Vivekananda - Epopéias da Índia Antiga

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    Epopias da ndia Antiga

    Swami Vivekananda

    ndice

    ndice________________________________________________________________________ 1

    Prefcio ______________________________________________________________________ 2

    O Rmyana __________________________________________________________________ 3

    I O Poeta ___________________________________________________________________________ 3

    II O Argumento______________________________________________________________________ 6

    III Simbolismo______________________________________________________________________ 11

    O Mahabharata_______________________________________________________________ 12

    I Origens___________________________________________________________________________ 12

    II O Argumento_____________________________________________________________________ 12

    III Histria de Savitri ________________________________________________________________ 16

    IV No Desterro _____________________________________________________________________ 19

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    V A Batalha ________________________________________________________________________ 21

    VI A Restaurao e a Abdicao_______________________________________________________ 22

    O Bhagavad Gita ______________________________________________________________ 24

    Histria de Jada Bhrata _____________________________________________________________ 28

    Histria de Prahlada _________________________________________________________________ 30

    Os Grandes Instrutores_________________________________________________________ 32

    Os Instrutores ______________________________________________________________________ 32

    II Krishna__________________________________________________________________________ 35

    III Buda ___________________________________________________________________________ 37

    Ramakrishna_________________________________________________________________ 44

    O Pensamento Religioso da ndia ________________________________________________ 57

    O Psiquismo e a Cincia________________________________________________________ 60

    Prefcio

    Swami Vivekananda um smbolo! Este insigne filsofo hindu, patrono do Crculo Esotrico, empolgou a assemblia no Congresso das Religies, reunido em Chicago, no ano de 1893, quando perante ela, exclamou: "Eu vi Deus e conheci a verdade".

    Quando ainda jovem, com aquele esprito irrequieto de universitrio, trazia a mente cheia de dvidas torturantes e, qual borboleta afanosa, procurava aqui e acol o nctar da Verdade, para acalmar os tumultos que lhe iam n'alma e cujo denominador comum esta interrogao milenar que desafia a mente humana atravs dos sculos: Existe um Deus?

    Procurando a soluo desse insondvel enigma, o jovem intelectual penetrou os emaranhados arabescos das filosofias e religies do mundo, tendo alicerado as suas incansveis investigaes na cultura ocidental em que tambm abeberou o seu anseio de conhecimentos.

    No obstante, continuou insatisfeito e enriqueceu o seu patrimnio intelectual com os inmeros estudos e observaes que realizou, sempre aguilhoado por aquele mistrio inquietante, at que um dia teve a ventura de defrontar-se com um famoso filsofo, que lhe iluminou o esprito, levando-o soluo do Arcano, conforme teve oportunidade de declarar, mais tarde, como delegado ao Congresso das Religies.

    Fruto dos seus incessantes estudos este trabalho que, com prazer, oferecemos ao leitor e que constitui uma verdadeira revelao do pensamento, da vida, dos estranhos costumes da ndia misteriosa, consubstanciados nas "Epopias da ndia Antiga", onde a fbula, aliada a uma filosofia profunda, surpreende-nos com as belezas incomparveis de suas analogias e a doce singeleza de sua narrao, que chega at ns como o diludo perfume dos seus templos longnquos...

    O autor esclarece aos ocidentais o sentido das fbulas que apresenta, tendo tido a feliz cautela de estabelecer confronto entre a natureza do esprito oriental e a do ocidental.

    Desse cometimento deflui a vantagem de ficarmos conhecendo o pensamento que norteia o povo hindu, principalmente sob o ponto de vista religioso:

    Ns, os hindus, como os cristos, cremos em um Deus individual; ns, porm, vamos alm e cremos que somos Ele, isto , que se manifesta em ns e que vivemos e estamos em Deus.

    "Cremos que h um fundo de verdade em todas as religies e a todas respeitamos. Porque a verdade neste mundo encontrada por adio e no por subtrao.

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    "Quisramos oferecer a Deus um ramo das mais formosas flores de todas as Religies!" (Um dos ideais do Crculo Esotrico).

    Este, um dos admirveis trechos que o leitor ter o prazer de apreciar, dentre os muitos com que o autor nos brindou nesta obra que, sem exagero, podemos considerar como um admirvel resumo da vida filosfica e religiosa da ndia antiga.

    Quando Grcia e Roma ainda no haviam despontado na histria, como partcipes dos povos cultos, sombra do Himalaia floresciam brilhantes civilizaes, que legaram aos psteros os primeiros vestgios da filosofia e as primitivas tradies religiosas.

    Mas, no antecipemos, a fim de no furtarmos ao leitor o ensejo de saborear o que se desenvolve atravs destas pginas, assegurando-lhe que delas colher timos frutos, conhecendo os esplendores que se acham ocultos no Ramayana, no Mahabharata, no Bhagavad Gita...

    Onde, porm ficamos extasiados ante o esprito sereno e elevado do autor, alis to seu caracterstico, no captulo em que analisa a misso dos Grandes Instrutores: Krishna, Buda, Cristo, Ramakrishna, demonstrando que a misso desses Irmos Maiores foi originria de uma nica Ponte, da qual partiram como arroios de luz, para iluminar determinada face do globo, a fim de reerguer o esprito humano, prestes a mergulhar nas trevas.

    Se profunda foi a anlise que fez de outros Instrutores, mais extensa e minuciosa foi a que versou sobre Ramakrishna, seu Mestre, com quem privou durante longos anos, tendo a Ventura de receber os mais altos ensinamentos, pessoalmente ministrados por esse grande pensador legando-nos, no presente trabalho, a singela beleza de sua vida e de sua filosofia.

    , pois, com profunda reverncia que evocamos o nome do autor, neste prefcio, e com imenso prazer que entregamos ao carssimo leitor estas pginas sadias, cnscios de termos dado mais um passo na senda dos que escolheram a misso de servir.

    O Rmyana

    I O Poeta

    Entre os inmeros poemas picos ou epopias que enriquecem a literatura snscrita, sobressaem por seus mritos o Rmyana e o Mahbhrata, anteriores e superiores, em originalidade e beleza, Ilada e Odissia.

    A lngua snscrita, com sua literatura, continua interessando aos orientalistas do Ocidente e aos eruditos do Oriente, embora h mais de dois mil anos no seja o snscrito lngua viva e no tenha perdido o seu carter de sagrada.

    O Rmyana e o Mahbhrata descrevem subalternamente os usos, costumes, crenas e cultura dos antigos monumentos da poesia snscrita, embora anteriormente tenham sido escritos os Vedas, cuja maior parte est em forma mtrica; todavia, na ndia o Rmyana considerado como a primeira e mais antiga produo potica.

    O autor do Rmyana foi Valmiki, sobre cuja vida teceram-se muitas conjeturas, do mesmo modo que a respeito de Homero e Shaskespeare no Ocidente, conquanto no caiba dvida referente autenticidade de sua existncia. Se bem que muitos versos do poema no sejam seus, "mas interpolaes, realam entretanto a potica magnificncia dessa obra sem par na literatura mundial.

    Havia na ndia um jovem casado que, apesar de possuir compleio robusta, no encontrava trabalho para manter sua famlia, e que se tomara salteador de estradas, levado por aquele extremo desespero.

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    Atacava os viajantes, roubando-lhes tudo que levavam e com o fruto dos roubos mantinha seus velhos pais, sua mulher e filhos, sem que nenhum deles suspeitasse a sinistra procedncia do dinheiro.

    Assim levava a vida, quando certo dia passou pelo caminho em que estava um grande santo chamado Nrada, a quem o salteador deteve para roubar.

    Porm Nrada perguntou-lhe:

    - Por que queres roubar-me? Gravssimo pecado roubar e assassinar o prximo. Por que cometes to grande pecado?

    O salteador respondeu:

    - Peco porque preciso manter minha famlia com o dinheiro que roubo.

    O santo replicou:

    - Crs que tua famlia participa do teu pecado?

    - Sim certamente.

    - Pois bem; prenda-me, ata-me os ps e as mos e deixa-me aqui, enquanto vais tua casa e perguntas a todos se querem participar do teu pecado, como participam do teu dinheiro.

    O salteador concordou com a proposta, atou o santo foi casa e perguntou a seu pai:

    Sabes como te sustento?

    No sei.

    Sou um salteador de estradas, que roubo os viandantes e os mato se no se deixam roubar.

    - Como fazes isto, meu filho? Afasta-te de mim! s um pria!

    O salteador perguntou depois sua me:

    - Sabes como te sustento?

    - No sei.

    - com o produto dos meus roubos e assassinatos.

    - Que coisa triste!

    - Queres compartilhar de meu pecado?

    - Por que haveria de faz-lo? Nunca roubei a ningum.

    O salteador perguntou depois sua esposa:

    - Sabes como te mantenho?

    - No sei.

    - Pois sou um salteador, de estradas e quero saber se ests disposta a compartilhar do meu pecado.

    - Absolutamente. s meu marido e tens o dever de manter-me honradamente.

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    Ento o salteador percebeu a maldade de sua conduta, ao ver que seus mais ntimos parentes negavam-se resolutamente a compartilhar a responsabilidade de suas ms aes e volvendo ao sitio em que havia deixado o santo Nrada, desamarrou-o, relatou-lhe tudo quanto at ento havia feito e caindo de joelhos a seus ps, exclamou compungido:

    Salva-me! Que devo fazer?

    O santo respondeu-lhe:

    - Abandona para sempre este gnero de vida, pois j viste que nenhum dos teus aprova o que fazes e te desprezam ao saber quem s. Participam de tua prosperidade, porm, quando nada tiveres para dar-lhes, ho de abandonar-te. No querem compartilhar do teu mal, mas aproveitar-se dos teus bens. Portanto, adora Aquele que sempre est ao nosso lado, no mal e no bem; que nunca nos abandona porque o amor no conhece nem o engano, nem o egosmo.

    Depois Nrada ensinou-lhe a adorar a Deus; e aquele homem, renunciando por completo ao mundo, retirou-se para as selvas e entregou-se meditao, esquecendo-se inteiramente de sua personalidade, de sorte que nem percebeu os formigueiros que surgiam em torno dele.

    No fim de alguns anos ouviu uma voz que lhe dizia:

    - Levanta-te, sbio!

    Ele, porm, respondeu:

    Sbio? Sou um ladro ...

    A voz replicou:

    - J no s salteador de estradas. s um sbio purificado. Esquece teu antigo nome. Agora, j que tua meditao foi to profunda que nem notaste os formigueiros que se formavam ao teu redor, chamar-te-s Valmiki, que significa: "O que nasceu entre os formigueiros."

    Aquele que outrora era salteador de estradas converteu-se em um sbio. Um dia, quando foi banhar-se no sagrado rio Ganges, viu um casal de pombos que cirandavam, beijando-se com carinho; Valmiki contemplava enternecido to formoso espetculo, quando de sbito silvou uma flecha ao seu ouvido, indo matar o pombo.

    A pomba, ao ver seu companheiro cado sem vida, deu voltas ao redor do cadver, com mostra de profundo pesar.

    Valmiki revoltou-se e ao alongar a vista descobriu o caador, a quem, possudo de nobre indignao apostrofou:

    s um miservel sem noo de piedade. Nem o amor pde deter tua mo assassina?

    Porm, Valmiki refletiu:

    Que isto? Que estou dizendo? Nunca falei assim at agora!

    Ento ouviu uma voz que disse:

    No temas, porque de teus lbios brota a poesia. Escreve a vida de Rama em linguagem potica, para benefcio do mundo.

    Assim comeou a epopia. O primeiro verso uma torrente de piedade brotando do corao de Valmiki.

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    II O Argumento

    Na provncia de Oudh, hoje unida administrativamente de Agra, subsiste ainda, embora runas, a antiqussima cidade de Ayodhya, outrora um dos mais poderosos centros religiosos da ndia e lugar de peregrinao.

    H muitos sculos, reinava em Ayodhya um rei chamado Dasaratha que, de nenhuma de suas trs esposas, havia obtido sucesso; por isso, como bons hinduistas, foram em peregrinao a vrios santurios e jejuaram em fervorosa splica para que Deus lhes concedesse sucesso.

    Finalmente seus rogos foram ouvidos e obtiveram resposta em quatro filhos, dos quais o maior foi Rama.

    Como convinha sua estirpe, os quatro irmos receberam completa educao em todos os ramos do saber. Para evitar futuras contendas, era costume na antiga ndia associar o rei o seu filho maior ao governo do pas, sob o ttulo de Yuvaraja, que significa: "o rei jovem"

    Em outra cidade havia um rei chamado Janaka, o qual tinha unia afilhada maravilhosamente formosa, cujo nome era Sita e que fora encontrada recm-nascida em um campo, como se tivesse surgido do seio da terra.

    Em snscrito antigo, a palavra "Sita" significa "sulco feito pelo arado", e na mitologia ndiana vemos personagens que s tm pai ou me ou nascem sem pai nem me, do fogo do sacrifcio, de um campo, como se cassem das nuvens etc.

    Todas essas classes de nascimentos so freqentes na mitologia ndiana.

    Sita, como filha da Terra, era pura e imaculada. O rei Janaka criou-a e desejou encontrar-lhe digno esposo, quando a mesma atingiu a idade nbil. Na antiga ndia costumavam as princesas reais escolherem marido. A esse costume deva-se o nome de Swayamvara; segundo esse costume, o pai da princesa convidava a todos os prncipes das redondezas para se apresentarem corte, onde a princesa, ricamente vestida, grinalda nas mos e precedida por um arauto que ia enumerando as prendas, passava diante deles e colocava a grinalda no pescoo daquele que a donzela havia escolhido para esposo.

    Muitos eram os prncipes que suspiravam pela mo de Sita, a qual havia exigido, como prova de merecimento, que o candidato quebrasse com suas mos um enorme arco chamado Haradhana.

    Todos os prncipes fracassaram na tentativa, apesar dos seus esforos, menos Rama, que com elegncia e facilidade apanhou o forte arco e com suas mos quebrou-o pelo meio.

    Por isso Sita elegeu a Rama por marido e as bodas foram celebradas com grande esplendor.

    Rama levou sua esposa corte de seu pai Dasaratha, o qual julgou oportuno o momento para nomear juvaraja o seu filho maior e confiar-lhe o governo do pas.

    Para esse fim Dasaratha preparou as cerimonias da proclamao e o povo acolheu entusiasticamente a notcia, quando uma donzela de Kalkeyi, a mais jovem das trs esposas de Dasaratha, lembrou sua senhora que, havia muito tempo, o rei seu esposo havia prometido duas coisas, em reconhecimento ao muito que a ele Ihe fizera, dizendo-lhe:

    - Pede duas coisas que eu possa dar-te e eu lhas darei.

    A rainha Kaikeyi, na ocasio, nada pediu a seu marido e at j havia esquecido a promessa; porm a maliciosa donzela comeou a aguilhoar a alma da rainha, fazendo-lhe ver a injustia de colocar a Rama no trono, quando fazendo ao rei cumprir sua promessa, seu prprio filho poderia ocupar o trono; foi assim que a rainha Kaikeyi ficou louca de cimes.

  • 7

    A astuta donzela incitou ento sua ama para que exigisse logo do rei a concesso das duas coisas prometidas, sendo uma delas a ocupao do trono pelo seu filho Bharata e a outra que fosse a condenao de Rama a catorze anos de desterro nos bosques.

    Embora Rama fosse a alma e a vida para o rei Dasaratha, este, como rei, viu-se obrigado a no faltar sua palavra, quando a rainha Kaikeyi exigiu dele o cumprimento de sua promessa; por isso no sabia o que fazer.

    Rama, porm, dissipou a dvida, oferecendo-se voluntariamente a renunciar ao trono e sair desterrado, a fim de que ningum pudesse acusar sua me de falsidade.

    Por isso, seguiu para o desterro, acompanhado de sua amorosa esposa Sita e de seu irmo predileto Lakshmana, que, de modo algum, quis separar-se dele. Os rias no sabiam quem eram os habitantes dos bosques e, por isso, naquele tempo os chamavam "monos" e aos mais robustos e corpulentos chamavam "demnios".

    Rama, Sita e Lakshmana foram cumprir seu desterro em um daqueles bosques, habitados por monos e demnios, como talvez denominavam os rias as tribos selvagens.

    Quando Sita manifestou o desejo de acompanhar seu marido no desterro, Rama lhe disse:

    - Como podes tu, unia princesa, enfrentar as torturas que me aguardam em um bosque cheio de perigos traioeiros?

    Sita, porm, respondeu:

    - Onde Rama for, Sita ir tambm. Como podes falar-me de origens reais ou de altas linhagens? Irei contigo!

    Rama foi acompanhado de Sita e do jovem Lakshmana, irmo menor de Rama. Internaram-se no bosque, at que alcanaram as margens do rio Godavari, onde construram uma choas e passaram a sustentar-se de frutos silvestres.

    Havia j passado algum tempo que ali estavam, quando, um belo dia, surgiu uma gigantesca demonia, irm do gigante rei Lanka (Ceilo).

    Vagando pelos bosques, encontrou-se com Rama e, ao v-lo to varonilmente formoso, apaixonou-se loucamente por ele. Rama, porm, alm de casado, era um varo castssimo e no quis corresponder ao amor da intrusa. Esta, para vingar-se, procurou seu irmo, a quem descreveu com nfase a dominadora beleza de Sita, esposa de Rama, dizendo-lhe que dela se apoderasse.

    Rama superava em poder todos os mortais e no havia gigante nem demnio, nem mortal algum que fosse capaz de venc-lo. Por isso o rei gigante de Lanka buscou na astucia aquilo que considerou impossvel conseguir pela fora.

    Ds-se modo, s artes de outro gigante, que era mago, o qual transformou-o em formoso cervo de Plo dourado. Assim metamorfoseado, este foi ao bosque onde Rama vivia e comeou a saltar ao redor da cabana, at que, fascinada pela extraordinria beleza do animal, Sita pediu a Rama que o capturasse para ela. Indo caa do animal, Rama deixou Sita sob os cuidados do seu irmo Lakhsmana; este, porm, acendeu um crculo de fogo ao redor da cabana e disse irm:

    "Pressinto que te vai acontecer algo de mau; Portanto, peo-te que no transponhas o crculo mgico, do contrrio, cairs no infortnio.

    Entretanto, Rama havia ferido o cervo com uma flecha, tendo o animal morrido e se transformado em figura de homem. No mesmo instante, ouviu-se na cabana a voz de Rama que gritava:

    - Lakhsmana, vem socorrer-me.

  • 8

    Sita exclamou:

    - Corre a ajud-lo, Lakhsmana.

    Lakhsmana replicou.

    - Esta voz no de Rama!

    Entretanto, Sita de tal modo insistiu que Lakhsmana saiu a procurar Rama. Assim que ele se distanciou, apresentou-se junto ao crculo mgico, em frente porta da cabana o rei gigante, disfarado em monge mendicante, pedindo esmola.

    Sita respondeu-lhe:

    - Aguarda um pouco, pois logo meu marido voltar e te dar muita esmola.

    O falso mendigo replicou:

    - No posso esperar, bondosa senhora, pois estou esfomeado. D-me o que tiveres.

    Sita lanou mo de algumas frutas para atir-las ao mendigo, mas este persuadiu-a a entreg-las pessoalmente, pois nada havia a temer de um santo varo.

    Logo que Sita transps o crculo mgico para dar as frutas ao mendigo, este assumiu imediatamente sua frma gigantesca e arrebatou-a, colocando-a num carro encantado, que partiu velozmente com sua cobiada presa.

    A infeliz, desfeita em pranto, no teve quem a protegesse naquela solido; lembrou-se porm, de assinalar o caminho percorrido com os adornos que trazia nos braos.

    O rei gigante, raptor de Sita, chamava-se Rvana e levou-a a Lanka, seu reino, hoje denominado Ilha de Ceilo.

    Chegado corte, Rvana props a Sita que consentisse em ser sua esposa e rainha do pas, ela, porm, que era a castidade personificada, no quis nem sequer ouvir as palavras de Rvana, que, para castig-la, obrigou-a a permanecer dia e noite sob uma rvore, at que mudasse de atitude.

    Quando Rama e Lakhsmana voltaram cabana, no teve limites o desconsolo de ambos, quando notaram o desaparecimento de Sita, pois no podiam imaginar o que havia acontecido a ela. Saram, pois, em busca da moa e explorando o bosque inteiro dela no acharam vestgios.

    J estavam cansados, quando encontraram um grupo de monos, chefiados por Hanumn, o "mono divino", o melhor dos monos o qual, solicitamente, ps-se a servio de Rama. Inteirado do caso, disse-lhe que haviam visto atravessar os ares um carro em que ia sentado um demnio, ao lado de uma formosssima mulher, toda em prantos, a qual ao voar o carro sobre eles, havia atirado um bracelete para chamar-lhes a ateno.

    Quando lhe apresentaram o bracelete, Lakshmana no o reconheceu, porque na antiga ndia, a esposa do irmo mais velho era to reverenciada pelos seus cunhados, que Lakhsmana nunca se havia atrevido a pousar o olhar nos braos de Sita, Rama, porm, reconheceu imediatamente o bracelete de sua esposa. Os monos ento, disseram a Rama quem era e onde vivia aquele rei gigante. Isto feito, todos partiram para persegui-Io.

    O rei dos monos chamava-se Bli, porm, o trono lhe havia sido usurpado por seu irmo menor Sugriva. Houve luta, e Rama ajudou Bli a recobrar a coroa. Este, agradecido, prometeu auxiliar Rama a libertar Sita. Entretanto, percorreram todo pas sem encontr-la.

  • 9

    Finalmente, o mono divino saltou das costas da ndia s do Ceilo, procurando Sita pela ilha inteira, sem lograr encontr-la. Rvana havia vencido os deuses, os homens, o mundo inteiro e raptara todas as mulheres formosas. Por isso Hanumn refletiu e disse:

    - Sita no pode estar com as concubinas no palcio. Teria preferido a morte desonra.

    Por essa razo, prosseguiu em suas pesquisas, encontrando, finalmente, Sita sob a rvore onde Rvana a aprisionara.

    Estava plida e delgada como a lua nova ao horizonte. Hanumn assumiu ento a transpor o figura de um pequeno mono e, escondido na ramagem da rvore viu como a irm gigante de Ravana vinha atemorizar Sita para for-la a submeter-se; a casta esposa, porm, nem queria ouvir falar do rei gigante.

    Quando a irmo de Rvana partiu, Hanumn aproximou-se de Sita mostrando-lhe o bracelete que Rama lhe havia dado para atestar sua identidade, relatando-lhe como seu marido o havia incumbido de procur-la; que seu marido, logo que soubesse onde ela estava, viria com um poderoso exrcito para vencer o gigante e libert-la. Acrescentou, entretanto, que, se ela quisesse, poderia tom-la nos braos e com um salto atravessar o oceano e devolv-la a Rama; porm, como Sita era a castidade em pessoa, recusou aquela insinuao, porque deliberadamente no admitia ao seu lado outro homem seno seu marido. Assim, permaneceu onde estava e deu a Hanumn uma jia desprendida de seus cabelos, para que a entregasse a Rama. O mono divino despediu-se dela e voltou para seu pas.

    Inteirado do que havia sucedido a Sita, segundo o relato de Hanumn, Rama reuniu um exrcito de monos, chegando ao ponto mais meridional da ilha, onde construram uma ponte chamada Setu-Bandha, entre a ndia e o Ceilo. Atualmente, com a mar baixa possvel passar a p enxuto de um ponto a outro. Para construir a ponte, os monos arrancaram radicalmente vrias colinas, assentaram-nas no mar e cobriram-nas com pedras e troncos de rvores. Um esquilo revolvia-se na areia para encher com ela o corpo e depois, ao passar no trecho da ponte em construo, sacudia-se todo para espalhar a areia, contribuindo assim com muitos gros para o levantamento da obra colossal, dirigida e projetada por Rama.

    Os monos riam e zombavam do esquilo ao v-lo espadanar-se na areia e sacudi-la depois na ponte, pois seu trabalho era insignificante, comparado ao deles que carregavam colinas inteiras, enormes bosques e grandes cargas de areia.

    Rama, porm, disse-lhes:

    - Bem-aventurado este esquilo, porque faz seu trabalho com toda a habilidade de que capaz e, portanto, to grande como o maior de vs.

    Em seguida, acariciou suavemente as costas do esquilo e por isso que se v at hoje nas costas desse animal a marca longitudinal dos dedos de Rama.

    Terminada a ponte, o exrcito de monos, sob o comando de Rama e Lakshmana, invadiu a ilha do Ceilo. Durante alguns meses guerrearam encarniadamente contra as hostes de Rvana que, finalmente, foi vencido e morto. Os vencedores se apoderam de todos os seus palcios, que eram de ouro macio. Rama cedeu-os a Vibhishana, irmo menor de Rvana e levou-o ao trono, como recompensa dos valiosos servios que havia prestado durante a guerra.

    Rama e Sita resolveram sair de Ceilo com seu squito e regressar ndia; o povo porm, quis que Sita demonstrasse haver permanecido pura, enquanto esteve em poder de Rvana.

    Rama, respondeu-lhes:

    - Que prova ou testemunho quereis, se minha esposa a castidade personificada?

    - No importa! Queremos a prova.

    Assim, acenderam uma fogueira sacrificial, cujas chamas no queimariam a Sita, se houvesse permanecido pura e ali a arrojaram.

  • 10

    Rama ficou angustiado, temendo pela vida de Sita, porm, no mesmo instante, surgiu o deus do fogo, trazendo em sua cabea um trono, no qual a jovem estava assentada.

    Todos ficaram satisfeitos pelo feliz resultado da prova.

    Regressando ao bosque, Rama recebeu a visita de seu irmo Bharata, que o notificou da morte do velho rei Dasaratha, dizendo-lhe que no se atrevera a ocupar um trono ao qual no tinha direito e, portanto, como sinal de respeito, nele havia colocado os sapatos de Rama.

    Este, ento, voltou capital e com o beneplcito do povo foi aclamado rei de Ayodhya, tendo prestado os juramentos de estilo que, nos tempos antigos faziam os reis em benefcio do seu povo, pois o rei era escravo do povo e devia inclinar-se ante a opinio pblica.

    Depois que Rama passou alguns anos na feliz companhia de Sita, alguns comearam a espalhar a notcia de que a rainha havia sido outrora raptada por um demnio, que a levou alm do oceano. O povo no se conformou com a prova do fogo e exigiu outra mais convincente, sob pena de ser a rainha desterrada.

    Para satisfazer os pedidos do povo, Rama desterrou sua esposa, que foi viver no mesmo bosque em que estava a ermida do sbio e poeta Valmiki. Este encontrando a infeliz Sita chorosa e abatida, ficou sabendo o que havia ocorrido e abrigou-a em sua ermida, onde a rainha, pouco tempo depois, deu luz dois gmeos.

    Com o passar do tempo, o rei Rama teve de celebrar um solene sacrifcio, segundo os costumes reais; porm, como na ndia no permitem os Shastras que um homem casado celebre uma cerimonia religiosa, sem a companhia da esposa, de sua sahadharmini ou correligionria e Sita estava no desterro, o povo pediu a Rama que se casasse novamente. Ele, porm, pela primeira vez em sua vida, ops-se vontade do povo e disse: Isto no pode ser. Sita minha vida!

    Em vista disso, para que a cerimonia fosse realizada, o rei mandou construir uma urea esttua de Sita e ordenou que se ornamentasse um palco no lugar do sacrifcio, para intensificar o sentimento religioso, por meio de uma representao dramtica.

    Por esse tempo, os gmeos de Sita, chamados Lava e Kusha, eram dois garbosos mancebos que Valmiki havia educado na vida de bramacharin1, sem revelar-lhes sua origem.

    Durante aquele longo perodo, Valmiki havia composto a epopia da vida de Rama, acompanhada de msica apropriada para ser cantada em rapsdias. Sabedor do festival que ia realizar-se em Ayodhya, dirigiu-se cidade com os desconhecidos filhos de Rama e Sita, os quais, sob a discrio de seu mestre, cantaram no palco a vida de Rama, com to surpreendente habilidade que fascinaram os espectadores, presididos pelo rei, seus irmos e os magnatas da corte.

    Quando os cantores chegaram passagem em que o poema descreveu o desterro de Sita, Rama ficou profundamente comovido. Valmiki, porm, disse-lhe:

    No te aflijas porque vers tua esposa.

    Sita, ento, surgiu no cenrio, enchendo de alegria o corao de seu fiel e amoroso Rama.

    O povo, porm, exigiu em altas vozes:

    A prova! A prova!

    To profundamente abalada ficou Sita por aquele reiterado receio do povo, a respeito de sua reputao, que implorou aos deuses um incontestvel testemunho de sua inocncia.

    1 Novio que faz voto de castidade, pobreza e obedincia nos mosteiros hindus.

  • 11

    Naquele momento, a terra abriu-se e Sita desapareceu em sem seio, exclamando:

    Eis a prova!

    Ante to trgico desfecho, o povo arrependeu-se. Rama estava inconsolvel, curtindo imensa dor, quando, poucos dias depois, chegou um mensageiro dos deuses para dizer-lhes que estava terminada sua misso na terra e deveria voltar ao cu.

    Aquela mensagem levou Rama ao reconhecimento do seu verdadeiro ser. Ento, atirando-se s guas do rio Savayu (atualmente Gogra) que banhava a Capital, reuniu-se com sua amada Sita no outro mundo.

    III Simbolismo

    Rama e Sita so os ideais da nao ria. Rama considerado como a encarnao da Divindade e Sita como smbolo da castidade conjugal.

    Todas as donzelas adoram-na com profunda devoo e o supremo anelo de toda mulher seguir o exemplo de Sita, a pura, a abnegada, a paciente.

    Os monos no so, como muitos orientalistas imaginam, os quadrmanos classificados pelos naturalistas; era o apelativo dado naquele tempo pelos rias s tribos aborgenes da ndia. De igual modo, os demnios no so os espritos malignos conhecidos no Ocidente; eram os reinantes ou caciques das tribos ou os reis dos pases estranhos. Como se v, uns e outros eram seres humanos.

    Estudando-se o carter dos protagonistas do Ramayana, verifica-se quo distinto do Ocidente o ideal tico e como diverso em aparncia o pensamento religioso da ndia.

    O ocidente diz: "Manifestai vosso poder nas obras."

    A ndia preceitua. "Manifestai vosso poder no sofrimento."

    Para a ndia, Sita o ideal do sofrimento.

    O Ocidente resolveu o problema do muito que pode fazer o homem.

    So dois extremos.

    Sita o smbolo da ndia; a ndia idealizada. No importa saber se Sita foi uma personagem real, se a epopia ou no histrica; o que importa o ideal encarnado em Sita.

    Nenhum poema sagrado descreveu to perfeitamente a ndole da raa ria nem penetrou to profundamente na vida hindu. Nada fervilha tanto no sangue da nao como o ideal simbolizado por Sita, cujo nome eqivale na ndia a tudo que bom, puro e santo, como atributo de uma nobre feminilidade,

    Um brmane, ao abenoar uma mulher diz: S igual a Sita.

    Aconselha tambm as meninas a imitarem esse ideal. Meninas e mulheres so filhas de Sita, a paciente, a abnegada, a fidelssima, a sempre casta esposa. Atormentada por todas as amarguras, no deixa escapar de seus lbios nem uma queixa, nem um lamento contra Rama. Considera o sofrimento como um dever e o cumpre resignadamente. Jamais se revolta e, embora aflita e lacrimosa, sobreleva a terrvel injustia do seu desterro. o ideal da ndia.

    Disse Buda:

    "Quando algum vos ofende e, por vingana o castigais, nem por isso remediais o primeiro dano seno que agravais ainda mais a maldade do mundo."

    Sita era hindu por natureza. Nunca pagou o mal com o mal.

  • 12

    Quem acertar em dizer se mais nobre ideal a fora aparente e o poderio material dos ocidentais ou o nimo e a pacincia dos orientais no sofrimento?

    O Ocidente diz: "Ns aliviamos o mal, vencendo-o.

    Responde a ndia: Ns destrumos o mal pelo prprio sofrimento, at que se converte em gozo.

    Ambos os ideais so nobres; porm, quem sabe qual dos dois prevalecer no futuro? Quem sabe qual das atitudes ser mais benfica para a humanidade, qual das duas vencer e desarmar a animalidade? Ser o combate ou o sofrimento?

    Entretanto, no desprezemos nem um nem outro ideal, porque ambos visam o mesmo objetivo: extirpar o mal.

    Que o Ocidente siga seu mtodo e o Oriente siga o seu. De modo nenhum aconselharei que o Ocidente se porte como a ndia. O objetivo o mesmo, embora os meios sejam diferentes.

    O Mahabharata

    I Origens

    A epopia intitulada Mahbhrata contm a histria de uma raa descendente do rei Bharata, filho de Dushyanta e Sakuntala.

    A palavra snscrita maha significa "grande" e bharata eqivale a "descendentes de Bharata". Da tomou a ndia o nome de Bharata, donde Mahabharata significar literalmente: Grande ndia ou Histria dos Grandes Descendentes de Bharata.

    O cenrio dessa epopia o antigo reino dos Kurus, de curta extenso e o tema a luta de duas famlias parentes e rivais: a dos Kuranas e a dos Pndavs, que disputavam o domnio da ndia.

    O Mahbhrata a epopia mais popular na ndia e goza de anloga autoridade como a que envolveu os poemas homricos na antiga Grcia.

    Com o tempo, acrescentaram-se muitos versos primitiva composio, at formar um volumoso livro de uns cem mil dsticos, com narraes, lendas, mitos, trechos histricos e ensinamentos filosficos que envol\l,em acessoriamente o tema principal.

    Para melhor compreender-se o argumento que mais adiante esboaremos, convm frisar que os rias no foram os primeiros povoadores do territrio hoje conhecido como pelo nome geogrfico de ndia, mas sim invasores, cujas tribos numerosas, chegando periodicamente a pouco e pouco, estenderam seu domnio at governar a populao aborgene com incontestvel poder.

    Dois ramos de uma s famlia, os j citados Kuravas e Pndavas se desavieram por ambicionar e hegemonia da ndia e a sucesso ao trono de Hastinapura. .

    A guerra entre as duas famlias o tema principal da epopia que se desenvolve, de acordo com o que sucintamente vimos expor.

    II O Argumento

    O rei de Hastinapura teve dois filhos: o maior chamado Dhritarshtra, que era cego de nascimento e o outro chamado Pndu.

  • 13

    Segundo as leis da ndia, ficava excludo da sucesso coroa, em benefcio de seu irmo menor, todo prncipe cego, aleijado, mudo, gago, surdo ou de complexo franzina e enfermia, que o impedisse de exercer a rgia autoridade, embora ficasse com direito a um amparo vitalcio.

    Em virtude da morte do pai, ocupou o trono o irmo menor Pndu.

    A cegueira no constituiu obstculo ao casamento de Dhritarshtra, o qual teve cem filhos, ao passo que Pndu s teve cinco.

    Pndu morreu em plena maturidade, e como no avia outro herdeiro direto seno Dhritarshtra , este ocupou o trono dos Kurus, apesar de sua cegueira, e educou os cinco filhos de Pndu juntamente com seus cem filhos.

    Quando os prncipes atingiram certa idade,, o rei colocou-os sob os cuidados de um sacerdote guerreiro, chamado Drona, que os educou na arte militar e em todas as cincias necessrias aos prncipes.

    Terminada a educao, Dhritarshtra colocou no trono de seu pai Yudhishthira filho maior de Pndu; porm as austeras virtudes de Yudhishthira, o valor e a devoo de seus outros quatro irmos, despertaram a inveja no corao dos filhos do rei cego. Instigados por Duryodhana, o mais velho de todos, persuadiram aos cinco irmos Pndavas que fossem a Vranvata, sob pretexto de um festival religioso que ali se celebrava.

    Duryodhana havia mandado construir um palcio feito de cnhamo, resina, laca e outras matrias inflamveis, onde os acomodou o astuto prncipe com intento de atear fogo ao mesmo.

    Aconteceu, porm, que o bondoso Vidura, cunhado de Duryodhana e seu bando, avisou os Pandavas, que puderam escapar sem que ningum notasse.

    Quando os Kurus viram o palcio reduzido a cinzas, lanam um suspiro de satisfao, certos de que j no encontravam obstculos em seu caminho e se apoderaram do reino.

    Ora, os cinco irmos Pndavas refugiaram-se no bosque, com sua me Kunti e disfarados depois em estudantes brmanes, viviam de esmolas pelos arredores; embora sofressem muitos dissabores, sua energia mental e nimo valoroso venceram totalmente todos os perigos. Assim prosseguiam as coisas, quando um dia, tiveram notcia do prximo noivado da princesa de um pas vizinho.

    Como era de costume em tais casos, grande nmero de prncipes e nobres se havia reunido, para que a princesa escolhesse aquele que mais fosse de seu agrado.

    A princesa que ia casar-se, chamava-se Draupadi e era filha de Drupada, o poderoso rei dos Panchalas. A moa era de peregrina beleza e de relevantes dotes. Sempre que se celebrava um svayamvara, ou escolha de noivo, os pretendentes disputavam algum exerccio de habilidade e destreza.

    Naquela ocasio, haviam colocado um alvo em frma de peixe, a grande altura, debaixo do qual girava continuamente uma roda com um furo no centro. Para maior dificuldade dos contendores, colocaram debaixo da roda uma tina cheia de gua, na qual se refletia todo o artefato.

    A prova consistia em mirar a imagem do peixe refletida na tina e disparar a flecha, de modo que essa atravessasse o furo da roda e atingisse o olho do peixe, que servia de alvo. Quem acertasse casaria com a princesa.

    Ao local acorreram reis e prncipes de diferentes regies da ndia, ansiosos por conquistar a mo de Draupadi. Entretanto, todos eles puseram em prtica sua habilidade, sem que nenhum acertasse no alvo.

    Ento, o filho do rei Drupada levantou-se no meio do concurso e exclamou:

    - A casta dos kshatriyas fracassou na prova, portanto, ficam admitidos a ela os pretendentes das demais castas e embora seja um sudra, se acertar, casai-se- com Draupadi".

  • 14

    Entre os brmanes estavam os cinco irmos Pndavas e Arjuna o terceiro deles era habilssimo no manejo do arco. Por isso levantou-se para tomar parte na prova.

    Convm advertir que os brmanes so pessoas pacificas e tmidas. Segundo a lei, no devem tocar em nenhuma arma de guerra, nem brandir a espada e jamais cometer qualquer empresa perigosa, pois sua vida deve ser de contemplao, estudo e domnio de sua natureza interna.

    Por essa razo, quando os brmanes que presenciaram o torneio viram que Arjuna se levantou para empunhar o arco, temeram que contra eles despertasse a ira dos kshatriyas e os matassem, sem discernir os culpados e os inocentes.

    Dominados por esse temor, pediram a Arjuna que desistisse do concurso: porm, como o valoroso pndava, segundo vimos, era um kshatriya disfarado em brmane, no ligou-lhes importncia e empunhando o arco disparou a flecha com tal acerto que atingiu o alvo.

    A assistncia prorrompeu em frenticos aplausos e a princesa Draupadi cingiu a fronte de Arjuna com a grinalda tradicional.

    No mesmo instante, ergueu-se grande clamor entre os prncipes, pois no podiam tolerar que um pobre brmane se cassasse com uma princesa kshatriya e prevalecesse contra a assemblia de reis e prncipes. Ento, resolveram lutar com Arjuna para arrebatar-lhe fora a sua noiva. Iniciou-se o combate, mas o cinco irmos mantiveram a distncia os guerreiros e depois de vence-los em combates singulares, levaram triunfal mente a princesa.

    Como os cincos irmos, disfarados em brmanes, viviam de esmolas que recolhiam na comarca, esmolas essas que eram distribudas por Kunti, quando chegaram naquele dia cabana em que moravam, exclamaram alegremente antes de entrar:

    - Me! Hoje trazemos uma esmola verdadeiramente valiosa.

    Kunti, sem reparar no que podia ser, respondeu l de dentro:

    - Como bons irmos que sois, deveis reparti-Ia entre vs igualmente.

    Porm, ao sair e ao ver Draupadi exclamou assombrada:

    - Oh! Que disse eu? uma mulher!

    Porm j no havia remdio, porque uma me no tem duas palavras e aquilo que diz uma vez h de ser cumprido.

    Por isso, Draupadi foi a esposa comum dos cinco Pndavas.

    sabido que todo povo passa em seu desenvolvimento por sucessivos graus de civilizao. Na passagem da epopia que acabamos de citar, apresenta-nos o autor cinco irmos que possuem uma mesma esposa e embora d por desculpa a ordem sagrada de sua me, seu intento foi sem dvida oferecer um vislumbre do antiqussimo estado social em que a poliandria era legtima, embora contrada entre os irmos de uma s famlia.

    O irmo de Draupadi ficou algum tanto pensativo depois da partida de sua irm e cogitava: "Que gente essa? Quem esse homem com quem casou-se minha irm? No tem cavalos, arreios, nada! Caminham a p ...

  • 15

    Por isso, acompanhando-os de longe, chegou junto cabana e protegido pela escurido, ouviu o que conversavam, deduzindo que eram realmente kshatriyas. Comunicou a nova a seu pai, o rei Drupada, que ficou satisfeitssimo. Entretanto, para sua maior tranqilidade consultou Vyasa sobre se era lcito ou no o matrimnio de uma mulher com cinco irmos2. O sbio respondeu que no havia inconveniente por tratar-se daqueles prncipes. Por isso, Draupadi foi a esposa legtima dos cincos Pndavas, que viveram em paz e prosperidade, tornando-se cada dia mais poderosos.

    Embora Duryodhana e seu bando tramassem novas maquinaes contra seus parentes todas fracassaram, tendo os ancios do reino aconselhado ao rei Dhritarashtra que firmasse a paz com os Pndavas.

    O rei aceitou o conselho, tendo convidado os Pndavas para voltarem corte, dando-lhes a metade do reino. O povo alegrou-se muito pelo restabelecimento da paz. Ento os cinco irmos edificaram para sua residncia uma formosa cidade a que deram o nome de Indraprastha, estendendo o seu domnio por toda a comarca.

    Ao ver-se to poderoso, Yudhishthira, pndava maior, quis erigir-se imperador de todos os reis da antiga ndia. Para tal fim decidiu celebrar um Yajna Rayasuya, ou Sacrifcio Imperial, com a assistncia de todos os rgulos que havia vencido, para prestarem juramento de fidelidade, pagarem tributo e ajudarem pessoalmente as cerimnias do Sacrifcio.

    Sri Krishna, parente e amigo dos Pndavas, aprovou a idia mas encontrava certa dificuldade porque um rei vizinho, chamado Jarasandha, projetava tambm celebrar um sacrifcio com cem rgulos e j tinha oitenta e seis cativos em seu poder.

    Krishna aconselhou uni ataque contra Jarasandha a quem ofereceram combate singular. Aceito o repto, Jarasandha foi vencido por Bhina, depois de catorze dias de luta contnua, tendo os rgulos cativos recuperado a liberdade. Depois disso, os quatro irmos menores saram frente de seus respectivos exrcitos, em diversas direes e subjugaram todos os rgulos das redondezas.

    Ao regressar da expedio conquistadora, depuseram os trofus de guerra aos ps do irmo mais velho, para sufragar os gastos do sacrifcio, celebrado com invejvel pompa, onde prestaram homenagem a Yudhisthira os rgulos libertados e os vencidos pelos quatro irmos. Tambm estiveram presentes, na qualidade de convidados, o rei Dhritarshtra com seus filhos, os quais participaram das cerimnias.

    Terminado o sacrifcio, efetuou-se a coroao de Yudhisthira como imperador e senhor supremo.

    Duryodhana encheu-se de inveja e tornou-se inimigo de Yudhisthira, cujo esplendoroso poderio no podia suportar. Como sabia que pela fora era impossvel derrot-lo, urdiu uma traio com o propsito de lev-lo perdio.

    O rei Yudhisthira era apaixonado pelos jogos de azar. Duryodhana, aproveitando-se dessa fraqueza de seu primo, combinou com um jogador profissional chamado Sakuni, que retivesse por longo tempo Yudhisthira numa partida de dados.

    Na antiga ndia, se um Kshatriya ou guerreiro era desafiado ao combate, devia aceitar o repto a todo custo, sob pena de ver menoscabada sua honra; o mesmo sucedia se fosse desafiado a jogar dados.

    Embora Yudhisthira fosse a encarnao de todas as virtudes, como rei, no podia deixar de, aceitar o repto de Sakuni. Este havia trazido, de propsito, uns dados falsos, de modo que o rei foi perdendo partidas e mais partidas, at que aguilhoada pela nsia da desforra apostou sucessivamente tudo que possua inclusive ser reino, seus irmos e at a formosa Draupadi.

    2 A alma ligada aos cinco sentidos.

  • 16

    Os cinco Pndavas caram em poder dos Kuravas, que os humilharam sem piedade, infligindo a Draupadi os tratos mais desumanos.

    Finalmente, pela interveno do rei cego Dhritarshtra, recobraram a liberdade sendo-lhes concedido permisso para apossar-se de seu reino; antes, porm, de cumprido o decreto, Duryodhana, ao ver o perigo, forou seu pai a que confiasse a deciso final em uma partida de dados, entre os Pndavas e os Kuravas, de sorte que o grupo que perdesse ficaria desterrado durante doze anos, no fim dos quais viveria incgnito em uma cidade, no ano seguinte. Porm, se quebrassem o desterro, sofreriam por mais doze anos, no fim dos quais poderiam recuperar o reino.

    Como era previsto, pois os dados de Sakuni eram falsos e ele era muito hbil em prestidigitao, Yudhisthira perdeu tambm a partida final. Os cincos Pndavas saram do reino e se retiraram para os bosques e montanhas, onde estiveram durante doze anos, durante os quais realizaram muitas aes de virtude e valor, fazendo s vezes longas peregrinaes a stios sagrados.

    Muitos yogis foram visit-los em seu desterro, contando-lhes interessantes episdios da antiga histria da ndia, entre os quais a que transcrevemos a seguir.

    III Histria de Savitri

    Havia outrora um rei chamado Asvapati, que tinha uma filha to formosa e meiga que lhe deram o nome de 3avitri, o de uma sagrada orao dos hindus.

    Quando a moa chegou idade nbil, seu pai mandou que escolhesse marido, de acordo com sua vontade, pois na antiga ndia no se conhecia nem por sombra o que hoje se chama razo de Estado nas monarquias, sendo as princesas reais donas absolutas dos seus sentimentos amorosos.

    Savitri aceitou o conselho de seu pai. A carruagem real, acompanhada de brilhante escolta e antigos potentados que dela cuidaram, visitou varias cortes vizinhas e outros reinos distantes, sem que nenhum prncipe conseguisse sensibilizar seu corao.

    Aconteceu que a comitiva passou por uma ermida localizada em um daqueles bosques da ndia antiga, em que a caa era proibida, de sorte que os animais que ali habitavam haviam perdido todo temor ao homem e at os peixes dos lagos apanhavam com a boca as migalhas de po que se lhes davam com as mos.

    Havia milhares de anos que no se matava nenhum ser naquele bosque; os sbios e os ancios desgostados do mundo retiravam-se para l a fim de viverem em companhia dos cervos, das aves, entregando-se meditao e a exerccios espirituais pelo resto da vida.

    Sucedeu que uni rei, chamado Dyumatsena, j velho e cego, vencido e destronado por seus inimigos, refugiou-se no bosque fechado com sua esposa, a rainha, os seus filhos dos quais o mais velho se chamava Satvavn, e ali passava asceticamente a vida, em rigorosa penitncia.

    Na antiga ndia, era costume que todo rei ou prncipe, por mais poderoso que fosse, ao passar pela ermida de um varo sbio e santo, retirado do mundo, se detivesse para tributar-lhe homenagem; tal era o respeito e a venerao que os reis prestavam aos yogis e aos rishis.

    O mais poderoso monarca da ndia sentia-se honrado quando podia demonstrar sua descendncia de algum yogi ou rishi que tivesse vivido no bosque, alimentando-se de frutas, razes e coberto de andrajos.

    Assim que quando se aproximavam a cavalo de alguma ermida, apeavam-se muito antes de chegar a ela e andavam a p at o local onde estava o eremita. Se iam de carro e armados, tambm desciam, despojavam-se de seus arreios militares e depois entravam na ermida, pois era costume que ningum entrasse naqueles sagrados retiros ou ashram, como eram chamados, com armamentos militares, mas sim com atitude serena, pacifica, humilde.

  • 17

    Fiel ao costume, Savitri penetrou na ermida do bosque sagrado e, ao ver Satyavn, filho do destronado rei eremita, ficou profundamente apaixonada por ele. Ela j havia desprezado os prncipes de todas as cortes e unicamente o filho do destronado Dytimatsena lhe havia roubado o corao.

    Quando a comitiva regressou corte, o rei Asvapati perguntou filha:

    - Diz-me, Savitri, querida filha, vistes algum digno de ser teu esposo?

    - Sim, pai querido, - respondeu Savitri ruborizada.

    - Qual o nome do prncipe?

    - J no prncipe, meu pai, por que filho do rei Dyumatsena, que perdeu o reino. No tem patrimnio e vive como um sannyasi no bosque, colhendo ervas e razes para alimentar-se e manter seus velhos pais, corri quem mora em uma cabana.

    Ao ouvir isto dos lbios de sua filha, o rei Asvapati consultou o sbio Nrada, que se achava presente. Este declarou que aquela escolha era o mais funesto pressgio que a princesa havia feito.

    O rei pediu ento a Nrada que explicasse os motivos de sua declarao e ele respondeu:

    - Daqui a um ano esse jovem morrer.

    Aterrorizado por esse vatcinio, disse o pai filha:

    - Pensa, Savitri, qu o jovem que escolheste morrer dentro de um ano e ficars viva. Desiste da escolha", filha minha, e no te cases com um jovem de to curta Vida.

    Savitri, porm, respondeu:

    - No importa, meu pai. No me peas que me case com outro e sacrifique a castidade de minha mente, porque em meu pensamento e em meu corao amo ao valente e virtuoso Satyavn e o escolhi para esposo. Uma donzela escolhe uma s vez e jamais quebra sua fidelidade.

    Ao v-Ia to decidida, resignou-se o pai vontade de Savitri, que, em conseqncia, casou-se com o prncipe Satyavn e tranqilamente deixou o palcio de seu pai para viver na cabana do bosque, com o eleito de seu corao, ajudando-o a sustentar seus velhos pais.

    Embora Savitri soubesse quando seu marido ia morrer, guardou a respeito rigoroso segredo.

    Diariamente Satyavn se Internava no bosque para colher frutas, flores e reunir feixes de lenha, volvendo com a carga para a cabana, onde sua esposa preparava a refeio.

    Assim passou o tempo, at que trs dias antes da data fatal, resolveu a moa passar trs dias e trs noites em completo jejum e fervorosas oraes, sem deixar transparecer sua angustia e ocultando suas lgrimas.

    Finalmente amanheceu o dia marcado no pressgio e no querendo Savitri perder de vista, nem por um momento, a seu marido, solicitou e .obteve dos pais do mesmo permisso para acompanh-lo, quando fosse colheita diria de ervas, razes e frutas silvestres no interior do bosque. Assim foi feito.

    Estavam em pleno bosque, quando com voz enfraquecida Satyavn queixou-se esposa, dizendo:

    Querida Savitri, sinto-me aturdido, meus sentidos se esvaem e o sono me invade. Deixa-me repousar um pouco ao teu lado.

    Trmula e assustada, Savitri replicou:

    - Vem, meu amado e reclina a cabea em meu colo.

  • 18

    Satyavn reclinou a cabea ardente no colo de sua esposa e instantes depois exalou o ltimo suspiro.

    Abraada ao cadver de seu marido, desfeita em lgrimas, permaneceu a infeliz naquela solido, sentida no cho, at que chegaram os emissrios da Morte para levar a alma de Satyavn.

    Nenhum deles, porm, pde acercar-se do local em que estava Savitri com o cadver de Satyavn, porque ardia num crculo de fogo que rodeava a unio formada pela vivente e o morto.

    Por isso os emissrios voltaram ao rei Yama, o deus da Morte e explicaram-lhe porque no puderain levar a alma de Satyavn.

    Yama, o deus da Morte, o juiz dos mortos, ocupava posio to divina por ser o primeiro homem que havia morrido na terra e decidia se um mortal, ao morrer, merecia prmio ou castigo.

    Assim, pois, Yama foi pessoalmente ao bosque e, como era um deus, pde atravessar sem perigo o crculo de fogo e aproximar-se do local em que estava Savitri. Chegando, disse a ela:

    - Minha filha, entrega-me este cadver, pois j sabes que a morte o destino de todo mortal e eu sou o primeiro mortal que morreu. Desde ento tudo que vive h de morrer. A morte o irrevogvel destino do homem.

    Savitri deixou o cadver de seu marido e Yama, tirando-lhe a alma, com ela se afastou; porm no havia andado muito, quando ouviu atras de si passos sobre as folhas secas. Ao volver-se a Savitri, a quem disse com paternal ternura:

    - Savitri, minha filha, por que me segues? Este o destino de todos os mortais.

    Savitri respondeu:

    - No sigo a ti, senhor meu, porque o destino da mulher ir onde seu amor a leva; a lei eterna no separa o amoroso esposo da fiel esposa.

    Ento disse o deus da Morte:

    - Pede-me a graa que quiseres, menos a vida de teu marido.

    Ao que ela respondeu:

    - Se desejas outorgar-me tuna graa, deus da Morte, peo-te que devolvas a vista a meu sogro e que ele seja feliz.

    Yama replicou:

    - Cumpra-se teu piedoso desejo, respeitosa filha.

    E o rei da Morte seguiu seu caminho com a a alma de Satyavn. Novamente ouvindo passos,

    voltou-se e viu que Savitri o acompanhava.

    - Savitri, minha filha, ainda me segues9

    - Sim, meu senhor; nada posso fazer, pois embora me esforce em retroceder, a mente corre em ps de meu marido e o corpo a obedece. Tens a alma de Satyavn e como sua alma tambm a minha, meu corpo a acompanha.

    Yama disse, ento:

    - Agradam-me tuas palavras, formosa Savitri. Pede-me outra graa, menos a %,ida de teu marido.

  • 19

    - Se te dignares conceder-me outra graa, fazei com que meu sogro recupere seu reino e suas riquezas.

    - Concedo-te, filha amorosa, mas volta para teu lugar, porque nenhum ser vivente pode andar em companhia de Yama.

    E o rei da Morte seguiu seu caminho.

    Savitri, porm, persistiu em acompanh-lo e Yama volvendo-se dialogou com a mesma.

    - Nobre Savitri, no me sigas com tua dor sem esperana.

    - No tenho remdio - seno ir para onde levas meu marido.

    - Supe, Savitri, que teu marido foi um perverso e que eu o levo para o inferno. Irias acompanhar teu marido?

    - Iria alegre para onde ele fosse, quer na vida, quer na morte, seja no cu, seja no inferno.

    - Benditas sejam tuas palavras, minha filha! Deixaste-me comovido. Pede-me outra graa que no seja a vida de teu marido.

    Pois j que me permites pedir-te, fazei com que no se quebre a rgia estirpe de meu sogro e que seu reino seja herdado pelos filhos de Satvavn.

    O rei da Morte sorriu e disse:

    - Filha minha, teu desejo ser cumprido. Aqui tens a alma de teu marido. Ele voltar a viver e ser pai de teus filhos que, com o tempo, sero reis. Volta para tua casa. O amor triunfou da morte.

    Jamais mulher alguma amou como tu e s a prova de que at eu, o deus da Morte, nada posso contra a fora de um verdadeiro e perseverante amor!

    IV No Desterro

    A inveja de Duryodhanna perseguiu os Pndavas at no desterro, onde os deixamos, embora fracassassem muitas ciladas de morte que os Kurus armaram contra eles.

    Um dia, os cinco irmos estavam no bosque com muita sede, quando Yudhisthira disse a Nakula que fosse buscar gua. Nakula obedeceu seu irmo maior e encaminhou-se ao lago, onde costumavam prover-se; porm, no momento de beber, ouviu uma voz que lhe dizia:

    - Detm-te, criatura; responde primeiro s minhas perguntas e depois bebers.

    Porm, como Nakula tinha muita sede, no fez caso da admoestao, bebeu a gua e caiu morto imediatamente.

    Ao ver que Nakula no voltava, Yudhisthira mandou um outro irrtijio, chamado Sahadeva, que o procurasse e trouxesse gua.

    Sahadeva dirigiu-se ao lago e encontrando em suas margens o cadver de Nakula, ficou extremamente aflito. Atormentado pela sede, ia beber, quando ouviu a mesma voz:

    - Detm-te, criatura. Responde primeiro s minhas perguntas e depois bebers.

    Sahadeva no dando importncia essas palavras, bebeu e caiu fulminado.

  • 20

    Arjuna e Bhina foram sucessivamente ao lago e sofreram a mesma sorte. Yudhisthira, ento, resolveu ir pessoalmente verificar o que havia. acontecido, pois nenhum dos quatros irmos, havia regressado; ao chegar, porm, a margem do lago, ficou profundamente entristecido ante o espetculo dos cadveres e prorrompeu em sentidas lamentaes.

    Logo ouviu aquela voz que dizia:

    - No procedas temerariamente, criatura. Sou um Yaksha que, como a grou sustento-me de peixes midos. Por mim caram teus irmos, sob a jurisdio do Senhor dos espritos desencarnados. Se tu, prncipe, no responderes s minhas perguntas, sers o quinto cadver. Se as responderes, filho de Kunti, poders beber e carregar quanta gua quiseres.

    Yudhisthira respondeu:

    Responderei s tuas perguntas, segundo o meu entender. Pergunta-me!

    O Yaksha disse ento:

    - Qual a coisa mais admirvel deste mundo?

    - a cada momento vermos como os outros morrem e os que ficam pensarem que nunca ho de morrer. Esta a coisa mais surpreendente: diante da morte, ningum pensa que h de morrer.

    O Yaksha voltou a perguntar:

    - Como se chega a conhecer o segredo da religio?

    - Nada se alcana com argumentos, porque muitas so as doutrinas, diversas as Escrituras e uns textos contradizem aos outros. No h sbios que concordem em suas opinies. Parece que o segredo da religio est sepultado em cavernas profundas. Por isso o caminho que se h de seguir o que seguiram os excelsos seres.

    O Yaksha, ento, respondeu:

    - Estou satisfeito. Eu sou o Dharma, o deus da justia em forma de grou. Vim por-te prova. Teus irmos no morreram. Tudo foi obra de minha magia. Posto que consideras a absteno de toda injuria superior ao prazer e ao luxo, teus irmos vivero, vencedor de teus inimigos e fortaleza dos Bhratas!

    A estas palavras, os quatro irmos ressuscitaram.

    Em suas respostas, Yudhisthira demonstrou que era mais que filsofo, que yogi e que rei.

    Como se aproximava o dcimo terceiro ano de desterro, durante o qual, segundo as condies estipuladas, haviam de viver incgnitos em uma cidade, sob pena de sofrer outros doze anos de desterro, o yaksha recomendou-lhes que fossem ao reino de Virat e ali vivessem disfarados do melhor modo que pudessem, para no serem reconhecidos.

    Obedientes voz do yaksha, quando terminaram os doze anos de desterro, os cinco Pndavas foram para o reino de Virat, convenientemente disfarados e entraram no servio domstico da casa real.

    Desse modo, Yudhisthira foi o brmane da corte, hbil no manejo dos dados; Bhima, cozinheiro; Arjuna disfarado em eunuco, foi nomeado mestre de msica e dana da princesa Uttar com alojamento nas habitaes particulares do rei; a Nakula foi confiado o cargo de escudeiro; a Sahadeva, o de boieiro; Draupadi, disfarada em camareira, foi admitida ao servio pessoal da rainha.

    Desse modo, durante um ano, os Pndavas permaneceram incgnitos na cidade de Virat, sem que as pesquisas de Duryodhana lograssem descobri-los.

  • 21

    V A Batalha

    Ao expirar o ano suplementar de desterro, sem que ningum tivesse descoberto os Pndavas, Yudhisthra mandou um mensageiro a Dhritarshtra intimando-o a que cumprindo o estipulado, lhe devolvesse a metade do reino.

    Duryodhana, porm, odiava seus primos e no quis aceder a to legtimo pedido e muito menos quele que, em vista dessa negativa lhe fizeram os Pndavas de que ao menos se lhes concedesse a soberania de cinco cidades do reino.

    O teimoso e obstinado Duryodhana declarou que a no ser pela fora das armas no cederia nem sequer o pedao de terra que se pudesse sustentar na ponta de agulha.

    Dhritarshtra bateu-se continuamente pela paz, mas tudo foi em vo. Krishna tambm interveio com o intuito evitar a guerra iminente, com a morte provvel de guerreiros do mesmo sangue, e embora fizessem o mesmo os antigos magnatas da corte, fracassou toda negociao no sentido de uma pacifica partilha do reino.

    Em vista disso, ambos os grupos se prepararam para a guerra e todos os reinos belicosos tomaram parte no conflito, de acordo com os antigos costumes dos Kshatriyas.

    Duryodhana e Yudhisthira. chefiaram seus respectivos exrcitos. Este ltimo apressou-se em enviar mensagens aos reis vizinhos, solicitando sua aliana, pois desse chefe honrado atenderiam o primeiro pedido de auxlio que recebessem.

    Duryodhana tambm lanou mo de idntico recurso e, por isso alguns reis se aliaram aos Pndavas e outros aos Kuravas, segundo a precedncia do pedido de auxlio. Disso resultou que cada exrcito tinha parentes, amigos, mestres, discpulos, pais, irmos ou filhos, no exrcito oposto

    Segundo o estranho cdigo militar vigente naqueles tempos, s se combatia durante o dia, ou melhor, de sol a sol; ao anoitecer as hostilidades eram suspensas, por uma espcie de armistcio noturno, durante o qual confraternizavam-se ambos os exrcitos, visitando uns as tendas dos outros, at que, ao amanhecer, cada qual voltava a seu campo para reiniciar o combate.

    Alm disso, um soldado de cavalaria no podia ferir um de infantaria, no era lcito envenenar as flechas, no se devia combater e vencer um, inimigo notoriamente inferior em nmero; era proibido levar vantagem contra o adversrio, valer-se de ciladas ou estratagemas. Seria desprezado e degradado quem infringisse qualquer uma dessas regras, que formavam a parte principal da educao militar dos Kshatriyas, cuja nica funo era combater numa guerra de justa causa.

    O cdigo tambm prescrevia que jamais os Kshatriyas empreendessem guerras de conquista e nem se apoderassem de pases estrangeiros, mas que vencer os invasores fossem estes repatriados com todas as honras devidas categoria e posio de cada qual. Por isso jamais despojaram nenhum pas vizinho de suas terras.

    Naquela poca a arte militar no se limitava ao hbil manejo do arco, mas ampliava-se em uma disciplina pela qual o guerreiro exercitava a balstica mgica e mental, em que intervinham principalmente os mantrans, a concentrao e os exerccios mentais de magia divina, que davam poder para lutar contra milhes de inimigos e desbarat-los.

    Embora os ocidentais se atribuam a inveno da plvora, esta j era conhecida e empregada pelos antigos chineses e hindus por meio de canhes de ferro; muitos acreditavam que os chineses, por arte mgica, colocavam um demnio dentro de um tubo de ferro e que ao aplicarem o fogo suma extremidade do tubo, o demnio saa pela outra extremidade, com tremendo estampido e matava muitos inimigos. No obstante, a artilharia era muito embrionria.

  • 22

    Os antigos hindus tinham sua organizao especial e sua ttica militar. Havia tropas de infantaria, a que denominavam pada; cavalaria chamavam turagci. Possuam tambm numerosos contingentes de guerreiros que montados em elefantes atacavam impetuosamente as fileiras inimigas. Havia tambm em cada exrcito uma diviso de carros armados, ocupados pelos generais e que hoje chamamos de estado maior.

    Ambos os exrcitos procuravam obter a aliana de Krishna, o qual no quis tomar parte ativa na contenda, mas ofereceu-se para conduzir o carro de Arjuna e servir de amistoso conselheiro aos Pndavas, enquanto cedia a Duryodhana todos os guerreiros que estavam sob suas ordens.

    Travou-se a batalha na vasta plancie de Kurukshatra e nela pereceram Bhishma, Drora, Karna, Duryodhana com todos os seus irmos e milhares de guerreiros de ambas as partes.

    O combate prolongou-se por dezoito dias, terminando com a morte de Duryodhana e a vitoria dos Pndavas.

    VI A Restaurao e a Abdicao

    A vitria de Kurukshetra assegurou a Yudhisthira a volta ao trono de seu pai.

    Bhisma, o sbio e venerando guerreiro que caiu gravemente ferido no dcimo dia da batalha, deu em seu leito de morte instrues a Yudhisthira a respeito dos deveres do rei, das quatro castas, das quatro etapas da vida humana, das leis do matrimnio, da concesso de favores etc., baseado nos ensinamentos dos antigos sbios. Explicou-lhe tambm as filosofias sankhya e yoga, relatando-lhe numerosas tradies referentes aos deuses, aos santos e aos reis.

    Esses ensinamentos ocupam cerca da quarta parte da epopia e so um verdadeiro arsenal de leis, costumes e cdigos de moral da ndia antiga.

    Pouco tempo depois, efetuou-se a coroao de Yudhisthira, em cujo corao pesava o sentimento do sangue derramado e a morte de tantos amigos, mestres e parentes. Por causa disso, aconselhado por Nyasa, celebrou o sacrifcio de Ashvameda.

    Aps a batalha, Dhritarshtra viveu no palcio real, durante quinze anos, honrado e obedecido por seus sobrinhos, os cinco Pndavas; ao cabo daquele tempo, sentindo-se velho e adoentado, retirou-se para o deserto com sua abnegada esposa e Kunti, a me dos Pndavas, para terminar seus dias no ascetismo.

    Transcorrido trinta e seis anos, depois da restaurao de Yudhisthira no. trono, chegou aos seus ouvidos a notcia de que Krishna, o sbio, seu amigo, profeta e conselheiro, havia morrido.

    Arjuna apressou-se em ir a Devrah e voltou com a confirmao da notcia de que, realmente, Krishna e os Yadavas haviam morrido.

    O rei e seus irmos ficaram muito consternados e declararam que tambm a hora de sua partida havia chegado. Por essa razo Yudhisthira abdicou a coroa a favor de Parikshit, primognito de Arjuna e, aconselhado pelos sbios, empreendeu a viagem chamada Mahprasthana, uma modalidade de ascetismo ou sannyasa.

    Em obedincia lei existente naquele tempo, quando um homem chegava decrepitude, costumava renunciar a todas as coisas do mundo e empreender uma viagem a p at os Himalaias, completamente em jejum e pensando sempre em Deus, de sorte que morria de inanio.

    Essa era a viagem ao cu, porque segundo a antiga mitologia indiana, para ir ao cu era necessrio atravessar os altos pncaros dos Himalaias, alm dos quais se ergue o monte Meru, em cujo cume est o cu, morada dos deuses.

    Os reis seguiam o mesmo costume que os outros homens e por isso Yudhisthira recebeu naturalidade o aviso para se dirigir ao cu.

  • 23

    Em virtude desse fato, os cinco irmos e sua mulher Draupadi vestiram roupas simples e empreenderam a marcha sem a menor proviso de alimentos, pois deles no necessitavam naquela. viagem para a morte.

    A caminho, notaram que um co os acompanhava. Continuaram a marcha para os Himalaias, palmilharam a neve de seus cumes e avistara em sua frente o monte Meru, quando a rainha Draupadi caiu desfalecida para nunca mais levantar-se.

    Yudhisthira, que ia abrindo caminho, no notou o acidente. Seu irmo Bhima, que havia assistido o fato, avisou-o dizendo:

    - rei a rainha nossa esposa morreu Yudhisthira chorou, sem volver o olhar e disse:

    - Vamos ao encontro de Krishna e no temos tempo de olhar para traz. Sigamos para frente.

    Ao fim de algum tempo, Bhima exclamou:

    - Acaba de morrer nosso irmo Sahadeva.

    O rei, sem se deter, chorou e disse:

    - Sigamos avante.

    Assim, foram caindo mortos pela neve os quatro irmos; entretanto, embora sozinho, o rei prosseguiu impvido a sua marcha. O co o acompanhava fielmente. Ambos caminhavam pela neve e pelo gelo, subindo encostas, atravs de vales, de cume em cume, at chegarem s fraldas do monte, Meru, onde o rei ouviu celestes harmonias e foi agraciado por copiosa chuva de flores que os deuses derramaram sobre ele.

    Ento desceu do cu a carruagem dos deuses e Indra disse a Yudhisthira:

    Sobe nesta carruagem, tu que s o mais excelso mortal. Somente a ti concedido entrar de corpo e alma no cu.

    Yudhisthira respondeu:

    - No quero entrar no cu sem meus irmos e nossa esposa.

    - J se encontram no cu teus irmos e vossa esposa.

    Yudhisthira, ento, fez sinal ao co para que subisse tambm na carruagem; Indra, porm, assombrado, exclamou:

    - Como? Um co? Afasta-o daqui! Os ces no podem ir ao cu. Que vais fazer, grande rei? Acaso enlouqueceste; tu que s o mais virtuoso da raa humana e a quem foi concedido o excepcional privilegio de entrar no cu de corpo e alma?

    Em resposta, disse Yudhisthira:

    - Este co foi meu fiel companheiro, atravs do gelo e da neve. Ele no me abandonou, quando a rainha e meus irmos morreram. Como poderei abandon-lo agora?

    Indra replicou:

    - No cu no ha lugar pira homens acompanhados de ces. Deves abandon-lo, sem receio de fazer-lhe injustia.

    Yudhisthira respondeu:

  • 24

    - Sem o co no irei para o cu. Nunca abandonarei aquele que a mim se aliou e comigo estar enquanto eu viver. Jamais me afastarei da retido, nem pelas delicias do cu, nem pelas insinuaes de um deus!

    Disse Indra:

    - Ento, somente com uma condio o co entrar no cu. Tu tens sido o mais virtuoso dos mortais e o co tem sido um devorador da carne dos outros animais. Ele est cheio de pecados por haver destrudo outras vidas. Renuncia tu ao cu e entre ele em teu lugar.

    Yudhisthira disse:

    - Aceito! Que o co v para o cu em meu lugar!

    A cena transfigurou-se imediatamente. Ao ouvir as nobres palavras de Yudhisthira, o co transformou-se no deus Yama, o senhor do Dharma, da Justia e da Morte. Este, que se havia disfarado sob aquela aparncia, disse a Yudhisthira:

    - rei, jamais houve homem to abnegado como tu, que quiseste renunciar ao cu e anular tuas virtudes em benefcio de um co, condenando-te ao inferno ao carregares seus pecados. s nobilssimo, rei dos reis! Tens compaixo de toda criatura, digno representante dos Bhratas! Desde j so tuas as regies da felicidade permanente. Tu as conquistaste e o cu teu!

    Yudhisthira, Indra, Yama e outros deuses que havbm se aproximado para presenciar a cena, dirigiram-se para o cu na divina carruagem.

    L, Yudhisthira passa pelas provas iniciticas, banha-se no Ganges do Esvarga e adquire um corpo celestial. Encontra Draupadi e seus irmos e gozam eterna felicidade.

    Assim termina o Mahbhrata.

    O Bhagavad Gita

    O mais notvel episdio do Mahbhrata o imortal poema do Bhagavad Gita, que significa o Canto do Senhor, ou Canto Celestial.

    a Escritura mais popular da ndia e a que contm os mais altos ensinamentos. Consiste em um dilogo entre Krishna e Arjuna, no momento de ser travada a batalha de Kurukshetra.

    Poucos sabem na Europa e nas Amricas que o Bhagavad Gita inspirou todos os pensamentos e obras de Emerson que, antes de sua gloriosa carreira literria, foi visitar Carlyle, tendo este lhe oferecido um exemplar do Bhagavad Gita. A leitura dessa obra levou Emerson a iniciar as famosas conferncias de Concord, que exerceram poderosa influncia na mentalidade dos Estados Unidos.

    A figura central do Bhagavad Gita Krishna.

    Assim como os cristos adoram a Jesus de Nazar, como encarnao de Deus, tambm os hindus adoram vrias encarnaes de Deus, em instrutores que de tempos a tempos aparecem, segundo as necessidades do mundo para manter a justia e destruir a maldade.

    Cada seita hinduista adora a uma dessas encarnaes da Divindade e Krishna quem tem maior nmero de devotos, porque dizem que superou os demais, pois Buda e outros s foram monges e celibatrios, no olhando os casados com simpatia. Krishna, ao contrrio, deixou filhos, reis, sacerdotes e durante toda a sua vida praticou os admirveis ensinamentos que pregava e dizia: "Conhece o segredo da vida aquele que, no meio da maior atividade, encontra a mais doce paz e ativo no seio da mais profunda calma."

  • 25

    Ele ensinava que para lograr ao na inao e inao na ao, ou seja a calma na atividade e a atividade na calma, era necessrio no apegar-se, nem identificar-se com as coisas externas e agir sem cobiar o fruto da ao, porque a aflio no proveniente das obras, mas da apetncia pelo fruto das aes.

    Assim devemos considerar o dinheiro, a fama, a famlia, como meie)s adequados to cumprimento do nosso dever e no como finalidades absolutas da vida. Somente ao Senhor devemos nos apegar por devoo. Trabalhemos pela famlia, amemo-la, sacrifiquemos por ela cem vidas se necessrio for, porm no nos identifiquemos com ela. A vida de Krishna foi um perfeito exemplo desses ensinamentos.

    O livro que relata sua vida conta com milhares de anos de antigidade e em algumas passagens oferece assombrosa semelhana com episdios da vida de Jesus de Nazar.

    Krishna era de rgia estirpe e como estava profetizado que um rebento daquela famlia seria rei de Madura, cujo trono era ocupado naquele tempo pelo tirano Kamsa, quando este soube que havia nascido um menino naquela famlia predestinada, no sabendo ao certo o lugar do seu nascimento, ordenou a matana de todos os meninos recm-nascidos.

    O pai e a me de Krishna estavam presos no crcere, por ordem do tirano Kamsa, quando nasceu Krishna. Naquele instante, uma luz celestial iluminou o calabouo e, segundo reza a lenda sagrada, o recm-nascido exclamou- "Eu sou a luz do mundo, que nasceu para o bem dos homens."

    Os sbios afirmaram que Deus havia nascido e foram render-lhe homenagem, do mesmo modo que os magos adoraram o menino Jesus em Belm.

    Finalmente Krishna venceu o tirano Kamsa, mas no quis ocupar o trono, porque dizia que seu reino no era deste mundo. Havia cumprido seu dever e isso bastava,

    Para compreender-se devidamente o Bhagavad Gita, convm esclarecer quatro pontos, a saber:

    1.O Se o Bhagavad Gita, desde o princpio formava parte da epopia Mahbhrata, como episdio, ou foi interpolado posteriormente, podendo ser atribudo a Veda-Vyasa.

    2.O Se Krishna um personagem histrico ou um mito.

    3.O Se, realmente, houve a batalha de Kurukshetra.

    4.O Se Arjuna e os demais personagens so histricos.

    Vejamos que fundamentos h para esta investigao.

    Sabemos que na ndia antiga houve vrios personagens chamados Veda-Vyasa; porm, qual deles foi o autor do Bhagavad Gita? Teria sido Bdrayana Vyasa ou Dvaipyana Vyasa?

    Vyasa era um ttulo aplicado a vrios personagens e especialmente quele que compunha um novo Purana, ou narrao histrica, assim como tambm era um ttulo o nome de Vikramditya.

    Por outro lado, o Bhagavad Gita no foi muito conhecido pela generalidade do povo, antes que Sankara lhe desse fama ao coment-lo, pois at ento s eram conhecidos os comentrios de Bodhvana,

    Se este ponto ficasse demonstrado muito valeria para estabelecer de modo definitivo a antigidade do Bhagavad Gita e consider-lo como obra da autoria do criador do Mahbhrata.

    Porm, em minhas viagens pela ndia inteira no pude encontrar um s exemplar do Bodhyana Bashya a respeito dos sutras vedantinos, daqueles com que Ramanuja compilou seu Sri Bhsya, to discutido por Swami Dayananda e que Sankara menciona e cita parcialmente em seus comentrios.

    Dizem que Ramanuya compilou seu Bhsya de um manuscrito rodo pelas traas e que teve a felicidade de encontrar.

  • 26

    Portanto, sendo to incerta a antigidade do Bodhyana Bsya sobre os sutras da Vedanta, intil procurar estabelecer a precedncia do Bodhyana Bshya sobre o Bhagavad Gita. Tudo o que a respeito digam os orientalistas pr ou contra, so conjeturas.

    Alguns julgam que o autor do Bhagavad Gita foi Sankara, que o incorporou ao Mahbhrata.

    Relativamente personalidade de Krishna, h muitas dvidas. Uma passagem do Upanishad Chhandogya refere-se a Krishna como filho de Devaki, dizendo que ele recebeu instruo espiritual de um Yogi.

    No Mahbhrata, Krishna o rei de Dwaraka; no Purana Vishnu, descrevem-no brincando com as pastoras ou donzelas chamadas Gopis; no Bhagavatam explicam amplamente seu Rsalil.

    Em tempos muitos remotos estava em moda na ndia uma Utsava chamada Madanotsava, ou festa em honra a Cupido, que se transformava em Dla, posta nos ombros de Krishna. Quem se atrever a afirmar que a Rsalil e outras coisas relacionadas com Krishna no se baseavam nela?

    Antigamente, na ndia, ningum se preocupava em indagar a verdade histrica e assim qualquer um fazia prevalecer suas afirmaes, sem robustecer a verdade com provas evidentes. Tampouco havia naqueles tempos o desejo da fama e da celebridade, motivo pelo qual, freqentemente, um autor escrevia um livro e publicava o manuscrito com o nome de seu instrutor ou de outro qualquer, pois s se interessavam pela difuso dos ensinamentos.

    Portanto, em circunstncias tais, muito difcil a um historiador encontrar a verdade.

    Alm disso, naquele tempo os hindus desconheciam geografia por completo e davam azas imaginao; por isso vemos suas citaes fantsticas como oceano doce, oceano de mel, oceano de manteiga pura, oceano de nata, etc.

    Nos Puranas, conta-se de um homem que viveu mil anos e um outro cem mil, ao passo que os Vedas dizem que o homem vive cem anos.

    quase impossvel chegarmos a uma exata concluso a respeito da personalidade de Krishna, pois o povo tende a envolver a pessoa de um homem insigne com toda a riqueza de atributos sobre humanos. Assim deve ter acontecido em relao a Krishna, embora parea muito provvel que tenha sido rei, porque naquela poca os reis se ocupavam especialmente na doutrina do conhecimento de Brama.

    Qualquer que tenha sido o autor do Bhagavad Gita, o fato que seus ensinamentos concordam com o que est exposto no conjunto do Mahbhrata. Dessa circunstncia justo deduzir que na poca em que foi escrito o Mahbhrata, levantaram-se alguns instrutores para pegar ao povo esta nova modalidade do conhecimento de Brama.

    Devemos tambm considerar que nos tempos antigos, as seitas apareciam e desapareciam, deixando cada uma delas um livro escrito com seus ensinamentos; por isso provvel que o Bhagavad Gita fosse o livro sagrado de uma dessas seitas, j desaparecidas.

    Quanto realidade da batalha de Kurukshetra, no possvel aduzir nenhuma prova concludente, embora esteja provada historicamente a guerra intestina entre os Kuravas e os Pndavas.

    Alm disso, como poderia travar-se to longo dilogo a respeito dos caminhos do conhecimento, devoo e ao, filosofias sankya e yoga, quando ambos os exrcitos estavam esperando o ltimo sinal para comear o combate? Acaso, havia ali algum taqugrafo para transcrever o dilogo entre o rumor dos acampamentos e o fragor das armas?

    Segundo alguns investigadores, a batalha de Kurukshetra no passa de uma alegoria, ern cuj significado esotrico descobrimos a luta contnua no ntimo. do homem entre as suas boas e ms inclinaes.

  • 27

    Quanto autenticidade histrica de Arjuna e dos demais personagens, h tambm algumas dvidas, pois o Grhmana Satapatha, que um livro antiqussimo, menciona os nomes de todos os que assistiram o solene sacrifcio Ashvamedha e entre eles no figura Arjuna e nem um s dos Pndavas, embora, por outro lado, faa referncias a Janarnejaya, filho de Parikshit e neto de Arjuna. No obstante, o Mahbhrata e outros celebraram o sacrifcio de Ashvamedha.

    De qualquer modo, no h conexo entre as investigaes histricas e o fundo moral e didtico do Mahbhrata e do Bhagavad Gita, que nos do o conhecimento necessrio e suficiente para cumprirmos nosso dharma.

    Embora todos os personagens fossem mticos, nada perderamos com isso e se algum replicar que para isso no havia necessidade de investigaes histricas, responderemos que sempre somos obrigados a indagar a verdade e no permanecermos ligados a idias errneas, por ignorncia.

    Na ndia ningum se preocupa com investigaes histricas e cada seita considera que ensinando algo de benfico para o mundo, no importa que o ensinamento esteja envolto em piedosas fantasias ou mentiras, porque lhes parece que o fim justifica os meios. Por isso vemos que muitos dos nossos Tantras comeam com esta frase: "Mahdeva disse a Prvat" Nosso dever, porm convencer-nos da verdade e s crer na verdade.

    Tamanho o poder da crena supersticiosa nas antigas tradies, sem que se procure comprovar sua verdade, que at instrutores da estirpe de Jesus, o Cristo, e Maom no puderam arredar algumas supersties.

    Quanto aos ensinamentos do Bhagavad Gita, se estudarmos os Upanishads, notaremos,. entre a mescla de assuntos impertinentes, a discusso de

    uma grande verdade, como se no meio de um deserto o viajante encontrasse uma belssima rosa, envolvida no meio de suas prprias folhas, espinhos e razes.

    Assim so as verdades do Bhagavad Git, como uma grinalda primorosa ou um ramo de flores delicadas habilmente colocado.

    Os Upanishads tratam de modo complexo do Shraddha em muitas passagens e raras vezes aludem a Bhakti. No Bhagavad Gita, ao contrrio, no s se trata reiteradamente de Bhakti como prepondera em seus ensinamentos um profundo esprito de devoo.

    A originalidade do Bhagavad Gita, que o destingue das demais Escrituras, consiste em que, antes de sua publicao, j se conheciam os mtodos ou caminho de conhecimento, ao e devoo; cada um deles, porm, tinha seus partidrios, que o consideravam o melhor, o nico e menosprezavam os demais, de sorte que porfiavam uns com os outros, sem que ningum pensasse em conciliao, at que o autor do Bhagavad Gita tratou de harmoniz-los, escolhendo o melhor que havia em cada seita e expondo-o no texto. Porm o que Krishna no conseguiu harmonizar por completo, conseguiu-o perfeitamente Ramakrishna Paramahmsa, no sculo XIX.

    Por isso trata o Bhagavad Gita da renncia ao fruto da ao, doutrina chamada em snscrito nishkmakarma. Atualmente, interpreta-se essa doutrina de diversos modos. Alguns dizem que o desinteresse ou desapego ao fruto das obras conduz absoluta inao, ao propsito de nada fazer; neste caso, as pedras seriam os mais altos expoentes do nishkmakarma. Entretanto, aquele renuncia verdadeiramente ao fruto das aes no est inativo como as pedras, pois seu corao est repleto de simpatia e pode envolver o mundo com, seu amor.

    Portanto, vemos que os dois caractersticos principais do Bhagavad Gita so a conciliao dos vrios caminhos do Dharma e as boas obras, sem apego aos seus frutos. A propsito citemos as seguintes estrofes da estncia segunda:

    SANJAYA

  • 28

    Vendo-o to profundamente desalentado, com os olhos rasos d'gua, disse Krishna estas palavras a Arjuna:

    KRISHNA .

    De onde vem, Arjuna, se infame e vil abatimento que cerra as portas do cu? No cedas fraqueza, o Partha, pois no fica bem em um ser como tu. Sacode essa vil inatividade do rao. Ergue-te, Parantapa!

    Arjuna sentia repugnncia pela luta, porque nele predominava a qualidade tamsica, pois quando predominava a stvica, o homem permanece inaltervel na prosperidade e na desgraa, no prazer e na dor.

    No era covardia, mas religiosidade o que conturbava o nimo de Arjuna, como prova sua ida ao campo com o fim de combater.

    Na vida diria ocorrem freqentemente casos semelhantes. H os que imaginam que so stvicos por natureza, quando na realidade so tamsicos. Consideram-se justos e virtuosos e vivem desastradamente, porque os Shastras dizem que os paramahamsas vivem sem se preocupar com a decncia, nem com o asseio pessoal; casos idnticos so encontrados na hagiografia catlica.

    Os paramahamsas foram comparados aos meninos, porm, essa comparao deficiente porque os paramahamsas e os meninos parecem ser semelhantes porque so os extremos ou plos de um mesmo conceito.

    O paramahainsa j transps o jnanam e a criana ainda no tem o menor vislumbre de jnanam, do mesmo modo que tanto as vibraes muito rpidas como as muita lentas da luz esto fra do alcance da nossa viso; no primeiro caso, porm, no as vemos por excesso e no segundo, por defeito.

    O mesmo sucede com as qualidades opostas de sattva e tamas, que parecem a mesma, quando h um mundo de diferena entre elas. Tamas pode disfarar-se em sattva e, no caso de Arjuna, tomou por duplo disfarce a compaixo e a piedade.

    A fim de dissipar a iluso que obcecava a Arjuna, como procedeu Krishna? Como devemos todos proceder em anlogas circunstncias com quem esteja mais atrasado em sua evoluo espiritual, pois em vez de censur-lo e dizer-lhe que era um pecador, apontou-lhe o poder residente em seu interior e o exortou a que no cedesse inrcia, indigna de um kshatryia, porque tudo quanto de sinistro h no mundo, provm da mrbida emoo do temor.

    Se houvesse muitos que espalhassem esta mensagem pelo mundo, no tardariam em desaparecer as enfermidades, as penas e aflies, desvanecendo-se a iluso de fraqueza e debilidade. A corrente predominante de temor, que tudo invade, se transformaria em corrente de segurana e confiana.

    Nosso esprito onipotente por essncia e sem temor deve lanar-se boca de um canho. No odiemos nem ao mais cruel criminoso. Olhemos para o seu ntimo, onde reside Paramatman. Digamos ao prximo, com voz amorosa: "No h pecado nem misria em ti, porque em ti pulsa a onipotncia. Desperta, levanta-te e manifesta tua interna divindade!

    Histria de Jada Bhrata

    Todo hinduista, quando atinge a velhice, tem o dever moral de renunciar ao mundo, a seus filhos e riquezas e retirar-se para o deserto, a fim de meditar sobre o Eu, que sua nica realidade e romper os laos que ligam-no mundo.

    Reis e sacerdotes, aldees e empregados, homens e mulheres, ningum est isento desse dever, pois todos os deveres de pai, esposo, filho, irmo, esposa, me, filha e irmo, para o hinduista, no passa de uma predisposio ltima etapa da vida, em que ho de se romper os laos da matria.

    Na ndia, assim chamada pelo estrangeiros, mas que os naturais denominam Bhrata Varsha, houve outrora um poderoso monarca chamado Bhrata que, sentindo-se velho abdicou a coroa a favor de seu filho e retirou-se para a solido.

  • 29

    Ele, que havia governado milhes de sditos e vivido em suntuosos palcios de mrmore recobertos de ouro e prata, construiu com suas prprias mos uma cabana de junco e folhagem, s margens de um rio, nos bosques dos Himalaias. Ali viveu alimentando-se de ervas e razes que ele prprio colhia, meditando constantemente no Esprito que reside no ntimo do homem.

    Decorreram dias, meses e anos. Um dia, aproximou-se uma cora para beber gua perto do lugar onde o rgio asceta meditava. Ao mesmo tempo, surgiu a curta distncia um leo, cujo rugido atemorizou a cora que, sem parar para beber, galgou de um salto a margem oposta do rio.

    A cora encontrava-se em estado de gestao e em virtude do espanto e do violento esforo que fez, deu luz um veadinho, morrendo imediatamente.

    O veadinho caiu no rio e, arrastado pela corrente, teria perecido se o rei no quebrasse sua meditao para salv-lo. Levou-o sua cabana, acendeu uma fogueira para reanim-lo e tomou-o sob sua proteo, alimentando-o com suco de frutas e ervas tenras. Com o tempo, o animal cresceu, at assumir o porte de um magnifico veado, de soberba aparncia. Ora, o rei Bhrata, cuja fora de vontade tinha sido suficiente para renunciar ao trono, s riquezas e famlia, comeou a sentir intensa simpatia pelo animal, de sorte que, quanto mais aumentava seu carinho, menos podia concentrar sua mente em Deus, por ininterrupta meditao.

    Quando o veado se internava no bosque para pastar e tardava a regressar, o rei asceta sentia-se inquieto e ansioso, crendo que algum tigre o tivesse devorado, ou que qualquer outra desgraa lhe havia sucedido.

    Desse modo decorreram alguns anos at que, por fim, o rei Bhrata sentindo-se morrer ao invs de pensar em Deus, pensava ansiosamente em seu querido cervo e assim morreu.

    Em conseqncia, na seguinte encarnao, nasceu com corpo de cervo, porm, como o Carma nunca se perde, as boas aes e as hericas faanhas que havia praticado em sua existncia anterior, deram seu fruto e por ele nasceu jtismara3 e recordava sua vida anterior, embora no lhe fosse possvel falar. Embora vivesse como animal, evitava o trato com seus congneres e instintivamente ia pastar nos arredores das ermidas, onde se celebravam sacrifcios e se liam os Upanishads.

    Terminada a durao comum da vida dos cervos, ele morreu e na encarnao seguinte foi o filho menor de um rico brmane. Nessa vida tambm recordou as anteriores e desde sua infncia determinou no imiscuir-se com o:, bens ou os males deste mundo.

    O menino foi crescendo so e robusto, porm, sem pronunciar palavra, como se fosse tolo e mudo, temendo que o intrometessem com os negcios da vida domstica.

    Sua mente vivia sempre concertada no Infinito e s vivia para resgatar seu mau Karma anterior. Morreu o pai e os filhos partilharam a herana; como julgassem que o menor era mudo e para nada servia, ficaram com a sita parte, apenas dando-lhe sustento e amparo material.

    As mulheres de seus irmos tratavam-no asperamente, obrigando-o a desempenhar penosas tarefas e maltratando-o ainda mais, se recusasse; o rapaz, entretanto, sem mostrar ressentimento ou temor, persistiu em seu mutismo.

    Quando seus irmos se aborreciam, ele saa de casa e sentava-se sob uma rvore, onde permanecia, at que o aborrecimento deles desaparecesse.

    Um dia em que suas cunhadas o haviam maltratado pior que nunca, Bhrata, como de costume, foi sentar-se sob a arvore, quando aconteceu que por ali passar o rei do pas, sentado em um palanquim, carregado nos ombros pelos seus criados.

    3 Aquele que tem lembranas das existncias passadas.

  • 30

    Ora, um dos carregadores sentiu um mal sbito e os outros procuravam algum que o substitusse. Ao ver o jovem Bhrata, sentado sob a rvore, robusto e bem disposto, perguntaram-lhe se queria substituir o carregador enfermo?

    Bhrata no respondeu e ento os carregadores o tomaram pelo brao e lho puserami no ombro a vara do rgio palanquim. Sem pronunciar palavra, Bhrata seguiu com os outros, entretanto, em breve observou o rei que o palanquim se inclinava e ao espiar pela portinhola viu que a culpa era do novo carregador, a quem gritou?

    - bobo! De