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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
O ENSINO DO CANTO SEGUNDO UMA ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA:
INVESTIGAO COM PROFESSORAS DE EDUCAO INFANTIL
Dissertao de Mestrado
ANA CLAUDIA SPECHT
Orientador: Dr. Esther Beyer
Porto Alegre, 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Ana Claudia Specht
O ENSINO DO CANTO SEGUNDO UMA ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA:
INVESTIGAO COM PROFESSORAS DE EDUCAO INFANTIL
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade deEducao da Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, como requisito parcial para a obteno do
ttulo de Mestre em Educao.
Orientadora:Dr. Esther Sulzbacher Wondracek Beyer
Porto Alegre
2007
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)_____________________________________________________________________________
S741e Specht, Ana ClaudiaO ensino do canto segundo uma abordagem construtivista: investigao com
professoras de educao infantil [manuscrito] / Ana Claudia Specht; orientadora: EstherSulzbacher Wondracek Beyer. Porto Alegre, 2007.160 f. + Anexos
Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade deEducao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2007, Porto Alegre, BR-RS.
1. Canto Ensino. 2. Construtivismo. 3. Educao infantil Ensino pblicomunicipal Campo Bom (RS). 4. Pesquisa educacional. 5. Piaget, Jean. I. Beyer, EstherSulzbacher Wondracek. II. Ttulo.
CDU 784.9.071.5
_____________________________________________________________________________Bibliotecria Neliana Schirmer Antunes Menezes CRB 10/939
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora, Prof. Dr. Esther Beyer, por perceber a relevncia desta
pesquisa e acompanhar atentamente os passos e avanos qualitativos.
A cada professora de educao infantil pelo seu envolvimento e espontaneidade.
A Secretaria Municipal de Educao e Cultura de Campo Bom pela oportunidade e
acolhimento.
s coordenadoras da educao infantil do municpio de Campo Bom, Daniela e
Eliane por acreditarem na importncia da msica na formao do professor e nodesenvolvimento da criana.
Aos colegas participantes do Grupo de Estudos em Educao Musical (GEMUS)
pelas crticas, sugestes e oportunidades de discusso e publicao.
s colegas Rosngela, Flvia e Patrcia que dedicaram seu tempo lendo
divagaes e construes sobre o cantar, possibilitando uma reorganizao de idias.
Aos meus pais pelo eterno embalo afetivo e sonoro.
Aos meus irmos pelo incondicional apoio.
amiga e colega de trabalho Denise SantAnna Bndchen pelas horas de
discusso, reflexo, vivncias e trocas sobre o cantar. Pela leitura atenta e objetividade
textual. Pelo olhar crtico e fundamentado sobre o desenvolvimento musical que
permitiram a conexo da minha voz com esta pesquisa na educao.
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Specht, Ana Claudia. O ensino do canto segundo uma abordagem construtivista:investigao com professoras de educao infantil. Porto Alegre, 2007. 162 f. +Anexos. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2007, Porto Alegre,BR-RS.
RESUMO
A presente pesquisa investiga o desenvolvimento do cantar segundo umaabordagem construtivista. Este trabalho foi desenvolvido na rede municipal de educaoinfantil de Campo Bom/RS, com a participao de uma representante por escola,totalizando 19 professoras. A fundamentao terica estrutura-se sobre as reas quemais permeiam os processos de ensino e de aprendizagem do canto, alinhavando idiasda fonoaudiologia, do canto, da tcnica vocal, da lingstica e da teoria construtivistainteracionista de Jean Piaget. A pesquisa de cunho qualitativo atravs da investigaosobre uma proposta de ensino do canto baseada em um curso de 30 horas-aula e duasentrevistas individuais semi-estruturadas. Os resultados mostraram que, por meio deatividades de apreciao, execuo, criao e reflexo desenvolvidas em grupo, em que
o sujeito cantante ativo, criativo e participativo, favorecemos a compreenso tcnica,musical e expressiva do canto, o que desencadeia uma apropriao da voz por partedesse sujeito, com a conseqente construo de novos possveis que podem significaruma autonomia vocal, graas a uma generalizao do conhecimento do canto nas aesdo sujeito.
Palavras-Chave: Canto Ensino. Construtivismo. Educao infantil Ensino pblicomunicipal Campo Bom (RS). Pesquisa educacional. Piaget, Jean.
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Specht, Ana Claudia. O ensino do canto segundo uma abordagem construtivista:investigao com professoras de educao infantil. Porto Alegre, 2007. 162 f. +Anexos. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2007, Porto Alegre,BR-RS.
ABSTRACT
This study investigates the development of the act of singing under aconstructivist point of view. It was carried out in schools from Campo Bom (RS, Brazil)and counted on the participation of 19 teachers, one at each school. The theoretical basislies on areas that permeate singing teaching and learning processes, putting togetherareas such as Speech Therapy, Singing, Vocal Technique, Linguistics and theInteractionist Constructivist Theory by Jean Piaget. This is a qualitative study throughinvestigation about teaching of singing based on a 30-hour course and two semi-structured individual interviews. Results have shown that, through listening,performing, creating and reflecting in groups, in which the subject who sings is anactive subject, creative and participant, we promote the technical, musical and
expressive understanding of singing. This triggers the voice appropriation as part of thesubject, with the resulting construction of new possibilities that foster vocal autonomydue to the singing knowledge generalization into the subjects actions.
Key Words: Singing Education. Constructivism. Child education Municipal schoolsystem Campo Bom (RS). Educational research. Piaget, Jean.
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SUMRIO
1 INTRODUO ..............................................................................................................9
Aula de Canto ...................................................................................................................9
Histria de Vida Pessoal e Problemtica da Pesquisa ......................................................12
Problema e Hiptese.........................................................................................................17
Justificativa e Objetivos ...................................................................................................18
2 VOZ E MUITAS OUTRAS COISAS INTERDISCIPLINARIDADE ...................22
2.1 TCNICA VOCAL.......................................................................................................23
2.2 FONOAUDIOLOGIA...................................................................................................29
2.2.1 A Voz Cantada para a Fonoaudiologia ..................................................................34
2.3 LINGSTICA..............................................................................................................36
2.3.1 A Voz um Instrumento ..........................................................................................38
3 O CANTO SOB A LUZ DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO...............41
3.1 A AO DE CANTAR E A COMPREENSO..........................................................463.2 O CANTO E O CANTAR NOVOS CONCEITOS....................................................49
3.3 CONCEPES ESPISTEMOLGICAS APRIORISTA E EMPIRISTA...................52
3.4 UM CORPO SONORO QUESTIONAMENTOS......................................................55
4 O ENSINO DO CANTO SEGUNDO UMA ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA 57
4.1 A CONSTRUO DO SUJEITO SONORO ...............................................................58
4.2 A PROPOSTA...............................................................................................................61
4.2.1 Possibilidades de Interao......................................................................................65
5 ASPECTOS METODOLGICOS ...............................................................................69
5.1 COMO SE CONCRETIZOU A IDIA DE PESQUISA ..............................................70
5.1.1 Contextualizaes: Perfil da Educao Infantil de Campo Bom .........................71
5.2 PROCEDIMENTOS......................................................................................................73
5.2.1 O Grupo.....................................................................................................................74
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5.2.2 Local...........................................................................................................................75
5.2.3 Encontros...................................................................................................................76
6 OFICINAS DE CANTO E ENTREVISTAS: APRESENTAO E ANLISE ......78
6.1 OFICINAS.....................................................................................................................78
6.2 ENTREVISTAS ............................................................................................................133
7 DISCUSSO DOS RESULTADOS ..............................................................................143
8 CONSIDERAES FINAIS.........................................................................................151
REFERNCIAS ................................................................................................................155
ANEXOS ............................................................................................................................163
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1 INTRODUO
Aula de Canto1
No falha nunca. Sempre s quartas-feiras, sempre s dezessete horas, Maria tem
aula de canto. So os 50 minutos mais esperados da semana. O treinamento, que inclui
exerccios, novos conhecimentos e ampliao de repertrio, faz Maria jurar que naquele
perodo o relgio anda mais rpido.
O que Maria faz fora da sala de aula, sua vida, o trajeto percorrido at a escola
de msica, o trabalho que a sustenta e paga seu aprendizado, tudo isso vai alm da
imaginao de seu professor de canto. O significado da msica e o modo como Maria
aplica o seu cantar, provavelmente, no so questes esclarecidas para ele. Talvez nem
mesmo para ela. Mas deve ser representativo; afinal, toda quarta-feira ela est l. No
falha nunca.
Pode entrar, minha querida convida o mestre abrindo a porta do seu estdioimprovisado. Maria entra, larga seus livros, sua bolsa e tenta largar todos os seus
conflitos internos. Sempre que o professor a chama para entrar, pede que ela deixe seus
problemas l fora. Isso foi acordado na primeira aula. Mas nem sempre possvel.
Maria gostaria que sua vida estivesse um tom acima.
Seu professor valoriza muito o silncio, por isso no de muito papo furado ali.
Enquanto seleciona algumas partituras, espia Maria com o canto do olho e diz:
Postura.
Sempre comea por a. Postura o cdigo que eles estabeleceram para Maria
buscar uma disposio adequada do corpo. Ela se ajeita um pouco, solta as roupas que
apertam, faz movimentos circulares com os ombros desfazendo pequenas contraturas
nas costas at elas pararem de estalar. s vezes, d uma olhadinha no espelho e tem
1Aula de Canto uma descrio ilustrativa de uma aula de canto tradicional, em formato literrio deconto, com dedues hipotticas e fictcias.
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aquela velha sensao desconfortvel, pois nunca sabe o que fazer com seu corpo.
preciso se enrijecer ou se soltar para poder soar como gostaria de se escutar?
Como a aula inicia pelo relaxamento, Maria se solta espichando o corpo,soltando os ombros, o pescoo, o quadril e a coluna. O professor visa a um corpo menos
tenso. Em seus pensamentos, Maria se pergunta para que serve esse alongamento?
Impressiona-se com a prpria tenso. Por que meu pescoo estala vrias vezes? Quando
vou conseguir cantar melhor? Minha me cantou no orfeo... Minha tia cantava na
noite... Volte para a Terra, Maria.
Cuide os ombros corrige o professor.
Ela sabe que seu ombro poderia estar mais para cima e que seus joelhos no
precisariam estar curvados para trs o tempo todo. Isso interfere na sua respirao,
como o mestre alertou tantas vezes. Maria no sabe muito bem o que ele quer dizer com
isso, pois no sente diferena sonora, mas sabe que importante. Agora sim, ela se arma
numa postura ereta e boa para o canto.
Vendo o corpo de Maria mais sintonizado, o professor comea a trabalhar sua
respirao. Inicia com um exerccio de expanso muscular do diafragma e dos msculosintercostais. Sua inteno fazer com que Maria consiga inspirar sem subir demais os
ombros, que possa baixar a respirao, que busque aquilo que chama de respirao
diafragmtica. Tarefa nada fcil para quem, no seu dia-a-dia, respira apressadamente, s
vezes pela boca, atropela palavras na fala, preocupa-se com a barriguinha aparente.
Barriga pra dentro e peito pra fora, ouviu tantas vezes. Um professor com experincia
e pacincia sabe que trabalhar a respirao nunca perda de tempo. essencial.
Este o momento em que Maria se transforma em uma marionete. Como se
estivesse suspensa, os nicos movimentos que restam dos braos e das pernas, j que o
resto est armado. Se o seu corpo agora est condicionado, sua mente est cada vez
mais livre. E, prestes a cantar, seus pensamentos ansiosos querem saber como se faz
para soltar a voz.
O curioso que ela mesma procura a resposta; afinal, o professor j explicou, a
cabea a sua caixa de ressonncia e ela precisa ampliar o espao dentro da boca. No
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a abertura da boca, mas sim a posio da sua lngua, do palato, da mandbula e de outros
ressonadores. Ento, pratica exerccios de ressonncia.
O professor aproveita para lembrar algumas regras:
A lngua no pode ficar tensa, solte principalmente a sua base. Pense num
bocejo, mas no tencione a base da lngua e nem a deixe ir para trs.
Ele diz para que Maria nunca junte os dentes de trs, pois preciso criar espao
dentro da boca:
Imagine que voc tem um bombom dentro da boca e no consegue mastig-lo,
voc no pode juntar os dentes, nunca.
Para a voz no ficar nasal, o mestre lembra que o palato mole, atrs do cu da
boca, precisa estar alto e ordena queela projete o som para frente, estando atenta a isso.
O som que buscava ficou em segundo plano. Agora ela quer aquele que agrade a
seu professor tanta coisa para controlar que pensar em seu som desmontaria toda a
sua armao. Como a busca da tcnica j consumira dois teros da sua prazerosa aula, a
frustrao inevitvel. Boca chiusa2
no o seu forte, porque tensiona demais oaparelho fonador, e Maria no entende como a respirao pode auxiliar no alvio dessa
tenso.
Nova sesso de exerccios agora, para melhorar a sua articulao. Para obter um
bom resultado, Maria deve aplicar quase todos oselementos trabalhados anteriormente e
ainda tornar-se, ao seu julgamento, uma herona: a mulher-com-cara-de-borracha.
Ela se deu tal apelido porque, para manter a colocao da caixa de ressonncia,
precisa exagerar a articulao, com uma abertura vertical da boca e com movimentos
circulares. Soltar a mandbula no a coisa mais fcil do mundo. Verticalizar a abertura
da boca nos fonemas no uma coisa natural. E, mais uma vez, o som pretendido est
longe, bem longe daquilo que ela imaginava ser capaz.
2Boca chiusa: (It., boca fechada) Canto sem palavras e com a boca fechada (Dicionrio Grove demsica, 1994, p. 116).
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Certa vez, o professor afirmou que Maria possui uma extenso vocal muito
grande. Seu rosto fica orgulhoso quando lembra disso. Soa bonito. Por isso, ele
classificou sua voz como mezzo-soprano.3Na msica popular, ela gosta de cantar numa
regio mais grave, pois prefere cantoras com vozeiro, como a Ana Carolina. Mas, na
aula de canto, o professor quer trabalhar sua voz mais aguda; logo, todos os exerccios
esto na regio mdia aguda. s vezes, eles provocam irritao na garganta de Maria. E
no ouvido tambm. Mas ela confia no professor. Quem conhece e sabe sobre sua voz
ele.
Antes do fim da aula, sobraram alguns minutinhos para trabalhar o repertrio.
Maria, que prefere cantar msica popular, levou para o professor uma que acha legal.
E, j que ela mezzo-soprano, o mestre alterou o tom para uma extenso mais aguda.
Eles j esto ensaiando essa msica h um ms, mas Maria no gosta de se escutar
cantando nesse tom. No fica bonito como a cantora que ela escuta, sua voz diferente.
Tambm no consegue estudar em casa, pois o medo de fazer errado e desmanchar tudo
o que consegue estruturar em aula a apavora. Maria s quer fazer o melhor. O professor,
tambm.
Histria de Vida Pessoal e Problemtica da Pesquisa
Nasci cantando!. Essa frase parece expressar o espao que o cantar ocupa na
minha vida hoje. Ela tambm se faz necessria para introduzir minhas interrogaes,
que comeam desde a primeira palavra impressa desta dissertao, desde o primeiro
som emitido...
Esta pesquisa busca fundamentar o ensino do canto sob um olhar construtivista.
uma proposta que vem sendo discutida e explorada por mim e por alguns colegas
pesquisadores da rea da educao musical com enfoque construtivista. Porm, antes de
3Mezzo-soprano: (It., meio-soprano) Voz feminina, geralmente com um mbito de aproximadamentel-f# (Dicionrio Grove, 1994, p. 603).
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se tornar um objeto de pesquisa, as reflexes sobrevoam uma construo pessoal, uma
histria desacomodada e nmade nos caminhos e territrios do conhecimento.
O canto sempre esteve presente no meu convvio familiar e era uma atividademuito estimulada por meus pais. Tenho vrias lembranas referentes a esse fato: as
msicas cantadas antes de dormir; algumas canes das histrias de Wald Disney e
fbulas musicadas, presentes em minha coleo de livros com LPs; vrias atividades
realizadas na escola, com as brincadeiras de roda, que envolviam a msica; as
competies com meus irmos para ver quem melhor conseguia imitar bichos ou
pessoas com timbres caractersticos.
Iniciei meus estudos musicais aos nove anos, na Fundao Municipal de Artesde Montenegro (FUNDARTE), no setor de Educao Musical, com nfase no
instrumento harpa paraguaia e aulas de percepo e teoria musical. Na poca, era muito
complicado relacionar a teoria com a prtica do instrumento. A msica, para mim,
tornou-se mstica, tinha mistrios a serem desvelados, era repleta de cdigos. E eu
pensava que nem todo mundo era capaz de fazer isso. Ao tocar um instrumento, minha
comunicao musical vocal passou para as mos, para os dedos, para a partitura, para
fora do meu corpo. Assim como a teoria era distante do instrumento, a msica foidistanciada de mim.
Na FUNDARTE, o instrumento harpa paraguaia era considerado bastante
limitado, pois no possui um mecanismo de grampos para semitonar (elevar ou baixar
tom) nos acidentes musicas, isto , afinavam-se as cinco oitavas em determinada escala
(por exemplo: d, r, mi, f, sol, l, si, d) e eram selecionadas as msicas que no
tinham acidentes. A didtica de ensino utilizada era basicamente por imitao e
repetio, j que no existem partituras nem um mtodo especfico para esse
instrumento. As partituras eram adaptadas do piano ou do violo. Essas caractersticas,
de certa forma, levaram-me a rotular a harpa paraguaia como um instrumento
limitado e ocioso. Porm, o maior desafio e exerccio auditivo foi em relao afinao
do instrumento, ou seja, aprender a afinar as 36 cordas da harpa. A memria auditiva
dos intervalos (distncia entre dois sons) e o ato de decorar da escala maior nas aulas de
percepo possibilitaram essa tarefa, pois a partir de um diapaso (l 440, nota de
referncia) eu cantava e/ou assobiava os intervalos e ia afinando o instrumento.
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Meus estudos musicais na FUNDARTE aconteceram durante toda a minha
trajetria escolar a partir da 5 srie at o ensino mdio. Na escola, em Salvador do Sul,
cantava imitando alguns modelos que escutava na televiso e/ou no rdio, propagandas
do tipo Suflair e Corneto, algumas msicas das histrias que ouvia dos LPs, e
gostava muito de imitar uma professora de msica da 5 srie que cantava meio lrico
at as cantigas de roda. Com 13 anos, comecei a cantar no coro adulto da igreja como
soprano. Hoje percebo que o canto no teve uma orientao formal, naquela poca, mas
possibilitava um espao de expresso musical bem menos limitado em comparao
harpa paraguaia.
Em 1988, prestei vestibular para Psicologia, no levando o curso de msica
adiante, e at aquele momento no pensava em estudar canto. Contudo, o trabalho de
tcnica vocal aconteceu concomitantemente ao curso de Psicologia, na UNISINOS,
quando ingressei no coro dessa universidade. Na poca, poucos coros desenvolviam um
trabalho especfico de tcnica vocal, mas esse trabalho de canto individual e em grupo
possibilitou o desenvolvimento musical e vocal, bem como o gosto pelo canto.
Em 1993, interrompi o curso de Psicologia e a participao no coro para aceitar
uma proposta de trabalho na Prefeitura Municipal de Salvador do Sul, a coordenao dapasta de Educao e Cultura do municpio. A menina dos olhos dessa experincia foi
o projeto-piloto Repensar da Educao, movimento educacional vigente no perodo de
1993 at 1997 em escolas municipais e estaduais de Salvador do Sul. A idia central
desse projeto era introduzir processos de mudanas nas comunidades rurais, baseadas na
mobilizao de seu potencial de auto-ajuda e de um mnimo de interveno estatal.
Nesse sentido, o projeto representava um grande desafio, pois cabia aos professores, aos
alunos, comunidade escolar, aos rgos governamentais e no-governamentais umamudana de postura.
A expectativa era elevar a qualidade de ensino do municpio, formando
cidados, indivduos desenvolvidos, capacitados, organizados e responsveis. Contava-
se com a coordenao da SMEC e da EMATER do municpio e com o apoio
metodolgico da PRORENDA-RS-T1. Tudo parecia muito utpico, mas eu e quase toda
a equipe tnhamos conscincia de que a melhora na qualidade de ensino s seria
possvel se comeasse pela mudana de postura das pessoas envolvidas.
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Hoje, tenho conscincia de que faltou alinhar essa expectativa de mudana com
uma nova viso pedaggica. Nos seminrios e cursos que eram desenvolvidos em
consrcio com outros cinco municpios vizinhos, buscamos um olhar construtivista
atravs do GEEMPA, mas no conseguimos alinhavar essa colcha de retalhos
restando a dvida sobre como faz-lo. Nessa fase, e j em outro espao de educao,
mais uma vez me deparo com a dicotomia entre teoria e prtica. A forma como eram
ministrados os cursos no atingiam o fazer do professor e muito menos alcanavam o
aluno.
Em 1994, a SMEC, juntamente com a SEE (Secretaria Estadual de Educao) e
com o CEE (Conselho Estadual de Educao), empenhou-se para incluir o ensino da
lngua alem (que ainda permanece na 3 e 4 sries) e do canto coral (que no
aconteceu) no currculo escolar das escolas da rede municipal e estadual de Salvador do
Sul. Quanto ao canto coral, o processo emperrou na capacitao dos professores
envolvidos: foi difcil argumentar a respeito da manuteno do projeto na prpria
administrao municipal, sendo que os professores fizeram dois anos de capacitao
continuada, porm a aprovao do CEE no foi obtida em tempo hbil. Este tambm era
um projeto que buscava a mudana de postura atravs do conhecimento vocal e musical,
o resgate cultural, o trabalho em grupo e a manuteno do ensino da msica nas escolas.
Concomitantemente ao trabalho na Secretaria, continuei minhas aulas de canto
lrico em curso de extenso da UNISINOS. Nessas aulas, o foco estava na tcnica, na
postura e na expresso. Percebi que tinha uma boa conscincia corporal e que era
importante o desenvolvimento dessa habilidade. Alm disso, mesmo por imitao, eu
havia desenvolvido uma percepo auditiva muito aguada e uma conscincia
minuciosa do funcionamento do aparelho fonador. Foi uma fase de muitastransformaes vocais, explorao vocal, um contato diferente com o instrumento que
eu carregava o tempo todo, mas de cujo potencial eu no me dava conta. Ainda hoje
penso que esta foi uma fase muito importante na minha vida, de autoconhecimento e
mudanas. Comecei a formar meu prprio repertrio, sempre muito variado, dentro da
msica de cmara. Em 1998, realizei meu primeiro recital de canto e piano.
Na concluso do curso de Psicologia, desenvolvi uma monografia intitulada Voz
e Subjetividade, que considerei como uma reflexo sobre as oficinas realizadas nos
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locais de estgio, em psicologia clnica e comunitria (psicticos) em psicologia escolar
(universitrios), vislumbrando uma proposta transdisciplinar na rea.
Nesse mesmo perodo, paralelamente ao curso, trabalhei como cantora eprofessora de tcnica vocal no Vale do Rio dos Sinos, com coros mistos, juvenis, vocais
e aulas individuais. Realizei recitais de msica de cmara para canto e piano, como
mezzo-soprano em Porto Alegre e no interior do estado. Participei de cursos com
renomados professores e cantores lricos, nos quais aprendi novas tcnicas, porm
sempre me deparando com uma questo que me desassossega desde que comecei a
trabalhar com voz cantada: aformataoda voz.
Mesmo atuando como psicloga clnica, continuei trabalhando com o canto.Envolvida com muitas indagaes sobre a execuo do instrumento voz, buscava o
aprimoramento na interpretao, mas este, quase sempre, era correspondido com uma
padronizao tcnica e esttica. Como professora, procurei obter uma metodologia que
favorecesse a compreenso do aluno, que respeitasse a sua construo e execuo vocal.
Entretanto, nunca encontrei tal metodologia e, de certa forma, sei que no vou encontr-
la pronta.
Em 1998, foi criado o Vocal Por Acaso, grupo feminino sem vnculo com
nenhuma instituio, formado por oito mulheres, com a proposta de canto em grupo
diferenciada do canto coral, cujo repertrio abrange essencialmente Msica Popular
Brasileira (MPB). Esse grupo coordenado pela regente e educadora musical Denise
SantAnna Bndchen, e a tcnica vocal est sob minha responsabilidade. O estilo de
msica, a busca por novas sonoridades, a leveza, o swing, so questes musicais e
tcnicas que sempre permearam nossas discusses e nossos planejamentos.
Esse grupo proporcionou uma nova perspectiva de trabalho vocal, que foi
desconstruir o que estava cristalizado e formatado pelo canto coral, buscando uma
sonoridade mais natural, prpria de cada cantora, para adequar ao repertrio popular.
Na minha trajetria como preparadora vocal e tcnica vocal de coros, fiz parceria com
muitos regentes, e a maior dificuldade com que me deparei foi a desconexo do trabalho
de tcnica vocal com o trabalho de regncia. s vezes, parecia que o cantor que fazia
tcnica vocal no era o mesmo cantor que executava o repertrio, no era a mesma voz.
Sem contar que so poucos os regentes que tm domnio tcnico vocal.
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Em 2001, tambm em parceria com a regente e educadora musical Denise
Bndchen, criamos o projeto Meninas Arte em Canto, de Salvador do Sul, que uma
proposta de canto coral voltada a meninas de 10 a 17 anos. Esse projeto mantido por
uma empresa privada. No projeto de criao do coro, consta, desde a sua formulao,
objetivos de atuao, pesquisa e ao bem definidos, constituindo-se em um trabalho de
canto coral comprometido com aperformance, mas que preserva um ambiente favorvel
experimentao e educao musical. Esse grupo passou a ser o campo de pesquisa
para o trabalho de mestrado em Educao da Denise, tornando-se um frtil espao de
discusses, aes diferenciadas, atividades experimentais e fundamentaes tericas que
embasam o fazer no canto coral. O trabalho vocal associado a essa proposta apresenta
resultados curiosos na performance do grupo e no desenvolvimento musical. Vrias
hipteses e questes so comentadas e discutidas, mantendo o olhar no processo de
aprendizagem e nas formas de construo no desenvolvimento vocal e musical.
Relembrar essa trajetria uma maneira de refletir sobre ela e perceber que
nessas vivncias est o fluxo gerador de inquietaes, crenas, atuao profissional e
motivao para pesquisar, com um olhar crtico, curioso e minucioso sobre o ensino do
canto. Muitos outros pensamentos, conhecimentos e sentimentos permeiam o terreno da
arte de cantar, assim como muitos outros conhecimentos esto implcitos nos processos
de ensino e de aprendizagem do cantar. A arte de cantar envolve, seduz e cega. O ensino
do cantar rotula, fragmenta e racionaliza. necessrio construir um cantar...
Problema e Hiptese
Imerso nesse contexto, o problema pesquisado foi o seguinte: Como o ensino do
canto, a partir de uma abordagem construtivista, com professores de educao infantil,
pode favorecer a conscincia vocal e refletir-se na ao em sala de aula?
A hiptese inicial a de que uma proposta construtivista do ensino do canto, em
que o aluno (professor de educao infantil) possa agir sobre o seu cantar e refletir sobre
a sua prtica e question-la, possibilitar uma transferncia do conhecimento sobre o
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seu cantar na sua atuao em sala de aula (atividades propostas, postura vocal e
corporal, sade vocal, entre outros contedos).
Isso impulsionou o desenvolvimento da proposta de ensino do canto a partir deuma abordagem construtivista. Esta escrita uma costura de reflexes, aes, leituras,
apreciaes, vivncias, experincias. o registro de uma nova proposta sobre o ensino
do canto. uma caminhada que demanda pesquisa, estudo e parcerias. Diante disso,
alm da montagem de um curso de 30 horas/aula aplicado a 19 professoras da educao
infantil do municpio de Campo Bom, a pesquisa buscou verificar se os processos de
ensino e de aprendizagem refletiram-se na ao dessas profissionais.
Justificativa e Objetivos
A partir da minha trajetria pessoal e profissional, apresento trs argumentos na
defesa desta temtica: a) as reflexes sobre a minha experincia profissional como
orientadora e professora de canto e tcnica vocal; b) a inadequao do uso da voz falada
e cantada pelos professores; e c) a importncia de um trabalho de tcnica vocal e canto
na formao do professor.
Observo que a procura por aulas de canto (individual e grupo) tem aumentado
progressivamente. Vrios so os motivos para isso, mas geralmente o aluno adulto
apresenta o desejo de se conhecer, de desenvolver uma voz mais potente, de tirar a voz
para fora, de afinar, de deixar de ter uma voz de taquara rachada, etc. No ofcio de
professora de canto, chama a ateno a falta de noo corporal e a inexistncia de umconhecimento, remoto ou primrio, do funcionamento do aparelho fonador. Muitos
adultos desconhecem as possibilidades de produo sonora do seu aparato vocal, no
exploram sons, no se sentem vontade para imitar ou soltar a voz. Contudo,
notvel a diferena nas aulas de canto com crianas, uma vez que a explorao sonora e
a disponibilidade para atividades criativas acontecem fluentemente sem a necessidade
de racionalizar o tempo todo, sem medo do ridculo, porque elas no se preocupam
em encaixar a sua voz num modelo vocal idealizado.
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Outra problemtica muito freqente diz respeito crena de que cantar dom;
essa forma de olhar para a arte limitadora e opressora para o indivduo, pois o aluno
no gratificado por Deus nem pela natureza limita-se a querer ser afinado, a melhorar
sua postura e sua respirao. E nunca se dar o direito de mostrar seu som, ou de escutar
a si mesmo. Se voz dom, para que fazer exerccios, conhecer as funes e a
fisiologia do aparato vocal? Para que investir num profissional para ensinar o que no
pode ser aprendido? Quando trabalhamos com adultos, ainda encontramos o problema
tempo. Em geral, o aluno adulto apresenta uma postura contraditria: se para cantar
no preciso ter dom, preciso muito treinamento, preciso muito tempo. Acredito
que esse pensamento constitui uma das causas mais excludentes no ensino do canto, ou
seja, a exausto e a no-compreenso dos exerccios propostos.
A fonoaudiologia, na sua atuao preventiva, j destacou a importncia de um
trabalho vocal com o profissional dessa rea. O professor um profissional da voz, ele
precisa comunicar-se claramente no s em relao aos contedos, mas tambm na sua
expresso verbal e corporal. Muitos professores procuram aulas de tcnica vocal e
canto. Alguns so encaminhados por otorrinolaringologistas (por apresentarem estresse
vocal e mau uso respiratrio, no apresentando anomalias no aparelho fonador), outros
por quererem trabalhar sua voz cantada e falada. Percebemos que esse professor-aluno
de canto, leigo no uso da prpria voz, no est preparado para orientar o canto nem de
cantar, em sala de aula, com seus alunos; no utiliza a sua voz falada adequadamente na
atuao em sala de aula; no faz tratamento fonoaudiolgico, por apresentar exerccios
chatos e sem sentido, difceis de fazer em casa, alm de ser oneroso e no contar com
cobertura pelos planos de sade. com base nessa reflexo que levantamos a hiptese
de que um dos motivos de se cantar cada vez menos nas escolas est ligado ao
despreparo vocal do professor, que tambm pouco cantou na escola. Instala-se, assim,
um crculo vicioso ligado ao conhecimento vocal e musical.
O uso inadequado da voz falada em professores, principalmente de sries
iniciais, como j comentamos, no um assunto recente, ao menos no para os
fonoaudilogos. O trabalho de tcnica da voz cantada visa ao uso adequado de todo
aparato vocal, higiene vocal e aos seus cuidados, ao conhecimento dos limites e das
possibilidades vocais. Dessa forma, tambm estaremos promovendo a sade vocal desse
profissional e possibilitando uma ateno maior para a orientao de seus alunos, tarefa
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que sempre atribuda s reas da medicina (otorrinolaringologista) e da
fonoaudiologia. O professor que trabalha com o canto em sala de aula tambm ter
melhores condies de buscar uma uniformidade vocal, de escolher um repertrio
adequado, de definir uma tonalidade e de compreender outras questes que envolvem o
canto em grupo e a educao musical.
Outro fator relevante so os mtodos de canto e tcnica vocal, que geralmente
esto estruturados somente sobre questes ligadas anatomia e fisiologia da voz.
Entendo que esses elementos so essenciais e necessrios para a compreenso do
funcionamento do instrumento voz, mas sempre esto desconectados do sujeito
cantante. Penso que, ao dissecar o aparelho fonador, os mtodos desconectam a voz do
corpo, no havendo mais um corpo sonoro, apenas um aparelho fonador. Percebo que
alguns autores tentam resgatar o corpo do cantor salientando a postura necessria para a
ao de cantar. Porm, no encontrei estudos que abordassem a voz como um
conhecimento e seus processos de desenvolvimento. Todos os mtodos que consultei
preocupam-se com uma evoluo no treinamento vocal. Alguns deles so explcitos ao
abordarem a voz como dom e ainda reforam o treinamento exaustivo que
necessrio na aquisio dessa arte. Em geral, so direcionados a professores de canto,
alunos, leigos e outros profissionais da voz, o que demonstra quanto o processo de
desenvolvimento cognitivo est dissociado nesse ensino.
Assim, o objetivo desta pesquisa promover, a partir das atividades de
execuo, apreciao, criao e reflexo, o desenvolvimento do cantar segundo uma
abordagem construtivista, com professoras de educao infantil.
O primeiro captulo apresenta um alinhavo interdisciplinar entre a tcnica vocal,
a fonoaudiologia e a lingstica (idias da glossemtica) a fim de possibilitar a
visualizao de aspectos abordados por essas disciplinas que esto diretamente
relacionados aos processos de ensino e de aprendizagem do canto.
O segundo captulo traz um vislumbre sobre o cantar em dilogo com a teoria
piagetiana, possibilitando um recorte e uma inter-relao sobre os processos de
aprendizagem do canto.
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O terceiro captulo apresenta a proposta construtivista sobre o ensino do canto,
contendo minhas concepes, reflexes e indagaes. Aqui o dilogo resgata a prtica
de ensino, as lembranas do meu percurso de aprendizagem sobre o meu cantar,
buscando uma fundamentao para essa nova viso sobre o cantar.
O quarto captulo dedicado apresentao do curso de ensino do canto (30
horas/aula), seus contedos, seus objetivos e suas estratgias. Esse curso promoveu um
espao de experimentao e vivncias vocais e musicais, a partir de uma prtica
construtivista. Integrou atividades de criao, execuo e apreciao, visando
descoberta e ao desenvolvimento das possibilidades vocais de cada sujeito. Essa
proposta de ensino do canto visou ao e reflexo sobre o processo de aprendizagem
do canto, apoiada na epistemologia gentica de Piaget.
O quinto captulo contextualiza os sujeitos desta pesquisa e descreve os aspectos
referentes metodologia para a coleta de dados e aos procedimentos utilizados nos
encontros.
O sexto captulo aborda os resultados da pesquisa e os dados levantados,
descrevendo o percurso das atividades realizadas e analisando o processo de construo
do cantar individual e grupal. Dando seguimento anlise, porm abrindo para novas
discusses e perspectivas, o stimo captulo apresenta a continuidade desse projeto, bem
como os dados concretos de um projeto de pesquisa que se transformou em um curso de
capacitao para todos os profissionais da educao infantil do municpio de Campo
Bom/RS.
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2 VOZ E MUITAS OUTRAS COISAS INTERDISCIPLINARIDADE
Este captulo busca um dilogo sobre a idia de que o ensino do canto deve sertrabalhado a partir de um olhar interdisciplinar, isto , eu, sujeito cantante, corpo
sonoro, sou resultado de muitos atravessamentos, sou a construo de muitos
conhecimentos.
Por mais tempo de anlise pessoal que faa, jamais entenderei ou dominarei tudo
o que me constitui. Tambm, no pretendo entender tudo o que constitui a minha voz,
que a voz humana. Porm, algumas situaes que desenvolveram meu cantar e
estruturas que fundamentam minha prtica profissional podem nortear uma forma deperceber o ensino do canto. Esta pesquisa, mais do que provocar desassossego e
interminveis reflexes, proporcionou uma organizao das estruturas acomodadas em
relao aos processos de ensino e de aprendizagem do canto.
Neste momento mais terico, vou tecer uma colcha interdisciplinar com fios da
tcnica vocal, da fonoaudiologia e da lingstica a fim de possibilitar uma compreenso
maior da ao de cantar, fundamentando minhas idias sobre uma proposta
construtivista de ensino do canto. Fios que podem emaranhar, cruzar e no tramar, mas
que de maneira interdisciplinar vo se complementando e montando um sujeito que
produz sons, que se comunica, que faz arte e que est inserido em um contexto
sociocultural. Bairon (2002) assume que o objetivo da interdisciplinaridade superar a
lacuna entre as disciplinas e trabalhar o conhecimento atravs de interdependncias e
conexes recprocas. Assim, ressalto a importncia de propor uma interlocuo do canto
com outras disciplinas, buscando preencher elementos que no so abordados no ensino
do canto.
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2.1TCNICA VOCAL
So os 50 minutos mais esperados da semana. O treinamento,que inclui exerccios, novos conhecimentos e ampliao derepertrio, faz Maria jurar que naquele perodo o relgio andamais rpido. 4Certa vez, o professor afirmou que Maria possui uma extensovocal muito grande. Seu rosto fica orgulhoso quando lembradisso. Soa bonito. Por isso, ele classificou sua voz como mezzo-soprano.
A tcnica vocal trabalha a voz cantada visando ao aprimoramento de suas
qualidades sonoras. As qualidades da voz podem ser modificadas voluntariamente pelo
cantor e tambm podem acontecer ao mesmo tempo ou isoladamente. No canto, elas
dependem da durao, motivo pelo qual preciso desenvolver uma tonicidade e uma
agilidade muscular que possibilitem essa exigncia.
freqente o cantor modificar a qualidade de sua voz atravs do controle
auditivo. Porm, muitas vezes isso no suficiente, tornando-se necessria uma tcnicaapropriada, utilizando movimentos precisos, pela percepo de certas sensaes que
determinam as coordenaes musculares.
As qualidades abordadas no ensino do canto, segundo Dinville (1993), so:
Altura: para modular, preciso mudar a presso expiratria, isto , modular ograu de tonicidade da musculatura abdominal, assim como o volume das
cavidades supralarngeas que modificaro a posio da laringe, o fechamento
gltico, a freqncia das vibraes das cordas vocais e o deslocamento da
sensao vibratria.
Intensidade: depende da presso subgltica, ou seja, da sustentao abdominalque permite a potncia. A intensidade concretiza-se por uma sensao de
tonicidade que se distribui pelos rgos vocais. Ela percebida como uma
4 Trechos do conto Aula de Canto sero apresentados no incio dos captulos, ilustrando oatravessamento das disciplinas e os vrios olhares que surgem em uma nica aula de canto,independentemente de sua concepo epistemolgica.
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energia transmitida, pouco a pouco, ao conjunto das cavidades de ressonncia e
aos msculos faringolarngeos. Ao cantar, devemos ter conscincia tanto do
dispndio muscular que a intensidade requer quanto da dinmica vocal
apropriada e generalizada que provocaro o enriquecimento do espectro sonoro.
A intensidade aumenta com a tonicidade e est associada altura tonal.
Timbre: o resultado dos fenmenos acsticos que se localizam nas cavidadessupralarngeas. A riqueza do timbre est na funo subgltica, da posio mais
ou menos alta da laringe, como tambm do fechamento gltico e da qualidade
das mucosas. O timbre definido de vrias maneiras: a) pelo seu colorido, que
est diretamente relacionado com a forma dos ressonadores; b) pela amplitude,
que corresponde s sonoridades extensas e redondas do mordente, da espessura,
do brilho que cresce e decresce com as modificaes da intensidade e esto em
correlao com a tonicidade das cordas vocais.
Homogeneidade: uma qualidade essencial, que est em funo da distribuiodas zonas de ressonncia e da fuso das diferentes sonoridades vocais, dada sua
interao permanente. Ela s pode ser realizada pela harmonizao progressiva
de todos os rgos indispensveis fonao.
Afinao: o par da homogeneidade. Trata-se da presso e da tonicidade bemdistribudas que determinaro uma coaptao das cavidades de ressonncia. A
afinao regulada por movimentos extremamente delicados, pelo domnio de
um conjunto de sensaes s quais preciso ficar muito atento associadamente
ao controle auditivo vigilante.
Vibrato: caracteriza-se por modulaes de freqncia, acompanhadas devibraes sincrnicas da intensidade e da altura que tem influncia sobre o
timbre. O vibrato s se adquire medida que o cantor domina sua tcnica, j queseu mecanismo fisiolgico corresponde a finas tremulaes do conjunto da
musculatura respiratria e larngea. O vibrato tem um interesse esttico no bel
canto5, no existindo nas crianas nem nas vozes sem essa tcnica.
Alcance da voz: a voz produzida, sentida e transformada no interior de nossosrgos. Funcionalmente, o alcance vocal est sempre relacionado com a energia
5Bel canto:(It., canto belo) Expresso geralmente usada para se referir ao elegante estilo vocal italianodos scs.XVII a XIX, caracterizado pela beleza de timbre, emisso floreada, fraseado bem feito tcnicafcil e fluente (Dicionrio Grove, 1994, p. 90).
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gasta e se traduz, principalmente, pela conscincia de uma tonicidade
generalizada no corpo inteiro, s sensaes proprioceptivas mais perceptveis e
ao enriquecimento do jogo acstico do timbre.
No ensino do canto, sabe-se que nenhuma voz igual outra, porm existe um
processo de classificao, de enquadramento, para viabilizar o trabalho e, sobretudo,
no prejudicar o aluno, permitindo um desenvolvimento vocal saudvel e produtivo.
A classificao vocal sempre uma tarefa delicada para o professor de canto,
uma vez que tanto os homens como as mulheres podem ter vozes graves, mdias e
agudas. a partir dessa classificao que os vocalises6e o repertrio sero definidos.Existem vozes que podem ser imediatamente classificadas, mas a grande maioria s
passvel de classificao aps meses de trabalho tcnico. Em geral, os professores de
canto, intuitivamente, confiam no seu ouvido, na facilidade do aluno para o grave ou
para o agudo, na tessitura e no timbre. Porm, a apreciao de sua qualidade varia de
acordo com cada indivduo.
Dinville (1993) destaca que a classificao da voz deve ser feita, principalmente,
sobre as bases anatmicas, morfolgicas e acsticas. necessrio considerar vrios
fatores, dos quais alguns so predominantes e outros so secundrios.
Fatores predominantes:
A tessitura: o conjunto de notas que o cantor pode emitir facilmente. A extenso vocal: abrange a totalidade de sons que a voz pode realizar ( a forma
e o volume das cavidades de ressonncia, variveis para cada indivduo; o
comprimento e a espessura das cordas vocais; o timbre, que uma qualidade do
som que permite diferenciar cada pessoa).
Fatores secundrios:
A capacidade respiratria e o desenvolvimento torcico e abdominal.
6 Vocalises: (do fr. vocalise) Exerccio vocal ou pea de concerto, sem texto, cantada sobre uma ou maisvogais (Dicionrio Grove, 1994, p.1004).
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A altura tonal da voz falada, desde que o sujeito utilize aquela que corresponda sua constituio anatmica.
A amplitude vocal, que indica uma voz com sonoridades amplas, arredondadassobre toda a extenso vocal.
A intensidade, que permite a potncia sem esforo. O temperamento, que representa o conjunto das qualidades do cantor em relao
s suas possibilidades vocais.
importante saber se a classificao da voz falada processada como a da voz
cantada. Trata-se da mesma constituio anatmica, da mesma funo fisiolgica. As
duas vozes devem ser congruentes tanto para o timbre como para o modo de emisso.
Segundo a mesma autora, so seis as categorias principais na classificao
tradicional do canto erudito: trs femininas e trs masculinas. Em cada uma delas,
encontramos diferenas de extenso (grave, mdio e agudo). Estas podem variar de
algumas notas, de intensidade, de amplitude vocal, de volume e de timbre. As variaes
justificam subcategorias e usos variveis.
As vozes adultas so divididas da seguinte forma, do mais agudo para o maisgrave:
Voz feminina Voz masculina
soprano tenor
mezzo soprano bartono
contralto baixo
Goulart e Cooper (2002), em seu mtodo de tcnica vocal para msica popular,
orientam que a classificao dos tipos da voz no depende apenas da extenso (distncia
entre a nota mais grave e a mais aguda que a voz pode emitir). Porm, para o canto
popular, no necessrio um aprofundamento dessa questo, j que no canto popular o
que conta a identidade ou o estilo individual de cada voz, sem a preocupao de
classific-la. Na msica popular, as classificaes no podem ser encaradas como uma
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camisa de fora. Voc pode cantar na regio que quiser, desde que respeite o seu
conforto [...] em tempo algum voc deve forar a sua voz (p. 13).
Os mtodos de canto geralmente estruturam uma seqncia de informaes,exerccios e vocalises divididos em categorias. Apresento uma seqncia sobre um
enfoque mais popular (Coelho, 1994; Goulart e Cooper, 2002):
Aparelho fonador7: apresenta a estrutura e o funcionamento do aparelho fonador. Preparao (relaxamento): alguns mtodos apresentam massoterapia aplicada
voz, enquanto outros apresentam exerccios corporais. Ambos visam ao
relaxamento corporal que envolve principalmente ombros, costas, pescoo e
face.
Postura: o trabalho de postura tem como principal objetivo proporcionarconscincia do prprio corpo, coloc-lo em posio natural, manter ou
restabelecer sua elasticidade, desenvolver o equilbrio e o autocontrole.
Respirao: a respirao diafragmtica a base fundamental para se ter controleda emisso vocal (fala e canto). A respirao um fenmeno vital ativo-passivo
em que os pulmes enchem-se de ar, como se fossem um balo de borracha, por
um movimento muscular ativo, e esvaziam-se por um movimento passivo eelstico. A fonao uma funo ativa projetada, sustentada e alimentada pelo
movimento expiratrio passivo e elstico. Portanto, h um desacordo funcional e
fisiolgico entre a respirao vital e a respirao vocal, implicando
aprendizagem especfica e cuidados no treino. No canto, importante que o
indivduo tenha pleno controle de sua respirao.
Apoio: o controle da respirao, a sustentao da coluna de ar que faz parte daproduo vocal. Na inspirao, o ar enche os pulmes, alargando a regio dascostelas e estendendo os msculos intercostais. Ao mesmo tempo, o diafragma
abaixa-se e expande-se para os lados. O apoio o controle dos msculos
intercostais e abdominais. Desse modo, os msculos envolvidos no processo
respiratrio controlam a sada do ar e do som (que ocorre na expirao).
7
O aparelho fonador, neste texto, sinnimo de: sistema fonador ou rgo da voz que constitudopelos pulmes, laringe, faringe, fossas nasais e boca. (Henrique, 2006, p. 373)
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Ressonncia: so exerccios (vocalises) que ajudam a perceber que o som da vozpode ser modificado no momento da emisso, atravs dos ressonadores do
corpo, ou seja, as cavidades da cabea e do peito.
Articulao: geralmente so vocalises com fonemas que exigem extremocuidado para serem bem pronunciados, provocando um intenso movimento
articulatrio para serem compreendidos. A articulao no canto sempre
trabalhada buscando-se espao vertical dentro da boca.
Flexibilidade: so vocalises que apresentam movimentos ascendentes edescendentes, normalmente com saltos que exigem agilidade e rapidez.
Projeo: a projeo d direo voz e deve ser sempre associada orientaodo som, inteno de conduzir a voz at um ponto imaginrio,
independentemente da intensidade do som (forte ou fraco).
Extenso: so vocalisesque trabalham os extremos da voz, tentando obter umapassagem suave entre as ressonncias da cabea e do peito, possibilitando
transitar naturalmente entre elas.
Vocalizar exercitar e desenvolver possibilidades tcnicas da habilidade vocal.
As vocalises podem ser, dependendo de seu objetivo, de aquecimento ou de
virtuosidade.
Apresentei de forma muito sucinta questes tcnicas que so abordadas no
ensino do canto. Provavelmente alguns apontamentos especficos no foram
explicitados, pois cada abordagem metodolgica tem suas especificidades. Baseada em
minha busca bibliogrfica, percebi que no Brasil os mtodos de canto, estudos sobre a
tcnica vocal cantada e tambm a atuao dos professores de canto esto divididos em
duas abordagens principais: os estudos mais tradicionais (Dinville, 1993; Mansion,
1947; Kahle, 1966; McKinney, 1987; Oiticica, 1992; Coelho, 1994) e os mtodos de
canto popular (Marsola e Ba, 2000; Goulart e Cooper, 2002; Leite, 2001; Delanno,
2000). As publicaes recentes esto voltadas para o canto popular, e o uso de udio
(CD), em anexo, j se tornou pr-requisito do consumidor. Os exerccios esto mais
adaptados execuo de ritmos presentes na MPB, e a extenso trabalhada de vozes
mdio-agudas e mdio-graves.
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2.2 FONOAUDIOLOGIA
Vendo o corpo de Maria mais sintonizado, o professor comea
a trabalhar sua respirao. Inicia com um exerccio deexpanso muscular do diafragma e dos msculos intercostais.Sua inteno fazer com que Maria consiga inspirar sem subirdemais os ombros, que possa baixar a respirao que busqueaquilo que chama de respirao diafragmtica.
A abordagem do ensino do canto remete-me a muitas questes e reflexes sobre
a atuao dos profissionais da voz. Passarei a discutir, em especial, a atuao prescritiva
e preventiva dos fonoaudilogos e a prtica didtico-pedaggica dos professores decanto e tcnica vocal.
Penso que o ensino do canto atravessado por questes mdicas e
fonoaudiolgicas, as quais so essenciais e necessrias na execuo e no ensino do
cantar. Porm, o dissecamento do aparelho fonador e a complexa ordenao do
funcionamento desse aparelho, do ponto de vista didtico, desconectam a ao do cantar
com o corpo de quem canta. Os mtodos de canto e tcnica vocal geralmente se
esforam em descrever um roteiro anatomofisiolgico dinmico. Talvez pelas poucas
possibilidades de expresso (sem a utilizao de vdeo, udio e outros recursos
tecnolgicos) que a palavra escrita oferece, ou pela real complexidade que a ao de
cantar apresenta, o aparelho fonador, via de regra, nos mtodos de canto e tcnica vocal,
apresenta-se desprendido do corpo do cantor.
O termo vozgeralmente definido pela ao de produzir sons. Resumidamente,
pode-se dizer que a voz humana a vibrao do ar que expulso dos pulmes pelo
diafragma e que passa pelas pregas vocais, sendo modificado pela boca, pelos lbios e
pela lngua. Para a prpria fonoaudiologia, a definio de voz uma questo muito
complexa, e geralmente a resposta dos profissionais dessa rea tambm ser dada a
partir de sua produo.
Behlau e Pontes (1993), para dar essa definio, respondem seguinte pergunta:
Como se produz a voz?.A voz se produz na laringe, um tubo que contm as pregas
vocais, situadas em posio horizontal no interior da laringe (paralelas ao solo). Aspregas afastam-se ao inspirar e o ar entra nos pulmes. Ao falar, as pregas vocais
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aproximam-se, o ar sai dos pulmes e, passando pela laringe, produz as vibraes que
resultam no som da voz. Esse som passa por um alto falante natural formado pela
faringe, pelaboca e pelonariz, que so as cavidades de ressonncia. Os sons da fala so
articulados na cavidade da boca, atravs de movimentos da lngua, dos lbios, da
mandbula e do palato, que modificam o fluxo de ar que vem dos pulmes e,
conseqentemente, projetam o som para fora do corpo.
Nessas duas definies semelhantes, que buscam esclarecer o que o nosso corpo
produz diariamente e que a nossa maior fonte de expresso e comunicao a voz
percebe-se a complexidade dessa ao, bem como o quanto desconhecemos o nosso
prprio corpo e o que somos capazes de produzir sonoramente com e atravs dele.
A produo vocal um tema de estudo aprofundado e detalhado pela
fonoaudiologia, enquanto a fisiologia da voz por excelncia seu objeto de pesquisa.
Esse conhecimento o que aproxima o professor de canto a essa rea da sade vocal.
No busco uma referncia para disfunes vocais, e sim um apoio para promover um
funcionamento saudvel do aparelho fonador.
A atuao do fonoaudilogo e sua ampliao para as outras reas em que esto
inseridos os profissionais da voz outro aspecto cuja observao torna-se pertinente. A
fonoaudiologia, bem mais que a tcnica vocal, conseguiu inserir-se em vrias reas nas
quais a voz o instrumento performtico e de comunicao.
Desse modo, a fonoaudiologia um campo do conhecimento que se preocupa
em estudar, entre outros objetos, a comunicao humana. O ensino do canto tem uma
estreita ligao com essa rea de estudo da fonao e audio que apia a produo
sonora do cantor. Ainda so poucos os profissionais que estabelecem uma parceriasaudvel com esse campo de conhecimento, que trabalha com o mesmo aparelho de
produo sonora e o mesmo sujeito que se comunica.
Gelamo (2006), ao abordar estudos fonoaudiolgicos sobre a voz, afirma que,
em meio s atribuies do trabalho fonoaudiolgico, existe uma atuao especfica
voltada ao fenmeno da voz, abrangendo desde os chamados problemas de voz (por
exemplo, as disfonias) at o trabalho com a chamada voz profissional (tanto para
profissionais disfnicos quanto para aqueles que desejam aprimor-la). Destaca ainda
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que, no Brasil, os fonoaudilogos que optaram por atuar com a voz, em sua maioria,
vm desenvolvendo trabalhos que a enfocam principalmente como um produto sonoro
da laringe e de seus ressonadores, desprezando outros aspectos envolvidos na produo
vocal.
Segundo Ferreira (2002), a idia de que a voz o resultado de fatores orgnicos
predomina no atendimento das alteraes vocais e existe desde os primrdios da
fonoaudiologia. No exclui os fatores orgnicos, porm acrescenta que os fatores
psicossociais implcitos na produo vocal esto marcados pela personalidade, pelo
estado emocional e pelo controle emocional e esto presentes na relao interpessoal.
Cada situao vai determinar uma forma especfica de falar, evidenciando que cada um
de ns acaba por fazer uso de muitas vozes no seu dia-a-dia.
A mesma autora descreve trs formas de atuao por parte do fonoaudilogo
frente questo da voz: 1) procedimento clnico-teraputico, existente desde os
primrdios da fonoaudiologia, que se centra no atendimento individual de disfnicos em
clnicas particulares e alguns hospitais; 2) procedimento preventivo, com surgimento na
dcada de 1980, que objetiva, a partir de aes coletivas, promover a sade vocal da
populao em geral e, mais especificamente, dos chamados profissionais da voz(professores, atores, cantores, locutores, reprteres, operadores de telemarketing, etc.);
3) assessorias (treinamento, aprimoramento ou esttica vocal), que surgem a partir da
dcada de 1990, tendo como objetivo adequar o uso vocal do profissional da voz ao seu
cotidiano profissional, conhecendo melhor as condies e as necessidades de produo
vocal de cada categoria profissional.
Para a autora, o enfoque do trabalho fonoaudiolgico com a voz torna-se a
promoo da sade vocal e a adequao da expressividade [ao] contexto profissional
(Ferreira, 2002, p. 2). A partir desse trabalho, o fonoaudilogo no voltar o olhar
somente sobre as disfunes e patologias: ele passa a olhar para a preveno de futuras
disfunes vocais e para as diferentes maneiras de utilizar a voz profissionalmente.
Segundo Behlau e Pontes (1993, p. 3):
Chun (2002) salienta que a atuao da fonoaudiologia direcionada promoo
de sade vocal em profissionais da voz tem-se centrado na denominada higiene vocal.
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Higiene vocal consiste de algumas normas bsicas queauxiliam a preservar a sade vocal e a prevenir o aparecimentode alteraes e doenas. As normas de higiene vocal devem serseguidas por todos, particularmente por aqueles que se utilizam
mais da voz ou que apresentam tendncia a alteraes vocais.
Alm disso, comenta que o foco de trabalho volta-se essencialmente aos
cuidados com a voz. Essa prtica est apoiada em questionrios aplicados a
profissionais da voz para um levantamento do conhecimento que eles tm sobre o uso
da voz e seus cuidados na montagem de palestras e oficinas para esclarecimentos sobre
o mau uso e os abusos vocais.
Para Chun (2002), as noes de sade vocal so essenciais para a preservao da
voz; porm vistas como infraes ou proibies, acabam restringindo a atuao do
fonoaudilogo a um papel de orientao do profissional de voz a cerca do que ele deve
ou no deve fazer, para no cometer os chamados abusos vocais e prevenir as
indesejveis alteraes vocais (p. 21). Portanto, falar em preveno de alteraes
vocais remete concepo de voz valorizada em sua dimenso orgnica (p. 21). A
partir dessa viso, conseqentemente, a voz ser compreendida como um mero ato
larngeo, circunscrito, primordialmente, ao seu formato biolgico, embora se reconhea
a interferncia de outros fatores como os sociais e psicolgicos neste processo (p. 21).
Gelamo (2006) afirma que a linguagem acontece em um processo interacional e,
portanto, no se deveriam enfocar isoladamente apenas alguns aspectos do fenmeno da
voz, tais como os orgnicos, por exemplo, mas sim levar em conta as condies de
produo e o contexto, compreendendo a voz e os seus usos. Conforme Chun (2002,
p.27):
[...] a voz que se fala nos trabalhos de promoo de sade vocalno pode ser a mesma oriunda da prtica clnica. H que seconsiderar o reconhecido, porm negligenciado, aspecto sociale focalizar a voz em suas condies de produo, bem como osujeito em questo. Se a voz produz e, ao mesmo tempo, feitode sentidos, no pode ser vista como mero ato larngeo, massim como marca constitutiva da oralidade.
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possvel observar que, na atuao do fonoaudilogo, ainda um pouco remota
a viso de que a voz uma expresso do indivduo, que ela sofre influncias
psicossociais, psicossomticas, que marcam uma personalidade, assim como uma
conduta, que acreditamos interferir na conduta vocal.
A questo orgnica muito forte no meio fonoaudiolgico, sendo que as
tcnicas e avaliaes esto voltadas para o ajuste de disfunes e esforos no-
apropriados. O foco no est no desenvolvimento de uma voz saudvel personalizada e
no aprimoramento profissional, mas sim na preveno e no tratamento.
Geralmente, o professor de canto s consegue fazer uma aproximao orgnica
com a fonoaudiologia. Por exemplo, a clientela do professor de canto formada pelosujeito cantanteque possui uma voz saudvelpara ir em busca do aprimoramento vocal.
Cabe ao professor averiguar se esse aluno possui uma voz saudvel (sem disfonias ou
anomalias). Se existir qualquer suspeita sobre alguma disfuno vocal, feito um
encaminhamento para profissionais da rea mdica (fonoaudilogos, laringologistas e
foniatras).
Sem a pretenso de questionar a atuao do fonoaudilogo, busco estabelecer
uma relao entre a atuao desse profissional e a estreita ligao com o ensino do
canto. Porm, imagino que, alm de cuidar da voz e dar conta de suas necessidades, a
fonoaudiologia deveria intervir na construo vocal do profissional, desenvolvendo esse
trabalho em paralelo quele habitualmente realizado.
Tenho clareza de que cada especialidade cumpre sua funo e lana sobre ela
seu olhar. Contudo, lastimo que o canto e a fonoaudiologia estejam deixando de
trabalhar com um sujeito cantante, inteiro corporalmente, socialmente epsicologicamente. A priori, ambos trabalham com o que o indivduo j possui, com
aquilo que inato, que precisa ser treinado, consertado ou preservado.
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2.2.1 A Voz Cantada para a Fonoaudiologia
[...] o professor j explicou, a cabea a sua caixa de
ressonncia e ela precisa ampliar o espao dentro da boca.No da abertura da boca, mas sim a posio da sua lngua,do palato, da mandbula e de outros ressonadores.
A voz cantada tambm objeto de estudo da fonoaudiologia, sempre com um
enfoque orgnico, em que o ato de cantar visto como uma extenso da capacidade de
falar. Segundo Gelamo (2006), no que se refere ao trabalho fonoaudiolgico com a voz
cantada, a tendncia dos enfoques est na restrio avaliao, mdica e
fonoaudiolgica, do comportamento vocal e das principais alteraes vocais, o que
abrange tratamento com voz patolgica e terapia da voz do cantor, incluindo o
treinamento vocal, o treinamento respiratrio, as noes de sade vocal, o preparo para
as altas demandas vocais e os estudos anatomofisiolgicos da voz cantada.
Costa e Andrada e Silva (1998) afirmam que canto e fala so atividades distintas
por apresentarem controle central em locais diversos no crebro. Alm disso, pontuam
alguns procedimentos que cabem atuao do fonoaudilogo, como avaliao docantor, avaliao perceptual da voz do cantor, orientaes gerais para a produo da voz
cantada e terapia fonoaudiolgica. Para esses autores, cantar , sobretudo, uma
atividade fsica, muscular e racional, na qual existe um gasto de energia (p. 153), assim
como a ao de cantar como uma atividade esportiva em que so necessrios treino e
alimentao necessrios, assim como uma boa dose de concentrao (p. 153) e, ainda,
que o trabalho do fonoaudilogo deve preparar o cantor, a musculatura do trato vocal
para a prtica do canto [...], at que a limitao desaparea [...] (p. 159).
Em relao avaliao vocal do cantor, Behlau (2005), afirma que: a voz do
cantor deve ser cuidadosamente avaliada, no somente no que se concerne ao exame
fsico dos rgos do aparelho fonador, mas tambm funcionalidade vocal, de acordo
com a demanda dos diferentes tipos de emisso (p. 334). A autora ressalta que o estilo
do cantor tambm deve ser considerado, uma vez que o clnico deve compreender as
diferenas e as particularidades dos estilos de canto (canto popular, canto erudito e
canto coral). Ao atender e orientar o cantor, esse profissional deve considerar as
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diferentes tcnicas, treinamentos e ajustes musculares necessrios para os mais variados
tipos de emisso vocal.
Ainda com o mesmo olhar, mas j ampliando para questes artsticas maisdefinidas, Dinville (1993), cantora e fonoaudiloga, destaca que os problemas
patolgicos e os erros de tcnica demonstram a fragilidade da voz humana, reforando a
necessidade e a importncia de uma tcnica assentada sobre regras precisas e sobre o
conhecimento de seu mecanismo. Segundo a autora, para considerar a voz na sua
totalidade, preciso foc-la sob o ponto de vista tcnico, artstico e patolgico.
Gelamo (2006, p. 20) tambm amplia o seu olhar sobre a atuao da
fonoaudiologia e observa que os estudos sobre voz cantada desenvolvidos nesse campono levam em conta os aspectos lingsticos subjacentes interpretao de uma cano:
Esses trabalhos, em sua maioria, enfatizam o estudo e a prticada dimenso tcnica da voz cantada, preocupando-se emadaptar as vozes dos cantores, buscando, assim, o chamadoequilbrio sonoro por meio de tcnicas vocaisque permitam omnimo de esforo e o mximo de rendimento. Estas prticasvisam proporcionar o que se entende como vozes saudveis eequilibradas, fazendo pouco ou nenhuma meno a elementossubjacentes interpretao de uma cano, especialmente os denatureza lingstica (tais como os prosdicos e os semnticos),constitutivos da interpretao/atuao do cantor.
A autora acredita ser de grande importncia para o cantor estar atento s
possibilidades da organizao prosdica nas canes, visando criao de efeitos de
sentido pretendidos por sua interpretao. Julgo que essa seja uma extenso da tcnica
vocal importante de ser desenvolvida, mas que atualmente est ausente na maioria dosmtodos de voz cantada e das assessorias fonoaudiolgicas.
Alm de lanar um olhar crtico sobre a atuao da fonoaudiologia, importante
salientar que essa rea embasa a produo sonora, d suporte forma como o professor
de canto deve abordar o aparelho fonador, que responsvel pela produo sonora, bem
como auxilia na manuteno de uma voz saudvel. Portanto, a fonoaudiologia parceira
inseparvel no ensino do canto.
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2.3 LINGSTICA
Antes do fim da aula, sobraram alguns minutinhos paratrabalhar o repertrio. Maria, que prefere cantar msica
popular, levou para o professor uma que acha legal.
A voz o nico instrumento que tem o privilgio de unir o texto msica.
Porm, o canto visto como instrumento apresenta como principal caracterstica a
tentativa de aproximao da voz a um instrumento meldico, cuja qualidade vocal est
no timbre (muitas vezes determinado pelo estilo bel canto), na durao do som, na
intensidade e na altura. A partir dessas idias de Carmo Jr. (2005), a questo da tcnica
vocal nem est mais no distanciamento da voz e corpo, mas sim da melodia com o
verbo. Isto , alm do distanciamento da voz e do corpo do sujeito cantante, a tcnica
vocal tambm no valoriza a expresso potica, porque est preocupada com a
qualidade da emisso do som, detendo-se exclusivamente na organizao dos
parmetros do som.
A voz cantada trabalhada visando a um aprimoramento de suas qualidades. E,
como j se disse antes, as qualidades da voz podem ser modificadas voluntariamentepelo cantor e tambm podem acontecer simultnea ou isoladamente. No canto, elas
dependem da durao, motivo pelo qual preciso desenvolver uma tonicidade e uma
agilidade muscular que possibilite em essa exigncia. freqente o cantor modificar a
qualidade de sua voz atravs do controle auditivo, embora no seja suficiente, tornando-
se necessria uma tcnica apropriada, pela utilizao de movimentos precisos e pela
percepo de certas sensaes que determinam as coordenaes musculares.
A predominncia de mtodos do bel cantoe as constantes discusses referentes
afirmao de que a voz um instrumento musical tm um fundamento histrico que
tambm determina a dicotomia corpo-voz e melodia-verbo. Para Carmo Jr. (2004), A
voz o mais primitivo dos instrumentos musicais (p. 224). A organologia mostra que
os instrumentos meldicos surgem como clones da voz humana. Na histria, durante
muito tempo, a voz foi o mais perfeito e acabado instrumento musical, servindo de
modelo para os outros instrumentos, que quase sempre se restringiam a dobrar a
melodia cantada.
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Segundo o autor, essa supremacia foi quebrada em meados do sculo XVIII,
quando se registra um impressionante desenvolvimento na construo de instrumentos
musicais. A direo dessa evoluo foi precisa e constante: o domnio das alturas, das
duraes e das intensidades. A partir desse momento, os instrumentos meldico-
harmnicos foram concebidos para produzir uma gama de diferenas qualificadas
(altura, durao, intensidade) e, ao mesmo tempo, para produzir identidades (timbre).
Do instrumento musical meldico espera-se que, ao longo de toda a sua extenso (que
deve ser a mais ampla possvel), no apresente variaes tmbricas. a invarincia
tmbrica que d identidade a um instrumento. O pice dessa evoluo est representado
no piano de concerto, instrumento capaz de substituir uma orquestra.
Segundo Carmo Jr. (2004), a orquestra clssica fruto direto dessa
experimentao que envolveu cantores, instrumentistas, luthiers e compositores. Em
1607, feita a primeira montagem da pera Orfeo, de Cludio Monteverdi: a orquestra
contava 30 figuras. Quase 300 anos depois, Mahler apresenta sua oitava sinfonia para
um conjunto de 150 figuras, e Berlioz apresenta seu Rquiem que, entre as duas
orquestras e os quatros coros, superou a casa de 400 msicos.
Diante dessa evoluo instrumental e musical, para atender a tal demanda, oscantores passaram a desenvolver tcnicas vocais visando a homogeneizar o timbre,
equalizar os registros vocais e aumentar o controle sobre os trs parmetros meldicos
(altura, intensidade e durao). Frente a essa tendncia, a voz deixa de ser modelo de
instrumento e passa a copiar e a imitar as propriedades de outros instrumentos. A maior
vtima dessa evoluo foi a dico. As tcnicas de canto criaram uma outra dico, a
dico do canto, cada vez mais alheia dico da fala. Se logos e mlos, verbo e
msica, tm algo em comum, se compartilham categorias, esse compartilhar perdeu-seao longo da histria da msica vocal (Carmo Jr., 2004, p. 226).
No canto lrico, a dico do cantor na ao de cantar no a mesma da fala. Na
tentativa de aproximao da voz a caractersticas instrumentais, atravs da tcnica de
canto, o texto sacrificado. O canto lrico, na sua excelncia meldica, esconde o texto.
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O que faz um cantor lrico? Uma comutao, um chaveamentona linguagem. Quando fala, ele se priva de cantar e, quandocanta, se priva de falar. O cantor lrico oucanta oufala. E nissoele se afasta do cantor popular, que pretende falar e cantar.
(Carmo Jr., 2004, p. 226)
Essas crticas, levantadas por um estudioso da lingstica, suscitam para ns a
hiptese de que o trabalho do professor de canto est, geralmente, voltado s funes
anatomofisiolgicas (no conhecimento do rgo fonador, de seu funcionamento e de
suas patologias), porque esse profissional busca alcanar uma esttica imposta pelas
tcnicas da arte do bel canto(lrico) que esto voltadas para uma funo meldica, e no
para uma expresso do verbo ou do indivduo.
2.3.1 A Voz um Instrumento
Para a organologia, o ramo da musicologia que tem por objeto a histria e a evoluo
tcnica dos instrumentos de msica, a voz um instrumento musical. A voz tanto
instrumento de msica quanto instrumento da fala. Dessa forma, a voz um instrumento
que pode servir seja a intenes estticas, seja a intenes prticas.
Seguindo essa linha de raciocnio, sem aprofundar as questes lingsticas,
vamos nos apoiar, mais uma vez, nos estudos feitos por Carmo Jr., que em sua pesquisa
sobre a teoria glossemtica atribui um destaque particular passagem do domnio verbal
ao musical.
O aparelho fonador um mecanismo a servio de uma voz quediz: diz palavras, frases, discursos, numa palavra, uma voz que logos. E esse mesmo aparelho fonador tambm pode estar aservio de uma voz que canta: canta notas, motivos meldicos,frases musicais, melodias. A voz agora mlos. So duasmanifestaes diferentes da oralidade que podemosanaliticamente distinguir, mas que, concretamente, soindissociveis, porque complementares (Carmo Jr., 2005, p.104).
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Para os profissionais que trabalham com o aprimoramento da voz cantada ou
falada, parece bvio afirmar que o mesmo aparelho fonador que produz a voz falada e
a voz cantada. Cantamos e falamos utilizando o mesmo aparelho fonador. Contudo, se
to bvio, por que ainda encontramos professores de canto que no articulam um
dilogo com fonoaudilogos? Ou, ainda, por que atualmente poucos pesquisadores
falam da importncia de propiciar uma interface entre as reas afins canto, educao
musical, fonoaudiologia, foniatria e outras? Ser que tal desconexo no ocorre porque
no percebemos a voz como um instrumento quando falamos? Por que no percebemos
nossa linguagem verbal impregnada de elementos musicais?
Carmo Jr. (2005)coloca que, embora o mecanismo de produo da fala envolva
diversos rgos pulmo, laringe, cavidades nasal e oral , todo o processo pode ser
segmentado em duas etapas sucessivamente subordinadas: (a) a gerao da sonoridade
pelo conjunto energtico; (b) a articulao da sonoridade pelo conjunto ressonador.
O estgio da gerao da sonoridade realizado na altura das cordas vocais e
resulta na produo do vozeamento (vibraes puras sem qualquer outra determinao
que no a intensidade, a altura e a durao). Assim, as vibraes das cordas vocais
produzem um quase-fonema, que definido como um elemento do plano da expressoverbal determinado apenas por traos de altura, durao e intensidade e do qual esto
ausentes quaisquer traos articulatrios. Os fonemas so formados apenas na segunda
etapa do processo fonatrio, em que ocorre uma transformao desses quase-fonemas
atravs de ocluses, constries, nasalizaes, etc. Um fonema determinado por outros
traos, como o ponto de articulao, o modo de articulao, a sonoridade para as
consoantes e para as vogais, a abertura da boca, a altura da lngua e o arredondamento
dos lbios. Em funo da mobilidade do conjunto ressonador, diferentes conformaesdos rgos bucais so possveis e so elas que produzem os traos distintivos que
separaro os fonemas em categorias.
Se comparssemos o aparelho fonador a um instrumento musical, que tipo de
instrumento ns seramos? Segundo Carmo Jr., provavelmente seramos um instrumento
musical meldico, o qual tambm dotado de um corpo vibrante, onde so produzidos
sons com altura, durao e intensidade, e dispe de um conjunto ressonador que
amplifica e modifica os sons provenientes desse corpo vibrante. Isto , aquilo que no
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aparelho fonador so as pregas vocais, nos instrumentos musicais meldicos so as
cordas esticadas, placas de madeira, palhetas de cana, metal, etc. E a cavidade oral-nasal
do aparelho fonador corresponde, nos instrumentos meldicos, a cmaras, caixas e
tubos nas mais diversas dimenses e formatos, construdos com os mais diversos
materiais.
Porm, existe uma diferena muito importante entre o aparelho fonador e um
instrumento musical meldico, a saber enquanto o aparelho fonador possui um conjunto
ressonador mvel capaz de produzir diferentes articulaes que resultaro em diferentes
fonemas, o conjunto ressonador dos instrumentos de msica imvel, inarticulvel.
Essa imobilidade a razo pela qual o conjunto ressonador torna-se incapaz de produzir
diferenas articulatrias nos sons. Para Carmo Jr., ao manter-se a analogia entre o
aparelho fonador e o instrumento musical, possvel afirmar que a voz produz quase-
fonemas e fonemas, ao passo que um instrumento musical produz apenas quase-
fonemas.
Nesta escrita, por ainda no conseguir conectar todas as idias, apresento um
pensamento dicotomizado: quando a voz produzida por um instrumento musical
meldico, sempre me refiro ao corpo inteiro desse instrumento. E, quando a voz produzida pelo aparelho fonador, parece que no consigo visualizar o corpo desse
instrumento.
O olhar desse autor abre horizontes em termos de contedos a serem
desenvolvidos no ensino do canto a forma como eu vejo a minha voz e o meu
instrumento e em termos de definies e noes do funcionamento do
instrumento voz. As relaes que a tcnica vocal pode estabelecer com esse olhar da
lingstica so mltiplas e suscitam a elaborao de novos exerccios e vocalises que
desenvolvam o domnio tcnico vocal, valorizando a poesia e a interpretao das
canes.
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3 O CANTO SOB A LUZ DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
O significado da msica e o modo como Maria aplica o seucantar, provavelmente, no so questes esclarecidas para ele.Talvez nem para ela. Mas deve ser representativo; afinal, todaquarta-feira ela est l. No falha nunca.
A partir de uma abordagem interdisciplinar sobre o cantar, apresento neste
captulo questes referentes proposta construtivista no ensino do canto, considerando-
o como um processo de construo de cada indivduo. Esse olhar pode ser traduzido
como motivao, ou melhor, a significao do meu fazer como professora de canto e
tcnica vocal, a pulso viva deste trabalho.
Com base em uma fundamentao piagetiana, foi possvel percorrer o processo
de construo do meu cantar e do cantar das pessoas que buscam minha orientao.
Hoje consigo visualizar e reconstruir muitos pensamentos cortados e fragmentados no
percurso reflexivo da minha caminhada pessoal e profissional. Penso que sempre
busquei teorias que dessem sustentao s minhas idias... O que penso subjetivo, e
alinhavar esses pensamentos sobre uma teoria como querer encaixar retalhos sem ter
uma tesoura para fazer bordas e criar formas. Porm, o que apresento uma colcha que
precisa de parcerias e pesquisas.
Duas questes apresentaram-se na elaborao desta pesquisa e em toda e
qualquer atividade relacionada ao ensino do canto: como se processam as construes
do cantar e a ao pedaggica do professor. Contudo, para discutir essas duas questes,
no encontrei referncias especficas.Por isso, as idias que apresento neste texto foramconstrudas a partir de estudos e pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo musical,
apoiadas na teoria piagetiana (Beyer, 1988; Lino, 1998; Kebach, 2003; Maffiolleti, 2004
e Bndchen, 2005).
As minhas primeiras investigaes sobre o desenvolvimento do cantar
aconteceram na pesquisa intitulada A atividade de apreciao na construo do cantar
(Specht e Beyer, 2005). O foco desse estudo centrava-se nos processos de aprendizagem
do canto atravs de atividades de apreciao sobre a performancede intrpretes vocais.
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Assim, foi observado e analisado como o aluno de canto coral percebe o desempenho
tcnico e expressivo do canto na interpretao vocal do outro (intrprete profissional ou
colega de coro) e se ele se apropria destes ou de alguns elementos musicais e
expressivos da verso apreciada na construo de seu desenvolvimento vocal. A
hiptese era de que o processo de aprendizagem do canto ocorre de forma homloga
gnese e ao desenvolvimento geral da criana, permitindo a expresso da subjetividade
simblica do sujeito e a lgica estrutural musical. Nessa pesquisa, a anlise partiu do
contexto de que a percepo da prpria voz entendida como sendo anlogo a um
gesto, a uma ao do corpo.
Diante da observao feita, procurei aprofundar as possibilidades de uma
aproximao do cantar com as idias piagetianas. Essa aproximao enriqueceu,
ampliou e fundamentou minha prtica como professora de canto e preparadora vocal.
Meu olhar sobre a voz, que era apenas sobre o som que eu escutava, tomou uma
dimenso para alm do auditivo. Hoje eu tento entender as conexes e o percurso
cognitivo que o sujeito cantante desenvolveu para apresentar determinada sonoridade (a
voz).
Segundo Montoya (2005), Piaget reconhece que a novidade terica da pesquisapsicolgica da primeira metade do sculo XX ter demonstrado que a imitao,
enquanto tcnica, no hereditria, mas sim um produto da aquisio espontnea do
indivduo.
[...] a imitao nada teria de automtica ou de involuntria (naacepo de no-intencional), mas, pelo contrrio, denunciariabem depressa a existncia de coordenaes inteligentes, tantona aprendizagem dos meios que emprega como em seus fins.
(Montoya, 2005, p. 22)
Para Piaget, a primeira percepo de si mesmo surge com a observao dos
prprios movimentos, sou Eu quem produzo determinado gesto ou som. O corpo o
primeiro esteio de percepo de si mesmo, e a partir da construo desses primeiros
esquemas perceptivos de sons e gestos prprios, assim como daqueles que so
produzidos pelo outro ou pelo ambiente, que comeam a se abrir novas possibilidades
de reproduo sonora.
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A inteligncia sensrio-motora parece-nos ser odesenvolvimento de uma atividade assimiladora tendente aincorporar os objetos exteriores aos seus esquemas, ao mesmotempo em que acomoda estes ltimos queles. Na medida em
que procurado um equilbrio estvel entre a assimilao e aacomodao, pode-se falar, pois de adaptao propriamenteinteligente. (Piaget, 1978, p. 18)
Piaget salienta que, do ponto de vista dos progressos da inteligncia em geral, a
imitao dos movimentos j executados pelo sujeito, mas de maneira invisvel para ele,
processo que comea entre os oito e nove meses, caracteriza-se pela coordenao dos
esquemas, da resultando a sua maior mobilidade e a constituio de um sistema deindcios relativamente destacados da percepo atual. Na imitao, a coordenao de
esquemas e a constituio de indcios permitem criana assimilar os gestos de
outrem aos de seu prprio corpo, mesmo quando tais gestos permanecem invisveis para
ela. Por outra parte, as combinaes de relaes facilitam a acomodao de novos
modelos vocais.
Montoya (2005) afirma que, medida que a criana acomoda seu ouvido e sua
fonao a um novo som que se diferencia de seus vagidos, ela passa a ser capaz dereproduzi-lo por reaes circulares. Dessa forma, bastar que o sujeito oua o som em
questo, mesmo no caso de no ter sido ele quem o acabou de emitir, para que tal som
seja assimilado ao esquema correspondente e a acomodao do esquema a esse dado
prolongue-se em imitao.
[...] duas condies so necessrias para que surja a imitao:que os esquemas sejam suscetveis de diferenciao napresena dos dados da experincia e que o modelo sejapercebido pela criana como anlogo aos resultados a que elaprpria chegou. (Montoya, 2005, p. 23)
Diante desse referencial, que utilizei para fundamentar a pesquisa j
mencionada, foi possvel observar que a imitao poderia ser uma das primeiras vias de
construo do cantar, permeada por muitas outras questes tcnicas, musicais, afetivas,
sensoriais, etc., que permitem umaperformance progressivamente autnoma.
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A construo de esquemas vocais, que possibilitam um domnio tcnico,
expressivo e criativo do canto, comea pelas regulaes ativas do sujeito aprendiz, na
tentativa de ajustar seu aparelho fonador (a