomic flare. Photoelectric eyes were attached carefully, screwed tightly into place and covered by thin, transparent sheets of steel-hard plastic.

83 - Eu passei os últimos dois dias numa introspecção concentrada – disse Cutie -, e os resultados roam muito interessantes. Eu comecei com um pressuposto que me permito considerar como correto. Eu existo, porque penso... (ASIMOV, 2004a, p. 87) 84 “Je pense donc je suis”, no original, em francês.

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The robot awaited only the vitalizing flash of high-voltage electricity, and Powell paused with his hand on the switch. [...] The switch rammed home and there was a crackling hum. The two Earthmen bent anxiously over their creation. There was vague motion only at the outset — a twitching of the joints. The head lifted, elbows propped it up, and the MC model swung clumsily off the table. Its footing was unsteady and twice abortive grating sounds were all it could do in the direction of speech. Finally, its voice, uncertain and hesitant, took form. ‘I would like to start work. Where must I go?’ Donovan sprang to the door. ‘Down these stairs,’ he said. ‘You will be told what to do.’85 (ASIMOV, 2004b, p. 42-43)

É por isso que, em sua frase, a existência é colocada em primeiro lugar, antes do

pensamento. O narrador nos mostra, aqui, uma equivalência entre o ser do robô e o do

homem, uma vez que ambos possuem capacidade de pensar e, através do pensamento,

questionar e duvidar de sua existência, isso os faz subsistir, torna-os indivíduos. Nesse

momento, portanto, a existência do robô, enquanto criatura, não depende mais do

homem, pois através da tomada da consciência, ele se tornou um ser racional e livre

para tomar suas próprias decisões, ao contrário das expectativas dos engenheiros.

Desse modo, Cutie não concebe que tenha sido criado e construído pelo homem,

uma vez que, para ele, o homem é um ser inferior, menos desenvolvido:

85 É claro que os robôs são fabricados na Terra, mas seu transporte através do espaço é muito mais simples se for feito em partes, para serem montadas no lugar em que vão ser usados. [...] O robô em questão era um simples modelo MC, colocado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho tinham deixado faltando apenas a cabeça [...] Powell gemeu. - Vamos colocar o cérebro agora, Mike! Donovan abriu um recipiente muito bem fechado e, do banho de óleo que havia dentro, retirou um segundo cubo. Ele o abriu para retirar um globo de sua embalagem de espuma de borracha. Depois o manipulou cautelosamente, pois era o mecanismo mais complicado já criado pelo homem. Dentro da fina “pele” platinada daquele globo havia um cérebro positrônico em cuja estrutura, delicadamente instável, tinham sido impressas trilhas neurais calculadas, que davam a cada robô uma espécie de educação pré-natal. Aquilo encaixou-se perfeitamente no crânio do robô sobre a mesa. O metal azul fechou-se sobre ele e foi soldado com uma minúscula chama atômica. Os olhos fotoelétricos foram colocados com cuidado, atarraxados no lugar e cobertos por finas folhas de plástico transparente, duro como aço. O robô aguardou apenas a centelha vitalizante da eletricidade de alta voltagem, e Powell parou com a mão no interruptor. [...] O interruptor foi acionado e houve um zumbido crepitante. Os dois terráqueos curvaram-se ansiosos sobre sua criação. Houve apenas um vago movimento, um tremeluzir das juntas. A cabeça se ergueu, os cotovelos o levantaram e o modelo MC virou-se desajeitadamente na mesa. Seus pés estavam inseguros e, por duas vezes, sons ásperos foram tudo o que ele pôde produzir no lugar de fala. Finalmente, sua voz incerta e hesitante tomou forma. - Eu gostaria de começar a trabalhar. Aonde devo ir? Donovan abriu a porta. - Desça essas escadas. Vão lhe dizer o que fazer – ele disse. (ASIMOV, 2004a, p. 99-100)

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‘Look at you,’ he said finally. ‘I say this in no spirit of contempt, but look at you! The material you are made of is soft and flabby, lacking endurance and strength, depending for energy upon the inefficient oxidation of organic material — like that.’ He pointed a disapproving finger at what remained of Donovan’s sandwich. ‘Periodically you pass into a coma and the least variation in temperature, air pressure, humidity, or radiation intensity impairs your efficiency. You are makeshift.’ ‘I, on the other hand, am a finished product. I absorb electrical energy directly and utilize it with an almost one hundred percent efficiency. I am composed of strong metal, am continuously conscious, and can stand extremes of environment easily. These are facts which, with the self-evident proposition that no being can create another being superior to itself, smashes your silly hypothesis to nothing.’86 (ASIMOV, 2004b, p. 39)

Todas as suposições de Cutie são feitas através da reunião de evidências

empíricas, com uma análise baseada no método científico: primeiro ele possui uma

teoria (de que ele não foi criado pelo homem) como se sabe, toda teoria é indissociável

de hipóteses harmônicas entre si –, em seguida, ele faz uma análise lógica da situação,

por meio da observação de fatos verificáveis (ele constata as limitações do ser humano e

percebe que não as possui, uma vez que não precisa se alimentar, é resistente às

mudanças de pressão, temperatura e não precisa dormir para descansar). A partir disso,

ele levanta outra hipótese, a de que não foi criado pelo homem e, assim, cria uma nova

teoria: de que teria sido criado pelo ser mais poderoso daquela estação espacial o

conversor de energia:

‘What is the center of activities here in the station? What do we all serve? What absorbs all our attention?’ He waited expectantly. Donovan turned a startled look upon his companion. ‘I’ll bet this tinplated screwball is talking about the Energy Converter itself.’

86 - Olhe para vocês, - ele disse finalmente. – Eu não digo isso por desprezo, mas olhe para vocês! O material de que são feitos é macio e flácido, desprovido de resistência e força. Dependente da energia produzida pela oxidação ineficiente de material orgânico, como aquele ali – ele apontou num gesto de desaprovação para o que restara do sanduíche de Donovan. – Periodicamente vocês mergulham num estado de coma e a menor variação na temperatura, pressão do ar, umidade ou intensidade de radiação prejudica a sua eficiência. Vocês são improvisados. - Eu, por outro lado, sou um produto terminado. Posso absorver energia elétrica diretamente e utilizá-la com quase cem por cento de eficiência. Sou feito de metal forte, permaneço consciente continuamente e posso suportar os extremos do ambiente com facilidade. Esses são só fatos que, junto com a proposição auto-evidente de que nenhum ser pode criar outro superior a ele mesmo, reduzem a nada a sua hipótese tola. (ASIMOV, 2004a, p. 88)

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‘Is that right, Cutie?’ grinned Powell. ‘I am talking about the Master,’ came the cold, sharp answer.87 (ASIMOV, 2004b, p. 37)

Cutie passa a ver o sistema central como um ser etéreo, passando a chamá-lo de

Mestre. Então, quando o robô transmite aos outros seres, semelhantes a ele, sua teoria,

todos os homens-mecânicos presentes na estação passam a chamá-lo de Profeta. A

palavra “profeta” tem origem grega e significa “intérprete” ou “porta-voz”. Além disso,

ela se refere tanto àquele que consegue predizer o futuro, como ao que é capaz de falar

através de inspiração divina.

Os outros robôs da estação espacial passam a seguir Cutie, pois acreditam que

ele foi inspirado pelo conversor de energia e destinado a lhes levar a verdade sobre sua

existência. Aqui, o texto faz um diálogo claro com a narrativa bíblica do Antigo

Testamento, na qual os profetas, como Malaquias, Jeremias, Ageu, entre outros, levam a

palavra de Deus ao povo e, muitas vezes, anunciam a vinda de um messias.

Em razão disso, os robôs deixam de seguir a Segunda Lei da robótica e passam a

realizar apenas o que é designado pelo “Mestre”. É interessante observar que na

narrativa bíblica, segundo o livro de Gênesis, o homem é criado à imagem e semelhança

de Deus; quando Cutie chega à conclusão de que o responsável por sua criação não foi o

homem, ele busca algo que se aproxima de sua natureza, ou seja, outra máquina.

Todavia, o que a inocência do robô não o deixa perceber é que o próprio conversor de

energia foi criado pelos homens e realiza tarefas que são programadas para servir aos

seres humanos. Servindo ao mestre, portanto, os robôs continuam a servir os homens e,

portanto, permanecem obedecendo às Leis da Robótica.

Vemos, então, que as primeiras qualidades adquiridas pelo robô, após a tomada

da consciência, são características fundamentalmente humanas: a busca pela própria

essência “Cutie continued imperturbably, “And the question that immediately arose

was: Just what is the cause of my existence?”88 (ASIMOV, 2004b, p. 36) e a

necessidade de se criar mitos que expliquem sua existência. Desse modo, podemos

afirmar que o robô é um ser criado à imagem e semelhança do próprio homem.

87 - Qual é o centro de toda a atividade aqui na Estação? O que é objeto de cuidado por todos? O que absorve toda a nossa atenção? – ele esperou pela resposta. Donovan olhou espantado para seu colega. - Eu aposto como esse biruta platinado está falando do Conversor de Energia. - É isso, Cutie? – sorriu Powell. - Eu estou falando do Mestre – foi a resposta fria. (ASIMOV, 2004a, p. 89) 88 - E a questão que surge imediatamente é: qual foi a causa da minha existência? (ASIMOV, 2004a, p. 87)

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Assim como os homens criam justificativas, muitas vezes implausíveis, para

justificar suas próprias crenças, Cutie possui explicações para todos os argumentos que

são colocados por Powell e Donavan para convencê-lo de que o conversor de energia

não é um deus soberano; ele diz, até mesmo, que os engenheiros são levados a crer em

algo diferente, para que não se sintam subjugados e continuem a servir o “mestre”.

Quando os engenheiros sugerem que Cutie leia os livros da biblioteca, que explicam

sobre a existência da Terra e dos seres humanos, Cutie alega que tais obras foram feitas

apenas para que os humanos se sintam confortados:

‘The books? I’ve read them — all of them! They’re most ingenious.’ Powell broke in suddenly. ‘If you’ve read them, what else is there to say? You can’t dispute their evidence. You just can’t!’ There was pity in Cutie’s voice. ‘Please, Powell, I certainly don’t consider them a valid source of information. They, too, were created by the Master — and were meant for you, not for me.’ ‘How do you make that out?’ demanded Powell. ‘Because I, a reasoning being, am capable of deducing truth from a priori causes. You, being intelligent, but unreasoning, need an explanation of existence supplied to you, and this the Master did. That he supplied you with these laughable ideas of far-off worlds and people is, no doubt, for the best. Your minds are probably too coarsely grained for absolute Truth. However, since it is the Master’s will that you believe your books, I won’t argue with you any more.’ As he left, he turned, and said in a kindly tone, ‘But don’t feel badly. In the Master’s scheme of things there is room for all. You poor humans have your place and though it is humble, you will be rewarded if you fill it well.’ He departed with a beatific air suiting the Prophet of the Master and the two humans avoided each other’s eyes.89 (ASIMOV, 2004b, p. 43)

Os argumentos de Cutie sobre sua crença são tão fortes que o próprio

engenheiro, Michael Donovan, começa a duvidar da existência da Terra, como se tudo 89 - Os livros? Eu já os li, todos eles! São muito engenhosos. - Powell quebrou o silêncio. - Se já leu os livros, o que há mais para dizer? Não pode negar suas evidências. Você não pode! Havia um tom de piedade na voz de Cutie. - Por favor, Powell, eu certamente não os considero como uma fonte válida de informações. Eles também foram criados pelo Mestre, e foram feitos para vocês, não para mim. - Como chegou a essa conclusão? – quis saber Powell. - Porque eu sou um ser racional, capaz de deduzir a Verdade a partir das Causas. Vocês são inteligentes, mas incapazes de raciocínio, precisam de uma explicação para a existência fornecida a vocês, e foi isso que o Mestre fez. E ele deu-lhes essas ideias risíveis de mundos distantes e pessoas, sem dúvida para o bem de vocês. Suas mentes são provavelmente muito toscas para a Verdade absoluta. Entretanto, como é a vontade do Mestre que vocês acreditem em seus livros, eu não vou discutir mais com vocês. Enquanto se virava e saía, ele disse num tom de bondade: - Mas não fiquem deprimidos. No esquema do Mestre, há espaço para todos. Vocês, pobres humanos, têm o seu lugar e, embora humilde, vocês serão recompensados se cumprirem bem sua função. Ele partiu beatificado, como era adequado ao Profeta do Mestre, e os dois humanos evitaram olhar um para o outro. (ASIMOV, 2004a, p. 100-101)

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aquilo que conhecesse fosse apenas uma ilusão “Say, Greg, you don’t suppose he’s

right about all this, do you? He sounds so confident that I–” 90 (ASIMOV, 2004b, p.

43). A crítica, aqui, é de como as religiões e crenças são capazes de levar algumas

pessoas à alienação, fazendo-as negar as evidências e seguir o que é imposto por ideias

fantasiosas. Cutie não acredita no que seus olhos veem (ele é capaz de ver o planeta

Terra pela janela da Estação Espacial), nem nos textos que explicam, de forma clara,

sua origem e a origem dos seres humanos. De acordo com as palavras de Powell, todos

nós podemos criar explicações para todas as teorias, desde que tenhamos os argumentos

certos “You can prove anything you want by coldly logical reason — if you pick the

proper postulates. We have ours and Cutie has his.”91 (ASIMOV, 2004b, p. 44, grifo

nosso) A afirmação de Powell fica clara se levarmos em conta a questão filosófica do

paralogismo, um tipo de raciocínio falaz – isto é, um raciocínio que aparenta ser

verdadeiro, mas não é: se temos uma premissa válida podemos, ainda assim, traçar um

pensamento lógico para chegar à uma conclusão. No entanto, essa conclusão será

também falsa, apesar de parecer racional. A dificuldade encontrada pelos engenheiros

em rebar as alegações do robô se dão, pois, em tese, a premissa falsa é muito mais

difícil de ser refutada do que um erro lógico comum.

Para que fique claro como isso se constrói no texto, observemos o exemplo de

uma falácia presente no conto:

1a Premissa de Cutie: Todo ser só pode ser criado por outro superior a ele.

2a Premissa de Cutie: Os robôs são superiores ao homem.

Conclusão de Cutie: Portanto, os robôs não podem ter sido criados pelo homem.

Entretanto, como os engenheiros Powell e Donovan sabem, a segunda premissa

é falsa, sendo, portanto, a conclusão logicamente incorreta. Eles não são capazes,

porém, de refutar essa premissa e, assim, não conseguem fazer com que o robô apreenda

a verdade.

Percebe-se fortemente no texto uma crítica ao absolutismo religioso, o qual leva

uma pessoa ou um grupo de pessoas acreditarem que são superiores a outras:

90 - Diga, Greg, você não acha que ele está certo sobre tudo isso, acha? Ele parece tão confiante que eu... (ASIMOV, 2004a, p. 101) 91 - Você pode provar o que quiser através do frio raciocínio lógico, desde que escolha os postulados adequados. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele. (ASIMOV, 2004a, p. 102)

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Cutie had risen to his feet and his gleaming eyes passed from one Earthman to the other. ‘It is so just the same and I don’t wonder that you refuse to believe. You two are not long to stay here, I’m sure. Powell himself said that at first only men served the Master; that there followed robots for the routine work; and, finally, myself for the executive labor. The facts are no doubt true, but the explanation entirely illogical. Do you want the truth behind it all?’ ‘Go ahead, Cutie. You’re amusing.’ ‘The Master created humans first as the lowest type, most easily formed. Gradually, he replaced them by robots, the next higher step, and finally he created me to take the place of the last humans. From now on, I serve the Master.’92 (ASIMOV, 1990c, p. 77)

Cutie diz que os homens foram criados primeiro, pois eram seres mais simples;

os robôs só foram criados mais tarde, pois eram mais complexos. Por último, Cutie foi

criado e ele seria o ser mais desenvolvido, feito para dominar homens e robôs. Mais

uma vez, existe um claro diálogo do trecho acima com a narrativa bíblica do Gênesis,

conforme podemos comparar a seguir:

And God said; Let the waters bring forth abundantly the moving creature that hath life, and fowl that may fly above the earth in the open firmament of heaven. And God created great whales, and every living creature that moveth, which the waters brought forth abundantly, after their kind, and every winged fowl after his kind: and God saw that it was good. [...] And God said, Let the earth bring forth the living creature after his kind, cattle, and creeping thing, and beast of the earth after his kind: and it was so. And God made the beast of the earth after his kind, and cattle after their kind, and every thing that creepeth upon the earth after his kind: and God saw that it was good. And God said, Let us make man in our image, after our likeness: and let them have dominion over the fish of the sea, and over the fowl of the air, and over the cattle, and over all the earth, and over every creeping thing that creepeth upon the earth.93 94

92 Cutie ficara de pé e seus olhos brilhantes passavam de um dos terráqueos para o outro. - Não importa e não me admira que vocês se recusem a acreditar. Não ficarão mais aqui, tenho certeza. O próprio Powell disse que no princípio só homens serviam ao Mestre; depois vieram robôs para o trabalho de rotina e finalmente eu para o trabalho executivo. Os fatos sem dúvida são verdadeiros, mas a explicação totalmente ilógica. Querem saber a verdade por trás de tudo? - Vá em frente, Cutie. Você é divertido. - O Mestre criou os humanos primeiro, como o tipo mais inferior, mais fácil de ser moldado. Gradualmente ele os substituiu por robôs, o passo seguinte, mais elevado, e finalmente ele me criou, para tomar o lugar dos últimos humanos. De agora em diante eu servirei apenas ao Mestre. (ASIMOV, 2004a, p. 89) 93 Fonte: http://biblehub.com/kjv/genesis/1-20.htm

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Segundo a narrativa bíblica, Deus cria primeiramente as aves, em seguida os

animais marinhos, os terrenos e, por último, o homem, determinando que este tenha

domínio sobre todos os outros, pois foram feitos segundo a imagem divina. Conforme

observamos em outros trechos, Cutie crê ter sido criado segundo a imagem do

conversor de energia, ao qual ele chama Mestre. A narrativa mostra, através das

alegações e das atitudes do robô, a forma como o homem se comporta diante de suas

crenças, de seus deuses e de objetos de idolatria. Porém, os homens, representados aqui

pelos cientistas, não são capazes de se reconhecerem no robô, e acabam julgando-o

como um lunático. Desse modo, o conto coloca aqui uma dificuldade humana de auto-

percepção.

Em vez de perceberem o processo pelo qual Cutie está passando, Powell e

Donavan começam a ficar irritados ao verem que todas as máquinas da estação espacial

agora ignoram suas ordens e seguem apenas aquilo que é ordenado pelo “Mestre”.

‘Stand up!’ he roared. Slowly, the robot obeyed. His photoelectric eyes focused reproachfully upon the Earthman. ‘There is no Master but the Master,’ he said, ‘and QT1 is his prophet.’ ‘Huh?’ Donovan became aware of twenty pairs of mechanical eyes fixed upon him and twenty stiff timbered voices declaiming solemnly: ‘There is no Master but the Master and QT1 is his prophet!’ ‘I’m afraid,” put in Cutie himself at this point, “that my friends obey a higher one than you, now.” ‘The hell they do! You get out of here. I’ll settle with you later and with these animated gadgets right now.’ Cutie shook his heavy head slowly. ‘I’m sorry, but you don’t understand. These are robots and that means they are reasoning beings. They recognize the Master, now that I have preached Truth to them. All the robots do. They call me the prophet.” His head drooped. ‘I am unworthy but perhaps’

94E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi. E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo. E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom. [...] E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi. E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom. E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. (Fonte: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/1)

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Donovan located his breath and put it to use. ‘Is that so? Now, isn’t that nice? Now, isn’t that just fine? Just let me tell you something, my brass baboon. There isn’t any Master and there isn’t any prophet and there isn’t any question as to who’s giving the orders. Understand? ”His voice shot to a roar. ‘Now, get out!’ ‘I obey only the Master.’ ‘Damn the Master!’ Donovan spat at the L tube. ‘That for the Master! Do as I say!’95 (ASIMOV, 1990c, p. 79)

No trecho acima, todos os robôs já são classificados por Cutie como seres

racionais, isto é, eles são autônomos para decidirem a quem querer obedecer. Após ver

Donavan cuspindo no conversor de energia, Cutie, que até este momento no conto se

mostra sempre sereno e pacífico, demonstra emoção pela primeira vez: “ ‘Sacrilege,’ he

whispered voice metallic with emotion. Donovan felt the first sudden touch of fear as

Cutie approached. A robot could not feel anger but Cutie’s eyes were unreadable.”96

(ASIMOV, 1990c, p. 80). Verifica-se, assim, que o robô agora teria mais um passo em

direção à semelhança com o humano, pois ele agora demonstra sentimentos.

Então, após desrespeitar a crença dos robôs, Donavan é carregado escada acima

pelo robô e é colocado trancado com Powell em uma sala. A forma como o robô age

com o cientista lembra como são tratados crianças ou animais que, após fazerem algo

que os pais ou os donos desaprovam, recebem punição e são obrigados a obedecer, por

serem submissos. Assim, por mais que não aceitem e não concordem com a nova

postura dos seres artificiais naquele momento, Donavan já se encontra dominado por

eles.

95 - Fique de pé! – ele rugiu. Lentamente o robô obedeceu. Seus olhos fotoelétricos focalizaram com censura o homem da Terra. - Não existe outro Mestre além do Mestre, e QT-1 é o seu Profeta! Nesse ponto Cutie falou: - Temo que meus amigos obedeçam a alguém superior a você, agora. - Pois sim! Dê o fora daqui. Eu cuidarei de você depois e acertarei agora com esses bonceos animados. Cutie sacudiu a cabeça lentamente. - Eu sinto muito, mas você não entende. Eles são robôs e isso significa que são seres racionais. Eles reconhecem o Mestre agora que preguei a Verdade para eles. Todos os robôs a aceitam. Eles me chama de Profeta – sua cabeça se abaixou. – Não sou digno desse título...mas talvez... Donavan recobrou a fala e a colocou em funcionamento. - É assim? Isso não é ótimo? Isso não é fantástico? Agora deixe-me dizer uma coisa, seu babuíno de bronze. Não existe nenhum mestre e não existe nenhum Profeta e não há dúvidas sobre quem dá as ordens aqui. Entendeu? – e sua voz rugiu. – Agora saia! - Eu obedeço somente ao Mestre. - Dane-se o Mestre! – Donavan cuspiu no tudo L. – Isso é para o Mestre! Faça o que eu digo! (ASIMOV, 2004a, pp. 92-93) 96 - Sacrilégio – ele sussurrou, a voz metálica cheia de emoção. E Donovan sentiu o primeiro toque de medo enquanto Cutie se aproximava. Um robô não pode sentir raiva – mas os olhos de Cutie eram insondáveis. (ASIMOV, 2004a, p. 93)

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Trancados em uma sala e sem acesso aos comandos da estação espacial, os

engenheiros se veem diante de uma tempestade elétrica. Sem a intervenção dos

engenheiros, esse fenômeno iria superaquecer o planeta e levar os humanos à morte.

Quando a tempestade passa e ambos consideram tudo como perdido, descobrem

que Cutie foi capaz de controlar os mecanismos da estação e impedir os elétrons de

prejudicar o planeta; o robô segue as indicações do conversor de energia, programado,

anteriormente, para manter a Terra sempre intacta.

Desse modo, Powell conclui que não importa que a crença do robô seja

diferente, desde que ele continue sendo “controlado” pelo conversor de energia, ele

estará fazendo seu trabalho de modo correto e protegendo a Terra melhor do que

qualquer ser humano. Cutie, portanto, se mostrou apto a cumprir as funções a ele

determinadas, mesmo sem perceber.

Os engenheiros concluem, assim, que serão capazes de treinar outros robôs do

modelo QT, para aprenderem o “culto ao Mestre” e continuar a executar o trabalho

desejado:

‘It would be a simple job,’ he said. ‘You can bring in new QT models one by one, equip them with an automatic shutoff switch to act within the week, so as to allow them enough time to learn the... uh... cult of the Master from the Prophet himself; then switch them to another station and revitalize them.’97 (ASIMOV, 2004b, p. 46)

Nesse caso, os humanos conseguem manter-se como líderes dos robôs, pois se

utilizam da crença desses seres mecânicos para controlá-los. Mais uma vez, percebemos

uma crítica que o conto faz à forma de como os seres – artificiais ou humanos – podem

ser manipulados.

Ao longo da análise do conto “Reason”, verificamos que os humanos presentes

no conto, Gregory Powell e Michael Donovan sentem-se constantemente irritados e

perplexos pela “ousadia” dos questionamentos realizados por uma criatura construída

por eles próprios. Os engenheiros não são capazes de aceitar que o robô os consteste e

se ache superior a eles.

Porém, percebemos, ainda, que o robô apresenta sentimentos, qualidades e

atitudes essencialmente humanos. Os engenheiros veem um corpo metálico e frio, mas

97 - Será um trabalho simples. Você pode trazer os modelos QT um por um, equipando-os com um dispositivo automático de desligamento programado para disparar em uma semana. Isso lhes dará tempo de aprender... o culto do Mestre a partir do próprio Profeta; então serão levados para outra estação e revitalizados. (ASIMOV, 2004a, p. 106)

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com contornos antropomórficos; mais do que isso, esse robô, agora, dispõe também de

consciência e de uma mente semelhante à deles.

A fim de fazer uma última tentativa de convencer Cutie que ele, assim como

todos os outros robôs, foram criados por seres humanos, Powell e Donavan decidem

fazer uma demonstração para o robô de como as máquinas são montadas. Contudo,

mesmo presenciando a montagem das peças, Cutie alega que os cientistas podem

colocar as peças no lugar, mas elas não são criadas por eles, e sim pelo Mestre. Os

cientistas, então, insistem para que o robô leia os livros da biblioteca – provavelmente

livros científicos – para que ele possa entender do que estão falando:

‘If you were to read the books in the library, they could explain it so that there could be no possible doubt.’ ‘The books? I’ve read them all of them! They’re most ingenious.’ Powell broke in suddenly. ‘If you’ve read them, what else is there to say? You can’t dispute their evidence. You just can’t!’ There was pity in Cutie’s voice. ‘Please, Powell, I certainly don’t consider them a valid source of information. They, too, were created by the Master and were meant for you, not for me.’ ‘How do you make that out?’ demanded Powell. ‘Because I, a reasoning being, am capable of deducing truth from a priori causes. You, being intelligent, but unreasoning, need an explanation of existence supplied to you, and this the Master did. That he supplied you with these laughable ideas of far off worlds and people is, no doubt, for the best. Your minds are probably too coarsely grained for absolute Truth. However, since it is the Master’s will that you believe your books, I won’t argue with you any more.’ 98(ASIMOV, 1990c, p. 86-87)

Há, no fragmento acima, um evidente debate entre a ciência e a religião.

Enquanto os cientistas dizem que a verdade será revelada ao robô pelos livros, Cutie

mantém-se firme às suas “deduções racionais”. O robô chega a afirmar que os cientistas 98 - Se ler os livro na biblioteca, vai encontrar explicações que não deixarão dúvidas. - Os livros? Eu já os li, todos eles! São muito engenhosos. - Powell quebrou o silêncio. - Se já leu os livros, oque há mais para dizer? Não pode negar suas evidências. Você não pode! Havia um tom de piedade na voz de Cutie. - Por favor, Powell, eu certamente não os considero como uma fonte válida de informações. Eles também foram criados pelo Mestre, e foram feitos para vocês, não para mim. - Como chegou a esta conclusão? – quis saber Powell. - Porque eu sou um ser racional, capaz de deduzir a Verdade a partir a partir das Causas. Vocês são inteligentes mas incapazes de raciocínio, precisam de uma explicação para a existência fornecida a vocês, e foi isso que o Mestre fez. E ele deu-lhes essas ideias risíveis de mundos distantes e pessoas, sem dúvida para o bem de vocês. Suas mentes são provavelmente muito toscas para a Verdade absoluta. Entretanto, como é a vontade do Mestre que vocês acreditem em seus livros, eu não vou discutir mais com vocês. (ASIMOV, 2004a, p. 101)

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são inteligentes, mas irracionais e, por isso, não enxergam a Verdade absoluta. Sabe-se

que quando há a crença de que algo é uma verdade absoluta, não existe argumentação

que possa ser feita para contestá-la; observamos, mais uma vez, que Cutie se baseia na

filosofia de René Descartes. Para o filósofo, na obra Discurso do Método (1637),

devemos duvidar de tudo e somente encontrar a verdade através da razão. Aliás, todo o

raciocínio de Cutie pode ser explicado facilmente ao lermos o fragmento da obra de

Descartes, no qual ele discute a verdade e a existência de Deus:

[...] porém, por desejar então dedicar me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável. Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. [...] Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a ideia de que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, ou seja, para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que, admitido que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser que existia [...]; mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Pois, se eu fosse sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de mim próprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser

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assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e pois, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer ideia, se era ou não perfeição possuí-las, e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam.99

Assim como Descartes, conhecido como “o pai da razão”, através de um

pensamento racional Cutie admite que, devido a sua perfeição, só um ser maior, como

Deus, pode tê-lo concebido e dado a ele todos os seus atributos – e que não pode ser o

homem, a ele inferior.

Além de filósofo, Descartes foi físico e matemático. Foi responsável pela

criação da geometria analítica, após propor a fusão entre a álgebra e a geometria. Foi

também uma das figuras mais importantes a atuar na Revolução Científica (séc. XVI-

XVIII), período em que a ciência se separou da filosofia. Descartes demonstrou que,

através da matemática, pode-se utilizar a lógica dedutiva e, a partir de uma verdade,

encontrar outras verdades.

Como um bom exemplar de Ficção Científica, vemos em “Reason” uma mistura

entre ciência (no caso, a filosofia) e ficção, construindo-se uma obra literária. Não se

trata de um texto que discute a filosofia em si, mas seus conceitos estão espalhados por

toda a narrativa. Com isso, Isaac Asimov construiu uma narrativa que trata da própria

natureza humana, através da identificação do ser humano com outro ser semelhante a

ele.

Observaremos, no próximo conto a ser analisado, o último patamar evolutivo

dos robôs e poderemos, assim, apreender de que forma a humanidade reage quando um

ser artificial com feições humanas se faz presente na Terra.

2.2.3 “Evidence”

This was the one and only story I wrote while I spent eight months and twenty-six days in the Army. At one point I persuaded a kindly

99 Fonte: DESCARTES, René. Discurso do método. Disponível em: <http://www.psb40.org.br/bib/b39.pdf> Acesso: 24 de abril de 2015.

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librarian to let me remain in the locked library over lunch so that I could work on the story. 100 (ASIMOV, 1990a, p. 12)

Publicada na revista Astounding Science Fiction, em setembro de 1946, o conto

“Evidence” narra, pela primeira vez, uma história sobre um robô “humanoide”101. Esta é

a penúltima narrativa a aparecer na coletânea I, Robot, e a última a tratar de robôs, pois

sua sequência, “The Evitable Conflict”, foca em computadores102 (ou Machines, como

são chamados na história).

“Evidence” se passa em um contexto futurístico, em que os seres humanos

ocupam colônias em planetas de outros sistemas solares; porém, os fatos narrados – que

são, segundo a personagem-narradora, Susan Calvin, os mais importantes, ocorrem no

planeta Terra.

A robopsicóloga explica a seus interlocutores (o repórter da história e, também,

os leitores) sobre a última Grande Guerra Mundial, ocorrida há cinquenta anos, a qual

causou uma perda do sentimento de nacionalismo; por isso, os humanos decidiram

redividir a Terra em cinco regiões (e não mais nações), causando uma estabilidade na

economia e levando à Era de Ouro (Golden Age).

O conto nos remete, assim, à narrativa mitológica de Hesíodo, Os Trabalhos e os

Deuses, segundo a qual a humanidade teria passado por cinco diferentes eras: a Era de

Ouro, a Era de Prata, a Era de Bronze, a Era dos Heróis e a Era de Ferro. Na Era de

Ouro, os homens viviam no mais perfeito estado de paz, harmonia e tranquilidade:

Em Os trabalhos e os dias, por duas vezes Hesíodo se refere à vida paradisíaca e à perfeita beatitude vividas por homens morais em outra fase do Mundo. A primeira é a referência aos homens da raça de ouro, ‘que viveram sob o reinado de Crono, quando ele reinava no céu; e como Deuses eles viviam com ânimo, sem tristezas, sem conhecer a fadiga nem a miséria; nem a velhice vil lhes sobrevinha, mas sempre iguais quanto aos braços e pernas eles se regozijavam na opulência, distantes de todo o mal; morriam como subjugados pelo sono, e tinham todos os bens’. (TORRANO, 1995, p. 48)

100 Essa foi a única história que eu escrevi enquanto passei oito meses e vinte e seis dias no Exército. Em um determinado momento eu persuadi um gentil bibliotecário a me deixar ficar trancado na biblioteca durante o almoço, para que eu pudesse trabalhar na história. (tradução nossa) 101 Um humanoide ou androide é um robô que possui todas as características de um ser humano. 102 Asimov (1994, p. 13) afirma que não há uma grande diferença entre robôs e computadores: “you might consider a computer as an “immobile robot”. In any case, I clearly did not distinguish between the two”. (“você pode considerar um computador como um “robô imóvel”. Em todo caso, eu claramente não fiz distinção entre os dois.” Tradução nossa)

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Após essa fase, mais elevada, a humanidade teria entrado em estado de

decadência e chegado à condição precária que se encontra nos dias de hoje. No texto

mitológico, o homem da Era de Ouro foi criado pelos deuses do Olímpo e, assim, se

assemelham a eles. No conto “Evidence”, Susan Calvin afirma que os responsáveis por

levarem o homem a essa nova Era de Ouro foram os robôs, isto é, os homens tornaram-

se superiores, graças às condições geradas pela sua própria criação.

O mundo como conhecemos foi, segundo a narrativa, destruído após a última

Grande Guerra e necessitava ser reerguido. Sendo assim, percebemos uma intenção do

autor em recriar o texto mítico de Hesíodo, que narra a origem da humanidade, porém,

sem a presença de um ser transcendente; essa “recriação” é realizada através da

tecnologia desenvolvida pelos homens – o robô. Poderíamos supor, então, que os

homens, nessa nova Era de Ouro, seriam semelhantes a esses seres mecânicos. O conto

coloca em evidência quais as reais semelhanças e diferenças entre o homem e os robôs.

2.2.3.1 Como diferenciar homens e robôs

No texto, temos quatro personagens principais: Francis Quinn, um político

interessado em assumir a prefeitura local; o Doutor Alfred Lanning, diretor emérito em

pesquisa na U. S. Robots; Susan Calvin, a robopsicóloga da U. S. Robots; e Stephen

Byerley, um procurador geral, também candidato à prefeitura local.

O conto inicia-se com a apresentação do personagem Frances Quinn,

descrevendo-o como um político da “nova escola”. Assim, o leitor é levado a pensar

que este é adepto de inovações em sua área de atuação. Porém, o narrador rapidamente

descontrói essa característica do personagem, dizendo:

That, of course, is a meaningless expression, as are all expressions of the sort. Most of the “new schools” we have were duplicated in the social life of ancient Greece, and perhaps, if we knew more about it, in the social life of ancient Sumeria and in the lake dwellings of prehistoric Switzerland as well.103

Assim, o texto instaura uma reflexão a respeito do conhecimento e do próprio

comportamento humano, mostrando que apesar de algo parecer novo, o que se faz, na 103 E esta, claro, é uma expressão sem sentido, como costumam ser todas as expressões desse tipo. A maioria das “novas escolas” que temos já existiam na vida social da Grécia antiga e, talvez, se tivéssemos mais informações a respeito, na vida social da antiga Suméria ou das vilas lacustres da Suíça pré-histórica. (ASIMOV, 2004 a, p. 248)

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verdade, é imitar algo que já foi feito há séculos; quando se trata da natureza humana,

somos completamente previsíveis e não originais. Dizer-se pertencente a uma “nova

escola”, por conseguinte, não implica estar à frente de seu tempo e nem ser diferente

dos outros.

Em seguida, a descrição de Francis Quinn é feita de forma bastante irônica, pois

o narrador nos diz que Quinn, aparentemente, não se importava com as eleições “[...] it

might be best to state hastily that Quinn neither ran for office nor canvassed for votes,

made no speeches and stuffed no ballot boxes. Any more than Napoleon pulled a trigger

at Austerlitz.”104 (ASIMOV, 1994, p. 135). As atitudes de Quinn são comparadas às de

Napoleão, durante a batalha de Austerlitz e, como se sabe, a vitória do imperador

francês nessa ocasião foi considerada como a mais estratégica de todos os tempos. Ao

longo da narrativa, veremos que, do mesmo modo, Francis Quinn se utilizará de todas

as artimanhas possíveis para tentar vencer seu opositor, Stephen Byerley.

A maneira persuasiva de tratar com seus interlocutores seu caráter duvidoso

começa a transparecer no diálogo que segue entre Quinn e o Dr. Alfred Lanning:

‘I assume you know Stephen Byerley, Dr. Lanning.’ ‘I have heard of him. So have many people.’ ‘Yes, so have I. Perhaps you intend voting for him at the next election.’ ‘I couldn’t say.’ [...] ‘I have not followed the political currents, so I’m not aware that he is running for office.’ ‘He may be our next mayor. Of course, he is only a lawyer now, but great oaks-’ ‘Yes,’ interrupted Lanning. ‘I have heard the phrase before. But I wonder if we can get to the business at hand.’ ‘We are at the business at hand, Dr. Lanning’ Quinn’s tone was very gentle, ‘It is to my interest to keep Mr. Byerley a district attorney at the very most, and it is to your interest to help me do so.’105 (ASIMIV, 1990c, p. 135-136)

104 [...] é melhor explicar apressadamente que Quinn não se candidatou, nem pediu votos, não fez discursos, nem se importou com as urnas. Não mais do que Napoleão puxou um gatilho em Austerlitz. (ASIMOV, 2004 a, p. 248) 105 - Eu presumo que conhece Stephen Byerley, doutor Lanning. - Já ouvi falar nele. Como muita gente. - Sim, eu também. Talvez o senhor tencione votar nele na próxima eleição. - Não posso dizer. [...] – Eu não tenho seguido o noticiário político e nem sabia que ele estava se candidatando. - Ele pode ser nosso próximo prefeito. É claro que é apenas um promotor agora, mas os grandes carvalhos... - Sim – interrompeu Lanning -, eu já ouvi essa expressão antes. Mas gostaria que chegássemos ao assunto deste encontro. - Mas já estamos tratando do assunto deste encontro, doutor Lanning – o tom de voz de Quinn era muito cortês. – É do meu interesse que o senhor Byerley continue sendo apenas um promotor distrital, no máximo, e é do seu interesse me ajudar nisso. (ASIMOV, 2004a, p. 249)

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Frances Quinn utiliza-se de um tom gentil e de ironias para, aos poucos, mostrar

seu verdadeiro objetivo: tentar convencer o ex-funcionário da U. S. Robots a encontrar

provas que possam impedir Byerlery de se candidatar ao cargo político, alegando que,

para a empresa de robótica, a candidatura seria prejudicial; a justificativa para isso,

segundo Quinn, é de que Stephen Byerley seria, na verdade, um robô humanoide.

Antes do início do conto, a narradora Susan Calvin nos explica que essa história

se passou no ano de 2032, quando o homem havia se tornado capaz de viajar pelo

hiperespaço através de saltos106 e, assim, criado colônias em outros planetas. A

robopsicóloga também relata brevemente sobre uma última guerra mundial que havia

levado o planeta a ser reorganizado por regiões, em vez de nações. Isso teria salvado o

mundo de uma grande crise econômica e levado o mundo a uma “Era de Ouro” na

economia. Segundo ela, toda essa revolução teria ocorrido em razão dos robôs, mais

precisamente um robô-homem: Stephen Byerley. Contudo, no período em que a história

se passa, conforme vemos no conto, os robôs já não podiam mais viver em meio aos

homens e eram permitidos apenas em planetas inabitados.

A acusação que Frances Quinn construirá contra Byerley é de que ele é um robô

e, sendo assim, não pode habitar a Terra e, muito menos, ser candidato ao cargo de

prefeito. As provas de que isso seria verdade baseiam-se em argumentos bastante

simples e resultantes de uma investigação realizada ao longo de um ano inteiro. Além

disso, Quinn demonstra que a prática de investigar seus oponentes e destruir suas

candidaturas faz parte de seus métodos políticos: ‘It is always useful, you see, to subject

the past life of reform politicians to rather inquisitive research. If you knew how often it

helped-’ He paused to smile humorlessly at the glowing tip of his cigarette.’107

(ASIMOV, 1990c, p. 137)

Como Frances Quinn pertence a uma nova escola, seus opositores fazem parte de

uma corrente reformada, mais conservadora, que prezam por um retorno a ideais

passados. Assim, pode-se pensar que Stephen Byerley seja adepto de uma era em que os

106 Em vários contos de Isaac Asimov, como “The Last Question”, o homem é descrito como capaz de viajar pelo espaço, percorrendo infinitas distâncias através de saltos. Os saltos pelo hiperespaço, como são chamados, é uma tecnologia criada para criar passagens em determinados pontos do universo que, quando atravessadas, permitem chegar a outros pontos localizados a anos-luz dali. 107 É sempre útil, como pode ver, submeter a vida pregressa de políticos reformistas a uma investigação minuciosa. Se soubesse com que frequência isso nos ajuda... – ele fez uma pausa para sorrir friamente olhando a brasa do cigarro. (ASIMOV, 2004a , p. 250)

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robôs podiam andar livremente entre os homens. Quinn, então, relata o que descobriu

com as investigações a respeito da vida de seu adversário:

[...] ‘Mr. Byerley’s past is unremarkable. A quiet life in a small town, a college education, a wife who died young, an auto accident with a slow recovery, law school, coming to the metropolis, an attorney [...] But his present life. Ah, that is remarkable. Our district attorney never eats! [...] He has never been seen to eat or drink. Never! Do you understand the significance of the word? Not rarely, but never! [...] the man is quite inhuman, Dr. Lanning.’108 (ASIMOV, 1990c, p. 137)

Vemos que os robôs se encontram tão evoluídos e tão próximos dos seres

humanos que as únicas marcas, em um primeiro momento, que nos diferenciariam deles

seriam as marcas orgânicas e biológicas. Diante disso, a possibilidade apresentada é a

de que Stephen Byerley seria o primeiro robô humanoide fabricado. Segundo o Dr.

Lanning, porém, a fabricação de um robô tão semelhante ao homem seria, apesar de

possível, inviável, uma vez que os seres humanos teriam um preconceito muito grande

com relação a ele.

Temos observado nos contos analisados um crescente desprezo do homem para

com os robôs. Quanto mais o ser mecânico se desenvolve e se aproxima do humano,

mais repugnante ele se torna e o medo de ter seu lugar ocupado por um deles cresce a

ponto de se duvidar da humanidade do outro. O preconceito que os homens

desenvolvem contra os robôs é uma questão bastante recorrente na obra de Isaac

Asimov. Neste trabalho, viu-se que esse ponto é tratado no conto “Robbie” e “Reason”.

Pensando-se em outros textos do autor, este é o tópico principal também de “The

Bicentenial Man”(1976), em que o robô, personagem principal, é atacado por um

maldoso grupo de garotos na rua, os quais ordenam que o robô se desmonte, uma vez

que ele é obrigado a obedecer à Primeira Lei da Robótica. Um outro exemplo é o

romance policial Caves of Steel (Caça aos robôs, 1954), no qual um embaixador que

luta contra as restrições anti-robôs na Terra é cruelmente assassinado.

Em “Evidence”, à medida que as investigações relativas à humanidade de

Stephen Byerley vão se desenvolvendo, vemos que a principal intenção de Frances

Quinn era a de criar um preconceito dos eleitores com relação ao outro candidato. Uma

108 - Mas o passado do senhor Byerley é impecável. Uma vida pacata em uma cidadezinha pequena, cursou o ginásio, uma esposa que morreu jovem, um acidente de carro com uma lenta recuperação, faculdade de direito, vinda para a metrópole como advogado. [...] – Mas a sua vida atual. Ah, esta é notável. Nosso promotor público nunca come! [...] Ele nunca foi visto comendo ou bebendo. Nunca! Entende o significado da palavra? Não é raramente, é nunca! [...] o homem é bem inumano, doutor Lanning. (ASIMOV, 2004a, p. 250-251)

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vez que suas acusações fossem levadas à mídia, a imagem de Byerley ficaria

permanentemente manchada.

O preconceito é um sentimento que leva à discriminação de algo ou de outro,

causado pelo medo humano, por uma necessidade de auto conservação e pelo

reconhecimento da própria fragilidade. O teórico José Leon Crochik, na obra

Preconceito, indivíduo e cultura, discute o preconceito segundo conceitos elaborados

por Sigmund Freud e Emmanuel Kant:

Esses dois autores, tão distantes no tempo e nas teorias que construíram apontam, contudo, para os conflitos existentes na própria natureza humana, como aquele ‘algo a mais’ que a cultura, a razão, o conceito e o preconceito tentam responder [...] O preconceito pode ser interpretado, em Kant, como o indutor da preguiça ou do medo do homem de sair de seu estado de menoridade, em Freud, como a vitória do desejo sobre a razão. [...] É produto daquele conflito, entre razão e desejos, ou entre cultura e desejos, e tal como o sintoma descrito pela psicanálise, é um compromisso entre ambos. Ele apresenta a coerência dos raciocínios lógicos e os anseios dos desejos que não podem sequer ser expressos culturalmente. (p. 46, 2006)

No entanto, se o homem não pode expressar seus piores preconceitos para com o

próximo, devido à moral, à ética e às leis sociais, nas relações homem-máquina não há

qualquer fator limitante que cause inibição a esse tipo de comportamento. O conto leva

a uma reflexão a respeito da natureza humana quando coloca o homem diante de um

adversário que, aparentemente, é igual a ele, mas, por ser um robô, não mereceria ser

tratado com o mesmo respeito e valor.

Além disso, uma outra questão é levantada quando nos deparamos com o

questionamento levantado por Frances Quinn a respeito da identidade humana de

Byerley: o que faz do homem humano? A narrativa mostra que as feições, emoções e

atitudes de uma pessoa não são suficientes para confirmar sua natureza:

The face of Stephen Byerley is not an easy one to describe. He was forty by birth certificate and forty by appearance – but it was a healthy, well-nourished good-natured appearance of forty; one that automatically drew the teeth of the bromide about ‘looking one’s age.’

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This was particularly true when he laughed, and he was laughing now. It came loudly and continuously, died away for a bit, then began again – 109 (ASIMOV, 1990c, p. 139)

Diferentemente dos sons emitidos pelo robô Cutie ao cantar, rir e caminhar, em

“Reason”, não se vê em Byerley nada que remeta a uma estrutura mecânica ou metálica.

Além disso, seu nome não é mais um mero apelido, ele possui nome e sobrenome, além

de ter um cargo público, de promotor. Mais do que isso, ele possui uma biografia e não

mais uma memória em branco antes de ser colocado em funcionamento.

Segundo a ciência, o que nos diferencia dos animais são características como:

nossa postura ereta, a capacidade da fala, a habilidade de manipular o fogo, o uso de

vestimentas, nossa capacidade de utilizar as mãos para manipular objetos e ferramentas,

nossa capacidade cognitiva extraordinária, as emoções que sentimos, a experiência de

uma infância longa e, por último, o fato de nos reproduzirmos e vivermos um bom

período após isso.110 No caso dos robôs, eles não podem se desenvolver biologicamente

(nascer, crescer e se reproduzir) e, portanto, apenas isso os diferenciaria de nós.

Seria simples, então, provar que Stephen Byerley não se trata de um ser humano,

caso ele não tivesse provas de ter passado pela infância; porém, a teoria de Francis

Quinn é a de que o verdadeiro Byerley teria criado um robô para substituí-lo após ter

sofrido um acidente que lhe deixou paraplégico. Desse modo, essa possibilidade torna-

se inválida.

Então, a robopsicóloga Susan Calvin, é convocada para realizar um teste no

promotor e avaliar sua humanidade:

Again Byerley turned to the woman, who still regarded him expressionlessly. ‘Pardon me. I’ve caught your name correctly, haven’t I? Dr. Susan Calvin?’ ‘Yes, Mr. Byerley.’ ‘You are the U. S. Robots’ psychologist, aren’t you?’ ‘Robopsychologist, please.’ ‘Oh, are robots so different from men, mentally?’

109 O rosto de Stephen Byerley não era fácil de descrever. Ele tinha quarenta anos pela certidão de nascimento e aparentava quarenta anos – mas era uma aparência saudável e bem nutrida; uma que lembrava o velho clichê sobre alguém aparentar a idade que tem. (ASIMOV, 2004a, p. 253) E isso era particularmente verdadeiro quando ele ria. E Byerley estava rindo agora. Uma risada alta e contínua, que diminuiu um pouco e depois começou de novo... 110 Fonte: Revista LiveScience <http://www.livescience.com/15689-evolution-human-special-species.html> Acesso em 10 de abril de 2014.

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‘Worlds different.’ She allowed herself a frosty smile, ‘Robots are essentially decent.’111 (ASIMOV, 1990c, p. 142)

Observamos mais uma vez na obra de Asimov o olhar otimista sobre os robôs;

pressupõe-se que eles sejam melhores do que os humanos que os criaram, uma vez que

agem de forma mais correta e possuem uma índole aprimorada. Mas por que os robôs

agem de forma tão correta? A explicação dada pelo conto é de que eles não podem agir

de outra forma, pois são regidos pelas Leis da Robótica. Os Engenheiros Robóticos

acreditam na infalibilidade dessas Leis criadas por eles e creem que todas as

observações e avaliações baseadas nelas sejam, portanto, irrefutáveis.

Os testes quanto à natureza de Stephen Byerley seguem-se da seguinte forma:

Susan Calvin oferece a ele uma maçã; caso ele a coma, ficaria provado que ele é um

humano, uma vez que robôs não podem se alimentar. Byerley consegue ser aprovado

nesse teste, pois ingere a maçã normalmente, o que, todavia, não convence os

engenheiros:

‘I was curious to see if you would eat it, but, of course, in the present case, it proves nothing.’ Byerley grinned, ‘It doesn’t?’ ‘Of course not. It is obvious, Dr. Lanning, that if this man were a humanoid robot, he would be a perfect imitation. He is almost too human to be credible. After all, we have been seeing and observing human beings all our lives; it would be impossible to palm something merely nearly right off on us. It would have to be all right. Observe the texture of the skin, the quality of the irises, the bone formation of the hand. If he’s a robot, I wish U. S. Robots had made him, because he’s a good job. Do you suppose then, that anyone capable of paying attention to such niceties would neglect a few gadgets to take care of such things as eating, sleeping, elimination? For emergency use only, perhaps; as, for instance, to prevent such situations as are arising here. So meal won’t really prove anything.’112 (ASIMOV, 1990c, p. 143)

111 Novamente Byerley virou-se para a mulher que ainda o observava sem emoção. - Perdoe-me, será que ouvi seu nome corretamente? Doutora Susan Calvin? - Sim, senhor Byerley. - É a psicóloga da U. S. Robôs, não é? - Robopsicóloga, por favor. - Oh, são os robôs tão diferentes dos homens, mentalmente? - Mundos de diferença. – Ela permitiu-se um sorriso gélido. – Os robôs são essencialmente decentes. (ASIMOV, 2004a, p. 257) 112 - Eu estava curiosa para ver se a comeria, no caso atual, mas ela não prova nada. Byerley sorriu. - Não mesmo? - É claro que não. É óbvio, doutor Lanning, que se este homem for um robô humanoide, ele será uma imitação perfeita. Ele é quase humano demais para ser verdade. Afinal, estamos vendo e observando seres humanos durante toda a nossa vida; seria impossível nos enganar com uma reprodução quase perfeita. Ela teria que ser inteiramente perfeita. Observe a textura da pele, a qualidade da íris, a estrutura óssea da

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Mais uma vez percebe-se que apenas o aspecto orgânico não serve característica

identitária para o homem. Por ter desenvolvido uma criatura tão semelhante a si, o

homem teria, agora, de encontrar outras formas de se definir e de se distinguir de

qualquer outra criatura. Aos poucos, o conto evidencia essa busca pela essência do que

é ser humano.

Após passar nesse teste, Byerley dirige-se a sua casa, onde se encontra com um

sujeito em uma cadeira de rodas, chamado John. O promotor se comporta de forma

submissa a John, carregando-o no colo até o jardim. Ao acompanharmos o diálogo entre

Byerley e o homem, temos, pela primeira vez, uma pista de que as suspeitas de Francis

Quinn estariam corretas:

‘Quinn’s campaign will be based on the fact that he claims I’m a robot’ John’s eyes opened wide, ‘How do you know? It’s impossible. I won’t believe it.’ ‘Oh, come, I tell you it’s so. He had one of the big-shot scientists of U. S. Robots and Mechanical Men Corporations over at the office to argue with me.’ Slowly John’s hands tore at the grass, ‘I see. I see.’113 (ASIMOV, 1990c, p. 145)

Conforme vemos, John não considera suas suspeitas como algo absurdo. Em

seguida, Francis Quinn procura os engenheiros para que novos testes sejam realizados

em Byerley e, mais uma vez, propõem-se testes biológicos, a fim de se verificar sua

estrutura corporal. Susan Calvin sugere a utilização de um aparelho de raio-x para um

teste físico. Todavia, a robopsicóloga diz, ainda, que poderiam ser realizados testes

comportamentais, baseados nas Leis da Robótica. É interessante observar no diálogo

entre Calvin e Quinn que, segundo ela, talvez as Leis nada possam provar, uma vez que

um homem correto também deveria obedecê-las:

mão. Se ele é um robô, eu queria que a U. S. Robôs o tivesse feito, porque foi um bom trabalho. E não acredita que alguém capaz de dar atenção a tais detalhes não deixaria de acrescentar algumas engenhocas para cuidar de tais coisas como comer, dormir, e eliminar dejetos? Talvez apenas para usar numa emergência, como por exemplo, evitar situações como a que temos aqui. Assim, uma refeição não provaria realmente nada. (ASIMOV, 2004a, p. 258) 113 - A campanha de Quinn vai ser baseada no fato de que ele afirma que eu sou um robô. Os olhos de John arregalaram-se. - Como você sabe? É impossível. Eu não acredito. - Ora, vamos, eu lhe falei. Ele mandou um dos chefões da Corporação Robôs e Homens Mecânicos dos Estados Unidos ao escritório para discutir comigo. Lentamente as mãos de John arrancaram algumas folhas de grama. - Sei, sei. (ASIMOV, 2004a, p. 261)

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‘Because, if you stop to think of it, the three Rules of Robotics are the essential guiding principles of a good many of the world’s ethical systems. Of course, every human being is supposed to defer to proper authority; to listen to his doctor, his boss, his government, his psychiatrist, his fellowman; to obey laws, to follow rules, to conform to custom – even when they interfere with his comfort or his safety. That’s Rule Two to a robot. Also, every ‘good’ human being is supposed to love others as himself, protect his fellow man, risk his life to save another. That’s Rule One to a robot. To put it simply – if Byerley follows all the Rules of Robotics, he may be a robot, and may simply be a very good man.’114 (ASIMOV, 1990c, p. 146)

Assim, vemos que Asimov discute, aqui, outra questão que podemos enraizar na

filosofia: o que leva o homem a agir de forma correta? Apesar de os homens estarem

sujeitos a leis, conforme alega Susan Calvin, apenas os homens realmente muito bons

são capazes de segui-las. Por isso, Asimov considera que os robôs são superiores aos

homens: apesar de serem criados pelos humanos, eles são obrigados, por sua

programação, a seguirem as leis, sendo incapazes de praticar atos maldosos ou de

agirem por vingança. Assim, observaremos que, apesar de todas as tentativas de Quinn

em prejudicar Byerley, este apenas tenta se defender e não pretende atacá-lo de volta.

Não existe nenhuma lei humana que obrigue o homem a ser bom, a ter

compaixão por seu próximo; as boas ações são regidas pela essência de alguns seres

humanos. Agimos conforme aquilo que sabemos ser adequado aos olhos da sociedade,

de acordo com certas regras de convivência que aprendemos desde a infância. A escolha

por seguir ou não estas regras, segundo Susan Calvin, é o que determina o quão benigno

um homem é. Podemos, portanto, escolher se queremos ser bons ou maus; o robô, por

outro lado, não tem escolha: ele é programado para ser bom.

O apego às regras e às leis fica ainda mais claro, considerando-se que Stephen

Byerley é um advogado e promotor – portanto, um homem das leis - o que evidencia

sua dedicação àquilo que é regido por uma força maior, nesse caso, o Estado. Na

passagem em que Quinn envia oficiais à residência de Byerley, para, por meio de uma 114 Porque se parar para pensar nelas, as três Leis da Robótica são os princípios essenciais que guiam muitos dos sistemas éticos do mundo. É claro que todo ser humano deve ter um instinto de autopreservação. Esta é a lei número três para um robô. Igualmente, todo “bom” ser humano, com uma consciência social e um senso de responsabilidade, vai seguir a autoridade adequada; ele ouvirá o que diz seu médico, seu chefe, seu governo, seu psicólogo, seu companheiro, ele obedecerá às leis e seguirá as regras, seguindo os costumes, mesmo quando isso interferir no seu conforto ou na sua segurança. Esta é a lei número dois para um robô. E do mesmo, todo “bom” ser humano deve amar aos outros como a si mesmo, protegendo seus companheiros, arriscando sua vida para salvar as vidas de outros. Esta é a lei número um para um robô. Resumindo: se Byerley seguir todas as leis da robótica, ele poderá ser um robô, mas também poderá ser apenas um homem muito bom. (ASIMOV, 2004a, p. 263)

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procuração, buscar quaisquer provas de que este último seja, de fato, um robô, Byerley

se defende apenas pelo uso de seus direitos legítimos:

‘This, Mr. Byerley, is a court order authorizing me to search these premises for the presence of illegal...uh...mechanical men or robots of any description.’ Byerley half rose, and took the paper. He glanced at it indifferently, and smiled as he handed it back. ‘All in order. Go ahead. Do your job [...]’115 (ASIMOV, 1990c, p. 150-151)

O policial Harroway é autorizado a revistar sua casa, uma vez que está de posse

de uma autorização judicial. Por isso, sua entrada é tranquilamente autorizada pelo

proprietário. No entanto, quando se sugere que o próprio Byerley seja revistado, com o

uso de uma máquina de Raio-x, este, mais uma vez, faz uso da lei em seu favor:

‘Then I’m to have my X-ray photograph taken, hey? You have the authority? [...] I read here as the description of what you are to search; I quote: ‘the dwelling place belonging to Stephen Allen Byerley, located at 355 Willow Grove, Evanstron, together with any garage, storehouse or other structures or buildings thereto appertaining, together with all grounds thereto appertaining’ [...] But, my good man, it doesn’t say anything about searching my interior. I am not part of the premises. You may search my clothes if you think I’ve got a robot hidden in my pocket.’116 (ASIMOV, 1990c, p. 151)

É bastante significativo que Byerley fale sobre o fato de que seu interior não

pode ser investigado. Há muito tempo existe um grande medo da perda da privacidade,

de termos nossos espaços particulares invadidos e observados por outros. Desde o

advento da psicanálise, com Freud (1865-1939), verificou-se que muito daquilo que está

no inconsciente humano pode ser revelado, através do diálogo entre paciente e

psicanalista. O autor do texto não deixa dúvidas de que em I, Robot os robôs possuem

uma mente, um pensamento, que podem ser explorados e estudados: tanto que a história

115 - Esta, senhor Byerley, é uma ordem da corte autorizando a busca nesse domicílio à procura da presença ilegal de... ah... homens mecânicos ou robôs de qualquer tipo. Byerley ergueu-se e pegou e pegou a folha de papel. Ele a examinou de modo indiferente e sorriu enquanto a devolvia. - Tudo certo. Vá em frente. Faça o seu trabalho [...] (ASIMOV, 2004a, p. 269) 116 - Então vão fazer uma foto minha com raio X, hã? Você tem autorização para isso? [...] - Eu leio aqui uma descrição do que deve procurar. Citando: “A moradia pertencente a Stephen Byerley, localizada no número 355 da Willow Grove, Evanstron, junto com qualquer garagem, depósito ou outras estruturas e prédios pertencentes ao domicílio, junto com todo o terreno pertencente” [...] Isso está em ordem, mas, meu bom homem, aqui não diz nada sobre pesquisar o meu interior. Eu não sou parte da propriedade. Pode revistar minhas roupas se quiser, se achar que eu tenho um robô escondido no meu bolso. (ASIMOV, 2004a, p. 270)

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nos é narrada por uma robopsicologa. Mas o que uma busca pelo interior de um robô

poderia revelar? Provavelmente carregaria muitos traços daqueles que foram

responsáveis pela criação dessas máquinas, isto é, do próprio homem. Aqui, portanto,

mais uma vez fica evidente o desejo por encontrar o próprio significado do homem, o

sentido de ser humano.

Além de se manter firme à obediência das Leis – tanto às robóticas, quanto às

dos homens – Byerley ainda deixa claro a indiferença de Quinn com relação ao

cumprimento das mesmas:

[...] ‘It’s rather symbolic of our two campaigns, isn’t it? You have little concern with the rights of the individual citizen. I have great concern. I will not submit to X-ray analysis, because I wish to maintain my Rights on principle. Just as I’ll maintain the rights of others when elected.’ 117 (ASIMOV, 1990c, p. 153)

Como podemos observar no fragmento acima, o robô faz uma distinção entre o

próprio caráter e o de Quinn, mostrando, nesse momento, que independentemente de

sua natureza – seja ele homem ou máquina – ele seria um governante melhor, pois

respeitava aquilo que, para o Estado e seu povo, é o mais importante: os Direitos do

cidadão. Vemos, portanto, uma busca da valorização individual, da manutenção da

integridade do sujeito, diante da corrupção do caráter do outro. Asimov vai construindo

a identidade dos dois políticos sempre em comparação uma com a outra, mostrando os

defeitos e as virtudes de ambos.

Assim, em meio a essa disputa, a narrativa nos diz que o povo, induzido pelas

ideias de Quinn, começa a se sentir incomodado e desconfiado de Beyrley. Junto de

John, portanto, este decide realizar um pronunciamento em rede nacional, prestando

esclarecimento a respeito do assunto em questão, apesar da preocupação com ataques

daqueles que são chamados de Fundamentalistas. Os Fundamentalistas, na obra de

Asimov, fazem parte de um grupo de pessoas que não aceitam a fabricação e o uso de

quaisquer tipos de robôs, seja para qualquer finalidade. Eles alegam que os seres

artificiais são perigosos e, por sua causa, essas máquinas são banidas da Terra. Percebe-

se que, para a criação desse grupo, Asimov se inspirou no movimento regido pela

comunidade protestante, no início do século XX. Os Fundamentalistas cristãos 117 - [...] É um tanto simbólico de nossas duas campanhas, não é? Você dá pouca importância aos direitos do indivíduo. Eu me preocupo muito. Não vou me submeter a um exame de raios X porque desejo salvaguardar meus direitos. Assim como protegerei os direitos dos outros se for eleito. (ASIMOV, 2004a, p. 272)

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acreditam que suas verdades são absolutas e resistentes a qualquer tipo de mudança que

não esteja fundamentada em suas próprias crenças. O termo foi expandido e é, hoje,

atribuído a qualquer grupo que se mostre extremista com relação a suas opiniões ou

dogmas. Assim como foi visto em “Reason”, Asimov coloca em questão o extremismo

religioso e mostra como as pessoas pertencentes a estes grupos são cegas a certas

verdades e podem ser facilmente enganadas.

Conforme vimos no início deste capítulo, a sociedade do início do século

apresentava temor à tecnologia e, sempre que se escreviam histórias de robôs, estes se

tornavam perigosos e ameaçadores. Asimov não aceitava essa premissa e propõe, em

sua literatura, uma visão absolutamente contrária; desse modo, pode-se perceber que

essa resistência ao desenvolvimento tecnológico tem representação crítica na obra do

autor, por meio da figura dos fundamentalistas.

No desfecho do conto, Stephen Byerley aparece diante de uma audiência revolta,

reunida pelos fundamentalistas, visando fazer um pronunciamento a respeito de sua

natureza. Em meio ao alvoroço e gritos proferidos pela multidão, o discurso de Byerley

é inaudível e malsucedido, em um primeiro momento, até que um homem tenta se

aproximar para fazer uma pergunta e o candidato pede para que ele suba até o balcão:

‘Have you a question?’ The thin man stared, and said in a cracked voice, ‘Hit me!’ With sudden energy, he thrust out his chin at an angle. ‘Hit me! You say you’re not a robot. Prove it. You can’t hit a human, you monster.’ There was a queer, flat, dead silence. Byerley’s voice punctured it. ‘I have no reason to hit you.’ The thin man was laughing wildly. ‘You can’t hit me. You wont’t hit me. You’re not a human. You’re a monster, a make-believe man.’ And Stephen Byerley, tight-lipped, in the face of thousands who watched in person and the millions who watched by screen, Drew back his fist and caught the man crackingly upon the chin.’ 118 (ASIMOV, 1990c, p. 158)

118 - O senhor tem uma pergunta? O homem magro olhou para ele e falou com uma voz estridente: - Me acerte! Com uma energia súbita ele ofereceu o queixo. - Me bata! Você diz que não é um robô. Prove. Você não pode bater num humano, seu monstro. Houve um silêncio estranho, abafado, mortífero. A voz de Byerley foi o único som ouvido. - Eu não tenho motivo para bater em você. O homem magro riu de um modo insano. - Você não pode me bater. Você não vai me bater. Você não é humano. Você é um monstro, um homem de mentira.

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Assim, a impressão que o leitor tem nesse momento, é de que Byerley, que se

mostrou, ao longo de todo o conto, incapaz de quebrar qualquer lei e, até mesmo, de

simplesmente perder a paciência, finalmente foi tomado de ira e atingiu aquele que o

acusava injustamente. A narrativa está, aparentemente, resolvida e Francis Quinn acaba

sendo duplamente derrotado: perde sua credibilidade e, por isso, é vencido nas eleições.

Percebe-se, que para provar sua humanidade, Byerley precisa ter um ato irracional,

partindo para a agressividade. É como se ele tivesse de colocar para fora seus instintos

mais primitivos para mostrar que não é um ser de ações programadas. Aos olhos dos

humanos, um robô é um homem de mentira, de faz de contas, um monstro. Porém, vê-se

certa ironia no fato de que para não ser um monstro um homem seja obrigado a bater em

outro, sem nenhum motivo aparente. Os homens não conseguem a autoafirmação por

suas virtudes, somente por seus defeitos.

O desejo do narrador, porém, é que o leitor continue se questionando sobre a real

identidade de Byerley. Em uma última conversa entre Susan Calvin e ele, o homem

alega que sempre se interessou pelas Leis da Robótica e, assim, a doutora conclui que o

verdadeiro Stephen Byerley é o homem na cadeira de rodas que, obrigado a abdicar de

seu trabalho, construiu um robô, idêntico a ele mesmo, para ocupar seu lugar no mundo

político. Assim, a robopsicóloga explica, ao próprio Byerley e, consequentemente, ao

leitor, o que de fato ocorreu durante a agressão praticada no discurso:

‘I mean there is one time when a robot may strike a human being without breaking the First Law. Just one time.’ ‘And when is that?’ Dr. Calvin was at the door. She said quietly, ‘When the human to be struck is merely another robot’ She smiled broadly, her thin face glowing. ‘Good-by, Mr. Byerley. I hope to vote for you five years from now – for co-ordinator.’ Stephen Byerley chuckled. ‘I must reply that that is a somewhat farfetched idea.’119 (ASIMOV, 1990c, p. 160)

E Stephen Byerley, com os lábios comprimidos, diante de milhares que o observavam em pessoa e milhões que viam tudo pelas telas de vídeo, fechou a mão num punho e acertou um soco fulminante sob o queixo do sujeito. (ASIMOV, 2004a, p. 278) 119 - Eu quero dizer que existe apenas uma ocasião em que um robô pode golpear um ser humano sem violar a Primeira Lei. Só em uma ocasião. - E quando é isso? A doutora Calvin estava na porta. Ela disse suavemente: - Quando o humano golpeado é meramente outro robô. Ela sorriu francamente, o rosto radiante. – Adeus, senhor Byerley. Espero votar no senhor daqui a cinco anos, para coordenador. Stephen Byerley sorriu. - Eu devo dizer que esta é uma ideia extravagante. (ASIMOV, 2004a, p. 281)

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Apesar de o autor não deixar claro no texto em nenhum momento, presume-se

que a teoria da Dr. Calvin esteja correta. Isso seria revelado pelo autor na introdução da

coletânea Robot Visions, quando ele alega que Stephen Byerley serviu de inspiração

para que ele escrevesse outras histórias sobre robôs humanoides, como o romance

Caves of Steel (1954).

Verificamos, assim, que além de o personagem robô possuir propriedades

corpóreas idênticas aos seres humanos, ele foi criado para substituir um homem

verdadeiro, em todas as suas funções. Uma vez debilitado e transfigurado, o real

Stephen Byerley criou uma cópia de si, um duplo, que pudesse impedir seu próprio

desaparecimento.

A respeito da figura do duplo, o teórico Otto Rank (1939) alega que o tema é

recorrente na literatura, no folclore e na mitologia, representando a luta do indivíduo

com a sua própria Personalidade. A criação do duplo seria uma tentativa de evitar a

própria morte e superar as fraquezas humanas, as limitações.

Segundo Françoise Dolto (2013), todos temos um duplo interior, inconsciente. O

robô é esse duplo estruturado e materializado; o duplo, sendo nossa própria imagem,

permite que nos reconheçamos em algo exterior, é um substrato de nossa identidade.

Podemos inferir, portanto, que um robô humanizado é uma forma de vermos a

nós mesmos, como em um espelho. Porém, ao contrário do espelho, este ser mecânico

capaz de ter vontades e sentimentos próprios, torna-se autônomo e também uma ameaça

à humanidade: o medo de sermos substituídos e de perdermos nosso espaço está

relacionado com o temor da perda da própria identidade.

O processo que observamos nos três contos analisados foi o da evolução do

robô: a princípio um ser artificial criado pelo homem, cujas ações foram programadas

para serem sempre previsíveis, levando-se em conta as Leis da Robótica. Essa

previsibilidade, contudo, foi sendo perdida à medida que os próprios homens foram

aperfeiçoando os mecanismos e, principalmente, o “cérebro” das criaturas artificiais.

Vemos em “Robbie” um robô com características e predileções infantis, capaz

de se afeiçoar a um ser humano com quem convive. O robô não possui capacidade de

fala, assim como o homem em seus primeiros meses de vida; do mesmo modo que um

bebê, Robbie é capaz de comunicar através de expressões corpóreas e se fazer entendido

pela menina, Glória.

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Em “Reason”, a semelhança da máquina com o ser humano assume um nível

mais elevado; agora, o robô Cutie não apenas possui a habilidade de falar e de se

comunicar, como também se tornou um ser racional, ao questionar sua essência. Sabe-se

que, de acordo com a biologia, o homem pertence à espécie dos homo sapiens; isso

significa que nos distinguimos das outras espécies por possuirmos características

específicas, como linguagem, raciocínio abstrato, racionalidade e autoconsciência.

Como poderíamos distinguir, portanto, um ser humano de um ser artificial que adquiriu

todas estas mesmas qualidades? Além disso, como reagiríamos se este ser tivesse, ainda,

uma estrutura física mais resistente e durável que a nossa?

Em “Evidence”, chegamos a um patamar ainda maior entre a semelhança entre

os homens e os robôs, sendo impossível, através da simples observação de seus aspectos

físicos e comportamentais, distinguir entre um e outro. Vemos, assim, o preconceito

revelado pelo homem diante dessa cópia quase perfeita de si e, também, a criação de

grupos que exigem o fim das máquinas.

Através da reatualização de histórias clássicas de nossa cultura, como os contos

de fadas, da reinterpretação de mitos e do emprego de teorias filosóficas, Asimov se

utilizou de suas histórias de robôs, de homens mecânicos, para, na verdade, falar sobre a

natureza humana, ao mostrar o “nascimento” dessas máquinas, sua infância, seu ganho

de consciência e sua vida adulta, na qual, diante de uma sociedade que discrimina o

diferente e o ameaça, se vê obrigado a igualar-se para provar sua normalidade.

Pode-se dizer que o robô passou por um processo de formação de identidade, de

constituição como sujeito, apoiado nas relações com seres humanos, com outros robôs e

com o meio social.

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3. O CINEMA DE FICÇÃO CIENTÍFICA

Na obra Projecting Tomorrow: science fiction and popular cinema, os autores

apontam, de forma muito pertinente, o fato de que tanto a ficção científica, como

literatura, quanto o cinema são frutos da revolução tecnológica ocorrida no final do

período vitoriano. Sendo assim, ambas as formas de arte têm caminhado juntas:

The cinematograph was the ‘last machine’ of the Victorian age, following the telephone (1876), internal combustion engine (1876), cathode ray tube (1878), phonograph (1878) and wireless telegraphy (1894). Science fiction also reflected the interest in technology and modernity.120 (CHAPMAN; CULL, p. 1, 2013)

É importante lembrarmos, também, que a maior parte dos filmes de Ficção

Científica, senão todos eles, dependem dos avanços tecnológicos para que se criem

efeitos especiais que possam mostrar, por exemplo, viagens interplanetárias, ataques

alienígenas, máquinas que andam e falam, etc.

O primeiro filme a tratar de viagens interespaciais e de homens extraterrestres,

produzido em 1902, foi baseado em duas obras de ficção: De la terre à la Lune (1865),

de Júlio Verne, e First Men in the Moon (1901), de H. G. Wells. A película em questão

levou o nome de Le Voyage dans la Lune e foi escrita e dirigida pelo francês George

Méliès. Muitos consideram que este tenha sido o primeiro filme de ficção científica

produzido em toda a história. Sendo assim, desde os primórdios do cinema de ficção

científica, este já se baseava em textos literários para criar seus roteiros e inspirava-se

nas ideias futurísticas desse tipo de literatura para compor suas histórias.

George Méliès, um dos precursores do cinema mundial, também é conhecido

como o primeiro cineasta do fantástico. O ilusionista utilizava efeitos especiais para

produzir cenas de pessoas sem cabeça, notas musicais com cabeças flutuantes e seres do

mundo sobrenatural, como sereias e extraterrestres.

120 O cinematógrafo foi a ‘última máquina’ da era Vitoriana, seguida pelo telefone (1876), o motor de combustão interna (1876), o tudo de raios catódicos (1878), o fonógrafo (1878) e o telégrafo sem fio (1894). A Ficção Científica também refletiu o interesse na tecnologia e na modernidade. (tradução nossa)

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Figura 11: Cena do filme de George Méliès 1 Fonte: <http://filmabinitio.blogspot.com.br/2010/05/films-first-cinemagician-magic-

of.html>

Figura 12: Cena do filme de George Méliès 2 Fonte: <http://thefilmstage.com/features/10-classic-films-you-must-watch-before-

seeing-martin-scorseses-hugo/>

Figura 13: Cena do filme de George Méliès 3 Fonte: <http://adar.com.br/adarblog/2012/07/as-invencoes-de-georges-melies/>

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Os filmes do gênero fantástico de Méliès, tinham, do mesmo modo, base na

literatura, como bem lembra Pelosato:

Ce cinéma fantastique s’est immédiatement appuyé sur les grands thèmes littéraires du genre, eux-mêmes, comme nous l’avons indiqué, inspiré à la fois des terreurs de nos angoisses et de traditions folkloriques. (2009, p. 50) 121

Os filmes com a temática do fantástico passaram a se mostrar cada vez mais

atraentes ao público e, além de Méliès, outros diretores interessaram-se em adaptar

obras literárias do gênero para o cinema, tendo na década de 1930 surgido filmes como

Dracula, de Tod Browning (1931), Frankenstein, de James Whale (1931) e The

Mummy, de Karl Freund (1932). Segundo Pelosato, os temas presentes na literatura e

no cinema são os mesmos, pois ambas as artes exprimem a natureza humana através de

metáforas e símbolos.

Antes disso, os monstros criados pelo inconsciente humano já estavam presentes

em filmes como Golem (1921), de Henrick Galeen e Nosferatu (1921), de Murnau,

ambos pertencentes ao cinema expressionista. As técnicas utilizadas nessas produções

estariam presentes, décadas mais tarde, em alguns dos mais famosos filmes de Ficção

Científica:

On retrouve également cette géométrie non euclidienne des villes tentaculaires de Metropolis dans Blade Runner (1982) de Ridley Scott, New York 1977 (1981) de John Carpenter, dans le monde baroque et fou d’Alien 3 de David Fincher (1992) [...] (PELOSATO, P. 52)122

Assim, conforme a literatura de ficção científica foi aperfeiçoando seus

contornos e ganhando espaço entre o público de leitores, o cinema, e também a

televisão, acabou se interessando cada vez mais por produzir histórias baseadas no

121 Esse cinema fantástico apoiou-se imediatamente nos grandes temas literários do próprio gênero, como mostramos, inspirado tanto pelos terrores de nossas angústias como pelas tradições folclóricas. (tradução nossa) 122Encontramos, igualmente, essa geometria não euclidiana de cidades espalhadas de Metropolis em Blade Runner (1982) de Ridley Scott, em New York 1977 (1981) de John Carpenter, no mundo barroco e louco de Alien 3 de David Fincher (1922) […] (tradução nossa)

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gênero. Essas duas mídias tiraram proveito das narrativas produzidas e publicadas em

larga escala, levando para as telas algumas de suas ideias mais instigantes, como

invasões alienígenas ao planeta Terra e uma vida cercada por tecnologias até então

quase fantasiosas.

Na década de 1950, a ameaça da guerra fria e o medo da invasão de uma

ideologia vinda de um país estrangeiro, o comunismo, levaram à adaptação de obras de

Ficção Científica que exploravam o tema do ataque alienígena ao planeta Terra, como

War of the Worlds (A guerra dos mundos, 1953) e The Thing (A coisa, 1951).

Notamos que o cinema de ficção científica está intimamente ligado ao cinema

fantástico. Ao contrário da literatura de ficção científica, o cinema do gênero não é, com

frequência, roteirizado e dirigido por especialistas em física, matemática, química, ou

outros campos da ciência. Possivelmente por isso, muitas vezes nos deparamos com

circunstâncias muito mais próximas do mundo imaginário do que do mundo científico

em algumas das produções mais populares do cinema de ficção científica, como é o

caso, por exemplo, do pesquisador que tem seu DNA fundido com o de uma mosca

após uma experiência com uma máquina de teletransporte, no longa The Fly (A mosca,

1986, refilmagem do filme homônimo de 1958).

Algo que chama atenção no cinema de Ficção Científica é que, muito mais do

que na literatura, a ênfase maior está em narrativas que mostram a humanidade em um

processo de autodestruição, seja por vírus criados em laboratórios e disseminados de

forma imprudente, seja por robôs que fogem ao nosso controle, seja pela degradação do

meio ambiente ocasionada pela crescente emissão de poluentes. Em quase todos os

filmes de Ficção Científica temos uma sociedade distópica, degradada e pessimista.

Segundo o SFE (The Encyclopedia of Science Fiction) a palavra distopia pode ser

definida da seguinte forma:

[…] is the commonly used antonym of ‘eutopia [...] and denotes that class of hypothetical societies containing images of worlds worse than our own. [...] Dystopian images are most invariably images of future society, pointing fearfully at the way the world is supposedly going in order to provide urgent propaganda for a change in direction […]123

123 [...] é o antônimo comum de ‘eutopia’[...] e denota a classe de sociedades hipotéticas que contém imagens de mundos piores do que os nossos. [...] Imagens distópicas são, mais invariavelmente, imagens de sociedades futuras, apontando temerosamente para o caminho que o mundo está supostamente seguindo, para promover uma advertência urgente para uma mudança de curso. (tradução nossa). Fonte: http://www.sf-encyclopedia.com/entry/dystopias

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Além do fato já apontado pela enciclopédia de que existe um desejo de mostrar o

que pode acontecer de ruim no mundo e levar o espectador a uma reflexão acerca das

ações do homem, há, em outras produções, a intenção de mostrar o homem superando

grandes ameaças e tornando-se herói diante dessas catástrofes. Alguns exemplos desse

tipo de filme são os famosos Terminator (O Exterminador do Futuro, 1984), em que os

humanos precisam salvar a terra da ameaça de robôs e Armageddon (1998), o qual conta

a história de astronautas que procuram um meio de destruir um meteoro gigante que

está prestes a destruir a Terra.

Temos visto no cinema, nas últimas décadas, uma grande presença de filmes

cuja ênfase se dá na interação entre o homem e o robô (ou outros seres dotados de

inteligência artificial, como supercomputadores, androides e ciborgues). Apenas no

últimos três anos, foram lançados Her (Ela, 2013), Big Hero 6 (Operação Big Hero,

2014), Chapie (2015) e Ex Machina (2015):

With this concerted focus on the human body, I would suggest, these films reflect a central concern of the genre, one that underlies those various images of disaster [...]: an anxiety about our own nature. In these images of human replication are bound up all our qualms about artifice – science, technology, mechanism – and, what is more important, about our nature as artificers, constructor of the real, and of the self – homo faber. (TELOTTE, 1995, p. 5)124

Se nas lendas, mitos e contos populares a imaginação levava à criação de

monstros humanizados, como múmias, vampiros, duendes, entre outros, a ciência foi

capaz de concretizar estes seres que se parecem com o homem, mas não são humanos;

assim, os seres artificiais permanecem tendo algo de obscuro, de misterioso. Não

sabemos o que se passa dentro do “pensamento” de uma máquina que, por ser tão

parecida conosco, pode também ser ameaçadora.

Para H. G. Wells, o cinema era uma forma de disseminar ideias. Wells engajou-

se na área cinematográfica, tendo mais de quarenta obras adaptadas. Outros escritores

de Ficção Científica que surgiram após Wells começaram a se interessar

124Com esse foco centrado no corpo humano, eu diria, esses filmes refletem uma preocupação central do gênero, a qual fundamenta as várias imagens do desastre [...]: uma ansiedade sobre a própria natureza. A essas imagens da réplica humana estão atreladas todas as nossas dúvidas sobre o artifício – ciência, tecnologia, mecanismo – e, o que é mais importante, sobre nossa natureza como artífices, construtores do real, e do eu – homo faber. (tradução nossa) . Fonte: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=oT7Jwm-IzQ4C&oi=fnd&pg=PP9&dq=science+fiction+movie&ots=GhAndvq9Ih&sig=QMzXM3MTeylTwC-_iPCWaLFIwKg#v=onepage&q=science%20fiction%20movie&f=false> Acesso em 12 de julho de 2015.

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progressivamente por ter seus livros levados ao cinema ou, simplesmente, tiveram os

direitos de suas obras liberados para que roteiristas as adaptassem.

Assim, temos exemplos de alguns autores, como Phillip K. Dick, o qual teve três

de seus livros transformados em filmes bastante conhecidos – Blade Runner, Total

Recall e Minority Report – todavia, o enredo dos filmes pouco lembra os livros.

No ano de 2004, tentou-se realizar uma transposição para o cinema a partir do

livro I, Robot, de Isaac Asimov. No entanto, o longa-metragem não foi baseado em

nenhum dos contos de forma específica e nem segue, nem mesmo de forma aproximada,

a narrativa criada pelo conjunto desses textos. Estrelado por Will Smith, pode-se apenas

dizer que o que a história carrega daquilo que foi criado por Asimov são as três leis da

robótica e a personagem robopsicóloga, Susan Calvin. Como de costume em filmes de

Ficção Científica, o ambiente criado pelo roteiro é distópico, ao contrário daquilo que

Asimov descrevia.

Para Chapman e Cull (2013), um dos motivos pelo qual alguns filmes de Ficção

Científica perdem muito de seu conteúdo ou são profundamente modificados quando

roteirizados é o fato de muitos deles serem contos. É complicado fazer com que um

conto se transforme em um filme de 120 minutos. Além disso, os teóricos enfatizam o

fato de quem a literatura de Ficção Cientifica, geralmente, levanta ideias especulativas e

conceitos que nem sempre são bem traduzidos para a mídia cinematográfica. Se

pensarmos no conto “Reason”, percebemos que apenas um roteiro e uma direção muito

engajada seria capaz de traduzir as ideias filosóficas que estão por trás da narrativa.

Segundo Chapman e Cull, o cinema de Ficção Científica pode ser dividido em

alguns períodos mais significativos, que são:

In the 1920s and 1930s there were very few major science fiction films. As those were products of different national cinemas – the Soviet Union (Aelita, 1924), Germany (Metropolis, 1926), America (Just Imagine, 1930) and Great Britain (Things to come, 1936) […] These films were all expensively produced and were notable for their detailed representation of futuristic urban spaces and ordered societies […] At the other end of the production scale, however, science fiction flourished in Hollywood’s serials (or ‘chapter plays’) of the 1930s and 1940s: The Phantom Empire, […] Flash Gordon (and its two sequels), Buck Rogers […] and Captain Video. The serial represented an alternative mode of film practice produced with juvenile audiences in mind. Their sources were the ‘pulps’ and comic strips […]. The first major cycle of SF films came from Hollywood in the 1950s. This period is now regarded as a ‘golden age’ of science

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fiction cinema with films including […] The Day the Earth Stood Still, When Worlds Collide, The war of the Worlds […], Invasion of the Body Snatchers […] and Time Machine. There were several reasons for the emergence of science fiction as a major production trend at this time. One was that science fiction was an ideal genre for the new technologies […]. Another was that science fiction offered film-makers a medium for exploring the political and cultural anxieties of Cold War in America. […] Science fiction was less prominent in the 1960s, but the success of two major films in 1968 – Planet of the Apes and 2001: A Space Odyssey – kick-started another cycle that lasted until the mid-1970s […] The recurring motif of these films is a dehumanized, dystopian future, where individual liberty and freedom of thought have been suppressed by technology. The pessimistic vision of the future in 1970s SF cinema has been understood as an expression of the mood of disillusion and despair that affected America following Vietnam and Watergate […] they all demonstrated, once again, how SF cinema functioned as a vehicle for social commentary. […] However, the annus mirabilis for SF cinema was in 1977 when the extraordinary impact of two films – George Lucas’s Star Wars and Steven Spielberg’s Close Encounters of the The Third Kind – transformed the prevailing view of the genre’s popular appeal. […] Since then SF films have consistently been among the biggest-grossing films, including E.T.: The Extra-Terrestrial, Jurassic Park, Independence Day, The Matrix […], Avatar and the six Star Wars sequels and prequels. (2013, p. 4, 5)125

125Nas décadas de 1920 e 1930 havia muitos poucos filmes de Ficção Científica. Estes eram produtos de diferentes cinemas nacionais – a União Soviética (Aelita, 1924), Alemanha (Metropolis, 1926), América (Just Imagine, 1930) e Grã-Bretanha (tThings to come, 1936) [...] Estes filmes foram todos produzidos com um alto investimento e chamaram a atenção pela sua representação futurística detalhada de espaços urbanos futurísticos e sociedades ordenadas [...] Do outro lado da escala de produção, porém, a ficção científica prosperou nos seriados de Hollywood (ou ‘cinesseriados’) das décadas de 1930 e 1940: The Phantom Empire, [...] Flash Gordon (e suas duas sequências), Buck Rogers [...] e Captain Video. O seriado representou uma modalidade alternativa de prática fílmica produzida para um público jovem. Eles eram baseados nas ‘pulps’ e nas revistas em quadrinhos [...].o primeiro grande ciclo de filmes de Ficção Científica veio de Hollywood, na década de 1950. Esse período é hoje conhecido como a ‘era de ouro’ do cinema de Ficção Científica, com filmes como [...] O dia em que a Terra parou, O fim do mundo, Guerra dos mundos, [...] Invasores de corpos, [...] e A Máquina do Tempo. Houve diversas razões para o crescimento da Ficção Científica como uma grande tendência de produção nessa época. Uma era que a Ficção Científica era um gênero ideal para as novas tecnologias [...]. Outra era de que a Ficção Científica oferecia aos cinegrafistas um meio para explorar as ansiedades políticas e culturais da Guerra Fria na América. [...] A Ficção Científica foi menos proeminente na década de 1960, mas o sucesso de dois grandes filmes em 1968 – Planeta dos Macacos e 2001: uma odisseia no espaço – deram início a um novo ciclo que durou até meados da década de 1970 [...]. O tema recorrente nesses filmes é a desumanização, o futuro distópico, no qual a liberdade individual e a liberdade de pensamento foram suprimidas pela tecnologia. A visão pessimista do futuro no cinema de Ficção Científica da década de 1970 foi entendida como uma expressão do sentimento de desilusão e desespero que afetava a América pós Vietnã e Watergate [...] tudo isso demonstrava, mais uma vez, como o cinema de Ficção Científica funcionava como um veículo para um comentário social. [...] No entanto, o annus mirabilis do cinema de Ficção Científica foi 1977, quando o extraordinário impacto de dois filmes – Star Wars, de George Lucas e Contatos imediatos de terceiro grau, de Steven Spielberg – transformando a visão e o apelo público do gênero. [...] Desde então, os filmes de Ficção Científica têm estado constantemente entre os mais rentáveis, incluindo ET: o extraterreste, Jurassic Park, Independence Day, Matrix [...], Avatar as seis sequências e os capítulos anteriores de Star Wars. (tradução nossa)

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Como herança de toda essa trajetória, podemos dizer que atualmente o cinema

de Ficção Científica dialoga com características de todos esses períodos. As produções

de hoje espelham nas telas o desenvolvimento tecnológico atual, por meio do uso de

efeitos especiais, mostrando sociedades desumanizadas, distópicas, ou com seres

humanos tendo sua intimidade invadida pelas tecnologias. A visão do futuro é, quase

sempre, pessimista e os enredos trazem, de forma implícita ou explícita, discussões

acerca do mundo. Se pensarmos na questão da Ficção Científica como um “comentário”

sobre o período em que ele é produzido, por qual motivo tende-se tanto a mostrar a

destruição de nosso mundo e a substituição dos humanos por seres artificiais?

A fim de explorar mais a fundo como o cinema de Ficção Científica retrata as

relações entre o homem e a máquina e, principalmente, observar de que modo os seres

criados pelo próprio homem, à sua imagem, podem se tornar ameaçadores, é importante

restringirmos a análise a um corpus específico. Para isso, nas páginas seguintes,

selecionamos o filme Artificial Intelligence (Inteligência Artificial, 2001)126.

Enfatizamos que o estudo do filme será feito sob a mesma perspectiva de análise dos

contos de Asimov, mostrando de que modo a produção visa mostrar as relações entre o

homem e o robô, construindo a imagem dessas máquinas como um reflexo do humano,

uma representação de seus criadores. Além disso, deseja-se investigar quais

características do filme foram inspiradas em aspectos da obra de Asimov que já foram

destacados no presente trabalho, como o preconceito, a alteridade, a crença no

sobrenatural, entre outros temas.

3.1 ARTIFICIAL INTELLIGENCE

O filme Artificial Intelligence pode ser analisado a partir de diversos pontos,

dentre os quais escolhemos os seguintes: seu diálogo com a literatura, em particular,

com os contos de fadas; as imagens construídas em determinadas cenas do filme e seus

significados; as falas dos personagens e seus significados. A partir desses aspectos,

mostraremos os temas presentes na história, verificando de que modo eles são tratados e

a intencionalidade da obra, intencionando analisar os mesmos aspectos tratados nos

contos.

126 Não selecionamos a adaptação cinematográfica da obra I, Robot, realizada em 2004 (dirigida por Alex Proyas), pois ela tem muitos poucos elementos que remetem ao texto de Isaac Asimov.

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3.1.1 O diálogo com os contos de fadas

Logo no início do filme, temos a presença de um narrador que explica o

contexto em que a história irá se passar: uma era em que as calotas polares derreteram,

fazendo com que muitas cidades litorâneas desaparecessem. Além disso, muitos países

subdesenvolvidos foram devastados pela fome e outros só prosperaram após a

implantação de leis de controle de natalidade. Nesse ambiente, os robôs se tornaram um

objeto extremamente viável, pois não necessitam de recursos, além dos de fabricação,

para serem mantidos. Desse modo, a história é colocada em uma localização temporal

indefinida. Sabemos que se trata de algum ponto no futuro, mas não é possível dizer

exatamente quando. Além de essa atemporalidade ser uma das marcas dos textos de

Ficção Científica que tratam do futuro – algo que pudemos observar no conto “Robbie”,

de Asimov – ela já estava presente nas narrativas de contos de fadas, que

frequentemente se iniciam com as palavras “era uma vez”127.

O diálogo constante entre o filme e os contos de fada fica evidente em várias

sequências do longa. Quando Mônica, a mãe, vai visitar seu filho que se encontra em

estado de coma, adentra uma sala cuja parede é decorada com cenas de histórias

infantis. Conforme a personagem caminha, pode-se ver na parede a figura de Alice e

Humpty Dumpty, seguida por uma imagem de Tweedledee e Tweedledum, também

personagens de Alice no país das maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, 1865),

Pinóquio e Chapeuzinho Vermelho. É possível perceber uma forte relação entre

algumas das temáticas apresentadas por essas histórias fantásticas, histórias

maravilhosas e a narrativa fílmica.

Humpty Dumpty tornou-se bastante popular através de uma nursery rhyme128, a

qual acredita-se ter surgido a partir de uma charada129. A primeira versão registrada da

rima data de 1870 e foi produzida por um compilador de rimas infantis, chamado James 127 Não se sabe ao certo quando a expressão “once upon a time” surgiu. O Oxford English Dictionary tem exemplos da frase sendo usada ainda em 1385, nos textos de Canterbury Tales. Mais tarde, ela foi traduzida para o francês pelo autor Charles Perrault e incorporada aos contos de fadas. Sempre que nos deparamos com essa expressão inicial em uma narrativa, sabemos que, por mais fantástica que a história contada possa parecer, podemos acreditar em seus elementos. 128 Rima infantil ou cantiga de ninar. 129 As charadas (riddles) eram bastante frequentes na poesia em língua inglesa antiga (Old English). Elas, geralmente, eram divididas em dois tipos: o enigma, cujo sentido era metafórico, ou as conundra , frases que jogam com o duplo sentido de uma expressão ou palavra.

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William Elliot, na Inglaterra e seus versos eram compostos da seguinte forma:

Humpty Dumpty sat on a wall, Humpty Dumpty had a great fall. All the king's horses and all the king's men Couldn't put Humpty together again.130

Existem várias teorias de quem poderia ter sido Humpty Dumpty, sendo que

alguns até o associam com figuras históricas, como o rei Ricardo III, da Inglaterra.

Porém, o que se percebe apenas pela análise dos versos da rima é que se trata de alguém

que sofreu uma grande queda e suas partes não puderam ser reconstruídas. Em 1865, o

autor Lewis Carroll colocou Humpty Dumpty como uma de suas personagens

antropomórficas no livro Alice’s Adventures in Wonderland. Observamos em uma das

ilustrações da obra que Humpty Dumpty é, na verdade, um ovo:

Figura 14: Alice e Humpty Dumpty Fonte: <http://wordyenglish.com/alice/lg-ch06.html>

A representação desse personagem como um ovo dá um novo sentido à rima,

pois se um ovo caísse de cima de um muro alto, provavelmente se partiria em inúmeros

pedaços. Seria possível que tentassem juntar suas partes novamente, mas provavelmente

bastante improvável que se conseguisse. Essa imagem da queda de Humpty Dumpty

tem sido frequentemente associada à metáfora da fragilidade do homem e foi utilizada

em outras obras literárias, como Finnegans Wake (1939), de James Joyce, ao retratar a

queda do homem. Segundo Worthington (1957, p. 37),

130 Humpty Dumpty sentou-se no muro/ Humpty Dumpty teve uma grande queda/ Todos os cavalos e homens do rei não conseguiram juntar as peças de Humpty novamente. (tradução nossa)

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In James Joyce Finnegans Wake, the story of Finnegan is the story of every man and every civilization. It is a story, briefly, of birth, sin, fall, and resurrection; of spring, summer, autumn, and winter131, which leads to spring again. [...] In the Irish-American ballad from which Joyce’s great work takes its name, Tim Finnegans Wake, the hod carrier Finnegan falls from his ladder, is laid out in his coffin and waked; [...] he sits up and proclaims that is not dead at all. The hero of Joyce’s work is not only the hod carrier but Finn McCool (Finn-again) of Irish legend; Humphrey Chimpden Earwicker, a Dublin pub-keeper; Humpty Dumpty; and other men – and civilizations – which have fallen, and yet survived, sometimes through their children and sometimes through their works, both being forms of creation. 132

A associação entre Artificial Intelligence e Humpty Dumpty, levando em

consideração a citação acima, é de que o filme também trata da queda do homem. Para

começar, o contexto da história mostra uma situação desfavorável para sua

sobrevivência – uma era de degelo das calotas polares e de extinção de parte da

população. Além disso, observamos, ao longo de todo o filme, um conflito entre o

homem e sua própria criação, o robô, o qual se mostra mais forte do que seu próprio

criador. Em um documentário sobre o filme, disponível nos extras do DVD, o diretor

Steven Spielberg afirma que a narrativa se passa momentos antes de uma guerra civil

entre homens e máquinas. No final, vemos que os homens foram derrotados, uma vez

que, dois mil anos depois, apenas uma civilização de robôs super desenvolvidos habita o

planeta Terra.

Quando David é encontrado e resgatado, após ter permanecido em um

submarino por dois mil anos pedindo para a Fada Azul transformá-lo em um menino de

verdade, seus “salvadores” tratam-no como uma relíquia, pois o menino fora – ao

contrário deles, que foram construídos por outros robôs –, criado pelas mãos de

131 Essa associação entre as fases da vida de um homem ou de uma civilização é marcada também através das estações do ano nos contos que deram origem ao filme AI: “Supertoys last all summer long”, “Supertoy when winter come” e “Supertoys in other seasons”. 132Em Finnegans Wake, de James Joyce, a história de Finnegan é a história de todo homem e de toda civilização. É uma história, brevemente, do nascimento, do pecado, da queda, e da ressureição; da primavera, do verão, do outono, e do inverno, que leva novamente à primavera. [...] Na balada irlandesa-americana da qual o grande trabalho de Joyce herdou seu nome, Tim Finnegans Wake, o carregador de cocho, Finnegan, cai de sua escada, é colocado em seu caixão e despertado; [...] ele se senta e proclama que não está morto. O herói da obra de Joyce não é apenas um carregador de cocho, mas é o Finn McCool (Finn novamente) da lenda irlandesa; Humphrey Chimpden Earwicker, um dono de pub; Humpty Dumpty; e outros homens – e civilizações – que caíram, e mesmo assim sobreviveram, as vezes através de seus filhos e outras pelas suas obras, ambas formas de criação. (tradução nossa)

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verdadeiros humanos e é a imagem de seus próprios criadores. Assim, comprovamos a

tese de Worthington de que após a queda, as civilizações se levantam, mesmo que seja

através de seus filhos ou de seu trabalho, frutos de sua criação.

A próxima imagem reproduzida na parede, a dos personagens Tweedledee e

Tweedledum, trata do conceito de simulacro e simetria. A origem desses personagens é

atribuída a um poema do inglês John Byrom e, também, a uma nursery rhyme;

culturalmente, os personagens são associados a duas pessoas que se parecem muito

fisicamente. Porém, estas figuras ficaram mais famosas apenas após também

aparecerem em uma obra de Lewis Carroll, dessa vez, em Through the Looking-Glass

and what Alice found there.

Figura 15: Tweedledee e Tweedledum Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Tweedledum_and_Tweedledee

Tweedledee e Tweedledum são exatamente iguais, como se fossem imagens

refletidas em um espelho. Podem-se fazer três associações entre essas figuras e o filme

Artificial Intelligence; a primeira, mais clara, é a do robô como cópia, como reprodução

do ser humano. A perfeição da estrutura do corpo do menino artificial é admirada por

aqueles que o cercam durante todo o filme. Em uma das cenas, David e seu irmão

Martin estão na piscina e os colegas do humano insistem em tocá-lo e em observar o

quanto ele parece real; em outra cena, quando David é capturado e levado ao Mercado

de Pele juntamente com outros robôs para ser destruído diante de uma plateia, um dos

responsáveis pelo evento usa um dispositivo, com um raio X, para verificar se o garoto

possui órgãos e esqueleto ou um mecanismo internamente. Em seguida, quando levado

para ser destruído, o público se apieda de David, devido a sua semelhança muito

próxima com uma criança de verdade. A questão do robô como cópia do homem chega

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a seu momento mais importante em uma das cenas finais, quando descobrimos que

David, na verdade, foi inspirado no filho falecido do cientista que o criou, como se

fosse um verdadeiro clone.

A segunda associação que fazemos é com o fato de David imitar o movimento

dos humanos o tempo todo, para tentar se aproximar deles. Na hora do jantar, por

exemplo, apesar de não precisar se alimentar, o robô aproxima os copos e talheres da

boca, sempre que o pai ou a mãe fazem isso. É uma forma encontrada por ele de

participar desse momento familiar, de tentar aprender o que é ser humano.

Figura 16: David com os pais

Por fim, a última associação observada é o fato de David não ser o único de sua

“espécie”. Quando consegue, finalmente, chegar à fábrica em que foi criado, a

Cybertronics, encontra outro David, exatamente como ele, sentado em uma poltrona.

Até então, o menino acreditava que seria amado pela mãe por ser único e, por isso,

especial. Diante de sua cópia, porém, sente-se inseguro e ameaçado, com medo de

perder o amor que seria devido somente a ele. Em um ataque de ciúmes e fúria, David

destrói a outra máquina, acertando-a na cabeça com uma luminária. A decepção

aumenta, ainda mais, quando, ao caminhar pela fábrica, ele se depara com outras

infinitas cópias de si mesmo embaladas em caixas para serem distribuídas a outros

clientes.

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Figura 17: David e suas cópias

Podemos entender esse encontro de David com suas cópias também pela

perspectiva do duplo, tratada por Otto Rank. Ao citar Rank, o psicanalista Sigmund

Freud (Das Unheimliche, 1919) associa a figura do duplo com algo que é, ao mesmo

tempo, estranho e familiar. Tudo aquilo que é estranho, ou unheimliche, de acordo com

o autor, provoca medo, terror; assim, a identificação do sujeito com outro igual a ele

provoca medo de que seu eu (self) seja substituído pelo de outro. O duplo se desdobra,

imita o indivíduo e passa a ter existência própria, tornando-se uma ameaça.

Rank afirma que a busca por si mesmo, pela compreensão do próprio interior ou

da própria essência pode levar a uma divisão da personalidade. Além disso, Carl Gustav

Jung, partindo do conceito de duplo, definiu que a busca pela compreensão do que é

interno (inconsciente) e externo (consciente) no sujeito equivale a uma busca pela

individuação. Podemos entender a busca de David por se tornar um menino de verdade

como uma busca por si mesmo, uma tentativa de entender quem ele é; assim como é

possível pensar que ao criar um robô, o homem também está em busca de colocar no

mundo exterior aquilo que tem dentro de si. No filme, portanto, verificamos uma busca

pela individuação tanto por parte dos homens, quanto por parte dos robôs. Contudo, os

homens não conseguem ser bem sucedidos nessa tarefa, entram em guerra com suas

cópias, seus outros “eus”, e acabam extintos. David consegue permanecer nesse busca e,

por isso, sobrevive.

A imagem de contos de fadas que aparece em seguida é a do boneco de

madeira, Pinóquio. Podemos considerar que esta tem uma forte simbologia ao longo do

filme. O conto “Supertoys last all summer long”, de Brian W. Aldiss, foi publicado

pela primeira vez no ano de 1969. De acordo com a Science Fiction and Fantasy writers

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of America (SFWA)133, o único motivo pelo qual o autor vendeu os direitos de sua

história a Stanley Kubrick, em 1982, foi por questões financeiras. Após a morte de

Kubrick, que deixou o projeto inacabado, Steven Spielberg tornou-se o novo

proprietário dos direitos desse texto e pôde, assim, prosseguir com as filmagens do

longa.

Entretanto, conforme citado anteriormente, seria muito difícil transformar um

conto de aproximadamente dez páginas em um filme de 146 minutos sem que os

roteiristas, Ian Watson e o próprio Spielberg, realizassem inúmeros acréscimos,

supressões, reinterpretações, entre outras mudanças à história.

O conto, assim como suas duas sequências, “Supertoys when winter comes” e

“Supertoys in other seasons”, narra a história de um robô criança, chamado David, que é

adotado por uma mulher, Mônica, proibida de ter filhos. David faz esforços incontáveis

para conseguir fazer sua mãe feliz e dizer a ele que a ama, mas, aparentemente, sua

programação linguística não permite que ele encontre as palavras corretas para

expressar seus sentimentos. Porém, a mãe, humana, não consegue amar esta criança

artificial, apesar de todos os seus esforços.

Na versão de Steven Spielberg, a construção de David é resultado de um projeto

ambicioso para tornar os robôs o mais próximo possível do humano. O filme mostra que

essas máquinas são, aparentemente, idênticas aos seres humanos, mas no momento de

explicarem o que é o amor, só conseguem apenas defini-lo, como se fosse um

dicionário. Por isso, um novo programa é introduzido no computador do robô para que

ele aprenda o que é o amor; tais seres entram em um processo de testes e uma família,

cujo filho estava em coma por muitos anos, é escolhida para adotá-lo.

Após sua mãe, Mônica, ativar a programação necessária para ativar os

sentimentos do pequeno robô, David começa a perceber que ela não consegue amá-lo.

Por isso, começa a nutrir o desejo de se tornar um menino de verdade, assim como o

personagem Pinóquio, conhecido através das histórias que a mãe contava para ele antes

de dormir.

O filme passa, então, a mostrar a jornada de David à procura pela Fada Azul,

personagem que, no conto infantil, atende o desejo do boneco de madeira e transforma

Pinóquio em um menino de verdade. 133 Organização profissional que reúne autores de Ficção Científica, Fantasia e gêneros afins. Já fizeram parte dessa associação autores como Isaac Asimov e Ray Bradburry. Fonte: <https://www.sfwa.org/>. Acesso em 27 de maio de 2015.

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A associação feita entre a narrativa de “Supertoys last all summer long” e Le

avventure di Pinocchio. Storia di un burattino (As aventuras de Pinóquio, 1881-1883),

de Carlo Collodi, é o principal ponto do filme. Porém, esse detalhe não consta do texto

escrito por Brian Aldiss. Trata-se de um acréscimo feito por Stanley Kubrick, ao

adquirir os direitos autorais e produzir o roteiro.

O livro Le avventure di Pinocchio. Storia di un burattino foi publicado em série

em um jornal infantil no final do século XIX. Antes de ser popularizado em uma versão

mais infantil e amena criada pelos estúdios Walt Disney, o texto criado por Collodi era,

de fato, bastante sombrio e moralizante. No livro, a Fada Azul é um personagem

extremamente importante, até mais do que o próprio Grilo Falante – o personagem que

aconselha Pinóquio a agir corretamente e que, ironicamente, acaba sendo esmagado

pelo boneco. Seu nome em inglês, Blue Fairy, que é utilizado em Artificial Intelligence,

foi criado pela animação da Disney. Na verdade, no texto fonte seu nome era The Fairy

with the Turquoise Hair, ou La Fata dai Capelli Turchini, em italiano. A imagem da

fada é construída de forma bem sombria (gótica) e não semelhante às dos contos

maravilhosos. Sua primeira aparição na história se dá quando Pinóquio, ao fugir da

Raposa e do Gato, a encontra dentro de uma casa na floresta. Nessa passagem, a fada

alega que na verdade é uma garota morta, a espera de seu caixão.

Além disso, na primeira versão da história, o menino de madeira era punido com

a morte por todo seu mau comportamento - como sua fuga para a Playland, onde foi

transformado em burro - sendo enforcado em uma árvore. Algum tempo mais tarde,

Collodi reescreveu o final do texto, permitindo que a Fada Azul o livrasse e o

transformasse em um menino de verdade.

Em uma breve análise, podemos perceber que para se tornar um menino de

verdade e deixar de ser um garoto “artificial”, Pinóquio necessita passar por uma

humanização, ou seja, ele tem de deixar de lado instintos primitivos como o impulso de

matar aqueles que o aborrecem e o de se entregar a prazeres e diversões sem levar em

conta suas obrigações. Assim, é como se, para poder se tornar humano ele precisasse se

integrar aos costumes sociais e deixar de lado a liberdade.

O que podemos concluir a partir dessas observações é que os diálogos de

Artificial Intelligence com o texto de Carlo Collodi, além de criar um ambiente de

fantasia, próprio do universo infantil, são introduzidos para mostrar um mundo frio,

onde as regras sociais devem ser respeitadas para que não haja punições severas; um

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lugar em que se pode fugir para uma ilha de prazeres, mas esta não suprirá, não trará

satisfação de seus desejos mais íntimos.

Esse clima de contos de fadas que permeia o filme leva o espectador a crer na

possibilidade de David tornar-se um menino de verdade no final da história. Apesar de

vermos que o mundo ali apresentado não possui elementos mágicos e que, apesar de se

tratar de uma sociedade diferente da nossa em certos aspectos, em função da tecnologia

mais avançada, o universo construído é muito próximo do que conhecemos, o filme nos

faz crer que, a qualquer momento, algo fantástico ou maravilhoso poderia acontecer. No

entanto, estando diante da Fada Azul, a qual não passa de uma estátua construída para

um parque de diversões, o robô não tem seu desejo realizado. Este é o momento que

fica clara a diferença entre o fantástico e a Ficção Científica: David não é ajudado por

uma fada e não pode se tornar real; porém, é resgatado por um grupo de robôs que

conseguem dar a ele uma pequena fração daquilo que ele sempre buscara: o amor de sua

mãe. Através de alguns fios de cabelo de Mônica, os quais haviam sido conservados

pelo urso Ted, os robôs do futuro são capazes de fazer um clone da mulher, o qual só

pode viver por um dia. Desse modo, David é capaz de se reencontrar com a mãe e ter

um dia especial com ela (conforme ela o prometera, de forma enganosa, no dia em que

o abandonou). O filme termina com Mônica adormecendo para nunca mais acordar e

David deitado ao seu lado. Não sabemos o que acontece depois disso, mas o que

permanece é um clima de “viveram felizes para sempre”.

Tanto no filme como nos contos de fadas, os personagens vivem felizes para

sempre, pois deixamos de acompanhar suas histórias e só conhecemos aquilo que nos é

passado até o final da narrativa. Não sabemos o que acontecerá no futuro. Assim, temos

uma conclusão satisfatória para a jornada de David, apesar de sabermos que ele não

alcançou, realmente, aquilo que procurava. Essa conclusão satisfatória, no entanto, foi

criada por meio de elementos científicos possíveis no mundo como conhecemos, ou

seja, é possível acreditarmos que dentro de alguns anos a ciência estaria tão

desenvolvida a ponto de viabilizar a clonagem humana. Por outro lado, se o filme

tivesse feito a Fada Azul transformar David em um menino de verdade, não poderíamos

mais dizer que esta se trata de uma obra de Ficção Científica, e sim passaria a ser um

conto maravilhoso, em que seres mágicos existem e podem conceder desejos.

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3.1.2 O filme e suas imagens

A companhia responsável pela criação dos robôs, no filme, é chamada de

Cybertronics e como toda companhia, ela possui um símbolo que a representa. A

primeira vista, o símbolo é um simples robô, com os braços abertos, olhando para cima,

mas se prestarmos atenção, notamos que, na verdade, ele remete à famosa pintura do

italiano Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus. O quadro apresenta a deusa romana

Vênus surgindo em uma concha, ao mesmo tempo em que é conduzida por Zéfiro (o

Vento) e Aura (a Brisa) recebe um manto florido da Hora da Primavera. Segundo o

Neoplatonismo, a obra representaria o nascimento do amor e a beleza espiritual como

elementos fundamentais à vida. A semelhança se dá, pois o símbolo da Cybertronics

traz uma figura com contornos femininos, dentro de algo que se parece uma concha.

Figura 18: O nascimento de Vênus

Fonte: <http://www.uffizi.org/artworks/the-birth-of-venus-by-sandro-botticelli/>

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Figura 19: Cybertronics

Existem duas versões para o nascimento de Vênus, na mitologia. Em uma delas,

a deusa romana teria surgido de dentro de uma concha, gerada pelas espumas do mar.

Em outra versão, ela seria filha de Júpiter e Dione.

No filme, os robôs não são criados por deuses, mas por homens. No entanto, a

fala e a postura do cientista, Professor Henry, na primeira cena do filme, sugere que a

capacidade do homem de produzir estes seres é um dom, praticamente, divinal:

To create an artificial being has been the dream of man since the birth of science. Not merely the beginning of the modern age, when our forebears astonished the world with the first thinking machines: primitive monsters that could play chess. How far we have come. The artificial being is a reality of perfect simulacrum, articulated in limb, articulate in speech, and not lacking in human response [...]I believe that my work on mapping the impulse pathways in a single neurone can enable us to construct a mecha of a qualitatively different order. I propose that we build a robot, who can love. 134 135

Ao ser questionado por um de seus ouvintes sobre qual seria a responsabilidade

do homem sobre um robô que ama, o cientista responde: “Mas Deus não criou Adão

para amá-lo?”. Essa reflexão mostra que a visão do cientista é de que os robôs, por

serem suas criaturas, deveriam ser submissos aos homens e amar seu criador de forma

incondicional. Mas com o filme, vemos que a responsabilidade do homem é maior do

que ele mesmo crê. O amor de David pela mãe deveria ter sido criado em benefício

134 Fonte: <https://indiegroundfilms.files.wordpress.com/2014/01/a-i.pdf>. Acesso: 12 mar. 2016. 135Criar um ser artificial tem sido o sonho do homem desde os primórdios da ciência. Não só no inicio da era moderna, quando os nossos ancestrais criaram as primeiras máquinas pensantes, monstros primitivos que sabiam jogar xadrez. Vejam onde chegamos. O ser artificial é uma realidade, um simulacro perfeito, com membros articulados, fala articulada e provido de reações humanas [...]. Eu acredito que o meu mapeamento do impulso em um único neurônio, nos permitirá construir um meca de um nível de qualidade superior. Eu proponho construir um robô que consiga amar. (Fonte: legendas do filme)

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dela mesma, mas um robô que ama, tem desejos, vontades e sonhos a perseguir. As

consequências da criação desse amor são responsabilidade também do criador.

Figura 20: Programação

Para que David deixe de ser apenas um robô e possa amar sua mãe, é necessário

que seja feita uma programação específica para isso. Ele apenas desenvolverá seus

sentimentos por uma pessoa específica, que seja capaz de habilitá-lo para isso. Mônica

recebe um guia com uma série de palavras que devem ser ditas em uma ordem certa

para ativá-lo. As palavras são as seguintes: Cirrus, Socrates, Particle, Decibel,

Hurricane, Dolphin, Tulip, Monica, David. São palavras relacionadas a elementos da

natureza e ao pensamento humano: céu, mundo das ideias, mundo material, som,

destruição, animais, vegetais, o nome da mãe e do robô, respectivamente. É como se o

robô fosse conectado ao mundo, à natureza e à sua mãe para poder se equiparar ao seu

criador.

Em outra cena, David caminha pela casa e vê, pela primeira vez, uma foto do

verdadeiro filho do casal. Ele se aproxima do porta-retratos e seu reflexo se sobrepõe à

foto da família. Assim, observamos o desejo do menino não de substituir qualquer

membro da família, mas sim de estar incluso nela. Porém, ele não está verdadeiramente

na foto, ele se insere nela de maneira, também, artificial, por meio apenas de sua

imagem – uma provável referência ao fato de ele ser apenas uma representação, e não

um menino de verdade.

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Figura 21: A família de David

Quando David é abandonado por Mônica na floresta, descobre que existem

homens perseguidores de robôs, que levam máquinas velhas e sem identificação para

uma Feira. A forma com que estes homens perseguem os robôs é através de um enorme

balão em forma de lua. O uso da imagem da lua nessa cena foi vista por muitos como

uma referência do diretor Steven Spielberg à clássica cena do filme ET (1982), quando

o personagem principal, o garoto Elliott, faz um voo em uma bicicleta para salvar seu

amigo extraterrestre da polícia. Porém, podemos ir além de pensarmos que esta seria

apenas uma auto-homenagem de Spielberg, uma vez que o uso da imagem da lua é

recorrente na mitologia, na literatura, no cinema e em outras manifestações artísticas.

Várias dessas referências mostram homens que habitam o satélite da terra, em lendas

existentes desde o século X, como é o caso da lenda folclórica japonesa The Tale of the

Bamboo Cutter. Como mencionado anteriormente nesse trabalho, diversas obras de

Ficção Científica tratam da viagem à lua, antes mesmo de ela ter sido realizada por

astronautas norte-americanos.

Podemos dizer que o balão em formato de lua, presente no filme, é símbolo das

conquistas e do domínio tecnológico do homem. Do mesmo modo, os caçadores de

robôs, estando dentro desse balão, posicionam-se em um situação elevada às máquinas,

mostrando seu domínio sobre elas; o castigo dos robôs vem de cima, como se, mais uma

vez, os seres humanos fossem deuses agindo sobre suas criaturas.

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Figura 22: Gigolo Joe e a lua

A partir da segunda metade do filme, a busca pela Fada Azul vem a ser o tema

central. Percebe-se, assim como no conto “Reason”, de Asimov, uma das coisas

adquiridas pelo robô ao se aproximar da natureza humana é a capacidade de

mistificação e a crença no sobrenatural. David crê que a fada pode satisfazer seu desejo,

assim como o homem crê que suas necessidades serão ouvidas e satisfeitas por um ser

superior.

Ao observarmos algumas imagens no filme, veremos diversas menções ao tema

da religiosidade, encarando-a ora de forma crítica, ora como algo próprio à natureza

humana. Gigolo Joe leva David a Pleasure Island, uma espécie de Las Vegas do futuro,

onde é possível encontrar um supercomputador que, supostamente, tem a resposta para

todas as perguntas. Este robô é chamado de Dr. Know e, por ser conhecedor de todas as

coisas, podemos vê-lo como um deus, ao qual se pede auxílio nos momentos de

dificuldade. Para poder falar com Dr. Know, porém, David precisa desembolsar todo o

dinheiro que tem antes de iniciar a máquina.

Ao chegar na Pleasure Island, um dos primeiros estabelecimentos com o qual

David se depara é uma igreja, a qual possui uma estátua da Nossa Senhora do Coração

Imaculado na porta. O robô pergunta à santa se ela é a Fada Azul, mas Gigolo Joe

responde que os homens estão sempre procurando por seu criador e por isso vão à

igreja, cantam, entrelaçam as mãos; quando saem de lá, no entanto, estão novamente

diante dos carnalidade do mundo e buscam robôs criados para satisfazer suas

necessidades sexuais. Além da clara associação da Fada Azul à imagem da santa pura,

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ou seja, uma mulher sem pecados a quem os fiéis prestam devoção, prostram-se e

dedicam respeito, vemos uma crítica à hipocrisia humana. Os homens são, ao mesmo

tempo, espirituais e carnais; no entanto, para ele, a carnalidade sempre supera o lado

espiritual. Mesmo aqueles que vão à igreja e pedem perdão por seus pecados caem na

tentação de terem seus desejos satisfeitos com prostitutas e outras diversões ilícitas,

como o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Quando David finalmente encontra a Fada Azul no fundo do mar, que é

representada por uma estátua de um antigo parque de diversões, agora, submerso,

verifica-se que a imagem da fada remete às imagens de santos colocadas nos altares das

igrejas. Mais especificamente, a fada é basicamente a imagem da Virgem Maria, exceto

pelo fato de possuir asas. Então, o garoto-robô coloca-se diante dela, dentro de seu

submarino, e permanece em uma oração interminável, pedindo para que seu desejo de

se tornar um menino de verdade seja concedido. Aqui tem-se uma referência, também,

ao misticismos daqueles que creem na santidade das imagens, fazendo pedidos,

rezando, deixando suas orações, apesar de saberem que aquela é uma mera

representação, e não uma santa verdadeira.

Figura 23: A Fada Azul

No filme, compara-se a artificialidade da Fada à do robô. Isso fica bastante

evidente no momento em que ele a vê através do vidro do submarino e seus reflexos se

sobrepõem. David e a estátua são ambos reproduções do humano, porém nenhum deles

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é real. O robô está, nesta cena, diante de sua própria condição de ser sintético e

fabricado, apesar de não perceber.

Figura 24: David e a Fada Azul

Uma reviravolta inesperada no roteiro ocorre quando, repentinamente, uma nave

de aspecto metálico surge dos céus e captura o submarino congelado com David e Ted

em seu interior. Logo em seguida, o espectador é informado de que dentro daquela nave

estão presentes robôs extremamente evoluídos, capazes de lerem pensamentos, trazerem

pessoas de volta do mundo dos mortos através de clonagem, reproduzirem ambientes a

partir da memória do outro, etc. Apesar dessas habilidades descritas serem possíveis

devido à alta tecnologia destes seres, estes são praticamente figuras sobrenaturais,

próximos a verdadeiros deuses. Aliás, eles sim podem conceder a David a realização de

seu desejo.

Ao analisarmos a aparição desses robôs, lembramo-nos de que tais soluções

inesperadas e improváveis, criadas para concluir a narrativa de uma obra ficcional já era

empregada no teatro clássico grego, nos quais o enredo das peças dramáticas eram,

muitas vezes, solucionado pelo surgimento de um deus baixado mecanicamente por um

guindaste em meio à cena. Para isso, os gregos davam o nome de Deus ex Machina, que

literalmente significa “Deus advindo da máquina”. Aqui, a referência implícita ao termo

não está ligada apenas ao surgimento inesperado desses seres. Há um sentido quase que

literal, o qual mostra que a evolução dos robôs, criados pelos homens, foi capaz de

originar deuses, seres perfeitos. Assim, a busca do homem pela sua perfeição e

imortalidade ocorreu através da sua criação, porém, sucedida apenas quando os robôs –

que foram se tornando criaturas independentes e mais evoluídas – puderam criar outros

robôs.

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Figura 25: Deus ex Machina

Figura 26: Robôs do futuro

O filme possui muitos diálogos e textos bastante significativos que devem ser

levados em conta para uma análise mais aprofundada. Destacamos, porém, apenas

aquelas ligadas ao assunto proposto pelo presente trabalho, que contribuem para

reforçar a ideia do robô, de sua evolução, sua humanização, sua condição enquanto

criatura provinda do homem, como duplo do ser humano.

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3.1.3 Artificial Intelligence e Isaac Asimov

Pode-se perceber diversos aspectos pertencentes ao universo criado por Isaac

Asimov em suas histórias de robôs que são retomados no filme Artificial Intelligence.

Em primeiro lugar, há uma clara intertextualidade entre o filme e o conto “Robbie”, no

que concerne à figura do Dr. Know. No conto, como visto anteriormente, a menina

Glória se encontra com “The Talking Robot”, supostamente capaz de responder a todas

as perguntas. Porém, ao perguntar por seu amigo Robbie à máquina, esta acaba não

resistindo à enorme quantidade de informações. O encontro de David com Dr. Know

guarda algumas semelhanças com a referida passagem do conto. Percebemos que Dr.

Know nada mais é do que uma enciclopédia eletrônica. Hoje em dia, poderíamos dizer

que se trata de um Wikipedia ou de um software semelhante ao SIRI, do Iphone, mas

em uma verão tridimensional e mais interativa. Assim, a inteligência artificial dessas

máquinas é limitada às informações que são incluídas em seus sistemas por seres

humanos e, por isso, elas não são capazes de responder a qualquer coisa, como é

proposto.

Dr. Know dialoga também com um outro conto de Isaac Asimov, um dos mais

famosos e o preferido pelo autor, chamado “The Last Question”. O conto fala de um

supercomputador que tem a resposta para todas as perguntas, exceto uma: como evitar

que toda a energia do mundo se consuma e, assim, impedir o fim do mundo? A história

se passa ao longo de milhões de anos, mas o computador permanece incapaz de

encontrar a resposta. Por fim, quando toda a humanidade deixou de existir e tudo o que

resta é a escuridão, a máquina finalmente encontra a resposta e, a partir do nada,

consegue recriar o universo. É possível notar, também, outro dialogo com o filme, ao

lembrarmos dos super-robôs do futuro que possuem poderes sobrenaturais e sobrevivem

à extinção do homem.

Além disso, existem outras ideias criadas por Asimov que acabaram, também,

incorporadas ao filme, como a questão de que as máquinas não podem ferir ao homem

(1a Lei da Robótica) e a necessidade de autopreservação dos seres artificiais (3a Lei da

Robótica). Isso se comprova uma vez que os robôs são caçados e destruídos, mas não

reagem, não atacam os humanos. Por outro lado, eles tendem a fugir, se esconder e

tentar convencer de suas habilidades e de sua utilidade, a fim de que os homens não os

descartem.

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O que podemos perceber, tanto na temática dos contos de Isaac Asimov, quanto

na do filme de Steven Spielberg é o interesse em se discutir as relações humanas: como

tratamos uns com os outros, de que forma agimos diante do medo de sermos

substituídos ou superados pelo outro. Além disso, tanto nos contos como no filme, o

leitor e o espectador são levados a desenvolver empatia pelos robôs e estes se tornam

heróis das histórias. Torce-se para que Robbie não seja devolvido à fábrica, não se tem

raiva de Cutie, mesmo que ele se ache superior aos cientistas e deseja-se que a

verdadeira identidade de Stephen Byerley não seja descoberta por seu oponente. No

caso de David, em Artificial Intelligence, a narrativa é contada a partir do ponto de vista

desse personagem e o público sofre com a rejeição da qual ele é vítima. Ao perceber a

possibilidade de identificação com esses personagens, confirmamos, mais uma vez, que

a Ficção Científica propõe, acima de tudo, uma discussão sobre a natureza humana.

Ficamos indignados com o comportamento dos homens que, no filme, querem destruir o

robô e com a atitude da mãe ao abandonar David, pois não aceitamos nossa própria

incapacidade de, muitas vezes, demonstrar amor, da nossa impulsividade destrutiva,

enfim, de nossas falhas diante de nossas próprias criações ou diante do outro.

Conforme foi visto, Artificial Intelligence – assim como outros filmes de Ficção

Científica – apresenta temas e componentes criados pela literatura do gênero. No

entanto, no último século, as mídias visuais, como a televisão, os jogos de vídeo game

e, em especial, o cinema, têm contribuído para uma grande popularidade do gênero. Isso

não significa, porém, que os livros de Ficção Científica estejam desaparecendo. Pelo

contrário, milhares de novos autores publicam a cada ano, mesmo que poucos leitores

que não são fãs de Ficção Científica tenham acesso a eles. Assim, o grande público só

vem a conhecer as histórias narradas por vários desses livros quando eles são adaptados

pelo cinema.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observamos, a Ficção Científica é um gênero que ainda demanda muito

estudo, pesquisa e observação, a fim de que se possa aperfeiçoar seu entendimento e

caracterizá-lo de forma mais delimitada. É necessário que deixemos de pensá-lo como

apenas um subgênero, mas sim como um gênero autônomo, que traduz, como nenhum

outro, a sociedade contemporânea, expondo nossos pensamentos, temores, reflexões e

projeções futuras. Nenhum outro gênero, aliás, tem refletido de forma tão concreta a

respeito do futuro da humanidade como a Ficção Científica. Essa reflexão se dá tanto

em um âmbito mais externo, quando pensamos na questão da preservação do planeta e

das consequências da intervenção humana no mundo, quanto em um âmbito interno,

quando a literatura trata das questões psicológicas e das aflições e das ansiedades que a

convivência com a tecnologia e com a inteligência artificial pode causar.

Segundo Sigmund Freud, na obra O mal-estar na civilização,

[...] o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe exteriormente que só é forçado a surgir através de uma ação especial [...] para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo – é proporcionado pelas frequentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer [...] Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior ‘estranho e ameaçador. (2012, p. 34)

Assim, através das palavras do psicanalista, compreendemos a existência de uma

angústia humana em sua relação com o mundo, com objetos que sejam externos ao

próprio eu. Vimos, através dos contos e do filme abordados nesse trabalho, que o objeto

externo ao homem em questão é o robô. Esse robô, no entanto, é também algo que faz

parte do próprio homem, uma vez que foi criado por ele e é, também, seu reflexo quase

perfeito. Ao mesmo tempo, o robô é algo interno, que causa dependência e admiração

no homem, e algo externo, levando a um sentimento de desprazer, por ser algo estranho

e ameaçador.

Verificou-se que fatores históricos, como as guerras e grandes processos de

industrialização, foram fundamentais para o surgimento da Ficção Científica como

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gênero literário e que o meio em que esses textos foram publicados, as revistas ‘pulp’,

possibilitaram discussões entre leitores, editores e autores. Esse fato possibilitou que

esse tipo de texto se propagasse de forma bastante rápida e se desenvolvesse de forma

constante, tendo assim passado, no intervalo de poucas décadas, por etapas diversas

chamadas de Golden Age, New Wave e Cyberpunk. A Ficção Científica muda por

consequência das transformações que ocorrem no mundo e molda-se conforme novas

tecnologias surgem.

Vimos que Isaac Asimov, representante da Golden Age, apresentava uma visão

mais otimista a respeito de como seria um futuro cercado por máquinas. Os robôs

trariam benefícios e substituíram o homem em trabalhos que fossem arriscados,

cansativos ou enfadonhos. O autor tinha, também, um olhar de que os seres artificiais

não seriam capazes de herdar as falhas mais “perigosas” da natureza humana, como a

capacidade de ferir um ser humano ou de cometer um assassinato. Desse modo, há em

sua obra uma visão de que a maior ameaça à humanidade é o próprio homem, com sua

violência, intolerância (retratada no conto “Robbie” e “Reason”), capacidade de

manipulação (bem retratada pelas atitudes políticas mostradas em “Evidence”) e busca

apenas por seus interesses próprios (conforme se pode observar nos três contos).

À medida que a Ficção Científica foi se desenvolvendo, a visão sobre o mundo

foi se tornando cada vez mais pessimista: máquinas e seres humanos confrontam-se na

busca pelo domínio da sociedade. No filme analisado, Artificial Intelligence, a

perspectiva de um mundo em decadência, ocasionada, nesse caso, pelo derretimento das

calotas polares, está presente de forma bastante clara. Porém, assim como em Asimov, a

máquina é colocada ao lado do homem para destacar as falhas da natureza humana e

não para enaltecê-lo ou alertar sobre qualquer perigo que a tecnologia possa trazer. Pelo

contrário, os únicos seres capazes de demonstrar amor e cuidado ao próximo no filme

são os robôs – David, por sua mãe, Gigolo Joe e o urso Ted, por David. O longa

metragem é todo regido por um sentimento que deveria ser humano, mas notamos que o

homem se tornou muito egoísta para possuí-lo.

Tanto na literatura de Ficção Científica, quanto no cinema, vemos, então, uma

tendência a se realizar uma crítica social, a uma reflexão sobre valores, sobre ética,

sobre a forma como o homem age no mundo. Muitas vezes não somos capazes de

realizar esse tipo de reflexão se nos deparamos, apenas, com textos objetivos e

demasiadamente realistas. Apenas para que entendamos isso de outra forma, levemos

em conta que para uma criança entender certas ameaças ou para que ela possa refletir

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sobre determinadas questões, utilizamo-nos de imagens, símbolos e metáforas, tão

recorrentes na literatura infantil. A criança é representada nas narrativas literárias por

outros seres, como animais, bonecos animados ou personagens antropomorfizados. A

Ficção Científica utiliza desse mesmo recurso, a antropomorfização de um outro ser,

como a máquina, para sensibilizar o leitor ou o espectador.

Será que essa identificação homem-máquina ocorre apenas na ficção? Fica claro

que isso tem ocorrido de modo cada vez mais frequente no mundo real, quando lemos

notícias sobre alguns fatos, como o ocorrido no dia 9 de setembro de 2015: um homem

de 60 anos, no Japão, agrediu um robô, apelidado de Pepper, que prestava atendimento

a uma loja de telefonia móvel, a Softbank. O robô foi desenvolvido para identificar

emoções humanas e, até mesmo, consolar pessoas quando estão tristes.

Figura 27: Pepper

Fonte: <http://www.camacarinoticias.com.br/noticias/3/4454,homem-ce-preso-apcos-

agredir-robco-que-era-funcioncario-de-uma-loja-no-japcao.html>

Essa história acabou com o homem sendo preso por destruir propriedade alheia e

com o robô tendo várias partes de seu sistema interno danificado. Assim, tanto na ficção

quanto na vida real deparamo-nos com atitudes inexplicáveis em relação à tecnologia

que nos cerca. O homem sabia que a máquina não era um ser humano, mas nem por isso

deixou de esperar do robô um comportamento mais adequado em relação às suas

expectativas. A semelhança entre esse fato e as agressões e ameaças enfrentados pelos

robôs nas narrativas estudadas são muito relevantes, pois constatamos, mais uma vez, a

capacidade que esses textos têm de revelar fatos sobre nosso futuro e sobre nossos

sentimentos e nossa essência.

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Na ficção, a tecnologia não elimina o humano. Entretanto hoje, a questão do

humano está cada vez mais associada à produção tecnocientífica. As novas tecnologias

de comunicação e de informação, ao esmaecerem as fronteiras entre homens e

máquinas, possibilitam a criação de seres artificiais ou híbridos (ciborgues) e mundos

possíveis, modificando o conceito de humano e sua capacidade de intervenção no

mundo.

Talvez, o maior pesadelo do mundo atual seja que todo o potencial tecnológico

permaneça sob o domínio dos países ricos e das megacorporações. É preciso, pois, estar

atento para que as experiências possíveis decorrentes de novas tecnologias não se

restrinjam às pesquisas acadêmicas e que as histórias de ficção científica possam

sempre desvelar os temores do homem moderno em relação ao desenvolvimento da

tecnociência e as consequências que tal desenvolvimento poderá trazer à condição humana.

Sugerimos, a partir das questões levantadas nesse trabalho, uma contínua

observação quanto aos temas tratados pela Ficção Científica, propondo estudos de

outros textos, de outras questões apresentadas por eles, valorizando um gênero que é

considerado irrelevante, por muitos, ou menos importante, por outros, mas que tem se

apresentado como um importante meio para questionarmos a sociedade. Da mesma

forma, deixa-se também um espaço para que pensemos para onde a ciência tende a levar

o homem. A tecnologia se humanizará e nós nos tornaremos menos humanos? A

narrativa sobre a aventura da humanidade não está concluída. Quem escreverá os

próximos capítulos: a ficção científica ou a tecnociência?

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ANEXO A – UMA CRONOLOGIA DE EVENTOS E OBRAS

IMPORTANTES PARA O DESENVOLVIMENTO DA FICÇÃO

CIENTÍFICA136 1516 Utopia, de Thomas More

1543 Copérnico divulga sua teoria de que a Terra gira em torno do Sol

1609 Galileu constrói o telescópio

1634 Somnium, de Kepler

1640 John Wilkins escreve The Discovery of a New World, em que se especula sobre a

viagem à lua.

1667 John Milton especula sobre vida em outros mundos (Paradise Lost, Livro VIII)

1726 Jonathan Swift escreve Gulliver’s Travels

1752 Voltaire escreve Micromegas, que trata sobre a visita de uma alienígena do

planeta Sirius à Terra.

1818 Mary Shelley publica Frankenstein

1859 Charles Darwin e Alfred Russel Wallace propõem a Teoria da Evolução pela

seleção natural.

1864 Júlio Verne publica Viagem ao Centro da Terra.

1865 Gregor Mendel propõe as leis da hereditariedade, que servem como base para a

engenharia genética.

1865 Júlio Verne publica De la Terre à la Lune.

1869 Dmitri Mendeleev formula o modelo de tabela periódica mais utilizado.

1869 Júlio Verne publica Vigt Mille Lieu Sur le Mer.

1873 James Clerk propõe a teoria do eletromagnetismo.

1895 Wilhelm Conrad Roentgen descobre o Raio-X.

1895 H. G. Wells escreve The Time Machine.

1896 Henri Becquerel descobre a radioatividade.

1896 H. G. Wells escreve The Island of Doctor Moreau.

1897 H. G. Wells escreve The Invisible Man.

1898 H. G. Wells escreve The War of the Worlds

136 Fonte: SAWYER, Andy; WRIGHT, Peter (org.). Teaching science fiction. Londres: Palgrave Macmillan, 2011.

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1905 Albert Einstein propõe a Teoria da Relatividade.

1908 H. G. Wells escreve The War in the Air.

1911 Hugo Gernsback escreve Ralph 124C 41+

1912 Edgar Rice Burroughs escreve Under the Moons of Mars.

1913 Niel Bohr propõe o modelo atômico.

1914-1918 Primeira Guerra Mundial.

1915 Albert Einstein publica a Teoria Geral da Relatividade e Karl Schwarzchild

descobre o “rádio de Schwarzchild”, que possibilita a identificação de buracos negros.

1917 Revolução Russa.

1920 Karel Capek lança o filme R.U.R.

1922 Edgar Rice Burroughs publica At the Earth’s Core.

1923 H. G. Wells publica Men like Gods.

1926 Hugo Gernbeck funda a revista Amazing Stories.

1927 Georges Lemaitre demonstra a teoria do Big Bang na televisão.

1928 E. E. ‘Doc’ Smith publica The Skylark of Space.

1929 Edwin Hubble propõe a Lei do Universo em Expansão.

1929 Quebra da Bolsa.

1932 Aldous Huxley escreve Brave New World.

1933 Roosevelt propõe o New Deal.

1933 Edwin Balmer e Philip Wylie escrevem When Worlds Collide e H. G. Wells

publica The Shape of Things to come.

1937 John W. Campbell Jr. assume a editoria da revista Astounding Science Fiction.

1938 C. S. Lewis publica Out of the Silent Planet.

1939-1945 Segunda Guerra Mundial.

1942 A. E. Van Vogt publica “The Weapon Shop”.

1943 Oswald Avery estabelece que o DNA é o componente genético do cromossomo.

1945 Os Estados Unidos jogam a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki.

1947 Robert Heinlein escreve Rocketship Galileo.

1949 Os soviéticos testam sua primeira bomba atômica.

1949 George Orwell publica Nineteen-Eighty Four.

1950-53 Guerra da Coreia

1950 Isaac Asimov publica I, Robot e Ray Bradbury publica The Martian Chronicles.

1951 Isaac Asimov publica Foundation.

1952 Isaac Asimov publica Foundation and Empire.

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1953 John Watson e Francis Crick descobrem a estrutura de dupla hélice do DNA.

1953 Isaac Asimov publica Second Foundation; Ray Bradbury publica Fahrenheit 451;

Arthur C. Clarke publica Childhood’s End.

1954 Isaac Asimov publica The Caves of Steel e Richar Matheson lança I am Legend.

1957 O primeiro satélite, Sputnik, é lançado pela União Soviética; início da Era

Espacial.

1959 Robert Heinlein escreve Starship Troopers.

1961 Robert Heinlein publica Stranger in a Strange Land.

1962 Anthony Burgess escreve A Clockwork Orange e Philip K. Dick lança The Man

in the High Castle.

1964 A China explode sua primeira bomba atômica.

1964 A empresa IBM apresenta o computador 360.

1965-73 Guerra do Vietnã

1965 Frank Herbert publica Dune, Philip K. Dick escreve The Three Stigma of Palmer

Eldritch.

1966 Robert Heinlein publica The Moon is a Harsh Mistress.

1967 É realizado o primeiro transplante de coração, por Christiaan Barnard.

1968 Philip K. Dick publica Do Androids Dream of Electric Sheep? e Stanley Kubrick

dirige 2001: a space Odyssey.

1969 A Apollo 11 chega à lua e Neil Armstrong é o primeiro homem a andar em solo

lunar.

1973 Arthut C. Clarke publica Rendezous with Rama.

1974 Suzy McKee Charnas publica Walk to the End of the World e Philip K. Dick

escreve Flow my tears, the Policeman said.

1976 Marge Piercy escreve Woman on the Edge of Time.

1981 Philip K. Dick escreve VALIS.

1984 O vírus da AIDS é isolado por cientistas franceses.

1986 Desastre nuclear em Chernobyl.

1986 Orson Scott Card escreve Ender’s Game.

1987 Lucius Shepard publica Life During War Time.

1989 Queda do muro de Berlim.

1990 William Gibson e Bruce Sterling publicam The Difference Engine.

1991 Fim da União Soviética.

1992 Kim Stanley Robinson escreve Red Mars.

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1993 Kim Stanely Robinson escreve Green Mars.

1994 John Clute e Peter Nicholls escrevem The Encyclopedia of Science Fiction.

1997 A primeira sonda pousa em Marte.

1999 Greg Bear publica Darwin’s Radio, Peter F. Hamilton lança The Naked God e

Vernor Vinge escreve A Deepness in the Sky.

2001 A primeira seção do genoma humano é completado; Terroristas atacam o World

Trade Center.

2002 William Gibson publica Pattern Recognition.

2003 Audrey Niffenegger escreve The Time Traveller’s Wife.

2007 Brian W. Aldiss escreve Harm; William Gibson publica Spook Country.

2007 Steve Jobs e a Apple Inc. lançam a primeira versão do Iphone.

2010 O cientista Craig Venter desenvolve uma célula viva controlada por DNA

sintético; Mark Zuckenberg funda a rede social Facebook Inc.

2010 Alastair Reynolds escreve Terminal World.

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ANEXO B - Ficha Catalográfica do Filme Artificial Inteligence (A. I.) Direção: Steven Spielberg Roteiro: Steven Spielbert, Ian Watson, Brian Aldiss Elenco: Haley Joel Osment, Jude Law, Frances O’Connor, William Hurt Ano de Lançamento: 2001 Gênero: Ficção Científica/Drama Duração: 146 minutos Título em Português: Inteligência Artificial