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Tempos Gerais - Revista de Cincias Sociais e Histria - UFSJNmero #6 - 2014 - ISSN: 1516-8727

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CIRCULARIDADE CULTURAL E MODERNIZAO DOS HBITOS: O MODELO CLUBSTICO DO ATHLETIC CLUB, EM SO JOO DEL-REI/MG (1909-1925)

Euclides de Freitas Couto1

Sabrina Alves da Silva2

RESUMOO artigo investiga a sociognese e consolidao do modelo clubstico de futebol na cidade de So Joo del-Rei entre os anos de 1909 e 1925, por meio da anlise da insero social do Athletic Club. O exame de tal problemtica partiu da percepo das influncias da cultura urbana carioca na conformao das prticas sociais e do habitus esportivo nas cidades mineiras. Sob o prisma da circularidade dos bens simblicos, o esporte analisado no rol das transformaes no modo de vida dessas cidades, buscando-se compreender a configurao do campo esportivo no Brasil ao longo das primeiras dcadas do sculo XX. O corpus documental reuniu documentos oficiais como as atas de reunies do Athletic Club e tambm os peridicos locais.Palavras-chave: Futebol. Modernidade. So Joo del-Rei. Athletic Club.

ABSTRATThis paper investigates the sociogenesis and consolidation of the soccer club model in the city of So Joo del-Rei between 1909 and 1925 through the analysis of the social insertion of the Athletic Club. This object of investigation was chosen based on the perception of the influences of Rio de Janeiros urban culture on the formation of social practices and the sports habitus in cities and towns in the state of Minas Gerais. The impact of soccer on the way of life of these cities was analyzed from the viewpoint of the circulation of symbolic goods in an attempt to understand the configuration of the sports field in Brazil in the early 20th century. The documental corpus is comprised of official documents such as Athletic Club meeting minutes and local newspapers.Keywords: Soccer. Modernity. So Joo del-Rei. Athletic Club.

1. Introduo

A nova historiografia que se desenvolve em torno dos estudos sobre o futebol tem frequentemente associado a ascenso do esporte no Pas, no incio do sculo XX, ao paradigma da modernidade brasileira, especialmente por suas representaes relacionadas modernizao das instituies e incorporao dos hbitos europeus pelas elites citadinas. As metamorfoses observadas tanto no cenrio poltico das cidades, quanto nas prticas culturais assimiladas pela sociedade deram o tom dos novos tempos na jovem repblica brasileira (SEVCENKO, 1998). Na medida em que ganhava corpo, o aparato burocrtico republicano e as cidades prosperavam economicamente, sofisticavam-se tambm as formas de associao voluntria, algumas delas

1 Doutor em Histria. Professor adjunto do Departamento de Cincias Sociais (UFSJ). 2 Mestranda em Histria (UFSJ)..


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utilizadas como instrumento de controle social pelas elites urbanas. Nesse sentido, boa parte das anlises realizadas em torno do processo do desenvolvimento das prticas futebolsticas em diversas cidades brasileiras (MELO, 2010; PEREIRA, 2000; SANTOS NETO, 2002; SANTOS, 2010) revela que as primeiras associaes voluntrias emergentes em torno do esporte espelharam seu modelo organizativo nos padres do clubismo ingls. Se essa orientao indica, por um lado, o carter elitista da introduo do futebol no Brasil, por outro, evidencia as estratgias de controle elaboradas pelas classes dominantes no sentido de restringir as competies de futebol a um crculo fechado de participantes.

Tais questes se constituram em problemticas centrais de inmeras pesquisas que se dedicaram a investigar a dinmica da filiao social s prticas esportivas de grandes cidades brasileiras ao longo das primeiras dcadas do sculo XX. Analisaram-se diversas prticas esportivas e corporais que encamparam uma enorme gama de abordagens cujos resultados possibilitaram a ampliao do campo de entendimento e paralelamente o (re)descobrimento de novas perspectivas e possibilidades analticas acerca dos modos de vida das cidades brasileiras. Inmeros so os exemplos que podem ser mencionados, mas tendo em vista o eixo temtico deste artigo, torna-se relevante destacar as contribuies de Ricardo Lucena (2001) e Victor Melo (2010). Em comum esses estudiosos avaliam a difuso das prticas esportivas no bojo das transformaes socioculturais experimentadas no Rio de Janeiro, relacionando-as a um discurso modernizador que se inspirava nas utopias cosmopolitas incorporadas pelas elites locais. O ponto convergente entre o desenho terico dessas pesquisas aponta para uma compreenso global que nos indica que a construo dos cenrios fsico e cultural carioca dialogava diretamente com os aspectos socioculturais da modernidade europeia.

Todavia, apesar do afloramento de uma diversidade de estudos centrados nas discusses em torno da cultura urbana carioca (LUCENA, 2001; MELO, 2010; PEREIRA, 2000), em se tratando de cidades do interior do Pas, a exemplo da cidade mineira de So Joo del-Rei, so escassas as pesquisas que incorporam a discusso do futebol no complexo conjunto de transformaes socioculturais que influenciaram o modus vivendi das cidades brasileiras no incio do sculo passado.

Ainda nos movendo nas condies scio-histricas do surgimento do esporte, a constituio do fenmeno esportivo como elemento basilar na formao do escopo social moderno ganhou destaque em estudos que enfocam o futebol nas cidades do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e So Paulo (COUTO, 2003; PEREIRA, 2000; SANTOS NETO; 2002), situando-os no contexto de transformaes que se desenvolveram no perodo denominado de belle poque brasileira (SEVCENKO, 1998). Em comum, os estudos mencionados evidenciam que o perodo embrionrio do futebol nos principais centros do Pas obedece a uma lgica de modernizao elitista, na medida em que sua disseminao se deu primordialmente pelos segmentos mais abastados da populao, produzindo uma nova configurao na qual vo se produzindo os controles das relaes inter-humanas, bem como o autocontrole dos indivduos. Nos seus primeiros anos no Brasil, o futebol, difundido tanto pelos clubes quanto pelos colgios privados, consistia em uma prtica elegante e cosmopolita restrita a uma pequena parcela da populao.


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No entanto, esse cenrio se alterou de forma significativa, uma vez que a prpria dinmica das competies organizadas entre os clubes da elite favoreceu a entrada de jogadores dos segmentos menos favorecidos das cidades. O alargamento da base social do futebol contou tambm com a participao da imprensa e do rdio, que desempenharam papel fundamental na fomentao dos vnculos clubsticos e da associao passional identidade nacional por meio da seleo brasileira (COUTO, 2014). Na dcada de 1930, o futebol j era considerado o esporte mais popular em cidades como o Rio de Janeiro, So Paulo e Belo Horizonte. As competies, integradas por clubes formados por jogadores dos crculos elitizados e tambm dos segmentos populares, atraam pblicos cada vez mais significativos que impulsionaram o florescimento das rivalidades locais e regionais, que at a atualidade permanecem no universo simblico do futebol brasileiro.

Partindo dessa perspectiva, este artigo analisa a sociognese e a consolidao do futebol na cidade de So Joo del-Rei entre os anos de 1909 e 1925, buscando perceber as influncias da cultura urbana carioca na conformao das prticas sociais e do habitus esportivo nas cidades mineiras. Sob esse prisma, a investigao das prticas esportivas se insere no rol das transformaes no modo de vida dessas cidades, processo que, por sua vez, desemboca na configurao do campo esportivo3 no Brasil ao longo das primeiras dcadas do sculo XX. As pesquisas supracitadas demonstram que os ares modernos portadores do impulso esportivo encontraram na capital da Repblica um solo frtil para sua disseminao, na medida em que as elites locais buscavam incorporar prticas sociais valorizadas por uma economia simblica de matiz europeia. Sob a tica elisiana, os novos modismos incorporados pelos cariocas so materializados em novos habitus sociais e no desenvolvimento de um amplo processo de individualizao e refinamento das aes que se traduz, dentre outros aspectos, na esportivizao dos passatempos (LUCENA, 2001).

Nas dcadas de 1910/1920 a rejeio e discriminao de indivduos pertencentes s classes populares no futebol carioca passou a ser questionada pelas atuaes destacadas do Bangu (1906/1907) e das conquistas do Vasco em 1923/1924, agremiaes que possuam em seus quadros jogadores majoritariamente negros e mestios (SILVA, 2006, p .29). Em um processo irreversvel, consolidado pela espetacularizao e profissionalizao do futebol na dcada de 1930, esses jogadores foram paulatinamente incorporados aos clubes tradicionais da cidade. Ademais, a ascenso de uma nova configurao da identidade nacional, articulada e disseminada aos quatro ventos pela estrutura varguista, possibilitou que o futebol fosse incorporado pelas massas trabalhadoras como smbolo principal da integrao dos povos da nova nao brasileira.

Nesse sentido, percorre-se a hiptese de que a fundao do primeiro clube de futebol de So Joo del-Rei, o Athletico Club, no ano de 1909, bem como o desenvolvimento das prticas esportivas sanjoanenses nos anos subsequentes, pode revelar a estreita ligao do 3 O conceito de campo, amplamente difundido na obra do socilogo Pierre Bourdieu, em linhas gerais, pode ser

definido como um setor especfico do universo social, historicamente produzido, no qual ocorre a definio de objetos especficos de disputas, por meio de uma lgica prpria de funcionamento relativamente autnoma de outros campos sociais. Especificamente em relao ao campo esportivo, possvel afirmar que a sua constituio engendra uma variada gama de habitus, prticas e entidades que o organizam e que definem especificidades s prticas atlticas (BOURDIEU, 1983, 1990).


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universo simblico das duas cidades materializada pela aquisio de prticas esportivas pelos moradores da cidade. O frequente contato da juventude so-joanense com o Rio de Janeiro, impulsionado especialmente pela necessidade da escolarizao prtica incorporada pelas elites brasileiras no incio do sculo XX pode ter contribudo decisivamente para que a pequena elite da cidade mineira incorporasse os modismos recm-chegados da Europa e, consequentemente, experimentasse o desenvolvimento de uma nova configurao das relaes sociais. Nota-se que o pertencimento ao ciclo de amizades que envolvia os jogadores e torcedores dos clubes de futebol vinculava-se a uma rede de sociabilidades que se estendia a diferentes espaos na cidade: campos de futebol, teatros, sedes sociais dos clubes. Nesse sentido, o futebol e o conjunto de atividades sociais que o envolviam se estabeleciam como smbolos da high life sanjoanense. Os novos padres de comportamento corporal e as inusitadas formas de utilizao dos espaos pblicos permitiram que esse esporte se integrasse ao rol de atividades que deram novos contornos ao cotidiano da cidade no incio do sculo XX.

Estudos acadmicos, materiais produzidos por cronistas locais que tratam do futebol e os peridicos que circulavam em So Joo del-Rei no incio do sculo XX se constituram importantes fontes para esta pesquisa. Destacam-se, entre eles, os jornais A Tribuna e Tem Tem. Alm desses peridicos, foram analisadas atas das reunies dos associados do Athletic Club entre os anos de 1909 e 1925. Apesar de no se encontrarem disponveis em sua sequncia completa, foram peas determinantes para a compreenso da insero do futebol no cotidiano dos moradores da cidade. Na anlise desses documentos, buscou-se focar, simultaneamente, o olhar para as divergncias entre os associados, seus interesses, as representaes do poder e para as demais dimenses do incipiente associativismo clubista.

2. So Joo del-Rei no contexto da modernidade brasileira

A primeira ata do Athletico Club4 foi lavrada em junho de 1909, perodo no qual So Joo del-Rei era uma das maiores cidades de Minas Gerais, sob a rea de influncia do Rio de Janeiro, a ento capital da Repblica. A cidade vivia uma efervescente vida metropolitana e um grande mercado consumidor acessvel aos sanjoanenses pelos trilhos da estrada de ferro Oeste de Minas. A Princesa de Minas, ttulo que a cidade ostentava no incio do sculo passado, possua uma estrutura moderna para a poca, biblioteca pblica, gua canalizada, iluminao eltrica, servio de telgrafo, a ferrovia e o teatro municipal (BARROS, 2010, p. 6). A criao do Athletic pode ser considerada um ato de sintonia dos sanjoanenses com os ventos modernos que sopravam da Capital Federal, conforme evidencia as palavras de Ovidio Mouro, um importante cronista local:

4 Em 1913, o nome foi modificado para Athletic Club, quando seus associados vislumbravam que o clube poderia abrigar outras modalidades esportivas, conforme sinaliza o registro na reunio da diretoria na Acta da 1 Sesso Extraordinria Inaugural do Athletic Club realizada no dia 10 de agosto de 1913, p. 1.


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Felizmente o actual progresso em S. Joo dEl-Rey, tem se ampliado bastante. Aumentaram-se as bellas diverses, appareceram novos e magnificos jornaes, fabricas clubs, associaes... religiosas e outras cousas mais, atenuando-se visivelmente o abominavel jogo que a maior desgraa, que andava em profuso, na nossa cidade. Pelos derradeiros adiantamentos locaes ledamente louvo ao conspicuo e solicito Presidente da Camara, que, embora arduamente, tem aplicado todos os esforos para alindar esta querida terra que tradicionalmente, chamada Princeza de Minas. (Ephoca, TEM TEM, 15 set. 1907, p. 2)

Considerados como atividade viciosa praticada por homens desocupados, os jogos de cartas eram rechaados pela imprensa local, porta-voz oficial das instncias de poder. Em contraposio, os sports, recm-chegados ao Pas, assumiam o significado de prtica refinada e de funo higinica, por esse motivo, merecia destaque e elogios dos cronistas:

Como noticiamos, em nosso passado numero, realisou o Athletic Club uma festa, no seu ground em Matosinhos, comemorativa do seu segundo anno de existncia. Temos como causa de nosso dever animar e prestar todo apoio possvel sociedades que tenham por escopo o desenvolvimento physico da mocidade, sabedores como somos dos resultados que adviro do cultivo dos sports: fortalece o organismo e cria uma raa de fortes, de cidados uteis a patria e sociedade. [...] (A TRIBUNA, n. 200, 29 ago. 1915, s.p.)

Sintonizado ao discurso higienista, que ganhava corpo entre a intelectualidade brasileira, o carter utilitarista atribudo aos sports alimentava a criao de associaes esportivas nas principais cidades do Pas. No Rio de Janeiro, o historiador Leonardo Pereira (2000), ao investigar os peridicos circulantes na poca, encontrou indcios de que o futebol assumiu a primazia entre as diversas modalidades que despontavam na cidade. Para boa parte da intelectualidade carioca, ao reunir atributos como esprito de disciplina, deciso iniciativa, solidariedade e abnegao, o futebol, para alm do desenvolvimento fsico dos corpos, aguava as capacidades intelectuais dos seus praticantes. Tais caractersticas que credenciavam o futebol como o mais salutar dos sports, tambm legitimavam o apoio da imprensa e dos poderes pblicos, indispensveis ao processo da sua difuso (PEREIRA, 2000, p. 52).

No bojo desses acontecimentos, a estreita ligao do universo simblico de So Joo del-Rei e do Rio de Janeiro foi materializada na aquisio de prticas cosmopolitas e requintadas pelos sanjoanenses, entre as quais o futebol assumiu grande destaque. Em virtude da necessidade de escolarizao, prtica assimilada pela elite mineira, a juventude da cidade estava em frequente contato com o Rio de Janeiro. A circularidade de bens culturais promovida pelos intensos contatos entre mineiros e cariocas contribuiu para que a elite local incorporasse os modismos recm-chegados da Europa, que desembarcavam no porto carioca. Segundo o cronista Astrogildo Assis (1985), em 1907, quando estudantes sanjoanenses retornaram do Rio de Janeiro trouxeram para a cidade as primeiras bolas feitas de pneu, quando tambm foram organizadas as primeiras partidas na cidade.

O exemplo dessa sintonia entre as cidades pode ser percebido na histria de vida de Joaquim Martins Ferreira, sanjoanense, goleiro da seleo brasileira de futebol de 1916. Ao


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iniciar seus estudos de medicina no Rio de Janeiro, ingressou no Amrica Futebol Clube. Aps sua formatura, em 1916, retornou a So Joo del-Rei, assumindo o gol do Athletic e, em seguida, a presidncia do clube (GUILHERME, 2006).

Outros exemplos da circularidade cultural entre as cidades podem ser observados tanto na anlise dos peridicos quanto na leitura das atas oficiais do Athletic. possvel notar no s nas crnicas veiculadas pelo peridico A Tribuna, mas tambm nas atas do Athletic a incrvel admirao da elite sanjoanense pelo Rio de Janeiro. Exemplo ilustrativo dessa admirao foi uma notcia veiculada pelo jornal A Tribuna: atribuindo matria a qualidade de um grande furo de reportagem, o peridico noticiava o fato de que j se conhecia na cidade do Rio de Janeiro o lugar onde seria erguido o Cristo Redentor,5 cuja solenidade de inaugurao contaria com discursos de autoridades e espetculo promovido por uma banda de msica (Cf. A TRIBUNA, 10 out. 1915, s.p.).

Outro indcio da circularidade de informaes e bens simblicos entre as duas cidades pode ser percebido por meio da anlise do conjunto de atas das reunies dos associados do Athletic Club: aps a realizao das eleies para a diretoria do clube sanjoanense, era um fato recorrente o envio de ofcios aos clubes cariocas, especialmente ao Fluminense e ao Botafogo, cujos contedos informavam as alteraes na estrutura administrativa do clube. Alm de revelar o desejo de sintonia com o modelo clubstico carioca, essa estratgia revela a necessidade de autoafirmao dos sanjoanenses no cenrio esportivo regional, uma vez que os clubes cariocas, alm de fornecerem o modelo de organizao a ser seguido, foram, por diversas vezes, convidados a jogar na cidade de So Joo del-Rei. Esses jogos despertavam grande interesse dos moradores e se constituam como um grande evento social na cidade, pois alm da atividade esportiva as famlias, dirigentes e jogadores se reuniam para almoos, jantares e bailes (Athletic Club, LIVRO DE ACTAS n. 3, 22 jul. 1918, p. 12).

O repertrio de atividades sociais que envolvia um jogo de futebol revela os significados e sentidos que a prtica esportiva despertava nos agentes, como pode ser percebido na descrio de uma das excurses da embaixada do Athletic realizada na cidade de Barbacena:

[...] usou da palavra o 1 vice presidente Snr. Jose Antonio de Carvalho, chefe da embaixada e comunicou ter dado conta da misso a ele confiada, dizendo ter corrido na melhor ordem possvel a visita a Barbacena, que a mesma tomou em Campolido os automoveis postos a sua disposio pela directoria do Olympic e que chegara a Barbacena foi recebido pela referida directoria do club amigo que o hospedou no Grande Hotel; depois de pequeno descanso foi servido lauto almoo, findo o qual sempre o acompanhava dos membros da mesma aggremiao, visitou os principais pontos da cidade; s 16 horas teve inicio o encontro dos dois clubs, cabendo ao nosso a victoria pelo score de 2X1. Terminado o match s 18 horas, voltou a Embaixada ao Grande Hotel, onde lhe foi servido um opiparo banquete no qual os jogadores olympicanos reinando a maior cordialidade; orou o presidente do Olympic pondo em destaque com palavras elogiosas [...] o team do Athletic, enaltecendo suas qualidades desportivas, techinicas e a disciplina com que disputou o match [...]. (Athletic Club, LIVRO DE ACTAS n. 3, 15 set. 1918, p. 64)

5 Embora os boatos em torno da inaugurao da esttua do Cristo Redentor se remontassem ano de 1915, sua construo s se iniciou em 1922 e, somente em 1931, a esttua foi inaugurada.


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A transcrio do trecho da ata de reunio dos associados do Athletic revela o clima de confraternizao e de cordialidade existente entre os participantes do encontro clubstico. Para alm de se constituir como um evento esportivo, elemento central da sociabilidade clubstica, o conjunto de eventos como os almoos, os jantares e os passeios demonstram que o futebol se delineava, desde sua introduo, como um evento social repleto de significados afetivos e sociais partilhados entre seus praticantes e demais pessoas envolvidas. luz da comunho entre a elite das cidades mineiras, o futebol ia se desenvolvendo como um esporte nobre e higienicamente til ao desenvolvimento da sociedade.

3. O futebol e seus significados na sociedade sanjoanense

Nos primeiros anos da sua introduo no Pas, o futebol era praticado quase que exclusivamente pelas elites urbanas como modismo importado, difundido tanto pelos clubes quanto pelos colgios privados (COUTO, 2003; MELO, 2010; SANTOS NETO, 2002). Sua prtica representava um aspecto da elegncia cosmopolita, restringindo-se a uma pequena parcela da populao. O ciclo de amizades que envolvia os diretores, jogadores e torcedores dos clubes de futebol estava vinculado a uma rede de sociabilidade que se estendia a outros lugares, por exemplo, redaes de peridicos, partidos polticos, clubes de teatro, clubes carnavalescos etc. Assim, o futebol e as atividades sociais relacionadas a ele podem ser considerados smbolos de distino social da elite sanjoanense, na medida em que produziam certo habitus, ou seja, um conjunto de prticas, comportamentos, maneiras de ser e agir que distinguem os grupos sociais (BOURDIEU, 1990).

No Brasil, assim como na Europa, as prticas esportivas assumiram uma dimenso considervel na vida social das cidades. Em grande parte dos ncleos urbanos, ao mesmo tempo em que as elites tentaram impor seus smbolos culturais, sob a retrica higienista que preconizava o esporte como prtica adequada s camadas populares, essas ltimas reelaboraram os significados dessa imposio. As funes moral e higinica do esporte funcionaram, simultaneamente, como vlvula de escape e facilitador da incorporao de normas sociais. O lazer e o esporte possuem, nessa tica, uma funo utilitarista, pois a tenso buscada nessas atividades agradvel e, paralelamente, quebra a rotina, produzindo espaos e tempos em que se promove o descontrole controlado, de maneira a adequar os indivduos ao controle temporal e espacial das suas emoes (ELIAS; DUNNING, 1992).

O futebol moderno surgiu na Inglaterra no auge do desenvolvimento capitalista, no final do sculo XIX. Dessa forma, sua essncia est imbricada, essencialmente, aos valores preconizados pela emergente sociedade industrial: competitividade, regras, produtividade e resultados. Os clubes, formados por agentes detentores de capital econmico, se tornaram, rapidamente, disseminadores do capital cultural da classe dominante, agregando-lhes valor perante a sociedade e incrementando mecanismos de hierarquia entre as classes sociais. Como os clubes eram dirigidos por membros das classes dominantes, compreensvel que eles formulassem estratgias para ampliar seus poderes. Tanto na Inglaterra quanto em vrias cidades brasileiras, a


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conformao de ligas e associaes, a unificao das regras e a organizao de competies so exemplos notveis da ampliao dos mecanismos de poder, j que as atividades esportivas foram espetacularizadas, atraindo maiores contingentes de pblico e alcanando maior visibilidade pela imprensa (HOBSBAWM, 1988).

Em So Joo del-Rei, a introduo do futebol assumiu representaes ambguas na imprensa local. As peladas ou brincadeiras improvisadas, que tinham sua essncia no jogo de bola, pareciam causar grandes distrbios na vida pacata dos moradores, como ilustra a denncia feita por um dos jornais locais:

Continua em franco progresso o jogo de foot-ball em plena rua, na cidade, quebrando vidros e levantando uma poeira horrvel que muito incommoda os moradores dos logares preferidos para esse sport. to grande o nosso desejo de atendermos s pessoas que nos solicitaram providencias nesse sentido, que at procuramos, pessoalmente, para esse fim, uma autoridade municipal, que nos declarou competir Camara providenciar sobre esse facto, mas sim Policia. Fallamos ao dr. Delegado de Policia desta cidade sobre o mesmo assumpto. Essa autoridade nos declarou que as providencias neste caso cabem exclusivamente Camara. Enquanto isso, senhores jogadores de foot-ball podem quebrar vontade as vidraas e levantar nuvens de poeira. Nada lhes acontecer. (Pela cidade, A TRIBUNA, n. 41, 18 out. 1914, s.p.)

Praticado de maneira improvisada no espao pblico, a novidade parecia incomodar a tranquilidade dos habitantes. Embora fosse reconhecido como um instrumento a servio da higiene fsica e moral da juventude, um hbito a ser imitado do mundo civilizado, o futebol deveria se adequar rotina e s normas da cidade, conforme indica o cronista do mesmo peridico citado anteriormente:

Foot-bal [sic], todo o mundo o sabe, uma das frmulas mais interessantes do sport. Chega ser alem disso uma necessidade para a educao physica dos nossos rapazes. Mas para isso deve ser jogado em determinados locaes e de acordo com as regras que obedece. Todos ns devemos louvar e aplaudir o desenvolvimento que nesta cidade vae tomando este til sport, o que ningum deve louvar e aplaudir o abuso que se d aqui do jogo de foot-ball em plena rua, em qualquer praa, quando h logares apropriados para este mister. Temos reclamado em vo e continuaremos a cumprir nosso dever. (Pela cidade, A TRIBUNA, n. 61, 19 nov. 1914, s.p.)

Assumindo os contornos de um modismo europeu, sintonizado aos padres fsicos dos novos tempos, uma espcie de credencial de distino para os rapazes da burguesia, o futebol logo ganhou apoio dos intelectuais e da imprensa local. O modelo clubstico, inspirado na organizao dos clubes ingleses e copiados naqueles criados no Rio de Janeiro6 se mostrou o mais adequado burguesia sanjoanense. Nesse aspecto, o Athletic Football Club, fundado em 1909, obedeceu aos mesmos princpios normativos dos clubes criados pela elite carioca: os nomes dos novos associados deveriam ser indicados previamente para sua aprovao em assembleia; os novos associados deveriam adquirir a joia e, tambm, pagar mensalidade. Essas estratgias visavam garantir no apenas a vitalidade financeira do clube, mas tambm torn-lo um espao social da distino. Os cargos da diretoria administrativa como presidente, tesoureiro, vice-presidente e 6 Na cidade do Rio de Janeiro, o modelo clubista ingls foi adotado tanto nos clubes da elite, como no Fluminense

e Botafogo, quanto nas centenas de clubes suburbanos que foram fundados nas duas primeiras dcadas do sculo XX. Sobre essa questo, ver os estudos de Leonardo Pereira (2000) e Santos (2010).


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tambm as atribuies relativas ao futebol, como captain, respeitavam os padres hierrquicos do clubismo ingls. A propsito, a prpria grafia do nome Athletic Football Club, evidencia a filiao cultural que seus associados, deliberadamente, buscavam ostentar.

A anlise da origem social dos presidentes do Athletic Football Club entre os anos de 1909 e 1925 reveladora sobre a predominncia das classes dominantes na organizao clubstica do futebol da cidade. Desde sua fundao em 1909 at 1925 foram treze presidentes: Omar Telles, capitalista; Paulo de Castro Monteiro, Funcionrio Pblico; Alceste de Freitas Coutinho, Mdico; Joaquim Martins Ferreira, Mdico (que no chegou a tomar posse, em seu lugar ficou o vice presidente Sr. Vicente Guerra, capitalista); Luiz Augusto de Lima Cirne, Chefe de Diviso da Rede; Francisco Mouro Filho, Mdico; Antnio Vieira de Castro, Advogado; Vicente Guerra, Capitalista; Jos Antnio de Carvalho, Farmacutico; Jos de Assis Sobrinho, Comerciante; Joaquim Furtado Portugal, Guarda de Livro. Em uma poca em que a escolarizao era um smbolo de distino, uma vez que grande parcela da populao era analfabeta, o Athletic contava com a elite composta por, letrados, mdicos, comerciantes, pessoas influentes que j se ocupavam posies de destaque na hierarquia social. Tanto os jogos quanto as atividades sociais, como os bailes e festas beneficentes, eram frequentados por polticos, donos de casas de comrcio, industriais, jornalistas, mdicos e advogados.

A introduo do futebol e dos esportes de uma forma geral no Brasil aconteceu em um momento cercado pela introduo de outros hbitos e costumes importados de terras europeias. A extrema valorizao dos hbitos estrangeiros pelos grupos abastados e a vinculao do esporte sade simbolizavam aspectos do desenvolvimento do mundo civilizado. Nesse sentido, os clubes se constituram em espaos de distino social, tanto por propiciarem atividades restritas como por selecionar seus associados. A venda das joias,7 a cobrana de taxas e mensalidades aos associados se constitua como uma estratgia de seleo social dos seus membros. No caso do Athletic Club, a associao ao clube s se concretizava com o pagamento obrigatrio da joia, ou seja, de um ttulo de associao. Alm do pagamento da joia, para se associar o candidato deveria ser apresentado por um associado em uma assembleia geral e ser aprovado por ela (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 3, 19 abr., 1922, p. 80; n. 3, 23, ago. 1922, p. 84). Nos anos iniciais aps sua fundao, o Athletic possua cinco modalidades de scios: a) scios-frequentadores que pagavam semestralmente a quantia de 25$000; b) scios-torcedores que pagavam semestralmente a quantia de 10$000; c. scios-frequentadores que pagavam mensalmente a quantia de 5$000; d. scios-torcedores que pagavam mensalmente a quantia de 2$000; scios honorrios e benfeitores que estavam isentos de pagamento. Se por um lado a variedade de modalidades permitia a flexibilizao do perfil econmico e pessoal do associado, j que possibilitava a participao daqueles que ambicionavam torcer e participar da vida social do clube, por outro lado garantia a filiao social dos associados. Embora o preo da joia e das mensalidades no se constitussem como o principal fator de excluso das camadas populares ao clube, uma vez que o salrio mdio de um servente das ferrovias no Pas era de 150$000,8 a indicao dos associados pelos seus 7 A joia configura-se como um ttulo de propriedade do clube, das mensalidades do Athletic com as do Fluminense

no Rio de Janeiro


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pares garantia a adeso de indivduos circunscritos a um pequeno crculo social que se fechava em torno do clubismo.

O emprego dessa estratgia visava, obviamente, selecionar a entrada de novos associados, corroborando a tese de que o modelo clubista adotado pelas elites na difuso do esporte no pas visava, em ltima instncia, ao controle social das prticas esportivas.

De igual modo, outro elemento revelador do carter elitista do Athletic Club pode ser observado na anlise dos locais onde ocorriam as reunies da diretoria. Verifica-se que no ano de 1913 algumas reunies da diretoria aconteceram do Teatro Municipal. Outros encontros, at meados do ano de 1917, realizavam-se no Pao Municipal, em um salo no segundo andar da Prefeitura Municipal (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 2, 19 de jan. 1917, p. 71). Em algumas atas omitido os locais da reunio, outras acontecem em residncias de diretores (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 3, 29 de jun. 1918, p. 12-13). A partir de julho de 1917 as reunies passaram a ser realizadas na sede social do clube. O acesso da diretoria da recm-criada agremiao esportiva a locais pblicos que simbolizavam o poder e a erudio demonstra que seus membros gozavam de amplo prestgio social. Afinados com as instncias do poder, os membros do Athletic Club sempre contaram com o apoio dos poderes locais para a realizao dos eventos esportivos e sociais.

4. Poder e prestgio: representaes do associativismo clubista no Athletic Club

Entre os anos de 1913 e 1925, as atas das reunies da diretoria do Athletic Club revelam inmeras disputas internas por prestgio e poder. Algumas reunies no aconteciam em funo do nmero insuficiente de membros. Outras, de maior importncia, realizadas para a eleio da diretoria ou para a tomada de decises de carter urgente, contavam com grande presena dos associados. Na lavragem das atas, a explicitao das acusaes e discusses, fica claro a existncia de grupos que mantiveram oposies ideolgicas em torno dos interesses do clube.

Essa oposio evidenciada principalmente quando em 16 de maro de 1917 Joaquim Martins Ferreira retorna do Rio de Janeiro. Recm-formado em medicina e ex-jogador do Amrica da Capital Federal, ao retornar a So Joo del-Rei foi recebido com festa pelos diretores do Athletic, e principalmente pelo ento presidente do clube, Sr. Alceste de Freitas Coutinho, que lana em ata uma meno de louvor ao retorno do Doutor ao clube (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 2, 16 de mar. 1917, p. 39). A leitura das atas evidencia que a cada reunio realizada pela diretoria o Dr. Joaquim passou a tomar para si responsabilidades com a vida do clube como, por exemplo, a elaborao do estatuto. Dessa forma, constituindo-se como uma nova liderana, o Dr. Joaquim passou a agregar a simpatia daqueles dirigentes descontentes com a gesto do Sr. Alceste. Na reunio realizada no dia 27 de abril de 1917, o ento presidente Alceste pediu demisso do cargo por ter o Dr. Joaquim Martins Ferreira marcado um jogo contra o Amrica do Rio de Janeiro sem o seu conhecimento.

8 Cf. BRASIL. Presidncia da Repblica. Decreto N 15.674, de 7 de setembro de - CLBR de 31.12.1922. Disponvel em: .


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As 19:30 horas o Sr. Presidente declarou aberta a sesso. O mesmo Sr. Antes da iniciao dos trabalhos, comea a expor a sua conducta na Presidencia, desde que tomou posse do cargo a convite de alguns scios; queixando-se ao mesmo tempo de ter sido convidado para vir a esta cidade o America Foot-ball Club sem que tivesse sido consultado a tal respeito, tendo havido no entanto troca de correspondncia, o Dr. Joaquim Martins Ferreira aparteando diz que esta correspondencia fora trocada particularmente. Continuando o Sr. Presidente disse que s tivera sciencia deste convite por intermedio do Sr. Vice-Presidente, declarando que achava isso uma desconsiderao com sua pessoa, e que em vista de tal facto pedia a sua demisso do cargo que at ento ocupava (Athletic Club, LIVRO DE ACTAS n. 2, 27 de abr. de 1917, p. 83).

Em solidariedade ao Sr. Alceste, outros trs associados se demitiram imediatamente, revelando a existncia de pelo menos dois grupos que se digladiavam pelo poder na diretoria da agremiao. No mesmo dia da demisso do Sr. Alceste e do seu grupo, o restante da diretoria discutiu os gastos com a vinda do Amrica (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 2, 27 de abril de 1917, p. 83). Aps o pedido de demisso do cargo de presidente do Atlhetic Club, no dia 27 de abril de 1917, o Sr. Alceste, assim como o Sr. Orestes Parizzi, se integraram ao quadro de associados do Minas Foot Ball Club, agremiao que se constitua como a maior rival do alvinegro no cenrio esportivo local. Enquanto no Athletic o Dr. Joaquim Martins Ferreira adquiria grande ascenso na poltica interna do clube, o que pode ser demonstrado pela sua eleio para a presidncia no dia 7 de maio de 19179 (Cf. Athletic Club, Livro de Actas n. 2, 7 maio 1917, p. 86), no final daquele ano, no Minas, o Sr. Alceste, ex-presidente do Athletic, seria eleito o novo presidente do clube.

A anlise dos dilogos transcritos nas atas do clube revela tambm que as disputas polticas internas na diretoria contribuam para que os mandatos dos cargos dificilmente fossem cumpridos at o final do seu prazo. A maioria de seus presidentes, vice-presidentes e secretrios pediram demisso antes do final do mandato. importante salientar que algumas demisses no foram concedidas pela diretoria. Muitos diretores que se demitiam dos seus respectivos cargos, continuavam a fazer parte da diretoria do clube. Esse fato nos sugere que a demisso pode representar alguma artimanha utilizada no complexo jogo de poder que se deflagrava no interior da vida poltica das agremiaes esportivas.

5. Consideraes finais

consensual na historiografia brasileira que a transio dos sculos XIX e XX foi marcada pela transformao nos hbitos individuais e coletivos das principais cidades do Pas. O gradual processo de urbanizao que percorreu de forma heterognea o territrio brasileiro foi acompanhado, simultaneamente, pela introduo de novas formas prticas sociais, nas quais o lazer e o esporte, indelevelmente, foram incorporados cena urbana.

Nos primeiros anos do sculo passado, em So Joo del-Rei, cidade mineira detentora de uma imponente paisagem barroca, a arquitetura se materializava simbolicamente como um

9 As informaes colhidas nas atas revelam que o Dr. Joaquim Martins Ferreira no tomou posse no cargo, o que levou o seu vice, Sr. Vicente Guerra, a assumir a presidncia do Athletic Club, em maio de 1917.


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cone da tradio e da religiosidade, moldando a moralidade e os costumes de uma sociedade, majoritariamente, catlica e tradicional. No entanto, os ventos modernos soprados da Bahia de Guanabara parecem ter atravessado as barreiras geogrficas e simblicas, trazendo consigo os novos hbitos que, conflituosamente, se incorporaram ao modus vivendis da cidade. Da mesma maneira que os espetculos teatrais, os eventos futebolsticos assumiram centralidade no cotidiano das classes abastadas, imiscuindo-se no espao pblico e conformando redes de sociabilidades e afetividades entre jogadores e torcedores.

O cotejamento aos peridicos e s atas de reunio dos associados do Athletic Club permite constatar a existncia de fortes indcios de que a introduo do futebol em So Joo del-Rei ocorreu com a fundao do Athletic Club, evidenciando, sob esse aspecto, a presena marcante do futebol na cidade ao longo do sculo XX. A anlise dos primeiros anos de consolidao da novidade esportiva do futebol na cidade revela sua especificidade em comparao com as experincias relatadas por outras pesquisas em diferentes regies do Pas.

Nesse sentido, vale ressaltar que os pioneiros do futebol local eram brasileiros e residentes no municpio, ou seja, no possuam a distino social daqueles estudantes estrangeiros ou dos brasileiros que viveram na Europa, a exemplo dos precursores do futebol em cidades como o Rio de Janeiro, So Paulo e Belo Horizonte. A influncia estrangeira parece ter sido apenas indireta por meio da circulao de informaes pela imprensa e pelos trilhos da ferrovia que ligava So Joo del-Rei ao Rio de Janeiro, capital federal e metrpole irradiadora de smbolos da modernidade. A participao estudantil na difuso local do esporte evidente apenas com o atuante associado do Athletic Club, Joaquim Martins Ferreira, estudante de medicina no Rio, onde, posteriormente, se tornou goleiro do America Foot-Ball Club, agremiao daquela cidade.

Por outro lado, a adeso dos fundadores do Athletic ao modelo clubstico de inspirao inglesa demonstra a afinidade da elite sanjoanense ao novo modismo que se espalhava pela capital federal. Ao se adentrar radicalmente no mbito da sociabilidade clubstica, percebe-se o refinamento dos hbitos, das formas de comportamento e de racionalidade, moldadas pela esttica europeia de inspirao higienista. As confraternizaes, reunies e demais prticas civilizadas que envolviam o clubismo, forneciam um leque variado de habitus e disposies aos seus participantes, que inconscientemente incorporavam as maneiras de ser e de agir que, ao fim e ao cabo, os distinguia entre os demais grupos na economia simblica da cidade.

Por fim, vale ressaltar que os elementos da cultura urbana de So Joo del-Rei a tornavam receptiva ao consumo de entretenimento em geral, no qual lazer e esporte se confundiam: industrializao nascente, quantidade de habitantes, ligaes com uma metrpole dinmica, infraestrutura urbana, intenso associativismo religioso e laico. Acompanhando uma tendncia que se disseminava em outros centros urbanos, os sanjoanenses incorporaram as novidades esportivas, inserindo-se num processo de ampla transformao dos costumes e das prticas corporais que caracterizou a modernidade brasileira nas primeiras dcadas do sculo passado.


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