04 OGaribaldi - Revista

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04OGaribaldi REVISTA SÊLO O GOLPE

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A quarta edição é fênix.

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04OGaribaldi REVISTA

SÊLO ⌖ O GOLPE

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Revista disponibilizada gratuita e virtualmente. Produzida pela Casa Empiria. Envie seus textos

para o e-mail [email protected], mas antes consulte as diretrizes e colunas exclusivas no site www.ogaribaldirevista.wordpress.com. Ajude-nos a continuar publicando conteúdo sobre

literatura.

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hnfnh

Setembro é um mês de coisas tristes, mas também é mês de adubar. O fim

estava próximo; acabou, mas é fênix. Começamos daqui, nesse tratado

sobre a tristeza, para respirar todo o ar de um lugar que ainda não existe.

Editando as linhas como quem dirige 1 carro 1 ponto 0, ano 78, saímos do

transe. Quando a vida não cabe a vida só cabe. Venha ver o circo rodar

pela cidade, porque as nuvens saem do lugar.

Chegando,

OGaribaldi.

Juiz de Fora, setembro de 2015.

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MANIFESTO

© Isabela D’Avila 2015 JF

PARQUE MUNICIPAL

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SUMÁRIO

O POEMA 08 D.R. 15 ONDE TERMINA O DIA 16 A COISA ESTRANHA 18 NO MUNDO 19 CORRESPONDENTE 21 POEMA 30 SAÍDA 32 QUEM ESTÁ 40 EQUIPE 42

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O POEMA XLI MARIANA BASÍLIO

A Igor Stravinsky

Três movimentos.

Foto de Aëla Labbé

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Um primeiro ato – a nascer.

Era o compasso de um céu

que se abria, nas garatujas

de um pardal a rodear

sutilezas.

Tocavam-me. A tocar

uma primeira impressão

um sonho de infância

a tocar o que não se tem.

Eu era menina. Eu era menino.

E pulava com meus órgãos a saltar

o câmbio das estações, a pular

as cordas e os nós que os adultos

eram em si.

Uma primeira nota.

Um primeiro tom.

Ouvia-se os meus berros

ao longe,

porque a minha infância

era um aquário incendiário

eu buscava os artifícios

em fogos de água

para que notassem o

meu crescimento

os anelares em meus dedos,

para que me vissem

como uma criatura

de vestido

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a vestir

o crescimento

com os cabelos penteados

eu cantava

a cantar águas

de março

eu

simplesmente

uma sintonia

de perdas e ganhos

aos dez –

dos anos

do tempo

do brio

faceiro

de minha

infância

90.

O segundo ato doeu-me mais.

A suportar o insuportável, vi um mundo

cruel de percevejos dominadores

que pisoteavam os elefantes

porquanto se comia do bem

o mal rastelava em nossos terrenos

que naufragavam

enquanto eu era uma jovem

um jovem

uma sombra

a se perder e sorrir inocente

nas calçadas cruas

nas ruas repletas

de bêbados e equilibristas

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um tom agudo

eu falava

eu pedia

clemência

mas a vida

simplesmente

passava em preto e branco.

Mas os olhos, não.

Os olhos eram coloridos

Os olhos regalavam-se

de segunda a sexta-feira

os

olhos esculpiam o mundo

em meu sonho

de juventude

e eu me rasgava

toda

quando conhecia os clarões

de relâmpago que se passavam

em meu desejo de existência

e Rimbaud

me tirava o sono

em noites

me tirava as pupilas

em pícaras

aos dezesseis –

dos medos.

dos causos,

dos montes estrelares

a me libertar

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lareiras.

O TERCEIRO trágico ato

ocorreu-me esta manhã.

Notei que envelhecia

desesperadamente

mais cinco anos por noite

mais dez anos por estrofe!

Eu tinha a idade de um dinossauro

e saltava as janelas

da imaginação

como se pudesse

correr corroendo

as esferas das casas

em busca

de uma busca

que não se sabe

e se quer

buscar

mais do que a própria

vida

e a poesia

ah, a poesia

abraçava-me

as orelhas quentes

para que o efeito do sol

me cobrisse devagar

o fundo dos sonhos –

mesmo

que deles surgissem

um conjunto

galáctico

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me chamando

a fugir

louca e nua

eternamente

eu sei

mais cinco

anos por noite

passaria

mais cem anos!

por livro

para que o crescimento

de uma velha mulher

que eu era, do velho

homem que eu era

se desse

e se estabelecesse

em cordilheiras

impenetráveis.

A MÚSICA hoje toca mais alto

é um fim

é um começo

eu sinto a cidade

a calar

meus ombros

e amasso

amasso os papéis

da memória

e

sou coxas amassadas

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sou coxas a cruzar os

oceanos

de

farelos

dos pães

benditos

pães

de um Deus que me beija a testa

e me flecha o coração,

assim

durmo e acordo

profundamente

hoje.

Em três movimentos

o pavimento de meu

peito se abriu em

cravos

em três movimentos

o pavimento se ruiu e

se

encantou

nas luzes da noite,

piscando ao

longo das casas

no último

lugar que

se escalaria

em minha

alma.

Em três movimentos.

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[D.R.] por Farley Rocha

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ONDE TERMINA O DIA por Mariana Mello

eu dia terminou há anos, num lugar que não me lembro exatamente

onde ficava. Só me lembro das paredes verdes, dos lençóis timbrados,

dos fios, tubos e bolsas plásticas penduradas em hastes metálicas. Me lembro do

barulho da televisão. Alguém gritava GOOOOOOOL. Me lembro do elevador do

terceiro andar, do sofá com estampa colorida, do corredor bege e do cheiro que

inundou o quarto quando abriram a caixa de esfihas para a gente comer.

Só que agora não faz diferença. O dia acabou naquele local que meu cérebro

fez questão de esquecer. Mas graças aos céus, ele não me deixou esquecer de

você. Como poderia? A gente passou tantos anos juntos, demos tantas risadas

M

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juntos, caminhamos por tantos caminhos juntos. E olha que nem era preciso fazer

tudo o que você fez por mim. E você fez mesmo assim. Ninguém mandou, ninguém

precisou. Você fez por vontade própria e eu nunca vou ser capaz de agradecer. A

menos que um dia eu consiga falar a língua do além, a menos que eu espere a

hora chegar. Aí sim eu vou poder te contar tudo o que aconteceu depois que o dia

terminou.

Você nem disse adeus, não é? Você já sabia que essa palavra significa

muito, e que no fundo, ninguém vai embora em definitivo. Poxa, tinha uma

quantidade de coisas que você sabia e que infelizmente ninguém mais vai saber.

Quisera eu conhecer os nomes de todas as bandas de rock. Quisera eu saber

inventar engenhocas como você inventava. Quisera eu ter o cuidado com as

pessoas que você tinha. Quisera eu saber contar piadas como você contava.

Mas como diz aquele imenso clichê, querer não é poder. Mas se eu pudesse,

me lembraria mais aquele lugar. Pena que na minha cabeça só ficaram alguns

fragmentos. O dia? 9 de julho. O signo do zodíaco? Câncer. A flor do jardim?

Violeta. O parque? Da saudade. O nome? Era o de um rei coração de leão. O

parentesco? Irmão da mãe, o único. É só do bendito lugar que não consigo me

lembrar. Um dia eu talvez consiga, num dia em que eu não esteja cansada demais

para cansar você. Num dia que talvez termine em outro lugar menos terrível. Num

dia que eu provavelmente irei me lembrar de onde o dia foi terminar.

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A COISA ESTRANHA HOMELESS: MUITO & POUCO por Catarina Souza y Silva

n o p r i n c í p i o m u i t o e

e n t ã o v a i f i c a n d o t u

do me

i o p r a t r á s & s e m

sentido

p o r q u e n ã o é p o u c o

& v o c ê p e r c e b e q u e é

p o u c o d e n t r o d o t a l

m u i t o

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NO MUNDO com Jorge Pereira

DESTINO Y SOLEDAD

En aquella tarde remota, nos acordamos de la primera vez que nos conocimos. Era

el año 1975, y la lluvia caía fría y leve en los árboles del campo. Cecília me besó y

desde entonces hemos estado juntos. Yo creo en la idea de que existían entre

nosotros algunos puntos que permitieron una conexión entre las almas. Pero ahora

que ella murió, resta en mí una especie de destino fragmentado. El mundo es cada

vez más enigmático.

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© Isabela D’Avila 2015 JF

UFJF

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CORRESPONDENTE Marcus Groza traduz Gabriela Clara Pignataro

SUDESTADA

Salí

a cortar los campos

llené la casa de flores

no necesito

mover las piedras

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para traer hacia mí

la montaña,

el sólo traspaso

de los cuerpos

modifica la fisonomía

del paisaje

No intento alterar

la dirección del sembrado

para cambiar la cosecha

puedo extraer

el deseo de raíz

y trasplantarlo

en la tierra que yo elija

No me es preciso

mover las piedras:

soy la montaña

compacta por fuera

líquida por dentro

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no estoy sobreviviendo

me muevo

sobre el tiempo

como el magma

potencia de fuego,

protege el cristal

hasta la ruptura

que descubra

el brillo necesario

para correr de noche

sobre el suelo ácido

del río

sin lastimarnos

La sudestada

fuè una cachetada

somos un barrio

encendiendo sus luces

para ver la tormenta

que lavará el hielo

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y la sangre

en la entrada

de nuestras casas

Salí a cruzar los campos

un coyote me comió

ahora escribe

sacudiéndose el polvo

del desierto

mientras

el vapor de la ducha

lo inunda todo,

dejo de escuchar mi forma

para ser

el anillo cayendo en el volcán,

mi perro ladrándole

a las noticias en la radio.

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Sudestada

saí

a cortar os campos

enchi a casa de flores

não necessito

mover as pedras

para trazer até mim

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a montanha

o simples transpassar

dos corpos

já modifica a fisionomia

da paisagem

Não pretendo alterar

a direção da semeadura

para mudar a colheita

posso extrair

o desejo de raíz

e transplantá-lo

para uma terra

da minha escolha

não preciso

mover as pedras:

sou a montanha

compacta por fora

líquida por dentro

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não estou sobrevivendo

me movo

sobre o tempo

como o magma

potência de fogo

protege o cristal

até a ruptura

que descobre

o brilho necessário

para correr de noite

sobre o solo ácido

do rio

sem nos ferirmos

A sudestada

foi uma bofetada

somos um bairro

acendendo suas luzes

para ver a tormenta

que lavará o gelo

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e o sangue

na entrada

de nossas casas

saí a cruzar os campos

um coiote me comeu

agora escreve

sacudindo a poeira

do deserto

enquanto

o vapor do banho

o inunda todo

deixo de escutar minha forma

para ser

o anel caindo no vulcão

meu cachorro latindo

para as notícias do rádio

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© Isabela D’Avila 2015 JF

MORRO DO IMPERADOR (visão do São Mateus)

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POEMA O AMOR FAZ DA GENTE UM ESCRAVO DE UGANDA A SERVIÇO DE IDI AMIN DIEGO MORAES

O silêncio da paz está no seu peito

Quando deito minha cabeça nele de madrugada

Quando deito de crimes que cometi pela manhã

Defendendo estelionatários no fórum de São Paulo

Só Franz Kafka sabe o quanto é doloroso ser advogado

Nesta cidade empestada de psicopatas

Nesta metrópole que se mata por 1 real

Te vejo nua

Resplandecente

Lendo os poemas daquele búlgaro logo pela manhã

Tomo banho

Visto meu terno cheio de sangue

Você diz “passa na farmácia e compra pílulas novas. Minha menstruação atrasou.

Você precisa gozar fora esse mês. Um bebê agora foderia tudo”

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Encho minha bolsa com processos pesados

Como o do maníaco que matou 27 médicos do SUS

Por vingança

Por não terem atendido seu filho com asma numa tarde chuvosa de domingo

Você pisca da cozinha

Manda beijos

Pede que pegue sua mãe no salão de beleza

E leve para casa da sua tia

Só deus sabe o quanto odeio sua mãe

Relevo

Passo a terceira marcha no meu Honda Civic

Ignoro as besteiras que ela fala com as unhas pintadas de vermelho e a cabeça

cheia de bobes imitando dignamente a dona Florinda

Canto mentalmente Belchior enquanto sua mãe não para de falar num casamento

chique

Poderia chutá-la agora mesmo do carro, mas estragaria tudo

Não nego as coisas que minha mulher pede

O amor faz da gente um escravo de Uganda

A serviço de Idi Amin.

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SAÍDA ORGANISMO NOTÍVAGO por Rodrigo Rocha e Mário José dos Santos

heguei ao curso de Filosofia da universidade por caminhos tortuosos;

depois de mil voltas, cheguei. Logo na entrada, já em algumas

conversas prévias, fiquei sabendo que deveria ir procurar saber sobre o

professor que agora vos apresento como motivo destas passagens. Mário José dos

Santos é uma figura inenarrável. Simples e ao mesmo tempo um complexo de

atitudes, gestos, palavras, movimentos, que não poderíamos por agora fazer passar

de um breve esboço, como se diz pelos corredores do andar: “Mario é um amor de

pessoa”. Exímio contador de causos, pescador de grandes feitos, que pode a

qualquer momento surpreendê-lo com uma citação pitagórica tão viva quanto o

C

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enlace das peripécias do anzol, e que, como todo grande sujeito, transita entre o

popular e o erudito sem que cause outras impressões que não sejam exatamente as

impressões de uma inteligência sonora e sempre concatenada.

Pois bem, cheguei e não sabia como fazê-lo sem atropelar os bois, como

chegar a sua sala junto aos poleiros das corujas. Fazia lá uma disciplina com ele,

mas escutava que o grande lance era mesmo conhecer sua sala, bater um papo

diretamente, entre os intervalos, tomar um café, ouvi-lo de maneira mais

descontraída. Daí, um belo dia distribuiu para nós, alunos, uma cópia de um dos

textos que havia confeccionado mais recentemente, quando então veio à ideia,

mastigando por duas ou três semanas, o desenho do seguinte plano: escrever

diálogos com seus textos de interlocução. O objetivo era devolvê-los para que

pudéssemos ler e revisar, contando com sua famosa receptividade.

Numa troca de horário, na espreita, entreguei o escrito. E me surpreendi,

pois, no final de semana seguinte, Mário bateu em meu ombro, no meio de uma

reunião, dizendo que já estava com o texto corrigido e pontuado:

— Passa lá depois que seu texto já está na minha sala — em tom suave,

inconfundivelmente tranquilo, me encorajando, enfim, a chegar mais perto.

Fui e, de lá pra cá, afinei estes diálogos textuais mais e mais, descobrindo

um autor honesto, de maneira que pudesse promover as variações filosofantes para

os temas que trata tão particularmente, finalizando um plano feliz. O objetivo,

desde o início, era expandir as conversas para apontamentos criativos. Inclusive,

várias vezes me li e reli, confrontei ideias, retomei e talhei. Espero que o brilho de

todo este processo de aproximação, que envolveu tanto a leitura dos textos quanto

esta agradabilíssima amizade, atinja seus (re)cantos.

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FILOSOFIA E ESTÓRIA por Mário José dos Santos

Como é salutar, abrir os olhos, qualquer manhã, não importa se repleta de sol ou

nublada e lembrar-se de um sonho bom ou da real possibilidade de retomar os

projetos de vida ensejados. Como é reconfortante esse borbulhar da vida interior,

rasgando os diques das dificuldades e dos desafios inerentes à condição humana. É

preciso vibrar para poder viver. Essa experiência, viver, quando elevada ao nível da

consciência, é, sem dúvida, uma das mais complexas. Há aqueles que confundem

dificuldades reais com impossibilidades imaginárias. Onde buscar e como renovar,

então, as forças imprescindíveis para sustentar-se frente aos desafios que o viver

impõe de forma inevitável? Não há como fugir à responsabilidade de ser livre e ter

que escolher entre entregar os pontos ou sacudir o medo e recontar os degraus de

uma conquista árida que ainda não terminou. Fato é que viver bem não é fácil, seja

qual for a circunstância que nos é dada. O sol está para o corpo, como o Bem está

para a vida interior. Mas, viver bem é mais difícil do que bronzear o corpo. Faz

parte das minhas reminiscências uma estória de duas moscas que sobrevoavam, no

curral de uma fazenda, uma lata de leite e, por descuido, ali caíram. As duas

iniciaram uma luta desesperada pela sobrevivência. Nadam, batem as asinhas

frágeis o quanto podem. Nadam e… nada. Estavam ambas, no entender de suas

minúsculas inteligências, fadadas à morte iminente. Uma delas, bem pessimista,

como sói acontecer entre seres humanos tão diferentes, declara: é o fim, não há

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mais o que fazer. A outra, movida ainda à esperança (combustível cada vez mais

raro), mais confiante, otimista, acreditando na possibilidade de sobreviver, bate

com mais intensidade as asas. Essa persistência foi premiada. De tanto bater as

asas contra o leite gordo, formou-se uma consistente bolinha de manteiga.

Equilibrou-se sobre ela, secou as asinhas cansadas, deitou por alguns segundos os

olhos consternados sobre a amiga semimorta e partiu para a vida reconquistada. A

estória é simples, mas seu ensinamento é profundo e denso de significado. Tem

muito a ver com a postura que assumimos diante das provações e tropeços que

perfilam de forma inexorável a existência humana. É inegável o quadro de

fragilidade, de impotência e de pequenez a que estamos submetidos. Não há como

crescer, como realizar-se e manter-se num nível razoável de serenidade sem as

necessárias provisões e providências. Pensa-se com avareza, fala-se em profusão e

decide-se com medo. A falação, o mais das vezes, esconde o vazio das próprias

convicções. A filosofia, nessa oportunidade, nos remete a um campo mais seguro.

Ela gosta de falar sobre o que é e não sobre as aparências e o que parece ser. Quer

dizer. É preciso ver bem. Com clareza. É essa a nossa realidade? Confortável ou

incômoda, no momento, ela terá um desfecho que depende em tudo da ousadia de

continuar batendo as asas da confiança e da coragem. Vir à tona ou submergir no

leite da problemática existencial requer atitudes sábias e estas só acontecem nos

momentos de sadia reflexão. Muitas pessoas estão ficando cada vez mais

intranqüilas, temerosas e agressivas. Abandonaram a visão histórica, progressiva e

adotaram como norma de vida o fatual, o efêmero e o passageiro. Vejam como se

pode recarregar um espírito combalido. “Há homens que lutam por um dia e são

bons; há outros que lutam por um ano e são melhores; há aqueles que lutam

muitos anos e são muito bons e há homens que lutam toda uma vida. Só esses

últimos são imprescindíveis”. A filosofia adverte: não basta decorar e repetir um

pensamento desse quilate. É urgente vivê-lo.

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ENTRE DUAS MOSQUINHAS CAÍDAS NA LATA DE LEITE por Rodrigo Rocha

Dia desses tive o prazer de me encontrar com um daqueles textos que, na

raridade da sua clareza, convida para que possamos refletir filosoficamente. Recolhi

do texto um sentido que, no ressoar dessas minhas palavras, instigadas pelas

outras, faço desdobrar-se; o autor, professor Mario José dos Santos1, traçara um

ponto de contato entre “Filosofia e Estória”, titulo do seu artigo. A proposta,

cumprida singularmente, conta uma fabulosa passagem entre duas mosquinhas,

que ao encontrar-se com uma situação adversa, reagem de maneiras bem

diferentes, à dificuldade encontrada. Uma delas, pelo melhor saber e coragem,

enquanto a outra, lamuriosa, entrega-se pelo caminho. A estória resume, no fundo,

uma sabedoria infinita, que diz: maior é aquele que livre pode escolher a vida, com

todo vigor e determinação, para sobrevoar acima dos rasteiros ramos secos da

planície do deserto, ligeiro.

No âmago da cena criada, a escolha, é o ponto de fuga para nós, uma

possibilidade do prometido para esta reflexão. A filosofia, na medida em que vem

nos dizer sobre a condição de ser para liberdade, coloca a escolha, como ponto

determinante em qualquer uma das ações que empregamos no mundo. É preciso

escolher, e na escolha de cada um, vai à impressão daquilo que se é. E mais, na

ação, o Eu, se transforma, e transforma igualmente seu redor. Portanto, a inércia

dos corpos, das atitudes, da não presença, se esteriliza em uma incapacidade de

transformação. Transformação que acompanha o ritmo da própria vida. O

Movimento que leva-me cair, leva-me também a levantar, e incentiva-me no

1 SANTOS, Mario José dos, Filosofia e estória, Texto retirado em: http://www.ufjf.br/filosofia/complementos/artigos-2/filosofia-e-estoria/ 22 de abril de 2015.

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prosseguir. A beleza desta harmonia está em uma dinâmica intrínseca deste

complexo que chamamos ser humano.

Agora, sejamos sinceros, o ser humano comporta mazelas terríveis, que na

doença se intensificam até assemelhar-se a própria morte, que é a última e

finalíssima parada da sua trilha, até antes mesmo da hora marcada. Inventor

genioso de escapes poderá tentar a distância de si mesmo, criando distorções para

seu crescimento que serão muito impertinentes. Como coloca o professor, somos

capazes de confundir “dificuldades reais com impossibilidades imaginárias”. Isto

significa que a dissimulação acaba por criar inversões de valores que colocam

pequenos pesos no altar de adoração do não querer, e converte todo potencial de

superação no mínimo, relevando como principal motivo para seu definhar, barreiras

incontornáveis e intransponíveis, feitas contraditoriamente da raspa de seu espirito,

que leva a não mais “bater as asinhas, com leite pelo nariz”.

Ficam pelo caminho, mesmo os gigantes, que, só não podem ser, porque a

imagem distorcida que criam de si mesmos não comporta pequenas atitudes que

devem tomar na ocorrência dos momentos. Muitas são as mentes sobrecarregadas

de prometidas horas de um segundo tempo, que saltam das suas mãos

eternamente, e ficam transtornadas, e se cansam de tentar. Urge o “tornar-se o que

se é”, passam os fracos, seguem os destemidos. Mas não nos enganemos, nem

sempre estamos aptos para dizer quem está ou não contaminado, justo porque a

natureza desta doença pode tomar as mais variadas formas, tornando mais

complicado o diagnóstico de cada caso. É como no poema de Paulo Henriques

Brito: “Há doenças que são mais que doenças,/ que não apenas são à vida infensas/

como oferecem algumas recompensas/ que tornam mais urgente e mais difícil/ o já

por vezes inviável ofício/ de habitar o íngreme edifício.”2

2 BRITO, Paulo Henriques, Tarde, Companhia das letras, 2007.

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© Isabela D’Avila 2015 JF

MORRO DO IMPERADOR (visão do São Mateus)

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QUEM ESTÁ

FARLEY ROCHA (Espera Feliz, 1982) é autor de Mariposas ao Redor (2011, formato

bookblog) e colunista do Portal Espera Feliz (www.portalesperafeliz.com.br).

MARIANA MELLO (s.n., 1991) é, além de escritora, blogueira e tradutora. Graduada

em Jornalismo e atualmente estuda tradução na Universidade Federal de Juiz de

Fora. Assina como M.M Drack..

DIEGO MORAES (Manaus, 1982) é um escritor brasileiro. Publicou os livros A

fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado

dando ré num trator (2013), ambos pela editora Barteblee, e Um bar fecha dentro da

gente (2015), livro de poesias publicado pela Douda Correria, de Lisboa.

MARIANA BASÍLIO (Bauru, 1989) é pedagoga, mestre em Educação e poeta.

Autora do livro-poção Nepente (Giostri Editora), escreve atualmente a segunda

obra, sombras & luzes – dedicada ao lusitanismo surreal de Herberto Helder. Tem

poemas publicados em revistas e fanzines do Brasil e de Portugal, como Efémera,

Inefável, Conexão Literatura, Limbo, Subversa, Raimundo, Garupa e mallarmargens.

AËLA LABBÉ (Brittany, 1986) é francesa, dançarina e fotógrafa. A partir de um

acidente ficou impossibilitada de dançar, o que a levou a se envolver com

fotografia. A partir daí criou diferentes mundos registrando-os em diversos abismos

humanos, abismos imagéticos em que a artista define como “pedaços de memória”.

Filosofia da RODRIGO ROCHA (Juiz de Fora, 1990) é aluno do curso de

Universidade Federal de Juiz de Fora e do Conservatório Estadual de Música

Haidèe França Americano. Atualmente trabalha na conclusão de seu primeiro livro

de poemas. É colunista do site desta revista.

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JØRGE PEREIRA (Recife, 1994), escritor pernambucano, colabora com a Revista

SubVersa de literatura luso-brasileira (Portugal) e com a Revista Flaubert (Brasil).

Publicou contos e poemas em coletâneas de autores ibero-americanos no México e

na Espanha, e colaborou com curadoria artística para o “Escrever nas Margens em

Portugal” e com o “Espacio cultural Violeta”, no Chile. Em 2015, lançará seu

primeiro livro de poesia bilíngue, L’ànima de les coses, pela editora Sucesso.

MÁRIO JOSÉ DOS SANTOS (s.n., s.d.) possui graduação em Filosofia pela

Faculdade D. Bosco de Filosofia Ciências e Letras (1973) e mestrado em Filosofia,

pela Universidade Federal de Juiz de Fora(1988). Atualmente é professor adjunto da

Universidade Federal de Juiz de Fora, atuando, principalmente nos temas de

antropologia e subjetividade.

MARKUS GROZA (s.n., s.d.) é palavrero, professor e devoto do céu violado. Autor

dos livros Do Buraco à Poça (Patuá, 2013) e Sossego Abutre (Patuá, 2015). Graduado

em Filosofia (USP), mestre em Artes (UNESP), atualmente é doutorando em Artes

Cênicas (UNIRIO) e coeditor da Revista Abate (www.revistasauva.com.br).

GABRIELA CLARA PIGNATARO (Buenos Aires, 1985) escreve, é atriz e fotógrafa.

Publicou La última oleada se llevó todo menos esto (Editorial Subpoesía 2013), Eso

que no se parte es una respuesta (Difusión Alterna 2014), Muta (Nulu Bonsai 2014).

Atualmente, trabalha no projeto La belleza random de los días de investigação

fotográfica analógica e em seu primeiro romance. Escreve resenhas, poemas e

ensaios em lasalvajelucidez.tumblr.com e principalmente observa e respira.

ISABELA D’ÁVILA nasceu em 1975 na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente vive

em Juiz de Fora e é fotógrafa parceira da Casa Empiria.

CATARINA SOUZA Y SILVA (s.n., 1983) é incompleta.

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QUEM SÃO

PROJETO EDITORIAL Casa Empiria CAPA Mundo Novo, por Isabela D’Avila EDIÇÃO Anelise Freitas REVISÃO Otávio Campos CONSELHO CONSULTIVO

ANDERSON PIRES DA SILVA (UFJF / Brasil) ANDRÉ CAPILÉ (PUC Rio / Brasil) DANILO LOVISI (Université Paris Diderot - Paris 7 / França)

LAURA ASSIS (PUC Rio / Brasil) OTÁVIO CAMPOS (UFJF / Brasil) PEDRO CRAVEIRO (Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Portugal)

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Casa ► Empiria ATELIÊ DE CONTEÚDO EM PRODUÇÃO EDITORIAL

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