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1 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 23 Editorial Franciscana BRAGA - 2003

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

23

Editorial Franciscana BRAGA - 2003

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Ficha Técnica

Coordenador:

Fr. José António Correia Pereira, ofm

Editorial Franciscana

Apt. 1217

4711-856 BRAGA

Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735

E-mail: [email protected]

Edição on-line no site:

www.editorialfranciscana.org Capa:

Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição:

Editorial Franciscana

Propriedade:

Província Portuguesa da Ordem Franciscana

Depósito Legal: 14549/94

I. S. B. N.: 972-9190-46-1

Caderno 23 - 2003

Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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CLARA DE ASSIS, A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII

Ir. Maria Otília Fontoura osc

A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS

Marco Bartoli

ALEGRIA E PAZ

Fr. Timothy Radcliffe op

A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR

SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO

Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas,

por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis

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1 — Estudos

CLARA DE ASSIS,

A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII

Ir. Maria Otília Fontoura osc

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CLARA DE ASSIS,

A “MULHER EVANGÉLICA” DO SÉCULO XIII

1. Vocação e missão de Clara

1.1. Vocação

1.2. Missão

2. São Damião: ideal e desafio

2. 1. Uma fraternidade evangélica

2. 2. O trabalho como expressão de pobreza

2. 3. Vida de oração e contemplação:

– Oração litúrgica e comunitária

– oração pessoal

2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor

2. 5. Em fraterna amizade

2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora

3. Francisco e Clara: uma vocação comum, um mesmo carisma, uma

mesma família religiosa

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1. Vocação e missão de Clara

1.1. Vocação

Em 1207, Francisco ajoelhava diante do crucifixo bizantino de São

Damião. Estando em oração, sentiu que Jesus lhe dizia:

―Francisco, vai e repara a minha Igreja que ameaça ruir‖1.

Não compreendendo, então, o mandato do Senhor, lançou-se na

reconstrução da ermida. Quando, algum tempo depois, pedia a colabora-

ção dos que passavam, uma palavra profética saiu da sua boca:

―Vinde e ajudai-me na reconstrução de São Damião, porque um dia

hão-de morar aqui umas senhoras, cuja fama e vida santa glorificará o Pai

celeste em toda a Igreja‖2. Francisco, que nessa altura ainda não tinha

irmãos, acabava de anunciar de forma profética, sob a acção do Espírito, a

Segunda Ordem Franciscana e a missão de Clara e suas Irmãs: ser

claridade, ser como cidade edificada na montanha, manifestando, com

a vida, a glória do Pai celeste.

Clara era ainda menina, quando Francisco, uns doze anos mais velho

do que ela, dá início à sua vida evangélica. Na Quaresma de 1211, a

jovem, que desde há algum tempo prestava atenção ao viver de Francisco,

acompanhada de sua mãe e irmãs, ouve as suas pregações em São Rufino.

Sensibilizada pelo ardor com que o jovem fala e convida à conversão

a Cristo e aos irmãos, a uma profunda conversão interior, pede para falar

com ele. Depois de alguns encontros, como refere Celano, Clara Offre-

duccio está decidida a seguir o mesmo caminho que Francisco e seus

Irmãos vão trilhando. O movimento franciscano encantava a jovem.

Contudo, a mentalidade medieval referente à mulher, condicionava as

suas opções. Sabe-se, porém, que dos grupos pauperístas, como os

valdenses, cátaros, humiliatas e outros, faziam parte mulheres, o que a

Igreja contestava.

Quando Deus pôs Clara no caminho de Francisco, a jovem é acolhida

como uma bênção. O Irmão reconhece, de imediato, ser ela o objecto da

profecia de São Damião. Clara e as Irmãs que o Senhor lhe enviasse, vive-

————— 1 LCL, 10, in FF II, p. 247.

2 TCL, 9-17, in FF II, pp. 69-70.

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riam, pois, em clausura contemplativa no mosteiro anexo àquela pequena

Igreja3; seriam o complemento da Primeira Ordem Franciscana. O seu

rosto feminino.

Contactado D. Guido, bispo de Assis, Francisco aceita das mãos de

Deus, com imensa satisfação, esta primeira filha e, com permissão do

mesmo prelado, começa a sua formação evangélica.

Na noite que se seguiu ao domingo de Ramos de 1212, a conselho de

Francisco e com o assentimento do prelado, Clara ―deixou a casa paterna,

a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Por-

ciúncula‖4, onde os Irmãos celebravam as sagradas vigílias. Despojada das

suas jóias e vestes de festa e cortados os cabelos, Clara compromete-se

diante de Deus e da Igreja, ali representada pelo Irmão Francisco, a seguir

o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência e sem

próprio.

Clara não se sentia vocacionada para o casamento nem tão-pouco

para ser monja, mas sim para ser irmã menor. Nesta noite de domingo de

Ramos, afirma, com toda a potencialidade do seu ser, o direito que lhe

assiste, à luz do Evangelho, de escolher livremente o seu caminho. O gesto

de Clara restabelecia o primado de Deus e afirmava a liberdade de uma

mulher cristã seguir Jesus Cristo, segundo o impulso do seu coração: de

abraçar Cristo pobre como virgem pobre.

Clara Offreduccio não podia inserir-se em mosteiros do seu tempo,

verdadeiros senhorios detentores de privilégios e direitos. O estilo de vida

das monjas beneditinas, das cónegas regrantes de Santo Agostinho, ou das

reclusas, não respondia ao seu anseio. Era seu desejo, conforme o

mandato de Cristo, fazer opção pela pobreza evangélica, pela fraternidade

————— 3O testemunho de Tiago de Vitry, bispo de São João d‘ Acre, sobre o movimento

franciscano tem-se prestado a opiniões algo confusas. Em carta de 1216, falando sobre o

movimento, diz: ―…as mulheres moram em comunidade em vários hospícios perto das

cidades. Não recebem nada, vivendo do trabalho de suas mãos‖. Paul Sabatier inter-

pretando o texto, defendeu o princípio de que as Clarissas, nos primeiros tempos, não

tiveram clausura e se entregavam ao cuidado dos doentes e leprosos. Alguns estudiosos

franciscanos, entre os quais Lemmes y Oliger, depois de profunda análise da questão,

pronunciando-se contra a posição assumida por Sabatier, afirmam que as damianitas

sempre viveram na clausura do seu mosteiro (Ignacio Omaechevarria, ofm, Escritos de

Santa Clara y documentos complementarios, edición bilingüe, BAC, Madrid, 1982, pp.

34-36). 4 LCL, 8, in FF II, p. 246.

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cristã. Desejava descer a tomar lugar entre os pobres, os oprimidos, os

servos, os sem direitos. Desejava entregar-se a Cristo por amor dos

homens, seus irmãos.

Após a Páscoa de 1212, estão em São Damião as três primeiras irmãs

menores: Clara, Inês e Pacífica. Cumpria-se a profecia do Senhor.

Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do

amor gratuito do Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu, com toda a

potencialidade do seu ser no absoluto de Deus, como consequência do

enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n‘Ele se abraçou com a

plenitude do Amor, a humanidade e a criação.

Clara tem uma vocação peculiar. A discípula do Pobrezinho de Assis,

seguidora de Cristo em estilo novo, não é monja mas sim irmã: irmã

menor, irmã pobre, irmã vocacionada para a fraternidade. O estilo de

vida que abraça é novidade na Igreja. Clara é uma mulher nova, uma

mulher forte e fiel, cheia de fé e de esperança, que sabe o que quer e é

capaz de percorrer todos os caminhos para chegar aonde Deus a impele.

Mas, é mais do que isso: é uma inovadora que, rompendo com formas e

tradições monásticas, faz nascer em São Damião um novo estilo de vida

contemplativa: vida em fraternidade e serviço, vida pobre, humilde e

simples, uma vida acentuadamente eucarística e em sintonia com a huma-

nidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e cruci-

ficado.

Como íamos dizendo, o Senhor anunciara pela boca de Francisco a

origem da Segunda Ordem, cujo berço seria exactamente São Damião. No

Testamento, Clara reconhece ser ela e suas Irmãs, presentes e futuras, o

alvo da profecia. Com efeito, falando de Francisco, escreve: ―…iluminado

pelo Espírito Santo, profetizou, com grande alegria, a nosso respeito, tudo

o que mais tarde o Senhor veio a confirmar‖5.

Clara era uma mulher de fé e fidelidade. Daí, que a sua vida fosse uma

peregrinação impulsionada pela força criadora de uma promessa. Esta

mulher forte e fiel, acreditou que era possível a vivência radical do

Evangelho e, totalmente tomada por Cristo, lançou-se, cheia de confiança

e sem vacilar, no seguimento dos seus passos. Assim, soube dar resposta,

————— 5 TCL, 11, in FF II, p. 69.

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com a vida, às exigências divinas, à força sedutora que para ela era o

―Senhor Jesus‖.

Sendo a vida de oração, de intercessão e de comunhão com Deus

comum às diversas formas de vida consagrada, no caso da Clara, o

específico consiste no seu chamamento e envio profético.

1.2. Missão de Clara

Houve tempos em que o ideal de alguém se identificava com o

trabalho de santificação pessoal.

Respondendo a Cristo e sob a orientação de Francisco, a ―Plan-

tazinha‖ soube situar a sua doação e missão em termos eclesiais. Estava

bem persuadida, assim como suas Irmãs, de que Deus as chamara para

serem espelho e exemplo para os outros, para serem evangelicamente mis-

sionárias, para serem colaboradoras do próprio Deus junto dos homens,

suporte dos membros mais fracos do corpo místico de Cristo, como se lê

na terceira carta por ela escrita a Inês de Praga por 1238. Por isso se

sentiam impelidas a peregrinar na Igreja de Deus.

Clara sente-se chamada, a partir do mais íntimo do seu ser, a edificar

a Igreja, a dar a vida, a derramá-la toda inteira, não para sua realização

pessoal, mas porque recebeu um apelo: olhar, ver, ser luz, testemunhar

na Igreja de Deus, para glória do ―Altíssimo‖ e para bem dos homens. A

sua missão é, de certo modo, confirmar os outros na verdade, no amor,

na beleza que viu e que tocou. Daí que, para a discípula do Pobrezinho

de Assis, o importante, o sumamente importante, fosse a sua transfor-

mação em ícone da divindade, o abraçar e tocar o Verbo da vida, como

se lê nas suas cartas a Inês de Praga.

No percurso espiritual de Clara divisamos Belém, Nazaré e o

Calvário, quais livros abertos à contemplação da apaixonada pelo Senhor

Jesus Cristo que, de ouvinte atenta da Palavra evangélica se torna espelho

dessa mesma Palavra.

Como muito bem diz o nosso Ministro Geral, Frei Giacomo Bini, em

Clara de Assis, um hino de louvar, a fiel discípula de Francisco e suas

Irmãs, ―a partir do claustro da sua interioridade, seguindo o exemplo de

Maria, tornam-se acolhimento, morada e ícone do Deus de amor‖6, teste-

munho que se projectava no exterior.

————— 6 Frei Giacomo Bini, Clara de Assis, um hino de louvor, Roma, 2002, p.12.

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De São Damião, cada Irmã descobre todo o mundo e, fazendo suas as

alegrias, aspirações, preocupações e necessidades dos homens, por suas

próprias mãos as apresenta ao ―Pai das misericórdias‖, na expressão da

―Plantazinha‖ de Francisco.

Abrasada no ardor missionário, desejosa de abraçar o mundo inteiro e

se dar ao Senhor pelo martírio, Clara teria ido para Marrocos se o seu pai

espiritual disso a não impedisse.

Durante a sua doença, que durou uns trinta anos, a virgem Clara, à

semelhança do crucificado do Alverne, está crucificada com Jesus Cristo e,

em atitude redentora, permanece todos os dias em amorosa doação.

Abrasada em amor, totalmente voltada para os outros, está em continua

comunhão com seus irmãos em Cristo. Em todos pensa, por todos ora e

sofre. Para todos tem uma palavra evangélica, de ternura, de compreensão

e estímulo. Mesmo no seu leito de dor, mantém com as autoridades

eclesiásticas, com os seus Irmãos no carisma, com pessoas amigas, impor-

tantes ou de condição simples, as melhores relações. Ela é, diante de todas

as necessidades, um suporte e apoio espiritual. Na clausura, no seu leito de

doença, a Irmã Clara avança, à semelhança do Serafim de Assis, no

caminho da Cruz, identificando-se com o Esposo. Conforme a expressão

de Frei Giacomo Bini, Francisco e Clara são semente lançada à terra que

morrem para frutificar. Esta morte, amorosa e quotidiana, fazia parte da

missão destes arautos de Cristo que, fiéis ao Evangelho se entregam e

vivem com audácia o desafio da pobreza absoluta, da loucura da Cruz, do

despojamento total, do amor incondicional ao Criador e às criaturas. Sim,

o mistério da Cruz era, e continua a ser, o cerne da espiritualidade fran-

ciscano-clariana. Seguir ―Cristo, o Pobre crucificado‖, identificar-se com

Ele, n‘Ele se transformar, eis a razão de viver dos humildes seguidores do

Evangelho, no século XIII.

―Se com Ele morrermos na cruz da tribulação, com Ele habitaremos

na gloria dos santos‖7, escreve Clara a Inês de Praga. O sofrimento vivido

em profunda união com Cristo, seu Esposo, identifica-a com o mesmo

Cristo.

São Damião interpela!

São Damião é ideal e desafio É fonte de vida nova!

————— 7 Cf., 2CCL, 21, in FF II, p. 95.

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O P. Larañaga diz que ―Clara, na sua clausura contemplativa, levou à

plenitude o sonho mais profundo de Francisco de Assis: a ânsia de con-

templar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o

desejo de Deus‖8.

Ali, mãe e filhas, revestidas da ―dama pobreza‖, como transparência

do Evangelho de Cristo, denunciam o pecado do seu tempo e de todos os

tempos: o orgulho, a falta de amor, o egoísmo, a cobiça, o poder. É que a

sua pobreza é o Cristo pobre. São Damião é comunidade profética que,

ao mesmo tempo que interroga e responde, é facho de luz que compro-

mete. Mas, para tanto, é preciso subir a montanha da dor, é preciso

morrer, para tocar, para possuir o Absoluto, para ser transparência do

mesmo Senhor.

A sociedade do Século XIII precisou de Francisco e de Clara para

recuperar o sentido de Deus, o sentido de fraternidade. A Igreja do século

XIII precisou de Francisco e de Clara para reencontrar a sua identidade

evangélica.

São Damião, um espelho de Eternidade! Testemunha de que Deus

está, de que a sua luz ilumina, de que o seu amor marca e transforma, de

que Deus é todo o bem, o único bem. A herança das Irmãs Pobres, como

dos Irmãos Menores, era só Deus. Quem viu e tocou o Senhor, de nada

mais precisa. Ele basta.

Clara era a transparência de Jesus. No Testamento, Clara exorta

vivamente as suas Irmãs a ―que se esforcem por seguir sempre o caminho

da santa simplicidade, humildade e pobreza, e que levem uma vida santa‖.

Desta santidade de vida brotaria a luz, o esplendor, a beleza espiritual, a

claridade, o odor da ―boa fama‖ ao perto e ao longe. Seriam, então,

cidade edificada no alto da montanha anunciada pelo Cristo bizantino

de São Damião.

————— 8 Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São Francisco, Lisboa,

1980, p. 239.

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2. O mosteiro de São Damião – Ideal e desafio

São Damião, no dizer de Miglioranza, ―mais do que um mosteiro, foi

um ideal, um desafio, um sonho feito realidade‖9. Um ideal feito de man-

sidão, de humildade, fraternidade, de sentido profundo de Deus e de

empenhamento ao serviço de todos. Um amor incomensurável de Deus e

das suas criaturas transparecia daquele ―pobre conventinho‖, que enchia de

mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a vivência

cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto!

2.1. Uma fraternidade evangélica

A Regra de Santa Clara não é apenas a base jurídica que dá existência

à sua Ordem, um documento histórico que se olha com veneração e amor.

É antes a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida

sempre actual e sempre adaptável a tempos e lugares. Condensação do

genuíno carisma da Ordem, perpassada pela docilidade ao Espírito do

Senhor, pela abertura à Igreja e à humanidade, tem em si mesma a vitali-

dade evangélica. Contrariamente ao que se verificava com as então exis-

tentes, a Regra de Santa Clara é fraterna, humana e flexível. A pessoa da

Irmã, cercada do maior respeito, ganha dignidade e direitos que na época

não eram reconhecidos à mulher. Inteligente e criativa, a Irmã Clara soube

dar vida a um estilo novo, distanciado do estilo monacal do seu tempo.

Um estilo evangélico.

Nos mosteiros existentes no século XIII, a autoridade – o abade ou a

abadessa –, centro de uma orgânica estável e minuciosa, ocupando o vér-

tice de uma pirâmide, tudo prevê e determina.

Nas fraternidades franciscanas, portanto, entre as damianitas, o centro

é ocupado por Jesus, dispondo-se as Irmãs em seu redor. A igualdade, a

amizade, vínculo de união, surge como fruto da felicidade comum.

Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes

sociais nem privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a

simplicidade e a igualdade dos filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe

pobrezinha serviam de modelo às damianitas.

————— 9 C. Miglioranza, ofm conv, ―Santa Clara de Asís‖, in Misiones franciscanas conven-

tuales, Buenos Aires, p. 77; citado por Maria Victoria Triviño, osc, in Clara de Asís

ante el espejo. História y espiritualidad, Madrid, 199, p. 105.

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No mosteiro de São Damião, vivia-se, de facto, em fraternidade. Ali,

havia Irmãs igualmente consultadas e ouvidas. Os assuntos respeitantes à

utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em reunião conventual e

até as mais novas deviam ser ouvidas, ―pois muitas vezes é ao mais

pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém.‖10

O relaciona-

mento era perfeito: era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura

horizontal, dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica.

Um dos aspectos mais meritórios da Regra de Santa Clara é a

participação das Irmãs nas responsabilidades comuns:

- todas devem dar o seu consentimento na recepção de novas

vocações 11

;

- todas tomam parte na eleição da abadessa12

;

- nenhuma dívida importante deve ser contraída sem o

consentimento das Irmãs13

;

- para a escolha de Irmãs para os diversos cargos, é necessário o

consentimento da comunidade14

;

- a abadessa e as Irmãs são responsáveis pela guarda da pobreza,

pelo cuidado das doentes, pela observância do silêncio e da clausura, para

conservar a unidade do amor mútuo e da paz15

;

- a abadessa e suas Irmãs tratarão com caridade a Irmã culpada16

.

Porém, é nas passagens em que emprega o nós, que Clara imprime

mais firmemente e a sua personalidade e, simultaneamente, acentua a

corresponsabilidade das Irmãs, dando ao texto o valor de um compro-

misso comum. Vejamos:

- ―quando alguém … vier ter connosco‖17

;

————— 10 RCL, IV, 18, in FF II, p. 50. 11 RCL, II, 1, in FF II, p. 45. 12 RCL, IV, 1 e 7, in FF II, p. 49. 13 RCL, IV, 19, in FF II, p. 50. 14 RCL, IV, 22, in FF II, p. 51. 15 RCL, VI, 10-11, p. 53; VIII, 1-6, p. 55; VIII,12-17, p. 56; V, 1-4, p. 56;V, 5-14, pp.

51-52, in FF II. 16

RCL, IX, 4-6 e 18, in FF II, p. 57– 58. 17 RCL, II, 1, in FF, II p.45.

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- ―considerando o bem-aventurado Pai que não temíamos nenhuma

espécie de pobreza, … mas que, pelo contrário tínhamos estas coisas por

grande delícia, … escreveu-nos a forma de vida‖18

;

- ―para que eu, … juntamente com minhas Irmãs‖19

;

- ―E assim … a fim de que observemos a pobreza e humildade de

Nosso Senhor Jesus Cristo, que firmemente professamos‖20

.

E as citações podiam multiplicar-se.

A consciência da responsabilidade da Irmã, ou seja a corres-

ponsabilidade fraterna, tem a máxima expressão no capítulo quarto, onde

se lê: ―… tanto a abadessa com as irmãs devem confessar, com toda a

humildade, as faltas e negligências públicas e comuns‖; e, como acima

referimos, ―… os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual da

comunidade devem ser tratados em capítulo‖21

.

E, porque a pessoa da Irmã é olhada com todo o respeito em função

da dignidade que lhe é conferida pelo Evangelho, a Madre ―há-de com-

portar-se entre as suas Irmãs como serva de todas, familiar e disponível,

atenta às necessidades das sãs e das doentes22

; todas as Irmãs devem

cuidar e servir as Irmãs doentes, como gostariam de ser servidas, caso se

encontrassem na mesma situação23

. E, para construir dia a dia a frater-

nidade sobre a base do amor, as Irmãs empenhar-se-ão em evitar a

―soberba, vanglória, inveja e avareza, cuidados e solicitude das coisas

deste mundo, depreciação, murmuração, discórdia e desavença24

.

Em suma, em São Damião, todas se amavam com o amor de Cristo;

todas, conscientes de que eram chamadas a trabalhar na concórdia e na

paz, se auxiliavam mutuamente; todas se sentiam responsáveis pelo bem

comum.

Estamos diante de uma fraternidade evangélica.

————— 18 RCL, VI, 2,, in FF II, p. 53. 19 RCL, VI, 1, in FF II, p. 52. 20 RCL, XII, 12, in FF II, p. 62. 21 RCL, IV, 16-17, in FF II, p. 50. 22 RCL, IV,10-12, p. 50; VIII, 12-13, p. 56; X, 4, p. 59, in FF II. 23

RCL, VIII, 14,, in FF II, p. 56. 24 RCL, 6, in FF II, p. 59.

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2.2. O trabalho como expressão de pobreza

Praticar a pobreza voluntária subtraindo-se à lei geral do trabalho,

seria deformar os conselhos evangélicos, os princípios cristãos. Francisco e

Clara compreenderam essa realidade. Por isso, consideravam o trabalho

―uma graça‖. A Irmã Clara, no seguimento do mandato de Cristo, traba-

lhava e queria que as suas Irmãs trabalhassem ―fiel e devotamente‖.

O trabalho, que começava depois de Tércia, deveria ser honesto e de

comum utilidade; deveriam trabalhar com devoção e fidelidade para evitar

a ociosidade, inimiga da alma, sem perderem o espírito de oração e

devoção ao qual todas as coisas devem subordinar-se. Durante o trabalho

o silêncio era habitual, pedido pelo coração, para permanecerem em união

com o Senhor. Somente era quebrado quando necessário e, então,

deveriam falar em voz baixa e em poucas palavras25

. As damianitas, dado

que viviam em profunda união com Cristo, conheciam o valor do silêncio,

do recolhimento, e dele sentiam necessidade íntima. É que, o trabalho,

embora sendo um meio de subsistência, era simultaneamente uma forma de

amar e de orar: amar a Deus na acção. Dentro de uma visão franciscana,

quer o trabalho quer a oração, impregnados de amor contemplativo,

testemunham Cristo, presente entre os seus filhos. Por isso, quando os

lábios da ―Plantazinha‖ e suas Irmãs se calavam, começavam a orar as

mãos26

. O trabalho era ―graça e bênção‖

Sabe-se que no mosteiro de São Damião havia um horário de trabalho

que coordenava as actividades quotidianas. É que o trabalho era, com a

esmola, a forma de normal de subsistência. Clara, recusando toda a

possessão, tudo o que constituísse rendimentos – propriedades ou dotes –,

afirma a sua fidelidade ao Evangelho e a sua vontade de que a fraternidade

seja e permaneça voluntariamente pobre.

Ela, como mãe e mestra daquela comunidade nascente, dava exemplo

de aplicação ao trabalho. Nunca queria estar ociosa, mesmo durante a

doença. A Irmã Pacífica de Guelfuccio depôs no processo de canonização

que ―durante o tempo em que esteve doente, a ponto de não se poder

erguer do leito, pedia que a sentassem e, amparada com almofadas, fiava e

tecia os panos com que confeccionava os corporais que depois oferecia às

————— 25 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 26

Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, 2ª edición, Oñate (Guipúzcoa),

1993, p. 120.

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igrejas do vale e das colinas de Assis‖27

. Uma vez contou uns cinquenta,

muito belos e perfeitos.

Os trabalhos femininos tinham, então, um âmbito restrito. Excluindo o

fiar, tecer e bordar, dificilmente se poderia pensar em algo mais, pelo

menos dentro da clausura. Segundo alguns autores, Clara teria algum

tecelão em Assis que colaborava com o mosteiro no fornecimento das

matérias primas e na aceitação dos trabalhos confeccionados. Em São

Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas

Irmãs, fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da

horta com simplicidade e alegria. Da horta recebiam vários produtos,

essencialmente legumes e hortaliças que serviam para o quotidiano da

comunidade. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser

fraternidade. Também cultivavam, no jardim e claustro do mosteiro, belas

e variadas flores.

Como acima íamos dizendo, os trabalhos realizados em São Damião,

não eram suficientes para sustentar a comunidade. Quando isso acontecia,

Clara recorria à ―mesa do Senhor‖. Saíam, então, as Irmãs externas a

receber os dons que o Pai lhes oferecia. Também dois Irmãos Menores

estavam ao serviço da comunidade para auxílio da sua pobreza28

, rece-

bendo, em seu favor, das mãos dos assisienses ou populações circunvi-

zinhas, o que o Senhor sabia precisarem.

Os mosteiros medievais tinham a sua subsistência assegurada com

rendas.

Clara e suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Viver do

trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a

subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade

dos fiéis era novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média.

Porém, Clara e suas Irmãs sabiam que, se o Senhor alimenta as aves do

céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por aquelas que,

confiantes, se entregavam à sua providência.

O mosteiro de São Damião, caminhando na sequela Christi, tornou-

-se, de facto, conforme o desejo de Francisco encarnado por Clara, oásis

de pobreza evangélica29

.

————— 27 PC, I, 11, p. 142; ver também: PC, II, 12, p.147-148 e VI,14, p.173, e ainda LCL, 28,

p. 262, in FF II. 28

PC, I, 15, in FF II, p. 143. 29 René-Charles Dhont, Chiara, madre e sorella, p. 10

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2. 3. Vida de oração e contemplação

– Oração litúrgica

A vida litúrgica, elemento primário da vida contemplativa, aparece em

São Damião como o centro, o cerne, do viver quotidiano. De facto, uma

comunidade contemplativa é sustentada e vivificada pela oração litúrgica

comunitária – celebração eucarística e ofício divino –, que marcam o

ritmo duma caminhada espiritual. Daí a necessária abertura à Palavra de

Deus e à união fraterna.

Sabemos que São Francisco queria ver os Irmãos reunidos cada dia

para uma única missa de fraternidade em cada lugar onde estivessem.

Junto de São Damião residia uma pequena fraternidade de Frades Meno-

res, entre os quais havia dois clérigos aos quais competia celebrar quoti-

dianamente a Eucaristia, administrar os sacramentos às suas Irmãs e

anunciar-lhes a Palavra do Senhor.

Com quanta fé e amor, Santa Clara e suas Irmãs participavam na cele-

bração eucarística!… E esta celebração era tão importante que, nos dias

em que era permitida a comunhão, se houvesse doentes impossibilitadas de

se deslocarem ao coro, o capelão entrava na clausura e a Missa celebrava-

-se na intimidade familiar ―para sãs e enfermas‖.

A fraternidade franciscana, ainda que inteiramente distanciada dos

esquemas monásticos, atribuiu, desde o início, grande importância ao ofí-

cio divino como oração oficial da Igreja. Daí, que, em São Damião, o ofí-

cio divino fosse logo considerado como imprescindível oração de louvor,

no qual, salvo as Irmãs que não soubessem ler, todas deviam participar.

Nem a Irmã Clara poderia fazer de outra forma, dado que a fraternidade

de São Damião desejava ser versão contemplativa feminina do ideal de

Francisco. Clara, ao dispor que o ofício divino fosse rezado conforme o

costume dos Frades Menores, o ofício da Santa Igreja Romana, era

determinada pelo seu grande desejo de união com a Primeira Ordem: um

mesmo ritmo de oração seria o melhor testemunho de unidade de espírito

existente entre as filhas e filhos do Irmão Francisco.

À semelhança do que fizera o ―seu Pai e mestre‖ entre os seus

Irmãos, Clara não quis estabelecer duas classes de Irmãs.30

Em São

————— 30

A introdução de várias categorias de Irmãs na Ordem de Santa Clara, feita

posteriormente, foi contrária à Regra e anticarismática. Hoje, porém, esse desvio está

Page 19: minoridade Clara de Assis

19

Damião não havia coristas e leigas. Assim o pedia o carisma franciscano.

Todas, com igual direito, participavam no ofício divino. Estavam, porém,

dispensadas as que não soubessem ler, como acima dissemos, ou se

encontrassem impedidas por razões de saúde.

Sabemos, pelas fontes biográficas que, em São Damião, o ofício

divino estava distribuído ao longo das 24 horas do dia, santificando assim

a caminhada quotidiana. Era recitado com devoção e harmonia, com a

simplicidade própria de espírito franciscano, sem exibição de instrumentos

ou Irmãs especializadas no canto, pois Clara não queria, de forma alguma,

que ali reinasse a ostentação que, tantas vezes, se verificava nos mosteiros

de beneditinas e cónegas regrantes31

.

Nesta oração de louvor e de súplica a Deus Pai, feita em união com

Cristo, Clara dava exemplo com a sua assiduidade e pontualidade. Era ela

que à meia-noite despertava as Irmãs, tocando delicadamente em cada

uma, para não interromper o sono das doentes, gesto de fina caridade.

Quando as Irmãs chegavam já ela havia acendido as lâmpadas e preparado

tudo para a oração32

. Eram, então, recitadas Matinas.

Santa Clara não apresenta nenhuma prescrição concreta em relação a

outras formas de oração comunitária, salvo o ofício de defuntos que

deviam rezar quando alguma Irmã falecesse33

. Clara, não prescreve ora-

ções e devoções comunitárias, nem tão-pouco confiava o bom andamento

da comunidade à multiplicidade de regulamentos disciplinares. Acreditava,

sim, na unção do Espírito Santo que ensina e guia os passos dos seus

eleitos. Por isso, no capítulo quinto da Regra, Clara fala do ―espírito de

santa unção e devoção ao qual todas as coisas devem servir‖ e recomenda

no décimo que as Irmãs ―acima de todas as coisas devem desejar ter o

espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, orar sempre a Deus com

um coração puro‖. Em São Damião, a oração contemplativa não estava

sujeita a uma regulamentação. Não era necessário, pois, cada Irmã se abria

à acção divina com espontaneidade e amor. Ouçamos Celano:

—————

ultrapassado (Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, Porto Alegre,

1978, pp. 36-37. 31 Isto não impede que, nos tempos hodiernos, conforme o actual critério da Igreja, o

canto tenha lugar nas celebrações litúrgicas das Clarissas. Antes pelo contrário, sabendo

que o canto é caminho de ascensão para o Senhor, devem dar solenidade e expressão

musical às celebrações, e mesmo estimular a presença e participação dos fiéis. 32

Cf. PC, II, 9; X, 3, pp.147 e 185, respectivamente e LCL, 20, p. 257, in FF II. 33 RCL, III, 6, in FF II, p. 48.

Page 20: minoridade Clara de Assis

20

―De tal modo as damas pobres adquiriram o dom da contemplação

que nela aprendem o que se deve fazer e o que se deve evitar; conseguem

com extrema facilidade manter-se na presença de Deus, no louvor divino e

nas orações‖34

.

– Oração pessoal

As damianitas desenvolviam e aprofundavam a oração pessoal.

Depois de Vésperas, que tinham lugar à meia tarde, todo o tempo era con-

sagrado à oração a sós com o Esposo. Embora sendo Completas, o último

período de oração comunitária, cada uma entregava-se, com grande liber-

dade, ao colóquio com o Senhor, fazendo, muitas vezes vigília até à

madrugada. Essa longa oração, fruto de um grande amor, aproximava a

terra e céu, enriquecendo a comunidade dos homens.

O exemplo de Clara arrastava. As Irmãs que depuseram no processo

de canonização são unânimes em afirmar que madonna Clara era ―assídua

na oração e na contemplação e quando regressava da oração, o seu rosto

era mais claro e belo que o sol, e que das suas palavras emanava uma

doçura maravilhosa. Parecia até que já vivia no Céu‖35

. Ao sair da oração

animava e confortava as Irmãs. Segundo elas e o seu primeiro biógrafo,

Tomás de Celano, tinha momentos preferenciais para consagrar-se à ora-

ção contemplativa e pessoal: à meia-noite, terminada a recitação de Mati-

nas, quando ficava só por longo tempo, pela manhã depois de Tércia, ao

meio dia depois de Sexta. Durante as horas de Sexta e depois de Noa, que

a associavam à Paixão de Cristo, era tocada de grande compunção e

desejo de ser imolada com o Senhor36

Clara gostava de centrar-se no aniquilamento de Jesus Cristo, não

somente na imolação da Cruz, mas também no mistério de humilhação e

pobreza de Belém e da Eucaristia. E, sabendo que Maria santíssima, a Mãe

pobrezinha, era o melhor caminho para chegar ao Verbo de Deus, Clara

amava-a ternamente.

As damianitas no silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas

Jesus na simplicidade do presépio de Belém, no mistério eucarístico, na

loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste. Todas procura-————— 341C, 20, in FF I, 2ª edição, p. 245. 35 PC, I, 9; II, 9; IV, 4, pp. 141, 147 e 163 respectivamente; VI, 3-4; VII, 3, p.171-172 e

175; X, 3, p. 185, in FF II. 36 LCL, 30, p. 264, in FF II.

Page 21: minoridade Clara de Assis

21

vam ―viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras

do seu coração‖37

, vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos

homens, no sorriso da criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para

as Irmãs de São Damião, como para toda a alma franciscana, viver em

oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de Deus,

no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto.

A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco,

como em Clara de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não

estão em função de si mesmos, mas da Igreja e do mundo. O segredo das

suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e, na sequência desse

enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e

crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo

Evangelho foi neles uma consequência do êxtase de amor por Jesus.38

Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião,

Clara e suas Irmãs viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente

e Bom Senhor.

2. 4. Vida eucarística: adoração e louvor

No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina

eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas

espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes

saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida

dignidade e se colocasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos

abertos na ábside ou em ―imagens-sacrários‖ que guardavam uma peque-

nina caixa; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa

bela urna em forma de arca, que se ia enriquecendo com metais nobres e

pedrarias39

Em São Damião havia uma caixinha ou urna de prata e marfim para a

reserva do Santíssimo, colocada sobre o altar, que permitia às damianitas a

adoração permanente. Ali vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de

Assis era uma ―Mulher Eucarística‖.

————— 37 4 CCL 9, in FF II, p. 107. 38

David de Azevedo, ofm, S. Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30-43. 39 Jiménez, História de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647

Page 22: minoridade Clara de Assis

22

De facto, entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV

Concílio de Latrão (1215), desenvolveu-se a espiritualidade eucarística,

praticando-se, como se disse, mesmo a adoração e desagravo ao Santís-

simo Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a

acolher esta doutrina conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece

como arauto no reflorescimento eucarístico do século XIII. A piedade

popular assim o compreendeu; os artistas representam repetidamente

Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que

expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao sacramento do Corpo do

Senhor.

Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia,

comovia-se até às lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo

de canonização40

. Na Regra deixou determinado que as Irmãs

comungassem sete vezes por ano: ―No dia do Natal do Senhor, na Quinta-

-Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora,

na festa de S. Francisco e no dia de Todos os Santos‖41

. Hoje parece-nos

incompreensível esta prescrição da Regra. Contudo, naquela época

representava um grande amor à Eucaristia.

Sabemos que o IV Concílio de Latrão, querendo incrementar o amor

ao Corpo e Sangue do Senhor, determinou que os fiéis se confessassem e

comungassem uma vez por ano42

. Em função da época, e desta prescrição

conciliar, a determinação de Santa Clara representava, pois, um grande

amor ao Santíssimo Sacramento, um verdadeiro culto pelo Corpo do

Senhor. Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, que-

rendo ver a comunidade, tanto as sãs como as doentes, reunidas em volta

do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então, lugar a celebração

eucarística no interior da clausura43

.

Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de

caridade. Este amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII,

como já referimos, deixou-o Santa Clara às suas Irmãs e filhas como

legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por todas que,

desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana

————— 40 PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF

II. 41 RCL, III, 14, in FF II, p. 49. 42

Lázaro Iriarte, Letra e espírito da Regra de Santa Clara, p. 50. 43 RCL, III, 15, in FF II, p. 49.

Page 23: minoridade Clara de Assis

23

onde não se faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas

largas horas44.

Não faz sentido que se procure, em raízes adventícias e tardias, os

alicerces ou incremento da adoração, louvor e desagravo do Santíssimo

Sacramento tão peculiar à Segunda Ordem Franciscana. No mosteiro de

São Damião está a raiz, e bem alicerçada e profunda, do amor eucarístico

que as filhas de Santa Clara devem viver e difundir.

A Irmã Clara e suas Irmãs eram mulheres evangélicas, mulheres euca-

rísticas! Os seus dias deslizavam alegres e felizes na contemplação

amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas reli-

giosas, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silen-

ciosa e contemplativa, proclamavam o encanto que Deus é e assumiam,

com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens.

2. 5. Em fraterna amizade

Clara era delicada, afável e atenta às necessidades das suas Irmãs.

Havia nela uma visível simpatia para com todas, que se traduzia em

expressões de ternura, em atitudes ditadas pelo muito amor que havia em

seu coração de mãe e de irmã.

Clara era feliz, imensamente feliz. E, porque o era, tinha necessidade

de deixar transparecer em gestos rasgados de profunda amizade toda a sua

riqueza interior. Acolhedora, compassiva e cheia de misericórdia, a Irmã

Clara quer que se preste atenção às jovens, às doentes e às fracas, não só

no sentido físico, mas também e, sobretudo, no sentido espiritual. Veja-

mos:

- ―Às irmãs incapacitadas de cumprirem todo o rigor da observância,

aconselhava-as a contentarem-se com um regime mais suave. E, quando

alguma se sentia mais perturbada pela tentação, ou era dominada pela

tristeza, era ela mesma que a chamava à parte e a consolava‖45

.

————— 44 Há também testemunhos certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos

Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo Sacramento

em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se

uma custódia que dizem ser do tempo de Santa Clara, embora haja algumas dúvidas

sobre o assunto. 45 LCL, 38, in FF II, p. 269.

Page 24: minoridade Clara de Assis

24

- Clara permite que as Irmãs, ―sempre e em toda a parte, possam

dizer, em poucas palavras e em voz baixa, o que for necessário‖46

.

- Deseja que na enfermaria, ―para distracção, consolação e serviço das

doentes‖, as Irmãs possam sempre falar47

e ―que nada lhes falte, quer em

conselhos quer na alimentação quer em qualquer outra coisa que a doença

exija48

;

- que as doentes… ―possam usar travesseiros de penas… e pantufas e

meias de lã‖49

.

Clara, com o seu admirável jeito de ser irmã e mãe carinhosa, dava

importância às relações interpessoais no seio da fraternidade. Quer que as

relações fraternas sejam repassadas de carinho, de muita amizade; que

entre as Irmãs haja abertura, e um amor tão grande, que possam ―Confia-

damente manifestar umas às outras as suas necessidades, pois, se uma mãe

ama e cria a sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual

amar e ajudar a sua irmã espiritual‖50

!… Com amor e zelo evangélico,

estimula todas as suas Irmãs ao perdão recíproco, vínculo de caridade. A

amizade fraterna, o amor de Cristo estavam tão presentes na fra-

ternidade!… Clara a isso estimulava suas Irmãs e filhas:

―Amai-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras

o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo,

as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e

na mútua caridade‖

A Plantazinha é presença amiga. O encanto que lhe vai na alma tra-

duz-se nos mais delicados gestos que lhe sugere o seu coração maternal.

Ouçamos Tomás de Celano:

―A venerável abadessa não cuidava só do bem espiritual das irmãs,

também zelava, com imensa caridade pelo seu bem-estar físico. Assim, nas

noites frias, enquanto as irmãs dormiam, era ela própria que as cobria‖51

.

Gostava de prestar às Irmãs doentes os mais delicados serviços, de lavar

os pés às Irmãs externas quando regressavam com os dons que o Senhor

lhes proporcionara, e, sem qualquer escrúpulo, dispensava do jejum as

————— 46 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. 47 RCL, V, 3, in FF II, p. 51. 48 RCL, VIII, 13, in FF II, p. 56. 49 RCL, VIII, 17-18, in FF II, p. 56. 50

RCL, VIII, 15-16, in FF II, p. 56. 51 LCL, 38, in FF II, p. 269.

Page 25: minoridade Clara de Assis

25

doentes, as fracas e as jovens. Clara, boa e amiga, cultivava entre as suas

filhas os mais finos sentimentos e isso contribuía, como diz Celano, para

que ali não houvesse lugar para tibiezas ou desencantos52

.

Era na contemplação de Deus, no contacto directo com o Senhor, que

esta ―mulher evangélica‖ encontrava força para ser amor, para ser mãe.

Diz-nos Celano que, quando Clara regressava da oração ―inflamada pelo

fogo do altar do Senhor, transmitia palavras ardentes que incendiavam o

coração das irmãs. Todas ficavam admiradas da doçura que saía da sua

boca e do extraordinário brilho que emanava do seu rosto‖53

.

As longas horas de contemplação amorosa que Clara todos os dias

passa junto do Santíssimo Sacramento, fazem crescer no seu íntimo a

amizade, o encanto, o respeito para com cada uma das Irmãs. Elas são um

dom de Deus, são a expressão da ternura do Pai. Diante delas, a santa

abadessa sente-se mergulhada em adoração.

Não admira, pois, que no seu relacionamento com cada Irmã, a

Plantazinha de Francisco use, muitas vezes, palavras repassadas de cari-

nhosa amizade: queridas filhas, filhinhas, senhoras minhas, irmã e mãe,

esposa e mãe.

Não deixaremos de dizer que esta amizade cristã e franciscana era

extensiva a todos quantos privavam com Clara, particularmente seus

Irmãos da Primeira Ordem. A Francisco, seu mestre espiritual, muitas

vezes se dirige com o carinhoso apelativo de Pai e, quando o bondoso Frei

Reinaldo a visitou no leito de dor, a Irmã Clara mostrou-lhe o seu

reconhecimento e fraterna amizade chamando-lhe ―querido Irmão‖54

,

como refere Celano.

2. 6. Em comunhão com a humanidade sofredora

A oração contemplativa da Clara e de suas Irmãs, era cheia de fé e de

esperança. Centrava-se nos interesses do Pai e nas necessidades dos

homens: a glória do Senhor, a sua vontade, o seu reino de amor, as urgên-

cias eclesiais e da humanidade em geral. Em São Damião vivia-se em

profunda comunhão com os demais. Ali existia a mais delicada sensibili-

dade diante das reais e graves necessidades da Igreja. A sua vida interior, a

————— 52 LCL, 20, in FF II, p. 257. 53

LCL, 20, in FF II, p. 256. 54 LCL, 44, in FF II, p. 273.

Page 26: minoridade Clara de Assis

26

contemplação do Senhor em que viviam mergulhadas, mantinha-as abertas,

atentas e receptivas aos seus irmãos em Cristo. Celano fala com

entusiasmo do poder de intercessão, do fascínio, do poder de irradiação da

fraternidade: lares que começavam a viver mais cristãmente; mosteiros que

se renovavam espiritualmente; inimigos que se perdoavam; doentes que

ficavam curados; casais que, decidindo-se pela vida de consagração, de

comum acordo seguiam Cristo na vida religiosa; donzelas que, movidas

pelo exemplo da virgem Clara, abraçavam a vida do claustro. A santidade

daquelas almas generosas fez-se torrente que, como os braços de um rio,

irriga a Igreja e o mundo.

Como era forte a sua sensibilidade eclesial!… O cardeal Hugolino, em

carta dirigida a madonna Clara diz cheio de confiança: ―recomendo-te a

minha alma e o meu espírito, tal como Cristo se encomendou ao Pai no

alto da Cruz, para que, no dia de juízo, respondas por mim, caso não te

tenhas preocupado o suficiente com a minha salvação55

. Mais tarde,

quando papa, com o nome de Gregório IX, quantas vezes confiava as suas

dificuldades às Irmãs do mosteiro de São Damião!…

E que diremos do seu carinho, do seu zelo, da sua oração para com

os Irmãos Menores doentes, como Frei Estêvão, preocupados ou necessi-

tados de alento; das suas Irmãs doentes, aflitas ou quiçá desencantadas;

dos muitos doentes que recorriam a Clara?… Não era ela, para todos,

canal de graças?… Que dizer do alento, do amor, que tantas vezes infun-

diu na alma do Irmão Francisco?!..Basta recordar a sua ternura, o seu

poder espiritual sobre o seu Pai e mestre aquando da crise da Primeira

Ordem por 1221-1223; a confiança nela depositada quando desejou saber

a vontade do Senhor: continuar a pregar ou dedicar-se à contemplação?

Quando sabia concretamente de alguém que ofendia a Deus, sofria e

intercedia pela sua transformação. Foi assim que o cavaleiro Hugolino que,

durante mais de vinte e dois anos vivera separado da esposa Guiduccia,

como depôs no processo de canonização de Clara, se reconciliou com ela

e voltou ao lar56

.

São muitos os testemunhos da eficácia da intercessão de Clara e suas

filhas em favor da cidade de Assis. Sempre que algum problema, ameaça

ou calamidade se fazia sentir, os assisienses sabiam que tinham no mos-

teiro mãos levantadas ao Céu suplicando perdão e bênção. Eles sabiam

————— 55

CHg. 3, in FF II, p. 432. 56 PC, XVI, 4, in FF II, p. 207.

Page 27: minoridade Clara de Assis

27

que São Damião era o seu baluarte de defesa, porque oásis de oração e de

paz, e a ele recorriam com confiança. Foi o que aconteceu aquando das

incursões dos sarracenos em 1240 e de Vital de Antuérpia, sob as ordens

de Frederico II, em 1241. A oração e penitência das religiosas, recebida

pelo Senhor, libertou a cidade do assédio57

.

3. Francisco e Clara: Uma vocação comum, um mesmo carisma,

uma mesma família religiosa

Recordando, como acima ficou dito, que a Segunda Ordem

Franciscana, sob a acção do Espírito, foi profeticamente anunciada por

Francisco, quando reparava a igrejinha de São Damião, podemos dizer que

tem a raiz nas palavras dirigidas a Francisco quando, ainda no início da sua

caminhada de conversão, foi interpelado por Cristo a reparar a sua

Igreja. Desde, então, Clara passou a existir no coração e na mente do

Irmão, como a ―senhora pobre‖, ―a cristã‖, a mulher evangélica, que o

Senhor punha ao seu lado para fazer a mesma caminhada de fé e de vida

de seguimento de Cristo, numa dimensão que, embora não sendo paralela,

era complementar. A Pomba prateada ou Pomba do franciscanismo,

como repetidamente a chama Guedes de Amorim58

, é a pedra angular

sobre a qual assenta a nova Ordem, tradução feminina, sob a forma

claustral, do ideal de Francisco, seu pai e mestre espiritual.

Sendo única a vocação franciscana renovar a vida de Cristo na

terra , nasce daí a necessidade de uma total abertura à vontade do Pai em

amor contemplativo, ao seguimento e transformação em Cristo, o Pobre

Crucificado, e, simultaneamente, a disponibilidade ao serviço dos homens,

no anúncio da Palavra.

Francisco irá mundo fora, liberto das coisas materiais, disponível para

caminhar, cantando como ―arauto do grande Rei‖, e comprometido

somente com Cristo, numa imensa clausura aberta, num convento feito ao

ar livre, entre o arvoredo, as ervas do campo e as flores; a sua ―Planta-

zinha‖, mulher de fé profunda e de pobreza, no silêncio contemplativo,

como o de Maria, ficará com suas Irmãs no seu pequeno mosteiro. Nesse

————— 57 Cf. PC, II, 20, p. 150; III, 18-19, p. 157; VI, 10-11, p. 173; IX,2, p. 181; XIII, 9,

p.199, XVIII, 6, p. 212, in FF II; também LCL, 21-23, pp. 257-259, in FF II. 58

Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960,

pp. 188, 247, 397, 402 e outras.

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28

oásis de amor e de paz, estas filhas de Deus oram, amam e contemplam,

para que Francisco e seus Irmãos, na sua vida itinerante e humilde, possam

reparar a Igreja do Senhor. A ―Flor de Altura ―, como gentilmente a chama

o poeta José Régio,59

a mulher evangélica do século XIII, dentro do

pequenino mosteiro de São Damião, no segredo de Deus, numa longa

noite de silêncio contemplativo, fecundando a acção de Francisco e seus

Irmãos, adorando e orando pela humanidade inteira, é o complemento da

vocação do ―Poverello de Assis‖. Inseridas na fraternidade que tinha

Francisco por cabeça, comum era a sua missão: restaurar a Igreja de

Cristo, ser luz, ser claridade. E único era o carisma, pois, como dizia o

Irmão Francisco, ―… um só e mesmo espírito levou os irmãos e as

senhoras pobres a deixaram o mundo‖60

.

E o testemunho daquelas mulheres evangélicas era força fecundante

que, como rio de águas cristalinas, levava vida e vigor espiritual aos

homens, seus irmãos. Não admira que em Clara, coração aberto ao

mistério de Cristo, Francisco encontrasse força e luz em situações de

obscuridade e de dúvida.

Os anos iam passando.

Para o ―Pobrezinho de Assis‖, a grande família que o Senhor lhe dera,

era uma árvore única, crescendo com expressões diferentes, mas

complementares. Francisco e Clara surgem como exemplo maravilhoso de

um relacionamento amigo e terno, sempre orientado para Deus, único e

sumo bem. Detecta-se neles algo de misterioso, de fascínio, de transfigu-

ração. Eram espelho de Deus.

Em suma: O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por

Jesus, eram e são chamados à identificação com o Senhor, à vivência do

Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são chamados a responder

com a vida, à ordem do Senhor: ―Francisco, vai e repara a minha casa

que, como vês, está quase em ruína‖61

. Uma mesma vocação, um mesmo

ideal, uma mesma responsabilidade, uma mesma resposta a dar.62

A

diferença está tão somente na forma de concretizá-la:

————— 59 Em louvor de Santa Clara (organizado por Armindo Augusto), Braga, 1954, pp. 199-

-200 60 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 61

2C, 10, in FF I, 2ª edição, p. 367. 62 Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís. Prólogo à edição espanhola, p. 7.

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29

O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos,

proclamando e testemunhando a plenitude do amor de Jesus Cristo, a

bondade de Deus e a fraternidade dos homens; a irmã clarissa, no escon-

dimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração silenciosa e contem-

plativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai, pro-

clama ―o encanto que Deus é‖ e assume, com Cristo pobre e crucificado,

as dores, as alegrias e as esperanças dos homens.

Francisco e Clara!… Uma Família Franciscana, uma mesma vocação,

um mesmo ideal: o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e

mesma vocação contemplativa.

O Irmão Francisco e a sua ―Plantazinha‖ tinham consciência desta

missão comum. Francisco, diante da fidelidade das damianitas, mulheres

evangélicas, fortes e fiéis no seguimento da Cruz e na vivência do carisma,

quis assumi-las como filhas, e isso, em seu nome e dos seus sucessores,

conforme o texto de Celano:

―Quando o Pai, mercê das numerosas provas de altíssima perfeição, as

viu decididas a aceitarem, por amor de Cristo, toda a espécie de trabalhos

e provações, e a não se desviarem nunca das santas normas recebidas,

prometeu-lhes firmemente, a elas e às que viessem a professar o mesmo

teor da vida pobre, o seu apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve

sempre escrupulosamente esta promessa e, prestes a morrer, recomendou

encarecidamente aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções‖63

.

Clara e suas Irmãs, viam em Francisco o pai, o irmão e, de certo

modo, a mãe que as alimentava com a sua espiritualidade; o mestre que as

levava sempre a superarem-se para as mergulhar em Deus.

No Testamento, o escrito mais impregnado de recordações pessoais e

franciscanas, que encerra todo o carisma da Segunda Ordem, a Pomba do

franciscanismo, evoca com a alma cheia de emoção e gratidão, a pessoa

daquele que foi ―nossa coluna e única consolação, nossa fortaleza, nosso

fundador, assistente no serviço de Deus‖64

e, que, ―movido de grande

ternura para connosco, se obrigou, por si e pela sua Ordem, a ter por nós,

tal como por seus irmãos, diligente caridade e uma solicitude particular‖65

.

Como consequência, Clara abandona-se a esta protecção e solicitude: ―Do

————— 63 2C, 204, in FF I, 2ª edição, p. 537. 64

TCL, 38 e 48, in FF II, pp. 71 e73. 65 TÇL, 29, in FF II, 71.

Page 30: minoridade Clara de Assis

30

mesmo modo recomendo as minhas irmãs presentes e futuras ao sucessor

do nosso bem-aventurado Pai Francisco e a toda a sua Ordem, para que

nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus e a observar

cada vez melhor, sobretudo, a santíssima pobreza‖66

.

Ao redigir a Regra, a Irmã Clara, recordando que no início da sua

conversão, ela e suas irmãs, haviam prometido obediência ao bem-

-aventurado Francisco, no capítulo I, deixa expresso o seu desejo e a sua

vontade de forma irrevogável: ―… da mesma maneira promete obediência

inviolável aos seus sucessores. E as outras Irmãs estejam sempre obrigadas

a obedecer ao sucessor do bem-aventurado Francisco‖67

.

Quem não vê implícita, nas entrelinhas dos textos de Francisco e de

Clara, a vontade de tão santos fundadores, de que as Irmãs Clarissas

tenham com o Primeira Ordem Franciscana ligação jurídica bem

definida?…

Esta filha querida do ―Poverello‖ encarna, de forma ímpar, o ideal

recebido e, na clausura de São Damião, sustenta e anima os seus Irmãos na

fidelidade ao projecto de Francisco. Depois da sua morte, a 11 de Agosto

de 1253, os Irmãos Menores ―descobrem em Clara a guarda do projecto

evangélico originário‖68

.

Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os

profetas de que a Igreja precisa. No século XIII, Francisco e Clara foram

instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada.

————— 66 TCL, 50, p. 73; RCL, 4, p. 53, in FF II. 67

RCL, I, 4, in FF II, p. 45 68 Frei Giacomo Bini, op. cit., p. 21.

Page 31: minoridade Clara de Assis

31

A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS

Marco Bartoli*

————— * Das Actas do Congresso celebrado em Roma, em 26 e 27 de Novembro de 2002,

Minores et subditi omnibus

Page 32: minoridade Clara de Assis

32

A MENORIDADE EM CLARA DE ASSIS

O tema da minoritas (menoridade) em Clara de Assis é um problema

historiográfico assaz intrigante sob muitos aspectos. Entrando nele

directamente, poderíamos perguntar: por que razão os discípulos de

Francisco se chamaram irmãos menores e as mulheres, que também

prometeram obediência, nunca se chamaram irmãs menores?

A resposta não é tão simples como pode parecer, tanto mais que a

designação de irmãos menores não é de todo ignorada nas fontes coevas,

nem a menoridade, como conteúdo, deixou por certo de merecer alguma

vez todo o apreço da própria Clara1. Afonso Marini recorda, por exemplo,

uma passagem da segunda carta a Inês da Boémia, em que se diz: ―Eu te

exorto a não esqueceres o teu santo propósito e, qual outra Raquel, não

————— 1 Eu mesmo, como muitíssimos outros antes de mim, a propósito da da menoridade de

Clara, mesmo em sede de congresso, utilizei outro famoso texto dos escritos de Clara,

da Regra, que diz: ―Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela

aquilo que mais convém”(cf. Fontes Franciscanas II, Editorial Franciscana, Braga,

1996, obra que citaremos neste artigo como FFII). A expressão é ao mais

pequenino(menor) que o senhor revela, é tirada da regra de S. Bento (cf.3,3), mas ali se

diz iuniore (o mais jovem). Clara parece ter substituído conscientemente a palavra

iuniore por minori tirando o acento tónico do problema da idade para a importância no

seio da comunidade. Tudo isto pode ser sugestivo, mas devemos deixar isto de parte,

porque uma leitura recente duma Bula que continha a Regra, conservado no

Protomosteiro, estabeleceu que a leitura correcta é iuniori, tal como vem na Regra de S.

Bento. Agradeço ao P. Lehmann o haver-me esclarecido sobre este erro, e sobretudo o

último estude de CHIARA AGNESE ACQUADRO, ――Frecuentemente el Señor revela al

menor lo que es mejor‖. Um erro de leitura já velho, de cinco séculos». Em Collectanea

Franciscana 71 /3-4(2001), 521-526.

Page 33: minoridade Clara de Assis

33

percas de vista as motivações do início. Mantém-te firme no que já

alcançaste‖2. Segundo Marini, ―Raquel, mulher de Jacob, com a irmã mais

velha, Lia, era tida como símbolo da vida contemplativa, já que no Génesis

20,16, se lê que Raquel é a filha menor de Labão. Ora o «início‖ a que

Inês, qual outra Raquel, é convidada por Clara a ter sempre presente,

parece ser aqui a ―menoridade‖ franciscana, mais do que a contemplação

em sentido estrito3.

Seja como for, em todos os escritos de Clara o termo menor está

exclusivamente associado aos irmãos menores, como se o ter de aludir

sequer à condição de menoridade lhe provocasse algum pudor ou reserva.

É talvez devido a este silenciamento que, tanto quanto sei, não são muitos

os estudos dedicados ao tema da menoridade em Clara de Assis4.

Esta escassez de estudos não deixa de nos surpreender um tanto, pois

sabemos, por outra parte, que o primeiro e conhecidíssimo testemunho

sobre o movimento iniciado por Francisco de Assis falava explicitamente

não só de irmãos como também de irmãos menores. Aludo aqui, como se

está a perceber, à carta de Tiago de Vitry, escrita em 1216, imediatamente

após a sua participação em Perusa nas exéquias de Inocêncio III: ―Apesar

de todo o mal que grassa pelo mundo, encontrei uma grande consolação

ao ver uma enorme quantidade de homens e de mulheres renunciar a todos

os bens e a deixar, por amor de Cristo, a vida mundana. Eram vulgarmente

chamados Irmãos e Irmãs menores. Tanto o senhor Papa como os

Cardeais professam uma grande estima por estes irmãos‖5.

Poder-se-ia pensar que Tiago de Vitry se tivesse simplesmente

confundido, aplicando às mulheres o mesmo nome utilizado para os

homens. Mas talvez se possa avançar outra explicação. Alguns anos mais

tarde, o Papa Gregório IX, na carta Ad audientiam nostram de 21 de

————— 2 2CCL 11 3 «Antologia degli scritti di santa Chiara», a cura de A. MARINI, em Chiara d’Assisi.

Con Francesco sulla via di Cristo, Asís-Santa Maria dos Anjos 1993, 51-661; 115-152,

a citação está na p. 132. 4 Um dos pouco que em tempos relativamente recente se interessou pelo temo foi P.

OPTATO VON ASSELDONK, ――Sorores minores‖. Um nova visão do problema», em Sel.

Fran. 69 (1994) 373-406. 5 FFII p. 477

Page 34: minoridade Clara de Assis

34

Dezembro de 1241, tomava posição contra algumas mulheres a quem

chamavam ―minoretae‖ (menores): ―Aos veneráveis irmãos, Arcebispos e

Bispos que recebam esta carta, saúde e bênção apostólica. Sabeis certa-

mente que chegou ao nosso conhecimento o caso de algumas mulheres

que circulam pelas vossas cidade e dioceses e falsamente afirmam fazer

parte da ordem de São Damião. Para se tornarem mais credíveis, andam

descalças e vestem o hábito das monjas da dita Ordem. Por isso lhes

chamam descalças, cordígeras ou menores. É sabido que as monjas de S.

Damião vivem a clausura perpétua como serviço prestado a Deus. E uma

vez que isso causa perplexidade à Ordem de São Damião e indignação aos

Frades Menores e esta falsa Ordem causa escândalo aos ditos frades e às

ditas monjas, ordenamos com esta Carta Apostólica, a todos vós, que as

obrigueis, com censura eclesiástica, a renunciar a tal hábito e respectivo

cordão, depois de as terdes admoestado logo que sejais informados da sua

presença, concedendo-lhes faculdade de apelar‖6.

Era pois desta forma que o Papa afirmava não convir tal menoridade

às monjas da Ordem de São Damião, embora, por outro lado, as suas

palavras sejam a prova provada de que a menoridade nos meados do

século XIII não era apanágio apenas de homens, antes andava igualmente

associada a grupos de mulheres que viviam a opção franciscana numa vida

itinerante. A este respeito, Maria Pia Alberzoni observou ser ―significativo

que tal fenómeno (das minoretae) só se tivesse manifestado nos inícios da

década de 40 de 1200, o que poderá indiciar o facto de haverem estado até

então no centro das atenções, mercê da mediação de Frei Elias, e de serem

reconhecidas de alguma maneira pela Ordem franciscana ou por uma parte

dela, e encaminhadas na direcção das que definimos como fundações de

clarissas (clareanas)‖7.

Segundo um testemunho tardio, Francisco teria reagido vivamente

contra a denominação de irmãs menores a si próprias arrogada por certos

————— 6 FFII p. 474 7 M.P. Alberzoni, Chiara e il papato, Milan, 1995, 91. Há que observar que no século

XVII, L. Iacobili, historiador da santidade da Umbria, anotava, referindo-se ao ano

1216: ―Santa Clara de Assis veio a Folinho em companhia de Marsebilia e Cristiana,

suas discípulas, para edificar um mosteiro da sua Ordem de São Damião, chamado

depois das Minorisse…”, Folinho, Biblioteca Iacobilli, cod. A.V. 6, c. 56; ed. Em M.

SENSI, ―Le clarisse a Foligno nel sec. XIII‖, em CF 47 (1977), 358, documento II.

Page 35: minoridade Clara de Assis

35

grupos femininos, ou porventura a elas atribuída a partir do exterior8.

Teria inclusivamente invocado a assistência do cardeal Ugolino para que

―de futuro, se não chamassem irmãs menores, mas dominae, ou seja,

senhoras9. Embora tardia, esta tradição revela no entanto que persiste um

certo embaraço nos ambientes franciscanos, face ao termo menores

aplicado às mulheres, embaraço que vemos repercutir-se ainda em Fra

Mariano de Florença, no início do séc. XVI, no seu Libro della dignità et

le excellentie… ―Mas quando São Francisco voltou de Santiago e ouviu da

parte dos irmãos que se tinham edificado mosteiros em muitas terras e

cidades e que muitas irmãs se chamavam menores, grandemente se doeu

por não querer tê-las ali perto, dando aso a que os irmãos tivessem

familiaridades com mulheres e daí se levantassem sinistras suspeitas entre

o povo. Pelo que não quis tomar conta delas, excepto as já mencionadas,

de São Damião‖10

.

Parece certo, todavia, que em contextos de algum modo periféricos,

relativamente à região umbro-toscana onde nasceram as primeiras

comunidades próximas da experiência de São Damião, a designação de

————— 8 «Dizia o mesmo Fr. Estevão que o bem-aventurado Francisco não queria ter familia-

ridade com nenhuma mulher e não permitia que as mulheres o tratassem com modos

familiares; só parecia ter afecto para com a bem-aventurada Clara. E, não obstante,

quando falava com ela ou falava dela, tratava-a sempre com o nome de ‗cristã‘. E tinha

grande solicitude para com ela e seu mosteiro. E nunca autorizou a fundação de outros

mosteiros, mesmo que alguns tenham sido abertos, mas por influência de outros. E

quando soube que as mulheres, reunidas nesses mosteiros, se chamavam irmãs, per-

turbou-se muito e exclamou: ―O Senhor tirou-nos as mulheres e o diabo deu-nos as

irmãs‖. O Cardeal Hugoloino, bispo de Óstia, então Protector da Ordem dos Menores,

acompanhava estas irmãs com grande afecto. Uma vez ao despedir-se de Francisco,

disse-lhe: ‗Confio-te estas senhoras‘. Francisco, então, respondeu-lhe com graça: ‗Santo

pai, de agora em diante não se chamarão irmãs menores, mas como tu disseste,

senhoras‘. E desde então, chamaram-se Senhoras e não Irmãs», em Fonti Francescane

2682-2683. 9 Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti FrancescaneI, p.315 10 MARIANO DE FLORENCIA, Libro della dignitá et le excellentie del Ordine della

Seraphica Madre delle Povere Donne Sancta Chiara da Assisi (Biblioteca de Estudios

Franciscanos 18), edição preparada por G. Boccali, Florencia-Assis 1986, 55, n. 39. Isto

no seguimento duma larga tradição, dado que, por exemplo, numa compilação de Paris

do século XIII, na perícopa narrada por Fr. Estevão, vem anteposta a assinatura

―(Francisco) não queria que se chamassem menores, mas senhoras‖, AFH 76 (1983),

89, n. 504.

Page 36: minoridade Clara de Assis

36

irmãs menores fosse aplicada também a experiências de vida em comum. É

o caso, por exemplo, de Verona, cujas transformações institucionais foram

estudadas por Varanini11

; não se devendo também esquecer que no códice

de Volterra, onde se encontra o texto audite poverelle, junto à regra de

Clara, se lê: ―Esta é a Regra das senhoras ―minoritas‖ de Verona da

Ordem de santa Clara de Campo Márcio‖12

. Digno de menção é ainda o

caso de Trento. onde um grupo de mulheres, de inspiração inegavelmente

franciscana, vivia, ao que parece, uma vida religiosa em comum ao serviço

dum hospital13

. O caso de Trento surge ainda mais significativo se

tivermos em conta o facto de terem partido precisamente de Trento as

quatro mulheres que deram início ao mosteiro de são Francisco de Praga,

projectado e fundado em íntima e explícita relação com São Damião por

Inês da Boémia14

. Importa não esquecer finalmente que as mulheres que se

tinham reunido em volta de Isabel, irmã do rei Luís IX; eram

habitualmente chamadas minorese (minoritas?) e que numerosos

mosteiros, também em Itália (entre os quais o de São Lourenço in

Panisperna, em Roma) tinham tomado a Regra e denominação de Isabel15

.

Em todo o caso, no território umbro-toscano, a partir da década de

40 do ano 1200, o termo menores deixa de se aplicar às comunidades de

vida religiosa feminina agregadas à experiência de Clara. A condenação

formal das ―minoretae‖ constituía de facto um impedimento insuperável ao

uso do mesmo termo para as comunidades de vida religiosa unidas a São

Damião. É bem conhecido, por outra parte, o facto de que, enquanto nas

Constituições de Ugolino se preferir o termo senhoras pobres, Clara, nos

seus escritos, prefere falar de irmãs pobres, conforme diz solenemente no

começo da Regra: ―A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, instituída

pelo bem-aventurado Francisco, é esta: observar o santo Evangelho de ————— 11 G.M. VARANINI, «Per la storia dei Minori la Verona nel Duecento», em Minoritismo

e centri venetoi nel Duecento, edicão preparada por G. Gracco («Civis. Studi e testi», 7

(1983)), 93-101. 12 A notícia relativa à Audite Poverella encontra-se na Collectanea Franciscana 48

(1978), 17. Cf. Também a nota de G. Bocali ao texto de mariano de Florencia, Il libro

della dignitá…, 58, n.1. 13 G.M. VARANINI, Uomini e donne in comunitá, (Quaderni di storia religiosa 1994). 14 Sobre os acontecimentos veja-se A. MARINI, Agnese di Bohemia, Roma 1991,

(Biblioteca seráfico-cappucina, 38). 15

Cf. A. BLASUCCI, «Clarisse Isabelliane o Minoresse», em Dizionario degli Stituti di

Perfezione, II, Roma (1975), 1.146.

Page 37: minoridade Clara de Assis

37

Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em

castidade.‖ Nenhuma dúvida pode haver de que, aqui, Irmãs Pobres é a

tradução no feminino de Irmãos Pobres, que se encontra na respectiva

passagem da Regra bulada. A hipótese que se pode legitimamente adiantar

é que Clara, na impossibilidade de usar o termo irmãs menores (sobretudo

depois da carta Ad audientiam nostram de Gregório IX) teria optado por

Irmãs Pobres, expressão que mais próxima lhe soava.

Fica no entanto por explicar a relutância por parte das mais altas

autoridades eclesiásticas relativamente ao uso do termo menores, aplicado

às experiências religiosas femininas. Nesse intento, talvez seja útil tentar

estabelecer qual o valor semântico do termo no séc. XIII. Desejaria tomar

como ponto de partida a definição de menoridade optada por Pedro de

João Olivi no seu comentário à Regra, por se tratar dum texto redigido

poucos anos depois da morte de Clara e reflectir de algum modo a cultura

e sensibilidade então dominantes em toda a Ordem.

―Ao falar, pois, dos irmãos menores, mostra claramente que a

principal virtude e razão desta Regra está na suma submissão e humildade

e na unidade íntima do amor fraterno‖16

.

É meu entendimento que Olivi identificava nestas palavras dois

significados principais, um, por assim dizer, de cariz social, a ―submissão,

e o outro, mais especificamente religioso, a ―humildade‖.

Relativamente ao primeiro aspecto, parece-me indubitável que

menoridade tem um valor muito concreto: o daquele que se encontra na

situação de dependência, de inferioridade, de submissão em relação a

outrem, como recorda Francisco no Testamento: ―Éramos sem letras e a

todos submissos.‖. Conforme já notava Estanislau de Campagnola, ―a

origem da designação de irmãos menores nasceu sem dúvida de um tipo

de conduta evangélico, mas exprimia também uma renúncia às distinções

entre ―maiores‖ e ―menores‖ que dominavam e se entrechocavam nas

grandes cidades italianas. Exactamente quando Francisco voltava de

Roma, concluiu-se em Assis (9 de Novembro de 1210) um pacto entre

―maiores‖ e ―menores‖, em virtude do qual a população do Município

————— 16 D. FLOOD, Peter’s Olivi Rule Commentary, Wiesbaden 1972, 117.

Page 38: minoridade Clara de Assis

38

obteve a isenção do serviço e menagem feudais em vista duma pacífica

convivência entre as duas classes‖17

.

A menoridade franciscana revestia-se também de um carácter

especificamente social. Para usar as mesmas palavras de Raoul Manselli:

―entrar a fazer parte (da fraternidade) significava também aceitar a vida, ou

seja, aquela condição de marginalidade relativamente ao resto da

sociedade que Francisco escolhera depois do encontro com o leproso e

que, baseada na leitura do Evangelho, ele próprio tinha podido precisar e

clarificar depois, averbando por escrito o projecto duma Regra a aprovar

pelo Papa‖18

.

Parece-me ter sido justamente este aspecto social que constituiu o

maior problema para as mulheres que desejavam seguir Francisco no

caminho da menoridade. O abandono de qualquer estatuto social garantido

e a opção duma vida a todos submetida devia constituir motivo de

preocupação, tratando-se de mulheres jovens como Clara e suas com-

panheiras. Há uma reflexão sobre este problema na Legenda da virgem

Santa Clara, quando se fala da reacção dos familiares apenas souberam

que Clara se tinha refugiado em São Paulo das Abadessas: ―…juntaram-se

e dirigiram-se ao local. Usando da força e da violência, conselhos

dissuasores e promessas vãs, tentaram demovê-la de situação tão humi-

lhante e tão em desacordo com a sua condição e sem precedentes nas

redondezas‖19

. Os familiares querem convencer Clara a renunciar a tal

vileza (vilitas), que as Fontes Franciscanas traduzem por ―condição de

humilhante baixeza‖, de todo inconveniente para a famílias e sem

precedentes na região.

Esta ―vileza‖ de Clara, como já tentei demonstrar noutra ocasião, não

consistia tanto na opção pela vida monástica, como certamente na venda

que fizera do dote e na distribuição do seu produto pelos pobres.. Neste

sentido, a vileza identifica-se com a submissão e a menoridade: uma vez

em São Paulo das Abadessas, Clara devia ser não já uma monja de coro,

mas, muito mais modestamente, uma simples irmã serviçal. Tal condição

————— 17 STANISLAO DA CAMPAGNOLA, Introduzione, em Fonti Francescane, p. 315. 18

R. MANSELLI, Vida de san Francisco de Asís, Ed. Franciscan Aránzazu, Oñati, 1977 19 LCL 9, FFII, p. 246

Page 39: minoridade Clara de Assis

39

era considerada aviltante para uma jovem, filha duma das melhores famílias

de Assis.

Que a Legenda não se enganava muito, ao descrever a opção de Clara

como desusada na região, pode ver-se no confronto com outras vidas de

santas mulheres, suas contemporâneas. Se examinarmos, por exemplo, o

antigo ofício litúrgico redigido em honra de Filipa Mareri antes de 1247,

verificamos como esta mulher, de nobre linhagem, escolheu certamente o

desprezo do mundo com as suas dignidades e riquezas, mas permaneceu

no território do feudo da família com algumas companheiras, depois de ter

recebido do irmão um público instrumento de estável isenção e de

perpétua liberdade. Em suma, mesmo escolhendo a via evangélica do

amor a Deus e ao próximo, Filipa era e continuou a ser baronesa20

.

Percurso análogo ao de Filipa é o de Margarida Colonna, que continuou a

viver no feudo da família, unida aos seus famosos e importantes irmãos21

.

Rosa de Viterbo, que provinha duma família porventura nada pobre,

era certamente mulher do povo e não uma aristocrata, e a sua opção de

vida religiosa, permanecendo laica, não comportou qualquer mudança no

ponto de vista social22

.

Mudança em sentido inverso foi a que viveu Margarida de

Cortona, que, para alcançar uma impossível proeminência social, fugiu de

casa para viver maritalmente com um jovem abastado de Montepulciano.

A morte súbita deste levou Margarida a uma amarga reflexão sobre as suas

opções de vida e, em consequência, a escolher sem vacilações o caminho

da penitência. Do ponto de vista pessoal, certamente que Margarida terá

tido uma consciência humilíssima de si mesma, unida a um arguto

conhecimento do próprio pecado, mas do ponto de vista social nada

————— 20 Cf. E. PASZTOR, «Filippa Mareri e Chiara d‘Assisi», em Donne e sante. Studi sulla

religiosità femmenile nel Medio Evo, Roma 2000, 173-196. 21 Sobre Margarita Colonna consulte-se: B. Margherita Colonna. Le due vite scritte dal

fratelo Giovanni senatore in Roma e da Stafania monaca de S. Silvestro in Capite,

textos inéditos do século XIII ilustrados e publicados pelo P. Livario Liger, OFM,

Roma, 1935. 22 Entre as muitas publicações sobre Rosa de Viterbo, gostaria de aconselhar o que

sinteticamente escreveu, há algum tempo, o P. MARIANO D‘ALATRI, Rosa da Viterbo tra

mito e storia, en «Lunario Romano 1979»: Feitos e figuras de Lazio medieval, 345-354.

Page 40: minoridade Clara de Assis

40

houve, no seu percurso biográfico, que se assemelhasse à mencionada

―vileza‖ que tinha caracterizado o de Clara de Assis.23

Outra figura, sempre associada ao mundo dos laicos que gravitavam

em torno do movimento franciscano, além do de Margarida de Cortona, é

Humiliana dei Cerchi. Também ela, não obstante as graves incompreensões

que a opuseram ao pai depois da morte do marido, permaneceu sempre em

casa da família, no centro de Florença24

. Um pouco à semelhança das

outras piedosas mulheres, viveu uma vida de penitência e de mortificação

pessoal, praticando a pobreza voluntária e a renúncia aos bens. Apesar

disso, de nenhuma delas se poderia falar de autêntica opção de

menoridade, enquanto opção de submissão e de ignobilidade.

A única figura feminina que, em certo sentido, se aproxima de Clara

neste aspecto só além dos Alpes a vamos encontrar. Refiro-me a Isabel de

Hungria. Falecido o marido, renunciou ao seu próprio estatuto social,

vendeu os bens e, com o produto granjeado, mandou construir uma lepro-

saria, onde passou o resto dos breves dias servindo os enfermos e os

pobres25

.

A menoridade, tanto para Clara como para Isabel, teve também um

valor social: ambas renunciaram às comodidades próprias da sua condição

a fim de se colocarem conscientemente ao serviço de todos,

designadamente dos últimos dos últimos. Em Clara, certamente mais do

que em Isabel, esta opção foi por ela encarnada numa vida religiosa em

comunidade, e é por isso que, tanto a dimensão social como a religiosa de

menoridade, aparecem nela estreitamente unidas.

————— 23 No que respeita a Margarida de Cortona, o texto de referência é a Legenda de vita et

miraculis Beatae margaritae de Cortona, edição crítica preparada por Fortunato

Iozeelli, Grottaferrata 1997. 24 Sobre as Humiliatas vejam-se os trabalhos de Ana Benvenutti, reeditados em «In

Castro poenitentiae». Santità e società femmenile nell’Italia medievale, Roma 1990

sobre todo mas pgs. 59-100. 25 Sobre Isabel da Hungria e sobre a relação da sua espiritualidade com o dos Frades

Menores consulte-se «Elisabetta d‘Ungherria», em Il grande libro dei Santi, Dizionario

enciclopédico, col. I, Cinisello Bálsamo 1998, 591-594.

Page 41: minoridade Clara de Assis

41

A par da submissão, encontramos em Clara, fortemente vincada, a

humildade. Na Legenda da virgem Santa Clara sublinha-se a miúdo,

quase como uma constante de biografia monástica, o facto da abadessa

não desdenhar dos serviços mais desprezíveis. De Clara se diz inclusi-

vamente que não tinha o menor pejo em esvaziar os vasos de cabeceira das

irmãs doentes e de as servir à mesa, mas, para além deste lugar comum

hagiográfico, cuja veracidade se não deve pôr em dúvida26

, impõe-se

sublinhar a forma como Clara quis construir a sua comunidade sobre o

modelo duma família normal, mas numa correlação diametralmente

inversa.

A frase que melhor ilustra este modelo está contida no capítulo X da

Regra, onde se diz: ―A abadessa trate as irmãs com tanta familiaridade,

que possam elas falar-lhe e tratá-la como senhoras a sua serva; pois assim

deve ser: que a abadessa seja a serva de todas as irmãs‖27

. Apesar desta

frase ter paralelo equivalente na Regra bulada28

, pode considerar-se como

uma expressão basilar do pensamento da santa. Clara sabia muito bem com

que perversidade se dirigiam os senhores às suas servas nas casas

senhoriais e, por isso, quis inverter explicitamente este modelo na sua

Regra: a abadessa devia aceitar ser tratada como serva pelas irmãs. Neste

sentido, embora a palavra, nos escritos de Clara, jamais se aplique ao

serviço em favor das irmãs, a sua humildade comunitária encarna duma

maneira precisa uma atitude de fundo da menoridade inculcada por São

Francisco: a do serviço. Ministrare significa ―servir‖, mas servir nos

trabalhos domésticos, como Marta do evangelho, que se lamentava ao

Senhor de a irmã a ter deixado sozinha a ministrare. O retrato que Clara

faz na sua Regra da abadessa é justamente a de serva ou, melhor ainda, a

de famula (que é o exacto paralelo feminino de minister) que não

desdenha ocupar-se das actividades mais servis. Este aspecto da sua

humildade revela, a meu ver, melhor que qualquer outro, o lado doméstico

e comunitário, por assim dizer, da menoridade de Clara. Ainda hoje, se é

verdade que as abadessas clarissas, diferentemente do que acontece

noutras famílias religiosas, não apresentam no hábito qualquer sinal

exterior que exteriorize a sua dignidade, deve-se provavelmente à influên-

————— 26 LCL 12, FFII p. 249. 27

RCL 10, 4-5, FFII p. 59. 28 2R 10, 5-6.

Page 42: minoridade Clara de Assis

42

cia da menoridade de Clara ao longo duma tão grande experiência comu-

nitária.

Se voltarmos à definição de menoridade proposta por Pedro de João

Olivi, sobre que nos detivemos ao princípio, há ainda um ponto a salientar:

―Ao falar, pois, dos irmãos menores evidencia claramente que a principal

virtude e razão desta Regra consiste na perfeita submissão e humildade e

na íntima unidade do amor fraterno‖. Para Olivi, a perfeita submissão e

humildade não é certamente uma debilidade, antes uma força (virtude) e

um sentido profundo (razão) da Regra.

Talvez valha a pena determo-nos neste sentido de força e de virtude,

já que na linguagem corrente de hoje a menoridade anda frequentemente

associada a uma ideia de debilidade, se não mesmo de aviltamento e

sujeição. Aqui chegado, permito-me sair de uma envolvência estritamente

historiográfica para observar como hoje em dia um modelo cultural em

certo sentido superior, sobretudo nos países mais ricos, cultiva e reforça o

sentido de impotência29

. Este sentido funciona no caso da multiplicação

das informações que caracterizam o mundo globalizado. Nunca, como

hoje, os homens e as mulheres tiveram um tal acesso às notícias do mundo

inteiro. Toda a notícia mereceria uma reacção, um assumir de

responsabilidades, segundo o princípio enunciado por Paulo VI (―jamais

poderemos dizer que não sabíamos‖). Se não queremos ser esmagados

pelo sentido de culpa, impõe-se que nos refugiemos no sentido de impo-

tência que permita dizer: os problemas são tantos que nada posso fazer.

Por isso, a impotência chega a ser funcional para o caso da pretendida

inocência ou, talvez melhor, para a não culpabilidade.

Em certos aspectos, este sentido de impotência compagina-se com a

menoridade. Ambos albergam o conhecimento da própria pequenez e

finitude pessoais, mas, ao passo que a impotência, apregoada pelos actuais

mass media, induz à resignação e passividade relativamente ao mundo e

seus problemas, a menoridade optada por Francisco era conhecida por

toda a primeira geração minorítica (pelo menos até Pedro de João Olivi,

inclusive) como uma virtude, uma força e uma oportunidade.

————— 29

O P. RICOEUR, em La memoire, l’histoire et l’oubli, Paris, 2000, dedicou páginas

interessantes ao tema da sensibilidade vitimista.

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43

Para mim tenho que este sentido forte de menoridade foi igualmente

o de Clara, que, desfrutando embora de um sentido vivíssimo da sua

pequenez, possuía também um fortíssimo sentido de que a menoridade por

ela escolhida voluntariamente era abençoada pelo Senhor que a

confortava. É o que transparece, por exemplo, na sua famosa bênção, com

cujas palavras me parece oportuno concluir:

―Eu vos abençoo durante a minha vida e depois da minha morte,

quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das

misericórdias concedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espi-

rituais, no céu e na terra, e com as quais um pai ou mãe espiritual abençoa

e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Assim seja‖.

Traduziu Fr. José David Antunes

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Page 45: minoridade Clara de Assis

45

ALEGRIA E PAZ

Fr. Timothy Radcliffe op*

————— * Conferência proferida durante o Capítulo Geral dos Franciscanos – Junho de 2003

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46

ALEGRIA E PAZ

É para mim uma grande alegria estar no meio de vós. Quando eu fui

Mestre Geral dos Dominicanos, a relação com a vossa Ordem era muito

importante para mim. Tive uma grande amizade com Fr. Hermann e Fr.

Giacomo e os nossos Conselhos reuniram, em conjunto, por várias vezes.

Pediram-me para partilhar convosco alguns pensamentos sobre a

missão. A concepção franciscana e dominicana de missão é ao mesmo

tempo semelhante e diferente.. Temos uma longa história partilhada sobre

a missão. O primeiro documento oficial da Igreja enviando os franciscanos

em missão, assinado por Honório III em 1225, também se dirigia aos

dominicanos. Fomos enviados juntos como missionários ao norte de

África. Também houve problemas entre nós, como sempre acontece entre

irmãos.

Quando li o relatório do Fr. Giacomo a este Capítulo Geral, pareceu-

-me semelhante àquele que enviei ao nosso último Capítulo. Enfrentamos

os mesmos desafios e temos projectos semelhantes: uma comunidade

internacional em Bruxelas; o reforço duma comunidade em Istambul;

renovação na África do Norte, etc. E também temos uma Comissão de

Direitos Humanos em Genebra. Algumas vezes tive de me concentrar para

me assegurar que não estava a ler o meu próprio relatório. Mas também

somos muito diferentes, como o foram Francisco e Domingos. Assim

espero que o que vou dizer sirva de complemento. Se não, ficarei

consolado recordando um dos meus irmãos da Conferência dos Estados

Unidos: Quando se sentou, depois de falar, pareceu-lhe que os aplausos

tinham sido fracos. Um pouco desgostoso desabafou com o vizinho:

―Espero que a conferência não tenha sido tão má‖! Ao que o outro

respondeu: ―Deixa lá. A culpa não é tua, é de quem te convidou‖!

Page 47: minoridade Clara de Assis

47

Primeiro, um comentário introdutório: estão a reflectir sobre a missão

num clima de crise para a vida religiosa. A maioria das Ordens religiosas

sentem as mesmas dificuldade: A escassez de vocações em algumas partes

do mundo e o abandono desta forma de vida. No seu relatório diz o Fr.

Giacomo: ―Nestes anos a Ordem decaiu em número e isto ainda será mais

notório nos próximos tempos‖. Num tempo de crise, é fácil perder o ardor

missionário e voltar-se para dentro. É tentador preocupar-se pela

sobrevivência, de forma que cada Província olha as suas próprias

necessidade e esquece a missão de toda a Ordem, cada comunidade pensa

na sua própria sobrevivência e esquece a Província e cada frade esquece o

seu irmão e pensa só nas suas próprias necessidades. Quando começamos

a pensar em termos de sobrevivência, estamos acabados. Por que razão um

jovem se haveria de juntar a nós, se só pensamos em sobreviver? Ainda

bem que neste Capítulo não foram ir por aí e quiseram pensar na missão.

O mais importante é não temer esta crise. A nossa missão está em

partilhar a vida de Cristo. E a vida de Cristo esteve marcada pela crise. A

sua missão alcança a máxima crise na Última Ceia. Jesus reúne os

discípulos à sua volta, quando a comunidade se está quase a desintegrar:

Judas já O tinha vendido; Pedro está prestes a negá-lO. E a maioria dos

outros discípulos vai fugir. A vida de Cristo encaminha-se para o fracasso

e a derrota. Mas é num momento de crise que realiza o gesto tão cheio de

esperança: Toma o pão e dá-o aos seus discípulos dizendo: ―Isto é o meu

corpo entregue por vós‖. Quando a comunidade se está desintegrando,

proclama a nova Aliança. Cada eucaristia que celebramos actualiza o

memorial desta crise vencida e transcendida. Não há nada que temer

perante as crises. A Igreja nasceu duma. Seguir a Cristo é passar por

numerosas crises. As nossas Ordens viveram muitas: para vós a morte de

Francisco, para as nossas Ordens a crise da peste negra, a reforma, a

revolução Francesa, os dolorosos e gloriosos anos depois do Concílio

Vaticano II. As crises são o trampolim para o Reino.

Os Franciscanos, ainda mais que os Dominicanos, sempre acentuaram

que a sua missão se enraizava na forma de vida, a sua vida. Fr. Giacomo

diz no seu relatório: ―Mais que geográfica, a missão dos Franciscanos é

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48

antropológica‖1. Intuo que no coração de sua missão está a alegria de S.

Francisco. A sua regra manda que os frades vão pelo mundo ―com alegria

e felicidade‖. Ninguém acredita que um pregador tristonho é portador de

boas notícias. Como escreveu Nietzsche: ―Os discípulos de Cristo

deveriam mostrar-se mais redimidos‖.

S. Francisco e seus primeiros irmãos viviam cheios de alegria. As

cartas de Clara estão cheias de alegria. O mesmo se pode dizer de S.

Domingos e seus primeiros irmãos. Muitas vezes se descreve a S. Domin-

gos como um homem que ria com seus irmãos. E esta é a autoridade mais

fundamental dum pregador. Conta a história que um dia um grupo de

noviços começou a rir durante as Completas. Um dos irmãos mais velhos

zangou-se com eles por rirem na igreja. Mas Jordão da Saxónia, sucessor

de S. Domingos, repreendeu-o e disse aos noviços: ―Riam até vos apetecer

e não liguem ao que diz este irmão. Tendes a minha autorização. Devemos

rir quando nos conseguimos libertar do maligno… riam, pois, e

manifestem contentamento até à saciedade‖. Um frade tristonho não podia

ser membro da Ordem dos Pregadores.

O Cardeal Suhard, antigo Bispo de Paris, escreveu: ―Ser testemunho

não consiste em comprometer-se com propagandas ou amotinar as turbas,

mas em crer num mistério vivo. Significa viver de tal forma que a própria

vida não teria sentido se Deus não existisse‖2. As pessoas seriam atraídas

ao Evangelho se encontrassem em nós uma alegria inexplicável, que não

teria sentido se Deus não existisse. Seriam atraídos e ficariam atónitos com

a nossa alegria. Teria que ser um sinal interpelativo vivo e um convite. Um

dia passando pela cidade velha de Jerusalém, de regresso a casa, vi, através

duma porta, uma casa cheia de Hassidin que bailavam. Na sua alegria eu vi

a sua fé.

Francisco acreditava que a própria vida é uma entrada na vida de

Jesus. E a missão de Jesus começou com a alegria do Pai no baptismo.

Emerge das águas e escuta-se uma voz dizendo: ―Tu és o meu filho muito

amado, em ti pus as minhas complacências.‖ A fons et origo da missão de

————— 1 P. 88 2 Growth or Decline, Notre Dame 1951, quoted by S. Hauerwas, Sanctify the Time,

Edimburgh 1998, p. 38.

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49

Jesus é a alegria que o Pai tem no Filho e a alegria que o Filho tem no Pai,

que é o Espírito Santo. O mestre Eckhard, dominicano e místico alemão,

diz que no centro da vida de Deus há um riso incontível. ―O Pai ri com o

Filho e o Filho ri com o Pai, e o riso traz prazer e o prazer traz alegria e a

alegria traz amor.‖3 Diz que a alegria de Deus é como um cavalo

galopando num campo, cortando o ar com prazer.

Toda a nossa pregação é um convite às pessoas a encontrar o seu

lugar nessa alegria. Jesus iniciou a sua missão participando numa festa e

bebendo com cobradores de impostos e prostitutas. Encontrou prazer em

estar com eles; deleitava-se na sua companhia. A Igreja não tem nada que

dizer sobre qualquer assunto, mormente sobre moral, enquanto as pessoas

não sintam a Igreja como um espaço de alegria, no qual se Deus se

compraz. A gente mais marginal, cujas vidas são uma tragédia e não vivem

de acordo com as leis da Igreja, deveriam encontrar em nós, uma

comunidade que, de muitas formas, lhes diz: ―É maravilhoso que existais‖.

Os pregadores deveriam estar motivados por uma indescritível alegria, que

se levanta como um sinal interpelativo. Porque são estas pessoas tão

felizes? Qual é o seu segredo?

Neste Capítulo os franciscanos reflectem sobre a missão da Ordem

num contexto novo, o da aldeia global na qual todos os seres humanos são

vizinhos. Creio que a alegria franciscana tem, aqui, um especial teste-

munho a oferecer. Antes de mais é uma alegria que brota da pobreza, o

que parecerá uma loucura num mundo em que o dinheiro comanda.

Depois é uma alegria que sonha com o Reino e que é vital para um mundo

que já não sonha com o futuro.

A alegria de Francisco era a de um homem pobre que tudo recebia

como uma prenda. Como nada possuía, então viveu num mundo de total

generosidade. Cada bocado de pão era um presente. Diz-se que no

Capítulo das Esteiras, S. Domingos ficou surpreendido com a confiança

que os 5000 frades tinham em ser alimentados com ofertas (Fl 18). Natu-

ralmente os historiadores dominicanos duvidam da historicidade deste

relato.

————— 3 Sermão 18, in F. Pfeiffer, Aalen 1962 quoted in Murray, op. Cit. P. 132

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50

Esta mendicidade era mais que optimismo. Era uma maneira de estar

no mundo, onde tudo é experimentado como um dom. Francisco era um

homem sempre surpreendido pelos presentes que Deus lhes dava: comida

e bebida, luz e água, irmãos e irmãs e até a existência. Ser um mendigo é

viver num universo de dons. E Francisco teve sempre a alegria de um

eterno Natal. Este sentido de dom foi central, também, para a teologia de

Tomás de Aquino. Ele acreditava que se olhando o mundo com claridade,

com Veritas, verdade, então via-se que tudo é um dom de Deus. Percebe-

-se assim que a alegria franciscana e dominicana fundem as suas raízes

numa visão do mundo em clave de gratuidade.

Francisco recusou o mundo de seu pai, que era um comerciante, um

homem de mercado. Mas desde então o mundo inteiro converteu-se num

mercado. Tudo se converteu numa comodidade com um preço. Nos

tempos de Francisco e Domingos, ninguém pensava que pudesse possuir

terras. Alguém podia ter o uso da terra, mas esta pertencia a Deus.

Segundo Aquino, toda a posse privada estava condicionada pela bem

comum de toda a humanidade. Mas gradualmente tudo se pôs no mercado

que é este mundo moderno: terra e água, e sobretudo os seres humanos.

Agora quatro ou cinco das maiores companhias internacionais estão em

competição pela propriedade de todas as sementes e, por este meio, da

fertilidade da terra. Há até quem queira ter a propriedade do mapa humano

de ADN, tomando posse da nossa própria natureza. Por isso a alegria do

Poverello contradiz a forma moderna de olhar a realidade e abre os nossos

olhos para uma nova maneira de encarar o mundo. A minha experiência

diz-me que os irmãos mais felizes são os pobres. Vivem num mundo de

dons e quando falam de Deus as suas palavras têm autoridade. (E se não

sabem como desfazer-se das riquezas, podem entregá-las aos

dominicanos, para ver quem é mais feliz!…)

A alegria franciscana oferece outro tipo de desafios à nossa aldeia

global. É um desafio com perpectiva utópica. É a alegria daqueles que já

têm um pé no Reino. Isto verifica-se, sobretudo, nas histórias de S.

Francisco com os animais. Elas sugerem mais do que parecem. Quando

pregava às aves ou reconciliava os habitantes de Gúbio com o lobo, vemos

como o Reino começa a tornar-se presente: ―Então o lobo habitará com o

cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão

comerão juntos, e um menino os conduzirá‖ (Is 11, 6).

Page 51: minoridade Clara de Assis

51

Diz-se que quando pregava aos peixes, estes se retiravam felizes (Fl

40). (Eu sou um dominicano típico porque a minha primeira reacção a

estas histórias é perguntar como é possível saber se um peixe está feliz!

Temos uma relação diferente com os animais. Talvez porque somos

animais, os Domini Canes (cães do senhor)… pelo que devem tratar-nos

bem). Albertto Magno interessava-se pelos peixes, mas não os queria

compreender. Queria saber se faziam ruído ou não quando acasalavam e

oferecia às ostras pedaços de metal para ver se era verdade que os

comiam. Tinha uma serpente como mascote que se embebedou e andava

perdida pelos claustros4.

Esta utópica alegria franciscana é um convite ao nosso mundo

posmoderno. Vivemos numa sociedade que perdeu por completo a

capacidade de o sonhar no futuro. Eu cresci numa cultura onde se acre-

ditava que a humanidade se dirigia a algum sítio. Para uns era o paraíso

capitalista, para outros o paraíso socialista. Os carros e os aviões torna-

vam-se cada dia mais velozes. Os países foram libertados do governo

tirânico da Inglaterra. Até a comida inglesa mudou. Podiam-se comer rãs e

caracóis. O Reino estava próximo. Todos estes sonhos os resumiu Martin

Luther no famoso discurso de 28 de Agosto de 1963: ―Eu tenho um

sonho‖. O sonho era a liberdade, quando ―todos os filhos de Deus, homens

negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos forem

capazes de se dar as mãos e cantar com as palavras do velho cântico

espiritual dos negros: ―Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus

Todo-Poderoso, somos finalmente livres.‖

Quarenta anos depois, esses sonhos perderam-se. O muro de Berlim

caiu, terminou a guerra fria, mas como escreveu Fukuyama, a história

terminou. Vivemos na geração do hoje, do imediato, que tem medo de

pensar no amanhã. Não se vive o sentido duma humanidade a caminho

para um destino comum: o triunfo sobre a pobreza e a injustiça. Tivemos

algumas vitórias: derrubou-se a apartheid e já não existe o império

soviético. Mas há poucas situações como o Brasil do presidente Lula, que

nos oferecem alguma razão para acreditar que os sonhos ainda se podem

realizar. Parte da vossa missão como franciscanos é, certamente, renovar

————— 4 Simon Tugwell OP, Albert and Thomas: Selected Writings, New York, 1988, p. 29

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os sonhos da humanidade. É uma alegria que rejeita a resignação e o

fatalismo. Parra isso precisais de vos deixar penetrar duma alegria

escatológica, que seja a antecipação da alegria do Reino. Esta utopia pode

acabar mal, como sucedeu com os seguidores de Joaquim de Fiore, os

Fraticelli. Se o Evangelho deve ser pregado, temos de sonhar. Dizia Oscar

Wilde que nenhum mapa do mundo é exacto se não inclui a utopia.

Desta maneira a missão franciscana, fundada na alegria da genero-

sidade de Deus, desafia a mentalidade do mercado, onde tudo é comprado

e vendido. Será uma alegria escatológica que mantém viva a aventura do

nosso peregrinar. Se tendes que renovar o espírito de missão, então reflecti

sobre como manter viva esta alegria em vossas comunidades. Estão os

irmãos alegres em fraternidade? Isto implica um cuidado verdadeiro pela

felicidade do outro. Necessitamos de estar atentos à felicidade do nosso

irmão. Se não o fazemos, então as nossas pregações serão vazias.

Necessitamos de nos alegrar em nossos irmãos e deleitarmo-nos com o seu

ser. Mesmo sendo muito difíceis, talvez loucos, podemos aprender a olhá-

-los como Deus os olha, deleitando-se na sua mera existência. São

Francisco pede que nos alegremos com o que o Senhor faz e diz através

dos irmãos. Precisamos de nos deleitar assim com eles. Quando Fr. Ricério

passava por tempos de sofrimento e desespero, só precisava que Francisco

lhe dissesse que o amava, coisa que ele fez. ―Meu filho caríssimo, frei

Ricério, de entre todos os irmãos que há no mundo, eu te amo de maneira

particular‖ (Fl 27). Preocupamo-nos assim pela felicidade do irmão?

Temos coragem de lho dizer? Estão os nossos olhos abertos para os

aceitar como dom de Deus?

Também devemos estar atentos aos sonhos dos irmãos. A maioria das

pessoas são atraídas para a vida religiosa porque sonharam com uma vida

transformada. Isto ainda é mais certo tratando-se dos franciscanos. O

Poverello encanta os corações jovens. Acontece que quando os jovens nos

procuram constatam que o seus sonhos estão longe da realidade ordinária

e monótona da vida religiosa, onde vivem pessoas que não são melhores

que a maioria das pessoas do mundo. Isto é um choque e uma desilusão.

Os sonhos desvanecem-se e os jovens ficam tristes e muitas vezes

desertam. Precisamos de encontrar maneira de formar os nossos jovens

como sonhadores realistas, sem excluir a alegria utópica de Francisco.

Precisamos de irmãos com olhos abertos, capazes de nos olhar como

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53

somos, culpados, pecadores, débeis, e que, mesmo assim, podem sonhar.

Precisamos de os motivar para projectos loucos, como a ideia louca de

Francisco de ir converter o Sultão. Precisamos de os deixar experimentar e

fracassar algumas vezes e deixá-los sonhar de novo. Isto, certamente, que

faz parte da missão franciscana em relação ao mundo cuja actual geração

não olha para além do amanhã.

Uma verdadeira e profunda alegria cristã, cruza-se com a capacidade

de experimentar a tristeza e o sofrimento. De outra maneira seria um gozo

cego. Se os nossos corações não estão abertos ao sofrimento, então a

nossa alegria não passa dum contentamento vazio. A alegria de Francisco

é inseparável das chagas. Quando contemplou o Serafim do Alverne,

―baralhavam-se na alma a tristeza e a alegria incontida…‖(LM 6,1). S.

Domingos é descrito como rindo de dia com os irmãos e chorando de

noite com Deus o pecado e o sofrimento do mundo. Precisamos de

partilhar a Paixão de Cristo e todas as paixões do mundo: alegria, tristeza

e moléstias. Só seremos profundamente felizes se formos tocados pela

crucifixão deste mundo e pelas chagas de Cristo marcadas nos pobres.

A rede de informação global conecta-nos com as multidões de seres

humanos do planeta. É uma rede onde circula a informação, as notícias, a

cultura e, sobretudo, o dinheiro. É um maravilhoso mundo novo, mesmo

que muitas vezes, perante tanto informação, nos apeteça pôr de parte o

computador. Mas esta rede mundial de informação só inclui parte da

humanidade. Mais de 60% dos seres humanos nunca usou o telefone. A

maior parte de África está excluída.

Mas há uma rede mais ampla, da qual ninguém escapa e é, muitas

vezes, invisível. É a rede global da violência. A rede mundial do crime é

muito mais ampla que o comércio legítimo e está a crescer. Três das

maiores industrias de hoje são o contrabando de drogas, de armas e a

prostituição. Estas industrias são alimentadas pela imensa pobreza e

desigualdade do mundo, que leva campesinos em muitas partes do mundo

a cultivar cocaína e heroína e a milhões de mulheres e crianças a vender o

seu corpo. Há também um comércio crescente de órgãos. Quando os

pobres não têm mais nada para vender, vendem rins e córneas. É a

crucifixão dos pobres. Para muitas pessoas do ocidente esta violência está

oculta. No dia 11 de Setembro de 2001 explodiu perante os nossos olhos.

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Nesse dia a violência chegou a casa de cada um. Tudo o que tentamos

esconder, tornou-se violência visível. A alegria de Francisco será

superficial, se não é aprofundada pela dor perante a violência e o

sofrimento do mundo. As pessoas trazem em si as chagas de Cristo.

A pregação de Francisco, desde o princípio que estava encaminhada

para a construção da paz. Francisco cresceu num mundo violento. A

violência alastrava nas cidades do norte da Itália. Pregava construindo a

paz, como ficou patente em Gúbio, entre o povo e o lobo. Uma das

primeiras grandes pregações dos franciscanos foi em 1233, a grande

devoção. Foi uma missão partilhada com os dominicanos. A pregação era,

sobretudo, reconciliação dos inimigos. Frequentemente a pregação culmi-

nava com o beijo público da paz. Os frades muitas vezes tinham autoridade

para libertar os presos e perdoar as dívidas. Era a cura da comunidade.

Mas Francisco também foi confrontado com a violência das cruzadas

contra o Islão que ele rejeitou na sua visita ao Sultão. Como podem os

seus irmãos ser pregadores da paz neste mundo violento e crucificado?

Primeiro que tudo devemos marcar presença em lugares de

sofrimento. Isto significa que devemos correr o risco de nos expor à

violência deste mundo. A Regra primitiva cita Mateus: ―envio-vos como

ovelhas no meio de lobos‖ O primeiro requisito é estar aí, vulneráveis e

desprotegidos ante a violência do mundo. Nem todos os lobos podem ser

domesticados tão facilmente como o de Gúbio. Como Mestre dos Domi-

nicanos surpreendeu-me, nas minhas viagens pelos lugares mais obscuros e

violentos, encontrar a Igreja presente através de sacerdotes e religiosos e,

sobretudo, através das irmãs. Depois da fuga generalizada – homens de

negócios, diplomatas, até agências humanitárias contra a SIDA – a Igreja

mantinha-se firme no seu posto..

Pierre Claverie era um dominicano francês que foi bispo de Oran, na

Algéria. Foi assassinado em 1996 por fundamentalistas islâmicos por se

opor à violência. Os sacerdotes aconselharam-no a sair perante a iminência

do perigo e ele ficou. Umas semanas antes de ser assassinado, escreveu:

―A Igreja realiza a sua vocação quando está presente nas ruptures

(soa melhor em francês), nas fracturas que crucificam a humanidade em

sua carne e unidade. Jesus morreu estendendido entre o céu e a terra e

seus braços estenderam-se para reunir os filhos de Deus separados pelo

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pecado que os isola e os coloca uns contra os outros e contra O mesmo

Deus. Colocou-se a si mesmo nas linhas de fractura do pecado. Na Algéria

passa uma das linhas sísmicas que cruzam o mundo: Islão/Ocidente,

Norte/Sul, ricos/pobres. Aqui estamos verdadeiramente no nosso lugar,

porque é o lugar donde podemos vislumbrar a luz da ressurreição.‖

Na vossa primeira Regra acrescenta-se uma insinuação tipicamente

franciscana: uma maneira de estar presentes é ―não abrirem debates nem

discussões, (como os dominicanos, claro!) mas mostrarem-se submissos a

toda a humana criatura por amor de Deus(1Pe 2, 13)‖. Como diz a regra,

os pobres são os mestres (CCGG 93).

Recordo um dominicano francês que veio viver em Oxford nos anos

setenta, para aprender Bengali, preparando-se para a sua missão na Índia.

Durante anos trabalhou como sacerdote na Citroen, mas agora sentia-se

atraído pela sua nova missão. Numa ocasião perguntei-lhe quais eram os

seu planos ao chegar. Que projectos tinha feito? Respondeu que não tinha

planos. Ia para servir os pobres e os pobres lhe diriam o que devia fazer.

Estar sujeito a toda a humana criatura por causa do Senhor, significa que

trabalhamos com os seus critérios e a partir das suas necessidades. Não

vamos com programas pre-empacotados, antes deixamos que nos digam o

que precisam. Esta é a nossa alegria.

Isto ainda é mais evidente quando estamos presentes nos lugares onde

as religiões se encontram. A violência neste mundo está cada vez mais

relacionada com a religião. Frequentemente são as religiões do mundo que

dão voz a todas as dores, à pobreza, e ao sentido da injustiça que violenta

os pobres. É a religião, especialmente o Islão, que mais protesta contra as

culturas ocidentais que estão devorando o mundo, destruindo as culturas

locais. É por isso que necessitamos franciscanos dispostos a estar sujeitos

a toda a humana criatura por causa do Senhora, ali onde as culturas se

encontram e se chocam.

Estamos a crescer na Europa de Leste onde nos encontramos com os

cristãos Ortodoxos. Precisamos de estar presentes como os que servem

essas crenças Ajudamos a fortalecer e a renovar os Ortodoxos na Rússia

ou somos olhados como presença competitiva e destruidora? Estamos a

ajudar os Ortodoxos a ultrapassar os tempos estéreis do Império

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Soviético? Tanto os franciscanos como os dominicanos assumiram as

missões nos países islâmicos como prioridade da Ordem. Estamos aí para

servir os muçulmanos na sua luta para enfrentar a modernidade ou estamos

aí para os converter? Quando Pierre foi sepultado, cerca de mil

muçulmanos participaram no seu funeral e uma jovem mulher deu o seu

testemunho. Disse: ―Pierre conduziu-me à minha fé. Era o bispo dos

muçulmanos.‖

No fundo estamos a enfrentar os mesmos desafios do tempo de

Francisco: violência urbana e violência inter-religiosa. A nossa violência é

global. Nossos irmãos e irmãs, na República Democrática do Congo,

sofrem com uma guerra que está ligada aos países ocidentais que vendem

armas em troca de diamantes. Nós estamos ligados aos países que vendem

armas e ganham dinheiro com esse negócio. Ao mesmo tempo estamos

ligados aos que as compram e são assassinados com elas. Quando há

desnutrição em países de África, isso anda ligado frequentemente aos

imensos subsídios que os Estados Unidos e a União Europeia dão aos seus

agricultores, causa de destruição da agricultura de muitos estados

africanos. Estamos ligados votando a favor ou contra políticos que

impõem barreiras alfandegárias de comércio injustas, enriquecendo com

alimentos baratos e estamos ligados aos que por causa dessas políticas

morrem de fome. A morte de milhões de pessoas vítimas da SIDA está

ligada à resistência de companhias farmacêuticas em fornecer medica-

mentos baratos para os pobres do Terceiro Mundo.

Se temos de servir os pobres e deixar que eles sejam nossos mestres,

então a nossa presença é global. Precisamos de tomar consciência de que

os nossos territórios provinciais não são ilhas incomunicáveis de vida

religiosa, mas que fazem parte duma ordem mundial que acarreta novas

responsabilidades e um novo sentido de identidade. A violência global

necessita de uma resposta franciscana global. Não chega que os irmãos do

Congo enfrentem a violência do Congo. Também diz respeito aos francis-

canos americanos, franceses e britânicos. Todos participamos na rede de

violência. Se pensamos em termos de nossas pequenas províncias locais

estamos agarrados a um mundo que está morrendo.

Todos os frades se devem sentir em casa, neste mundo novo em que

as fronteiras nacionais já não são importantes. Pertencemos às primeiras

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57

organizações multinacionais da história. As fronteiras nacionais não

significaram nada para Francisco e Domingos. Domingos nasceu em

Espanha, fundou a Ordem em França, estabeleceu a cúria central em Itália

e esperava morrer pregando aos Comos na Europa de Leste. Nascemos na

mini-aldeia global do século XIII. Deveríamos florescer no grande mundo

do século XXI. Se quando o Ministro geral pede voluntários para uma

missão internacional nos desculpamos com as necessidades da Província, é

sinal de que ainda estamos agarrados ao velho mundo do estado-nação.

Uma reflexão final. Como podemos proclamar um palavra enérgica a

este novo mundo? Frente ao poder do mercado global, qual é a nossa

força? Frente à imensa riqueza dos donos do narcotráfico, das máfias do

crime, que podemos fazer? Frente à indiferença de tantas pessoas ao

cristianismo, como fazer escutar a nossa voz? Os jovens que no Ocidente

buscam uma religião, quase sempre correm atrás duma forma de budismo

já gasto ou dum panteísmo da New Age. Como podemos pronunciar uma

palavra que atravesse estas barreira de indiferença e hostilidade?

Estou convencido que estamos a entrar numa cultura que pode ser

altamente receptiva ao Evangelho. Só temos é de encontrar uma forma de

o proclamar. A velha era do capitalismo industrial está morrendo. O

mundo já não se rege pelo intercâmbio de matérias pesadas, da exportação

de ferro e carros. O poder não é primordialmente industrial com base no

vapor, carvão ou energia atómica. Está emergindo um novo mundo

marcado pela circulação das ideias, símbolos e sinais. Estamos a entrar na

―sociedade semiótica‖. É um mundo de imagens e de ícones. Uma

companhia mais que bens, vende logotipos, marcas através das quais as

pessoas constróem a sua identidade. Coca-cola não é só uma bebida, mas

um símbolo desta pertença à aldeia global. Um McDonalds abre-nos a

porta a esta cidadania universal.

No mundo da revolução industrial, o cristianismo podia, com frequên-

cia, parecer débil. Que fábricas possuíamos? Que força podíamos exercer?

Stalin perguntou: ―Quantas divisões militares tem o Papa?‖. Os exércitos e

as armas ainda contam, como se viu na guerra do Iraque. Mas seremos

capazes de pregar se encontramos os sinais e os símbolos apropriados. Os

símbolos e as imagens falam com muita força. A queda do juro de Berlim

foi mais que a destruição duma barreira física; a imagem do frágil

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estudante em frente do tanque de guerra na Praça de Tianamen teve mais

força que dez tanques.

O 11 de Setembro foi mais que a terrível perde de vidas humanas e

danos materiais. Foi um acto simbólico onde os símbolos do transporte

modernos derrotaram os símbolos do poder económico e militar do

Ocidente. Esses terroristas entendem o poder dos gestos simbólicos.

Provavelmente que a única resposta efectiva será dada através de gestos

que falem de paz. Um destes gestos foi a morte do nosso irmão, Michael

Judge, o capelão dos bombeiros.

Francisco foi um homem de gestos dramáticos. G.K. Chesterton

escreveu: ―As coisas que disse foram mais marcantes que as coisas que

escreveu. As coisas que fez foram mais imaginativas que as coisas que

disse… desde o momento em que se despojou das vestes e as atirou aos

pés do pai até ao momento em que se estendeu, moribundo, em forma de

cruz sobre a terra nua, a sua vida foi marcada por atitudes inconscientes e

gestos evidentes‖5. Como dizia Tomás de Celano, o seu corpo tornou-se

língua para proclamar o Evangelho. Os frescos de Giotto falam com mais

força de Francisco que de qualquer outro santo porque captam a força

destes momentos. Não sabemos exactamente o que disse quando visitou o

Sultão em Damieta. Mas sabemos que o gesto, em si, falou mais forte que

as palavras. E sabemos que buscou o sinal maior que é o martírio. Como

escreveu Francisco de Beer: ―A audácia de Francisco estava em pensar

que o seu martírio falaria mais ao islão que à Igreja. Contra a extrava-

gância das Cruzadas, o Islão requeria um testemunho radical de sentido

radicalmente oposto. O martírio é a objecção mais forte contra aqueles que

apoiam a intolerância de uma guerra santa. É uma anti-cruzada‖.6

―Todos os irmãos deveriam pregar com as obras‖, está escrito na

primeira Regra (1R 17, 3). Que obras se podem realizar de molde a

agitaras ânsias contidas de aventura do mundo de hoje? Que sinais do

reino podemos realizar? Podem ser grandes gestos públicos. O Papa é

mestre nesta linguagem, como quando foi rezar ao Muro das Lamentações

————— 5 St. Francis of Assisi, London 1939, p. 106 6 ‗St Francis and Islan‘, Spirit and Life. A Journal of Contemporary Franciscanism Vol

6, 1994, p. 169

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em Jerusalém. Ali os judeus lamentam-se da destruição do templo e rezam

pelo Reino. O gesto do Papa falou mais que uma biblioteca.

O gesto pode ser pequeno e imperceptível. Há três semanas visitei um

casa de doentes da SIDA em Phnom Pen, dirigida por um sacerdote

americano, o Jim. Jim não é um meigo pintainho e está batalhando para

aprender Khmer. Visitei muitas destas casas em várias partes do mundo,

mas nunca contactei com figuras tão enfraquecidas. Alguns conseguem

recuperar as forças e regressar a suas casas por algum tempo. Mas a

maioria vem para morrer. Observei a silhueta totalmente esquelética de um

jovem, enquanto o lavavam e lhe cortavam o cabelo. Tinha um rosto tão

sereno que quase me fez chorar. Poderíamos perguntar que diferença faz

tudo isto no curso da história. Algumas pessoas vivem um pouco mais e

depois morrem com dignidade. Mas, meus irmãos, esta pequena

comunidade proclamou uma palavra sacramental que constrói o Reino.

Por isso, mantenham viva a alegria de Francisco e de Clara. É esta

alegria que dá autoridade à nossa pregação. Ninguém acredita que uma

pregação triste traga boas notícias. É a alegria que abre os nossos olhos ao

mundo dos dons. É a alegria que assinala a presença ao Reino e nos

convida a prosseguir a aventura. Isto significa que nos devemos preocupar

coma alegria de nossos irmãos. Devemos manter vivos os seus sonhos.

Com o tempo essa alegria se aprofunda com a vulnerabilidade perante o

sofrimento do mundo. Sem esse sofrimento que abre os nossos corações,

essa alegria permanecerá superficial. Mas o sofrimento deste novo mundo

é global e requer uma resposta global. Somos todos vizinhos uns dos

outros. Precisamos de nos libertar das identidades demasiado limitadas:

étnicas, nacionais e até das nossas amadas Províncias.

Tenham confiança em que os gestos e sinais e símbolos podem falar

com força neste mundo globalizado. Por isso vivemos num tempo

maravilhoso para a vocação franciscana. Também é um tempo maravilhoso

para a missão dominicana, mas isso é outro assunto. Tenham coragem

para inventar gestos audazes que falem do Reino e serão escutados. Traduziu Fr. José António Correia Pereira

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II– Documentos

A REGRA, UM CAMINHO A SEGUIR

SEM CONCESSÕES AO ESPÍRITO DO MUNDO

Mensagem de João Paulo II às irmãs Clarissas,

por ocasião dos 750 anos da morte de Santa Clara de Assis

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MENSAGEM DE JOÃO PAULO II ÀS IRMÃS CLARISSAS,

POR OCASIÃO DOS 750 ANOS DA MORTE DE SANTA CLARA DE ASSIS

Amadas irmãs

1– A 11 de Agosto de 1253 concluía a sua peregrinação sobre a terra

Santa Clara, discípula de São Francisco e fundadora da vossa Ordem,

chamada Irmãs Pobres ou Clarissas, que hoje, nos seus vários ramos,

conta com mais de novecentos mosteiros espalhados pelos cinco conti-

nentes. Setecentos e cinquenta anos depois de sua morte, a memória desta

grande santa continua viva no coração dos fiéis. Por isso, nesta circuns-

tância, é com prazer que dirijo à vossa família religiosa um pensamento

cordial e uma saudação afectuosa.

Numa celebração jubilar tão significativa, Santa Clara exorta-nos a

compreender cada vez mais profundamente o valor da vocação, dom de

Deus que é preciso frutificar. A este propósito escreveu no seu testa-

mento: ―A nossa vocação é o maior de todos os benefícios que recebemos

e diariamente continuamos a receber do nosso benfeitor, o Pai das

misericórdias, pelos quais devemos render muitas graças; e quanto mais

perfeita e sublime ela é, tanto mais d‘Ele nos tornamos devedores. Por isso

diz o Apóstolo: conhece a tua vocação‖ (TCL 2-4).

2– Santa Clara, nascida em Assis à volta de 1193-1194, no seio da

família nobre dos Favarone Offreducio, recebeu, sobretudo de sua mãe

Ortolana, uma sólida educação cristã. Iluminada pela graça divina, deixou-

-se atrair pela nova forma de vida evangélica iniciada por São Francisco e

seus companheiros, e decidiu empreender um seguimento mais radical de

Cristo. Deixou a casa paterna na noite entre o Domingo de Ramos e a

Segunda-feira Santa de 1211 ou 1212. Por conselho de São Francisco

dirigiu-se á capelinha da Porciúncula, berço da experiência franciscana,

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onde, no altar de Santa Maria, se desprendeu de toda a riqueza, para vestir

o hábito pobre da penitência, em forma de cruz.

Depois de um breve período de busca, chegou ao pequenino convento

de São Damião, para onde foi também a sua irmã, Inês. Ali se juntaram a

elas outras companheiras, desejosas de encarnar o Evangelho numa

dimensão contemplativa. Perante a determinação com que nova a

comunidade monástica seguia as pegadas de Cristo, considerando que a

pobreza, o esforço, a tribulação, a humilhação e o desprezo do mundo

eram motivo de grande alegria espiritual, São Francisco sentiu-se movido

por afecto paternal e escreveu-lhes: ―Pois que, por inspiração divina vos

fizestes filhas e servas do altíssimo e soberano Rei e Pai celestial, e vos

tornastes esposas do Espirito Santo, abraçando uma vida conforme a

perfeição do Santo Evangelho, eu quero e prometo, em meu nome e em

nome dos meus irmãos, ter sempre para convosco, como tenho para com

eles, diligente cuidado e solicitude particular‖(RCL 6, 3-4).

3– Santa Clara enxertou estas palavras no capítulo central da sua

Regra, reconhecendo nelas não só um dos ensinamentos recebido do

santo, mas também o núcleo fundamental do seu carisma, que se

desenvolve no contexto trinitário e mariano do Evangelho da Anunciação.

Com efeito, São Francisco via a vocação das Irmãs Pobres à luz da

Virgem Maria, a humilde serva do Senhor que, ao conceber por obra do

Espírito Santo, se converteu em Mãe de Deus. A humilde serva do Senhor

é o protótipo da Igreja, virgem, esposa e mãe..

Santa Clara percebeu a sua vocação como um chamamento a viver

segundo o exemplo de Maria, que ofereceu a sua virgindade à acção do

Espírito Santo para se converter em Mãe de Cristo e do seu Corpo

místico. Sentia-se estreitamente associada à Mãe do Senhor e, por isso,

exortava assim a Santa Inês de Praga, princesa da Boémia, que se tinha

feito clarissa: ―Vive unida à Mãe dulcíssima que deu à luz o Filho que nem

os céus puderam conter. E, todavia, ela O levou no pequeno claustro do

seu ventre sagrado e O formou no seu seio de donzela‖ (3CCL 18-19).

A figura de Maria acompanhou o caminho vocacional da santa de

Assis até ao final da sua vida. Segundo um significativo testemunho dado

durante o processo de canonização, no momento em que Clara estava a

morrer, a Virgem aproximou-se do seu leito e inclinou a cabeça sobre ela,

que durante a vida foi uma imagem radiante da Sua.

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O privilégio da pobreza

4– Só a opção radical por Cristo crucificado, que realizou com

ardente amor, explica a decisão com que a santa se entregou no caminho

da ‗altíssima pobreza‘, expressão que encerra em seu significado a

experiência de desprendimento vivida pelo Filho de Deus na Encarnação.

Ao chamá-la ‗altíssima‘, Santa Clara queria expressar de certo modo o

despojamento do Filho de Deus, que a enchia de assombro: ―Se, pois, um

tão grande Senhor – escreveu – desceu ao seio da Virgem Maria e

apareceu desprezível, desamparado e pobre neste mundo, para que os

homens pobres, desamparados e carenciados do divino alimento, n‘Ele se

tornassem ricos possuindo o Reino dos Céus…(1CCL 19-20). Clara

percebeu esta pobreza em toda a experiência de Jesus, desde Belém até ao

Calvário, onde o Senhor ―nu ficou sobre o patíbulo‖(TCL 45).

Seguir o Filho de Deus, que se fez nosso caminho, significava para ela

não desejar mais que submergir-se com Cristo na experiência de uma

humildade e uma pobreza radicais, que implicavam todos os aspectos da

experiência humana, até ao desprendimento da cruz. A opção pela pobreza

era para Santa Clara uma exigência de fidelidade ao Evangelho, até ao

ponto de a levar a pedir ao Papa o ―Privilégio da pobreza‖, como

característica da forma de vida monástica iniciada por ela. Inseriu este

―Privilégio‖, defendido tenazmente durante toda a sua vida, na Regra que

recebeu a confirmação papal na antevéspera da sua morte, com a bula

Solet annuere,de 9 de Agosto de 1253. Faz 750 anos.

5– Os olhos de Clara permaneceram até ao fim fixos no Filho de

Deus, cujos mistérios contemplava sem cessar. Olhava como o olhar

amante de esposa, desejosa de uma comunicação cada vez mais plena.

Entregava-se, de maneira particular, à meditação da Paixão, contemplando

o mistério de Cristo, que do alto da cruz a chamava e atraía. Escreveu:

―Vós que passais, contemplai e vede se há dor semelhante à minha.

Respondamos com uma só voz e um só espírito a este grito de dor: a

pensar nisto sem cessar, minha alma desfalece dentro de mim‖ (4CCL 25-

-26). E exortava: ―Desta maneira o teu coração se inflame duma caridade

cada vez mais forte, ó rainha do rei celeste… e exclama… plena de anseios

e com profundo amor: atrai-me… ó celeste Esposo‖ (ibid. 27-29).

Esta comunhão plena com o mistério de Cristo introduziu-a na

experiência da intimidade trinitária, na qual a alma toma cada vez mais

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consciência de que Deus mora nela: ―Creio firmemente que, pela graça de

Deus, a alma fiel se torna a mais digna de todas as criaturas, mesmo maior

que o Céu. Sá a alma crente se transforma em sua mansão e seu trono pela

caridade de que estão privados os ímpios‖ (3CCl 22-23).

O testemunho luminoso da clausura

6– A comunidade reunida em S. Damião, guiada por Santa Clara,

escolheu a vida segundo a forma do santo Evangelho numa dimensão

contemplativa claustral, que se caracteriza por um ―viver em comum, na

unidade de espírito‖ (RCL prol 5), segundo o ―modo de santa unidade‖

(ibid 16). A compreensão especial que Santa Clara teve do valor da

unidade na fraternidade parece referir-se a uma profunda experiência

contemplativa do Mistério trinitário. Com efeito, a autêntica contemplação

não se isola no individualismo, mas realiza a verdade de ser um no Pai, no

Filho e no Espírito Santo. Santa Clara não só organizou na sua Regra a

vida fraterna à volta dos valores do serviço mútuo, da participação e da

comunhão, mas também se preocupou de que a comunidade estivesse

solidamente edificada sobre ―a união do mútuo amor e da paz‖ (ibid 4,

22), e também de que as irmãs ―sejam sempre solícitas em guardar umas

com as outras a união da mútua caridade, que é o vínculo da perfeição‖

(ibid 10, 7).

Com efeito, estava convencida de que o amor mútuo edifica a comu-

nidade e produz um crescimento da vocação. Por isso exortava no seu

Testamento: ―Amando-vos umas às outras com amor de Cristo, manifestai

em obras o amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este

exemplo, as irmãs se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor

de Deus e na mútua caridade‖ (TCL 59-60).

7– Santa entendeu este dom da unidade também na sua dimensão

mais ampla. Por isso quis que a comunidade claustral se inserisse plena-

mente na Igreja e se enraizasse solidamente nela com o vínculo da obe-

diência e submissão filial (cf. RCL 1, 12). Estava muito consciente de que

a vida das monjas de clausura devia ser espelho para as outras irmãs cha-

madas a seguir a mesma vocação e testemunho luminoso para todos os

que vivem no mundo.

Os quarenta anos que viveu dentro do mosteiro de São Damião não

limitaram os horizontes do seu coração, antes dilataram a sua fé na

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presença de Deus, que realiza a salvação na história. São conhecidos os

episódios em que, com a força da sua fé na Eucaristia, Santa Clara libertou

a cidade de Assis e o mosteiro do perigo de eminente destruição.

Fascinação espiritual e riqueza teológica da Regra

8– Não podemos deixar de destacar que a 750 anos da confirmação

pontifícia, a Regra de Santa clara conserva intacta a sua fascinação espi-

ritual e a sua riqueza teológica. A perfeita consonância de valores huma-

nos e cristãos e a sábia harmonia e ardor contemplativo e rigor evangélico,

reitera o valor da Regra para vós, queridas irmãs clarissas do terceiro

milénio, como um caminho real que é preciso seguir sem adaptações ou

concessões ao espírito do mundo.

Santa Clara dirige a cada uma de vós as palavras que deixou a Inês de

Praga: ―Feliz aquela a quem foi dado gozar desta íntima união e que aderiu

com todas as fibras dos eu coração Àquele cuja beleza é contemplada por

todos os santos do exército celeste‖ (4CCL 9-10).

Este centenário oferece-vos a oportunidade de reflectir no carisma

típico da vossa vocação de clarissas. Um carisma que se caracteriza, em

primeiro lugar, por ser um chamamento a viver segundo a perfeição do

santo Evangelho, com uma clara referência a Cristo, como único e

verdadeiro programa de vida. Não é este um desafio para os homens e

mulheres de hoje? É uma proposta alternativa à insatisfação e super-

ficialidade do mundo contemporâneo, que parece ter perdido a identidade

e já não percebe que foi criado para o amor de Deus que o espera na

comunhão sem fim

Vós, queridas clarissas, realizais o seguimento do Senhor numa

dimensão esponsal, renovando o mistério da virgindade fecunda da Virgem

Maria, esposa do espírito santo, a mulher perfeita. Oxalá que a presença

dos vossos mosteiros totalmente dedicados á vida contemplativa sejam

também hoje ―memória do coração esponsal da Igreja‖ (Verbi Sponsa 1),

cheio de ardente desejo do espírito, implorando sem cessar a vinda do

Cristo Esposo (cf Ap 22, 17).

Ante a necessidade de um renovado compromisso de santidade, Santa

Clara é também um exemplo da pedagogia da santidade que, alimentando-

-se duma oração incessante, leva a converter-se em contempladores do

rosto de Deus, abrindo de par em par o coração ao espírito de Senhor, que

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transforma toda a pessoa, a mente, o coração e as acções, segundo as

exigências do Evangelho.

9– O meu desejo mais vivo, avalizado pela oração, é que vossos mos-

teiros continuem a apresentar ao mundo actual, que na sua generalidade

anseia por espiritualidade e oração, a proposta exigente de uma plena e

autêntica experiência de Deus, uno e trino, que se converta em irradiação

da sua presença de amor e de salvação.

Que Maria, a Virgem da escuta, vos ajude e que intercedam por vós

Santa Clara e as santas e beatas da vossa Ordem.

Asseguro-vos uma saudação cordial para vós, queridas irmãs, e para

quantos partilham convosco a graça deste significativo acontecimento

jubilar. A todas envio, de coração, uma especial bênção apostólica.

Vaticano, 9 de Agosto de 2003

João Paulo II