O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

41
D IÁLOGO  ENTRE  U M P ADRE  E  UM M ORIBUNDO ... E  OUTRAS  DIATRIBES  E  BLASFÊMIAS ...

Transcript of O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 1/41

D IÁLOGO  ENTRE UM PADRE E UM MORIBUNDO

...E  OUTRAS  D IATR IBES E BLASFÊM IAS ...

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 2/41

I . F ANTASMAS

S e r q u imé r i co e v ã o cu j o no me a p ena s d e r r a mo u ma i s s a ng ue na f a ce d a t e r r a d o q ue j a ma i s

f a r á q ua l q ue r g ue r r a p o l ít i c a , p o r q ue nã o r e t o r na s a o na d a d e o nd e a l o uca e s p e r a nça d o s ho men s e

s eu r i d í cu l o t emo r i n f e l i zmen te o u s a r a m t e a r r a nca r ? ! T u q ue s ó s u r g i s t e p a r a o s up l í c i o d o g êne r o

humano , quanto s c r imes se r iam poupados na te r ra se houves sem dego lado o p r ime i ro imbec i l que ousou

f a l ar e m t i ! V a m os , a p a r e c e s e e x i st e s e n ã o a d m i t a s q u e u m a f r á g i l c r i a t u ra o u s e t e i n s ul t a r,a f ronta r , u l t r a ja r como faço , renegando tuas marav i l has e r indo de tua ex i s tênc ia , f e i to r de p retenso s

m i l a g r e s ! F a z u m s ó p a r a p r o v a r q u e e x i s t e s ! M o s t r a - t e , n ã o n u m a t o c h a d e f o g o c o m o d i z e m t e r

a p a r ec i d o a o b o m M o i s é s , n ã o s o b r e uma mo n ta nha co mo t e mo s t r a s t e a o v i l l e p r o s o q ue s e d i z i a t eu

f i l h o , ma s j un to a o a s t r o q ue t e s e r ve p a r a i l um ina r o s ho men s . Q ue t ua mã o a p a r eça g u i a nd o - o a o s

o l ho s d e l e s ! E s s e a t o un i v e r s a l d e c i s i v o nã o t e p o d e cu s t a r ma i s d o q ue t o d o s o s p r e s t í g i o s o cu l t o s

co m q ue d i zem o p e r a r t o d o s o s d i a s . Tua g l ó r i a d ep end e d i s s o . O u s a f a zê - l o o u d e i x a d e e s p a n ta r -t e

q ue t o d o s o s b o n s e s p í r i t o s r e j e i t em t eu p o d e r e s e f u r t em a t eu s p r e ten s o s imp u l s o s, à s f á b u l a s q ue ,

em s uma , p ub l i c a m a t eu r e s p e i t o t o d o s o s q ue eng o r d a m co mo p o r co s p r e g a nd o - no s t ua f a s t i d i o s a

ex i s t ênc i a e q ue , s eme l ha n te s a e s s e s p a d r e s d o p a g a n i s mo a l imen ta d o s co m a s v í t ima s imo l a d a s no s

a l ta res , s ó exa l tam o ído lo para mul t ip l i ca r s eus ho locaus to s .

E s t a i s a i , p a d r e s d o d eu s f a l s o a q uem F éne l o n ca n to u , r e g o z i j a nd o - vo s p o r t e r d e s i n c i t a d o na s

t r e va s d a ép o ca o s c i d a d ã o s à r e vo l t a ? Ap e s a r d o ho r r o r q ue a I g r e j a d i s s e t e r p e l o s a ng ue , à f r en tedos f renét ico s que der ramaram o de seus compatr io ta s , s ub i rdes nas á r vo res para d i r i g i r vo s so s go lpes

co m meno s p e r i g o . E r a en t ã o o ún i co mo d o d e p r e g a r a d o u t r i n a d e C r i s t o , d eu s d a p a z . M a s l o g o q ue

f o s t e s co b e r t o s d e o u r o p o r s e r v i - l o , s a t i s f e i t o s p o r n ã o t e r d e a r r i s ca r ma i s v o s s o s d i a s a s ua ca u s a ,

pas sas tes a usa r de ba ixeza e so f i smas para defender sua qu imera . Ah! Que e l a desvaneça para sempre

co nvo s co e nunca ma i s p a l a v r a s co mo "D eu s " e " r e l i g i ã o " s e j a m p r o nunc i a d a s ! E o s ho men s em p a z , s ó

t end o d e cu i d a r d a f e l i c i d a d e , s a b e r ã o q ue a mo r a l q ue a e s t a b e l e ce nã o nece s s i t a d e f á b u l a s p a r a

f i r má - l a, e q ue , a f i n a l d e co n t a s , a mo n to á - l a s s o b r e o s a l t a r e s d e um D eu s r i d í cu l o e v ã o q ue o ma i s

l eve exame da razão pu l ver i za l ogo ao p r ime i ro exame, é desonra r e manchar todas a s v i r tudes .

E va p o r a - t e no j en t a q u ime r a ! Re to r na à s t r e va s d e o nd e v i e s t e , e nã o ma cu l e s ma i s a memó r i a

do s homens . Que teu nome execrado só se p ronunc ie em meio à b l a s fêmia , que to r turem até a mor te o

p é r f i d o imp o s t or q ue no f u t u r o q ue i r a r eed i f i c a r - t e s o b r e a t e r r a ! E s o b r e tudo nã o p e r m i t a s ma i s q ue

e s s e s b i s p o s c a r n u d o s d e c e m m i l l i b r a s d e r e n d a v i b r e m d e s a t i s f a ç ã o o u u r r e m d e a l e g r i a . E s s em i l a g r e nã o v a l e r i a o q ue t e p r o p o nho ; e s e d eve s no s mo s t r a r um, q ue a o meno s s e j a d i g no d e t ua

g l ó r i a . P o r q ue t e e s co nd e r d e q uem t a n to t e d e s e j a ? Temes a s s u s t á - l o s o u r e ce i a s s ua v i n g a nça ? A l i ,

mons t ro , como a mereces ! . . . Terá va l ido a pena cr ia r o homem para depo i s mergu lhá - l o num ab i smo de

d e s g r a ça s? S e r á co m a t r o c i d a d es q ue d eve s a s s i n a l a r t ua p o tênc i a ? E t ua mã o e s ma g a d o r a , n ã o t e r á d e

s e r a ma l d i ço a d a p o r e l e s , f a n t a s ma ex ec r á ve l ? S im , t en s r a zã o em t e e s co nd e r . C ho ve r i a m p r a g a s

s o br e t i s e t u a f a ce h e di o nd a a pa r ec e ss e a o s h o me n s. . . O s i n fe l iz e s, r ev ol t ad os c o m a o br a ,

fu lminar iam logo o operár io !

F r a co s e a b s u r d o s mo r t a i s ce g o s p e l o e r r o e p e l o f a na t i s mo , a b a nd o na i e s s a s i l u s õ e s p e r i g o s a s

em q ue a s up e r s t i ç ã o t o n s u r a d a v o s me r g u l ho u ; r e f l e t i s o b r e s eu p o d e r o s o i n t e r e s s e em vo s imp i ng i r

u m D e u s , s o b r e o p o de r o so c r é di t o q u e l h e d ã o t a i s m e n ti r a s a c e r ca d e v o s s o s b e n s e e s p ír i t os , e

v e r ei s q u e e s s es t r a pa c e ir o s s ó a n u nc i a m u m a q u i me r a e q u e , d o m e s mo m o d o, t ã o d e g r a da n t e

f a n t a s ma s ó ha ve r i a d e s e r p r e ced i d o p o r b a nd o l e i ro s . S e v o s s o co r a çã o p r e c i s a d e um cu l t o , o f e r e ce i

a e l e o s o b j e t o s p a l p á ve i s d e s ua s p a i x õ e s : a o meno s s e r e i s s a t i s f e i t o s co m a l g uma co i s a r e a l ne s s a

ho mena g em na tu r a l . O q ue s en t i s a p ó s d ua s o u t r ê s ho r a s d e m i s t i c i s mo d e í f i c o ? U m g é l i d o na d a , um

a b o miná ve l v a z i o q ue , s em na d a f o r nece r a o s v o s s o s s en t i d o s, me r g u l ha - o s nece s s a r i a men te no me s mo

e s t a d o d e q uem tenha a d o r a d o s o nho s e s o mb r a s ! No s s os s en t i d o s ma te r i a i s p o d e r i a m l i g a r - s e a o u t r a

co i s a q ue nã o à e s s ênc i a d e q ue s ã o f o r ma d o s ? E co m s ua f r í v o l a e s p i r i t u a l i d a d e q ue na d a r ea l i z a ,

vo s so s ado rado res de Deus não se parecem todos com Dom Qu ixo te tomando mo inhos po r g igantes ?

Ó execráve l abo r to ! Dever ia abandonar - te a t i mesmo ago ra , ent regar - te ao desp rezo que tão - só

i n s pi r a s e d e i xa r d e c o m ba t e r- t e o u t r a v e z n o s d e v an e i os d e F é n el o n. M a s p r o m e ti c u m p ri r m i n ha

t a r e f a . M a n te r e i f e l i z m inha p a l a v r a s e meu s e s f o r ço s cheg a r em a d e s en r a i z a r - t e d o co r a çã o d e t eu s

s e c t á r i o s imb ec i s , e p o s s a m, a o p ô r um p o uco d e r a zã o no l u g a r d e t ua s men t i r a s , e s t r emece r d e ve z

teus a l ta res , mergu lhando -o s para sempre no s ab i smos do nada.

 

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 3/41

I I . D I Á LOGO   ENTR E  UM PADR E   E  UM MOR I BUNDO

PA D R E — C h e ga d a à h o r a f a t al e m q u e o v é u d a i l u sã o s e r a sg a p a r a m o s t r ar a o h o m e m s e d u z id o o

quadro crue l de seus e r ro s e v íc io s , não vo s a r repende i s , meu f i l ho , das múl t ip l a s deso rdens a que vo s

levaram a f r ag i l idade e a s f r aquezas humanas ?

MORIBUNDO — S im, meu amigo , a r rependo -me.

PADRE — Então , no pouco tempo que vo s res ta , ap rove i ta i e s ses bend i to s remor so s para receber do céua a b s o l v i ç ã o g e r a l d e v o s s a s f a l t a s , e s a i b a i s q u e s ó p e l a m e d i a ç ã o d o s a n t í s s i m o s a c r a m e n t o d a

pen i tênc ia se r - vo s -á po s s í ve l a l cançá- l a do E terno .

MORIBUNDO — Não te entendo ma i s do que me compreendes .

PADRE — Como?

MORIBUNDO — Eu d i s se que me a r rependo .

PADRE — Já o d i s ses tes .

MORIBUNDO — Mas não compreendes te .

PADRE — O quê? !

M O R IB U N DO — O s e g ui n t e : c r i a do p e la n a t ur e z a, c o m a p e t i t es m u i to v i v os e p a i xõ e s m u i t o f o rt e s ,

p o s t o ne s t e mund o un i ca men te p a r a en t r e g a r - me a e l e s e s a t i s f a zê - l o s , s end o t a i s e f e i t o s d e m inha

c r i a çã o a p ena s nece s s i d a d e s r e l a t i v a s a o s p r ime i r o s f i n s d a na tu r e za , o u , s e p r e f e r i r e s , d e r i v a çõ e s

e s s e n c i a i s d e s e u s p r o j e t o s s o b r e m i m , t o d o s c m r a z ã o d e s u a s l e i s , s ó m e a r r e p e n d o d e n ã o t e rr e co nhec i d o o b a s t a n te s ua o n i p o tênc i a , e meu s ún i co s r emo r s o s s ã o p e l o u s o med í o c r e q ue f i z d a s

f a cu l d a d e s ( c r imino s a s p a r a t i , t ã o s imp l e s p a r a m im) co m q ue me d o to u p a r a s e r v i - l a. P o r v e ze s l he

res i s t i e a r rependo -me po r i s s o . Cego pe lo ab surdo de teus s i s temas , combat i po r e le s toda a v io lênc ia

do s dese jo s receb ido s po r uma in sp i ração bem ma i s d iv ina . D i s so me a r rependo . Só co lh i f l o res quando

p o d e r i a t e r f e i t o uma a mp l a co l he i t a d e f r u t o s . . . E i s o s j u s t o s mo t i v o s d e meu s a r r ep end imen to s ;

es t ima-me bas tante para eu não p rocura r out ro s .

PADRE — Onde vo s so s e r ro s vo s a r ra s tam, onde vo s so s s o f i smas vo s conduzem! Empres ta i à co i s a c r iada

a o n i p o t ê n c i a d o c r i a d o r , e n ã o v e d e s q u e a s i n c l i n a ç õ e s i n f e l i z e s q u e v o s d e s e n c a m i n h a r a m s ã o

apenas e fe i to s des sa natureza co r romp ida a que a t r ibu i s à on ipo tênc ia .

M O R IB U N DO — A m i g o , p a r e c e -m e q u e t u a d i a lé t i c a é t ã o f a l s a q u a n t o t e u e s pí r i to . G o st a r ia q u e

r a c i o c i na s se s d e mo d o ma i s j u s t o , o u q ue me d e i x a s s e s mo r r e r em p a z . O q ue en tend e s p o r c r i a d o r e

po r natureza co r romp ida?P AD RE — O c r i a d o r é o s enho r d o un i ve r s o . Aq ue l e q ue t ud o f e z e c r i o u e q ue t ud o co n s e r va p o r um

s imp les e fe i to de sua on ipo tênc ia .

M O R I BU NDO — U m g r a nd e ho mem, s e g u r a men te . . . M a s s e é t ã o p o d e r o s o , p o r q ue c r i o u uma na tu r e za

co r romp ida?

P A D R E — Q u e m é r i t o o s h o m e n s t e r i a m s e D e u s n ã o l h e s t i v e s s e d e i x a d o o l i v r e - a r b í t r i o , e o q u e

ganhar iam com i s so se não houves se na te r ra a po s s ib i l idade de f azer o bem e a de ev i ta r o ma l ?

M O R I B U N D O — E n t ã o e s s e t e u D e u s q u i s s e r d o c o n t r a , f a z e n d o t u d o s ó p a r a t e n t a r o u t e s t a r s u a

c r i a t u r a . L o g o , n ã o a c o nhec i a e d uv i d a va d o r e s u l t a do ? PAD RE — E l e a co nhec i a , s em d úv i d a , ma s uma

vez ma i s quer ia de ixa r - l he o mér i to da esco lha .

M O R I B U N D O — P a r a q u ê , s e s a b i a s e u p a r t i d o d e a n t e m ã o e s ó a e l e c o m p e t i a , j á q u e o d i z e s

on ipo tente, s ó a e le compet ia , d igo , f azer com que esco lhes se o do bem?

PADRE — Quem pode compreender o s des ígn io s imenso s e in f in i to s de Deus s ob re o homem e quem pode

compreender tudo o que vemos ?

MORIBUNDO — Quem s imp l i f i ca a s co i s a s , meu amigo , e s ob retudo não mul t ip l i ca a s causas para melho r

co n f und i r o s e f e i t o s . P o r q ue co l o ca s o u t r a q ue s t ã o q ua nd o nã o me p o d e s e x p l i c a r a p r ime i r a ? S end o

p o s sí v e l q u e a n a t u re z a t e n h a f e i t o s o zi n h a t u d o o q u e a t r i b ui s a t e u D e u s , p o r q u e p r e t e nd e s

a r r uma r - l he um s enho r ? A ca u s a d o q ue nã o co mp r eend e s t a l v e z s e j a a co i s a ma i s s imp l e s d o mund o .

Ap e r f e i ço a t ua f í s i c a e en tend e r á s me l ho r a na tu r e za ; p u r i f i c a t ua r a zã o , e l im ina t eu s p r e co nce i to s e

não neces s i ta rá s ma i s des se deus .

PADRE — Seu in fe l i z , pense i apenas que fo s ses s oc in iano ! . . . T inha a rmas para combater - te , mas ve jo

b em q ue é s a t eu ! E j á q ue t eu co r a çã o s e neg a à imen s i d a d e d a s p r o va s a u tên t i c a s q ue r e ceb emo s

todos o s d ia s da ex i s tênc ia do cr iado r , nada ma i s tenho a te d izer . Não se devo l ve a l uz a um cego .

M O R I BU NDO — M eu a m i g o , co n f o r ma - t e co m a e v i d ênc i a d e q ue ceg o é q uem s e ved a co m uma f i t a , n ã o

quem a a r ranca do s o lho s . Tu ed i f i ca s , inventas , mul t ip l i ca s ; eu des t ruo , s imp l i f i co . Tu acumulas e r ro s

sob re e r ro s ; eu combato todos . Qua l de nó s é o cego ?

PADRE — Então não crede mesmo em Deus ?

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 4/41

M O R IB U N DO — N ã o , p o r u m a r a z ão b e m s i m p le s . E p e r fe i t am e n t e i m p o ss í v el c r e r n o q u e n ã o s e

c o m pr e e nd e . E n t r e a c o m pr e e ns ã o e a f é d e v em e x i st i r r e l a ç õ es i m e di a t a s. A c o m p r e en s ã o é o

p r i me i r o a l i m en t o d a f é . O n d e a c o m pr e e ns ã o f a l h a , a f é e s t á m o r ta ; e a q ue l e s q u e a s si m m e s mo

c o n t i n u a m a c r e r , e n g a n a m - s e r e d o n d a m e n t e . D e s a f i o - t e a c r e r n o d e u s q u e m e p r e g a s , p o i s n ã o

s a b e r i a s me d emo n s t r á- l o , nem co mp e te a t i me d e f i n i - lo ; p o r co n s eg u i n t e nã o o co mp r eend e s , e , s e

nã o o co mp r eende s , co mo me p o d e s f o r nece r um a r g umen to r a zo á ve l a s eu r e s p e i t o ? E m s uma : s end o

qu imera ou inut i l idade tudo o que u l t rapas sa o s l imi tes do esp í r i to humano , e teu deus s ó podendo se ruma des sas co i s a s , no p r ime i ro caso eu se r ia l ouco de crer ne le , no segundo um imbec i l .

Meu amigo , p rova -me a inérc ia da matér ia e admito o c r iado r . P rova -me que a natureza não se

b a s t a a s i me s ma , e t e p e r m i t o co nceb e r - l he um s enho r . A t é en t ã o nã o e s p e r e s na d a d e m im. S ó me

rendo à ev idênc ia que recebo do s sent ido s ; onde e les ces sam, minha fé des fa lece. C re io no so l po rque

o v e j o, c o n ce b o- o c o m o o c e n t ro d e r e u n i ã o d e t o d a a m a t ér i a i n f l a má v e l d a n a t ur e z a, a c e i to s u a

m a rc h a p e ri ó di c a s em e sp a nt a r- m e. É u m a o pe r aç ão f í si c a, t al v ez t ã o s im p le s q ua n to a d a

e l e t r i c i d a d e , ma s q ue nã o no s é p e r m i t i d o co mp r eend e r . P a r a q ue i r ma i s l o ng e ? Nã o t e r e i a v a nça d o

m a i s q u a n d o e d i f i c a r e s t e u d e u s a c i m a d i s s o e n ã o m e s e r á p r e c i s o o m e s m o e s f o r ç o t a n t o p a r a

compreender o operár io quanto para def in i r a ob ra ?

A s s im s end o , nã o me t e r á s p r e s t a d o nenhum s e r v i ço co m a ed i f i c a çã o d e t ua q u ime r a ; p o r me

confund i res o e sp í r i to , em vez de esc l a recê- l o , s ó te devo ód io em lugar de reconhec imento . Teu deus

é u m a m á q u i n a q u e f a b r i c a s t e p a r a s e r v i r t u a s p a i x õ e s , m o v i d a a s e u b e l - p r a z e r , m a s d e s d e q u ei n t e r f e r e na s m inha s , n ã o e s t r a nhe s q ue eu a r e j e i t e ; e no i n s t a n te em q ue m inha a l ma f r a ca ma i s

p r e c i s a d e ca l ma e f i l o s o f i a , n ã o me venha s co m e s s e s s o f i s mas e s p a n tá - l a , q ue s ó a a t e r r o r i z a m s em

co nvencê - l a e a i r r i t a m s em t o r ná - l a me l ho r . E s t a a l ma , meu a m i g o , é o q ue a na tu r e za d e s e j o u q ue

f o s s e , i s t o é , o r e s u l t a d o d o s ó r g ã o s co m q ue me f o r mo u em r a zã o d e s ua s me ta s e nece s s i d a d e s ; e

co mo e l a nece s s i t a i g ua l men te d e v i r t ud e s e d e v í c i o s , q ua nd o q u i s l e v a r - me à s p r ime i r a s , e l a o f e z , e

q ua nd o d e s e j o u co nd uz i r - me a o s s e g und o s , i n s p i r o u - me t a i s d e s e j o s a o s q ua i s en t r e g ue i - me d o me s mo

mo d o . To ma a p ena s e s s a s l e i s c o mo a ún i ca ca u s a d e no s s a i n co n s eq üênc i a huma na , e nã o e s t a b e l e ça

para e l a s out ro s p r inc íp io s que suas vontades e neces s idades .

PADRE — Sendo a s s im, tudo é neces sá r io no mundo .

MORIBUNDO — Seguramente.

PADRE — Mas se tudo é neces sá r io , não es tá tudo regu lado ?

MORIBUNDO — Quem d iz o cont rá r io ?

PADRE — E quem pode regu la r tu do como es tá a não se r uma mão on ipo tente e s áb ia ?

MORIBUNDO — Não é neces sá r io que a pó l vo ra in f l ame ao se l he a tear f ogo ?

PADRE — S im.

MORIBUNDO — E que sabedo r ia vês n i s so ?

PADRE — Nenhu ma.

M OR IB UN DO — Po rt an to é p os sí ve l h av er c oi sa s n ec es sá ri as s em s ab ed or ia , e p os sí ve l,

consequentemente, tudo der iva r de uma causa p r ime i ra sem haver nes sa causa razão ou s abedo r ia .

PADRE — Onde quere i s chegar ?

M O R IB U N DO — A p r o v ar - t e q u e t u d o p o de s e r o q u e é e o q u e v ê s , s e m q u e n e n h u ma c a u s a s á b i a e

razoáve l o conduza, e que e fe i to s natura i s devem ter causas natura i s s em que se ja neces sá r io supô - l a s

a n t i n a tu r a i s, c o mo e s s e t eu d eu s p r o p r i a men te , o q ua l , c o n f o r me d i s s e , nece s s i t a d e e x p l i c a çã o e nã o

f o r nece nenhuma ; s e e l e nã o s e r ve p a r a na d a , é p e r f e i t a men te i nú t i l , s end o e v i d en te q ue o q ue é

i nú t i l é nu l o e o q ue é nu l o é na d a ; p o r t a n to , p a r a co nvence r -me d e q ue t eu d eu s é uma q u ime r a , n ã o

neces s i to de out ro rac ioc ín io senão o que me fo rnece a cer teza de sua inut i l idade.

PADRE — Nes se momento , parece-me neces sá r io f a l a r - vo s de re l i g ião .

M O R I BU ND O — P o r q ue nã o ? Na d a me d i v e r t e co mo a s p r o va s d o e x ce s s o a q ue cheg a r a m o s ho men s

s o b r e e s s e p o n to t r a t a nd o - s e d e f a na t i s mo e d e imb ec i l i d a d e . S ã o e s p éc i e s d e d e s v i o s p r o d i g i o s o s

como es ses que to rnam o quadro ho r r í ve l , mas sempre in teres sante para mim. Responde com f ranqueza

e , s o b re t u do , s e m e g o ís m o: s e u e u f o s se f r a co o b a s ta n t e p a r a d e i xa r - me s u rp r e en d e r p o r t e u s

r i d í cu l o s s i s t ema s s o b r e a f a b u l o s a e x i s t ênc i a d o s e r q ue t o r na a r e l i g i ã o nece s s á r i a , s o b q ue f o r ma

me aconse lhar ia s a l he o ferecer um cu l to ? Gos ta r ia s que eu ado tas se o s devane io s de Confúc io ma i s do

que o s ab surdo s de Brahma, que eu ado ras se a g rande se rpente do s neg ro s , o a s t ro do s peruanos , ou o

d eu s d o s e x é r c i t o s d e M o i s é s ? A q ua l d a s s e i t a s d e M a o mé d e s e j a r i a s q ue eu me r end e s s e, o u q ua l d a s

heres ia s c r i s tã s s e r ia para t i p re fer í ve l ? Cu idado com a respo s ta .

PADRE — Poder ia have r dúv idas ?

MORIBUNDO — E la então é ego í s ta .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 5/41

PADRE — Não , amar - te tanto quanto a mim mesmo é aconse lhar - te o que cre io .

MORIBUNDO — E dar ouv ido s a semelhantes e r ro s é amar -no s mui to pouco .

PADRE — E quem pode fechar o s o lho s d iante do s mi l ag res de no s so d iv ino redento r .

MORIBUNDO — Quem só vê ne le o ma i s o rd inár io do s t ra tantes e o ma i s vu l ga r do s impos to res .

PADRE — O Deus , vó s o ouv i s tes . . . e não b ramas tes ? .

M O R I BU NDO — Nã o , meu a m i g o , e s t á t ud o em p a z , p o r q ue e s s e d eu s , p o r imp o tênc i a, r a zã o , o u t ud o o

q u e q u e ir a s e n f im e m u m s er q ue s ó a d m i to p or u m m o me n to e m c o nd e sc e nd ê nc i a a t i , o u s ep r e f e r i re s , p a r a a ux i l i a r - t e a v i s t a e s t r e i t a , e s s e d eu s , d i g o , s e e x i s t e me s mo co mo l o uca men te c r ê s ,

não pode te r usado meio s tão r id ícu lo s para no s convencer quanto aque les que teu Jesus supõe.

PADRE — Então a s p ro fec ia s , o s mi l ag res , o s már t i re s , tudo i s s o não se rve como p rovas ?

M O R I BU NDO — C o mo q ue r e s q ue eu a ce i t e em b o a l ó g i ca co mo p r o va s t ud o a q u i l o q ue ca r e ce d e l a s em

s i me s mo ? P a r a q ue a p r o f e c i a s e co mp r o va s s e , eu d eve r i a , p r ime i r a men te , t e r ce r t e za a b s o l u t a d e

q ue e l a f o r a f e i t a . O r a , e s t a nd o i s s o co n s i g na d o na h i s t ó r i a , n ã o p o d e t e r ma i s f o r ça p a r a m im d o q ue

out ro s f a to s h i s tó r i co s dent re o s qua i s t rê s quar to s s ão bas tante duv ido so s ; e se acrescentarmos a i s s o

a a p a r ênc i a ma i s q ue ve r o s sím i l d e q ue s ó me s ã o t r a n s m i t i d o s p o r h i s t o r i a d or e s i n t e r e s s e i r o s, t e r e i ,

como vês , ma i s que d i re i to em duv idar . A lém d i s so , quem me as segura rá de que es sa p ro fec ia não fo ra

f e i t a p o s t e r i o r men te , d e q ue nã o f o r a o e f e i t o d a co mb ina çã o d a ma i s s imp l e s p o l í t i c a , co mo a q ue

e s t ab e l ec e u m r e i no f e l i z s o b u m r e i j u s to o u g e a da n o i n v e r no ? E s e a s s i m é , c o m o q u e re s q u e a

p ro fec ia , com ta l neces s idade em ser comprovada, po s sa e l a mesma to rnar - se uma p rova ?Quanto ao s teus mi l ag res , também não me impres s ionam. Todos o s a s tuto s f i ze ram i s so e todo s

o s t o l o s a c r ed i t a r a m. P a r a p e r s ua d i r- me d a ve r a c i d a d e d e um m i l a g r e , s e r i a p r e c i s o e s t a r b em s eg u r o

d e q ue o e ven to a s s im cha ma d o f o s s e a b s o l u t a men te co n t r á r i o à s l e i s d a na tu r e za , p o i s s ó o q ue s e

s i t u a f o r a d e l a p o d e p a s s a r p o r m i l a g r e ; e q u e m a c o n h e c e o b a s t a n t e p a r a o u s a r a f i r m a r q u a l é

p r e c i s a m e n t e o p o n t o e m q u e e l a p á r a e q u a l a q u e l e e m q u e é v i o l a d a ? P a r a s e a c r e d i t a r e m u m

p r e ten s o m i l a g r e b a s t a m d ua s co i s a s : o má g i co e o s i n ca u to s . Va i , n ã o b u s q ue s j a ma i s o u t r a o r i g em

para o s teus . Todos o s novo s sectá r io s f i ze ram-no ; e o que é ma i s s ingu la r , todo s encont ra ram imbec i s

que creram ne les . Teu Jesus nada fez de ma i s s ingu la r que Apo lôn io de Tiana e , ent retanto , n inguém

to mo u e s t e p o r um d eu s . Q ua n to a t eu s má r t i r e s , s em d úv i d a , o ma i s f r a co d e t eu s a r g umen to s , s ã o

nece s s á r i os a p ena s en tu s i a s mo e r e s i s t ênc i a p a r a f a zê - l o s ; c o mo a ca u s a co n t r á r i a o f e r e ce -me t a n to s

q u an t o a t u a, j am a is t e re i a u to r id ad e b a st a nt e p a ra c r er m a is e m u m a d o q u e o u t r a, m a s, e m

compensação , se re i l evado a achar ambas p iedo sas .

Ah , meu a m i g o , s e o d eu s q ue me p r eg a s e x i s t i s s e d e f a t o , t e r i a nece s s i d a d e d e m i l a g r es , d e

már t i re s e de p ro fec ia s para e r ig i r s eu impér io ? E se , como d izes , o co ração do homem fo s se ob ra sua ,

n ã o h a v e r i a d e s e r e s c o l h i d o p a r a s a n t u á r i o d e s u a l e i ? E m a n a d a d e u m d e u s j u s t o , e s t a l e i i g u a l

e s t a r i a i g ua l men te g r a va d a d e mo d o i r r e s i s t í v e l em t o d o s o s co r a çõ e s , e d e uma p a r t e d o un i ve r s o à

o u t r a , a s s eme l ha nd o - s e t o d o s o s ho men s p o r e s s e ó r g ã o d e l i c a d o e s en s í v e l , a s s eme l ha r - s e - i a m d a

mes ma f o r ma p e l a ho mena g em q ue r end e s s em a o d eu s d e q uem o r e ceb e r a m; t o d o s s ó co nhece r i a m um

mo d o d e a má - l o , d e a d o r á - lo o u d e s e r v i - l o , e l he s s e r i a t ã o imp o s s í v e l d e s co nhece r e s s e d eu s q ua n to

r e s i s t i r à i n c l i n a çã o s e c r e t a d e s eu cu l t o . E m ve z d i s s o , o q ue ve j o no un i ve r s o ? Ta n to s d eu s e s q ua n to

p a í s e s , t a n t a s ma ne i r a s d e s e r v i r s u a s d i v i nd a d e s q ua n to d i f e r en te s ca b eça s o u ima g i na çõ e s ; e e s t a

mu l t i p l i c i d a de d e o p i n i õ e s d en t r e a s q ua i s me é f i s i c a men te imp o s sí v e l e s co l he r s e r i a p a r a t i o b r a d e

um deus j us to ?

O r a , p r e g a d o r , u l t r a j a s t eu d eu s mo s t r a nd o - o a s s im . D e i x a - me neg á - l o t o t a l men te , p o i s , s e

e l e e x i s t e , t u o u l t r a j a s b em ma i s co m t ua s b l a s f êm ia s d o q ue eu co m m inha i n c r ed u l i d a d e . Vo l t a à

razão , p regado r ! Teu Jesus não va le ma i s que Maomé, Maomé não ma i s que Mo i sés , e todo s o s t rês não

s ã o me l ho r e s q ue C o n f úc i o , q ue a p e s a r d e t ud o d i t o u a l g un s b o n s p r i n c í p i o s , enq ua n to q ue e s s e t r i o

d i s p a r a t o u . M a s a o f i m d a s c o n t a s s ã o t o d o s i m p o s t o r e s d e q u e m o f i l ó s o f o c a ç o o u , e m q u e m o s

cana lhas c re ram, e quem a jus t i ça dever ia te r enfo rcado .

PADRE — S im, e e l a pas sou do s l imi tes em re lação a um de les .

M O R IB U N DO — F o i o q u e m a i s m e r ec e u : s e d ic i o so , d e so r d ei r o , c a l un i a do r, t r a pa c e i ro , l i b er t i no ,

g r o s s e i ro , f a r s a n te , em s uma , um p e r i g o s o ma u e l emen to q ue p o s s u í a a a r t e d e d i r i g i r o p o vo e q ue ,

sem dúv ida , não pas sa r ia impune no es tado em que então se encont rava o re ino de Jerusa lém. E s te fo i

mu i t o s á b i o em t e r s e l i v r a d o d e l e , c a s o ún i co , t a l v e z , em q ue m inha s má x ima s , a l i á s , e x t r ema men te

s ua ve s e t o l e r a n te s, p o s s a m a d m i t i r a s e ve r i d a d e d e T êm i s . P e r d ô o t o d os o s e r r o s , meno s a q ue l e s

q ue p o d em s e r p e r i g o s o s p a r a o g o ve r no s o b o q ua l s e v i v e . O s r e i s e s ua ma j e s t a d e s ã o a s ún i ca s

co i s a s q ue me s e me imp õ em, a s ún i ca s q ue r e s p e i t o, e q uem nã o a ma s eu p a í s e s eu r e i n ã o é d i g no

de viver.

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 6/41

PADRE — Mas deve i s admit i r a l go apó s es ta v ida . E impos s íve l que vo s so esp í r i to j ama i s tenha desejado

d i s s i p a r a s t r e va s d o d e s t i no q ue no s a g ua r d a . E q ua l s i s t ema p o d e s a t i s f a zê - l o me l ho r d o q ue o d e

uma p r o f u s ã o d e p ena s p a r a q uem p r a t i c a o ma l e uma e te r n i d a d e em r e co mp en sa s p a r a q uem p r a t i c a

o bem?

M O R IB U N DO — Q u a l s i s t em a , m e u a m i go ? O d o n a d a , c l a r o . E s t e j a m a i s m e e s p an t o u; s ó v e j o n e l e

conso lo e s imp l ic idade. Os out ro s s ão ob ra do o rgu lho , s ó e le per t ence à r azão . A lém d i s so , o nada não

é r ep e l en te nem a b s o l u t o . Nã o t enho s o b o s o l ho s o e x emp l o d e t ud o o q ue é g e r a d o e r e g ene r a d op e r p e tua men te p e l a na tu r e za ? C o i s a a l g uma p e r ece o u s e d e s t r ó i n o mund o , meu a m i g o ; ho j e ho mem,

a m a nh ã v e r me , d e po i s d e a m a nh a m o s ca , n ã o é s e m pr e e x i st i r ? E p o r q u e s e r ia r e c om p e ns a d o p o r

v i r t ud e s d e q ue nã o t enho mé r i t o a l g um o u p un i d o p o r c r ime s d e q ue nã o f u i s enho r ? P o d e s co nc i l i a r a

b o nd a d e d e t eu p r e ten s o d eu s co m e s t e s i s t ema , e co mo e l e me p o d e t e r c r i a d o s ó p a r a s e d a r a o

p razer de me pun i r , e a inda em conseqüênc ia de uma esco lha de qua l não me de ixa se r s enho r ?

PADRE — Vós o s o i s .

M O R I BU ND O — S im , co n f o r me t eu s p r e co nce i t o s . M a s a r a zã o o s d e s t r ó i , e o s i s t ema d e l i b e r d a d e d o

ho mem f o i i n ven ta d o a p ena s p a r a f a b r i c a r o d a g r a ça , q ue s e t o r no u t ã o f a vo r á ve l a t eu s d eva ne i o s .

Q ua l ho mem no mund o , v end o o ca d a f a l s o a o l a d o d o c r ime , co metê - l o - i a , s e e s t i v e s s e l i v r e d e nã o

co metê - l o ? S o mo s a r r a s t ad o s p o r uma f o r ça i r r e s i s t í v e l , e j a ma i s , s eq ue r um i n s t a n te , t emo s o p o d e r

d e no s d e te r m ina r p a r a o u t r a co i s a a l ém d a q ue l a a q ue e s t a mo s i n c l i n a d o s . Nã o há uma s ó v i r t ud e q ue

nã o s e j a nece s s á r i a à na tu r e za e , d a me s ma f o r ma , um s ó c r ime d e q ue e l a nã o t enha nece s s i d a d e .Toda a sua c iênc ia cons i s te na manutenção de ambos em per fe i to equ i l íb r io . Somos cu lpados pe lo l ado

em que e l a no s l ança ? Não ma i s que a vespa ao a fer roar tua pe le .

PADRE — Então , nem o ma io r do s c r imes no s deve in sp i ra r ho r ro r ?

M O R I B U N D O — N ã o f o i i s s o q u e e u d i s s e . P a r a q u e e l e n o s i n s p i r e r e p u l s a o u h o r r o r , b a s t a a l e i

co nd ená - l o e o g l á d i o d a j u s t i ç a p un i - l o ; ma s s e i n f e l i zmen te f o i c o met i d o , é p r e c i s o s a b e r t o ma r s eu

p a r t i d o s e m s e e n t r e g a r a o r e m o r s o e s t é r i l ; o e f e i t o d e s t e é v ã o , j á q u e n ã o n o s l i v r a d e o t e r

comet ido , e nu lo , j á que não se pode repará - l o . Po r tanto , é um absurdo ent regar - se ao remor so e ma i s

a i nd a t eme r s e r p un i d o em o u t r o mund o s e s o mo s f e l i z e s d e t e r mo s e s ca p a d o d i s s o ne s t e . D eu s me

l i v r e enco r a j a r co m i s s o o c r ime : ce r t a men te é p r e c i s o e v i t á - l o o q ua n to s e p o s s a , ma s é p e l a r a zã o

q ue d evemo s s a b e r f u g i r a e l e , n ã o p o r f a l s a s c r ença s q ue nã o l e va m a na d a , e cu j o e f e i t o l o g o s e

d i s s i p a n u m a a l m a q u e s e j a u m p o u c o f i r m e . A r a z ã o , m e u a m i g o , t ã o - s o m e n t e a r a z ã o n o s d e v e

adver t i r que p re jud ica r no s so s semelhantes j ama i s no s to rnará fe l i zes , e no s so co ração , que cont r ibu i r

p a r a a f e l i c i d a d e d e l e s é a me l ho r co i s a q ue a na tu r e za no s p o d e co nced e r na t e r r a . T o d a a mo r a l

humana encer ra - se nes tas pa lav ras : tomar o s out ro s tão fe l i zes quanto desejamos sê - l o s nó s mesmos , e

jama i s l hes f azer ma i s ma l do que go s ta r íamos de receber .

E i s a í , meu a m i g o , o s ún i co s p r i n c í p i o s q ue d evemo s s e g u i r ; e n ã o nece s s i t a mo s d e r e l i g i ã o

n e m d e u s p a r a p r o v á- l os e a d m it i - lo s , s o m e n te u m b o m c o r a ç ão . M a s e s t o u p e r d e n do a s f o rç a s .

P regado r , abandona teus p reconce i to s , s ê homem, sê humano , sem temor nem esperança. De ixa de l ado

teu s d eu s e s e t ua s r e l i g i õ e s , q ue s ó s e r vem p a r a a co r r en t a r o s ho men s ; s ó o no me d e s s e s ho r r o r e s

d e r r a mo u ma i s s a ng ue s o b r e a t e r r a d o q ue t o d a s a s g ue r r a s e f l a g e l o s a o me s mo t emp o . Renunc i a à

i d é i a d e o u t r o mund o , q ue nã o e x i s t e , ma s j a ma i s a o p r a ze r em s e r e t o r na r o u t r o s f e l i z e s ne s t e em

q ue v i v emo s . E i s o ún i co mo d o q ue a na tu r e za o f e r e ce p a r a d o b r a r o u p r o l o ng a r t ua e x i s t ênc i a . M eu

a m ig o , a v o l úp i a s emp r e f o i o ma i s c a r o d o s meu s b en s ; eu a i n cen s e i d u r a n te t o d a a v i d a e g o s t a r i a

d e a ca b a r em s eu s b r a ço s . M eu f im s e a p r o x ima . S e i s mu l he r e s ma i s b e l a s q ue a l u z enco n t r a m- s e no

g a b in e t e v i z i n h o; r e s er v e i- a s p a r a e s t e m o m e n to . P eg a a t u a p a r t e e , a m e u e x e m p l o, p r oc u r a

esquecer em seus se io s o s s o f i smas inúte i s da super s t i ção e o s e r ro s imbec i s da h ipocr i s ia .

O m or i bu n do s oa , a s m u lh e re s e n tr a m, e o p ad r e t o r n a- se e m s e us b ra ç os u m h o me m

cor romp ido po r natureza , po r não te r s ab ido exp l i ca r o que é natureza co r romp ida.

I I I . DA   I MORTA L I D A DE DA  A LMA

PR IME I RO D I S C UR SO

S em d úv i d a , n a d a é ma i s a b s u r d o d o q ue o s i s t ema d a s p e s s o a s q ue t e ima m em d i ze r q ue a a l ma

é s u b st â n c ia d i f er e n te d o c o r p o ; s e u e r r o p r o v ém d o o r g u l ho q u e s e n t e m a o s u po r q u e e s se ó r gã o

i n t e r i o r t em o p o d e r d e r e t i r a r i d é i a s d e s eu s p r ó p r i o s f und o s . S ed uz i d o s p o r e s s a p r ime i r a i l u s ã o ,

a l guns ent re e le s l evaram a ex t ravagânc ia a ponto de acred i ta r que t razemos , ao nascer , idé ia s ina tas .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 7/41

A p a r t i r d e s s a h i p ó te s e r i d í cu l a , f i z e r a m d a p a r t e a q ue cha ma r a m d e a l ma uma s ub s t â nc i a i s o l a d a à

q u a l c o n c e d er a m o d i r ei t o i m a gi n á ri o d e p e n sa r i n d ep e n de n t em e n te d a m a t é ri a , d a q u al e m a na

ex c l u s i v a men te . E s s a s o p i n i õ e s mo n s t r uo s a s s o men te s e j u s t i f i c a va m a f i r ma nd o q ue a s i d é i a s s ã o o s

ú n i c os o b je t o s d o p e n sa m e nt o , c o m o s e n ã o f o s se c o m pr o v ad o q u e a p en a s n o s p o d em p r o vi r d o s

o b j e t o s e x t e r i o re s q ue , a o a g i r s o b r e no s s o s s en t i d o s , mo d i f i c a r am no s s o s cé r eb r o s . S em d úv i d a , c a d a

i d é i a e x i s t e d e f a t o ; ma s , p o r ma i s r emo ta q ue p o s s a s e r s ua ca u s a , p o d e r í a mo s s up o r s ua e x i s t ênc i a

s em e s t a ? S e p o d emo s a d q u i r i r i d é i a s a p ena s p o r me i o d e s ub s t â nc i a s ma te r i a i s , c o mo p o d e r í a mo ss u p o r q u e a c a u s a d e n o s s a s i d é i a s é i m a t e r i a l ? O u s a r s u s t e n t a r q u e p o d e m o s t e r i d é i a s s e m o s

s en t i d o s s e r i a t ã o a b s u r d o co mo d i ze r q ue um ceg o d e na s cença p o d e t e r uma i d é i a d a s co r e s . Nã o ,

Ju s t i ne ! Nã o a c r ed i t emo s q ue no s s a a l ma p o s s a a g i r p o r s i me s ma o u s em ca u s a em q ua l q ue r mo men to

d e no s s a v i d a : e l a e s t á a b s o l u t a men te l i g a d a a o s e l emen to s ma te r i a i s q ue co mp õ em no s s a e x i s t ênc i a ,

e d ep end e i n t e i r a men te d e l e s , s emp r e s ub met i d a à s imp r e s s õ e s d o s s e r e s q ue a g em nece s s a r i a men te

e m n ó s ; e o s m o v im e n to s s e c re t o s d e s t e p r i nc í p io v u l ga r m en t e d e n om i n ad o a l m a, c o n fo r m e s u a

p r o p r i ed a d e s , s e d evem a ca u s a s o cu l t a s d en t r o d e nó s me s mo s . Ac r ed i t a mo s q ue e s s a a l ma s e mo ve

p o r nã o ve r mo s a s mo l a s q ue a mo v imen ta m o u p o r s up o r mo s e s s e s mó ve i s i n ca p a ze s d e p r o d uz i r o s

e fe i to s que admiramos . A f onte de no s so s e r ro s advém do fa to de cons idera rmos no s so co rpo enquanto

ma té r i a b r u t a e i ne r t e , a o p a s s o q ue e s s e co r p o é uma má q u i na s en s í v e l q ue t em nece s s a r i a men te a

c o ns c iê n ci a m o me n tâ n ea d a i m pr e ss ão q u e r e ce b e e a c o ns c iê n ci a d o e u p el a l e mb ra nç a d a s

imp r e s s õe s s u ce s s i v a men te e x p e r imen ta da s . Gua r d a i s s o , Ju s t i ne : é a p ena s e un i ca men te p o r me i o d eno s s o s s en t i d o s q ue o s s e r e s s e t o r na m co nhec i d o s d e nó s o u p r o d uzem i d é i a s em nó s ; é s o men te em

co n s eq üênc i a d o s mo v imen to s imp r e s s o s em no s s o co r p o q ue no s s o cé r eb r o s e mo d i f i c a o u q ue no s s a

a l m a p e n s a , d e s e ja e a g e . C o m o p o d e r ia n o ss o e s pí r i t o m a n i fe s t ar - se e m o u t ra c o i sa a l é m d o q u e

co nhece ? O u co nhece r o u t r a co i s a d o q ue s en t i u ? T ud o co mp r o va d a ma ne i r a ma i s co nv i n cen te q ue a

a l ma a g e e s e mo ve s e g und o a s me s ma s l e i s q ue r e g em o s o u t r o s s e r e s d a na tu r e za ; q ue nã o p o d e s e r

d i s t i n t a d o co r p o ; q ue na s ce , c r e s ce , s e mo d i f i c a na s me s ma s p r o g r e s s õ e s e q ue , p o r co n s eg u i n t e ,

p e r ec e c o m e l e. S e m pr e d e p en d en t e d o c o r po , v e m o- l a p a ss a r p e l a s m e s ma s g r a da ç õ es : i n e pt a n a

i n f â nc i a , v i g o r o sa na i d a d e ma d u r a , g é l i d a na ve l h i ce ; s ua r a zã o o u s eu d e l í r i o , s ua s v i r t ud e s o u s eu s

v í c i o s nunca s ã o s enã o o r e s u l t a do d o s o b j e t o s e x t e r i o r e s e d e s eu s e f e i t o s s o b r e o s ó r g ã o s ma te r i a i s .

M ed i a n te p r o va s t ã o f o r t e s d a i d en t i d a d e d a a l ma e d o co r p o , co mo f o i p o s s í v e l ima g i na r q ue e s s a

p o r çã o d e um mes mo i nd i v í d uo g o za s s e d e imo r t a l i d a d e enq ua n to a o u t r a p e r e c i a ? O s imb ec i s , a p ó s

t e r em f e i t o d e s s a a l ma f a b r i c a d a a s eu b e l - p r a ze r um s e r s imp l e s , i n e x ten s o , d e s p r o v i d o d e p a r t e s ,

a b s o l u t a men te d i f e r en te , em s uma , d e t ud o o q ue co nhecemo s , p r e tende r a m q ue nã o e s t a va s u j e i t a à s

l e i s q u e e n c on t r am o s e m t o do s o s s e r e s , c u j a p e r pé t u a d e c o m po s i çã o a e x pe r i ên c i a n o s m o st r a ;

p a rt i r a m d e s s es f a l so s p r in c í p io s p a ra p e r su a d ir e m -s e d e q u e o m u n do t a m bé m t i n h a u m a a l m a

e s p i r i t u a l , un i v e rs a l , e d e r a m o no me d e D eu s a e s s a no va q u ime r a d a q ua l a d e s eu co r p o p a s s a va a

s e r u m a e m a na ç ã o. D a í a s r e l ig i õ es e t o d as a s f á b ul a s a b s u r da s d e c or r en t e s, t o d os o s s i s te m a s

g i g a n te s co s e f a b u l o s o s q ue ha v i a m nece s s a r i a men te d e r e s u l t a r d e s s a p r ime i r a e x t r a va g â nc i a ; d a í a s

i d é i a s r o ma ne s ca s d e p ena s , r e co mp en s a s a p ó s e s s a v i d a : o ma i s r e vo l t a n te d o s a b s u r d o s ; p o i s , s e a

a l m a h u m a n a f o s se u m a e m a n a ç ão d a a l m a u n i ve r s al , i s t o é d o D e u s d o u n i v e r so , c o m o p o de r i a

me r ece r o u d e s me r ece r ? C o mo , p e r p e tua men te a co r r en t a d a a o s e r d e q ue ema na , p o d e r i a s e r l i v r e ? E ,

s a b en d o i s s o , p u n i d a o u r e c om p e ns a da e n q ua n t o t a l ? E q u e o s s e c tá r i os d o e s t úp i d o s i s t em a d a

imo r t a l i d a de d a a l ma nã o no s v enha m d a r s ua un i ve r s a l i d a d e co mo p r o va d e s ua r ea l i d a d e . Na d a ma i s

s imp l e s d o q ue a p r o d i g i o s a e x ten s ã o d e s s a o p i n i ã o : e l a co n tém o f o r t e , co n s o l a o f r a co ; d e q ue ma i s

p r e c i s a va p a r a s e p r o p a g a r ? E m t o d o l u g a r o s ho men s a s s eme l ha m- s e , e em t o d o l u g a r h ã o d e t e r o s

mesmos e r ro s . Tendo a natureza in sp i rado em todos o s homens o ma i s v i vo amor para sua ex i s tênc ia , a

etern idade des sa ex i s tênc ia to rna - se um desejo neces sá r io ; e s se desejo conver te - se l ogo em cer teza e

ma i s p r o n t a men te a i nd a em d o g ma . E r a f á c i l p r e s um i r q ue ho men s a s s im d i s p o s t o s f o s sem e s cu t a r co m

a v i d e z t u d o o q u e e s s e s i s t e m a l h e s a n u n c i a v a . M a s d e s e j a r u m a q u i m e r a , s e r á , p o r s i s ó , p r o v a

i n co n te s t á ve l d a r ea l i d a d e d e s s a q u ime r a ? D o me s mo mo d o , d e s e j a mo s a v i d a e t e r na d o s co r p o s ; no

en ta n to , e s s e d e s e j o é f r u s t r a d o : p o r q ue o d a v i d a e t e r na d e no s s a a l ma nã o o s e r i a i g ua l men te ? A s

ma i s s imp l e s r e f l e x õ e s s o b r e a na tu r e za d e s s a a l ma d eve r i a m no s co nvence r d e q ue a i d é i a d e s ua

imo r t a l i d a de é a p ena s i l u s ã o . D e f a t o , o q ue vem a s e r e s s a a l ma , s enã o p r i n c í p i o d e s en s i b i l i d a de ? O

q ue vem a s e r p en s a r , g o za r , s o f r e r , s enã o s en t i r ? O q ue vem a s e r a v i d a s enã o o co n j un to d e s s e s

d i fe rentes mov imento s p róp r io s a se rem o rgan izados ? Des se modo , a s s im que o co rpo de ixa de v iver , a

s en s i b i l i d a d e nã o ma i s p o d e a t ua r ; n ã o p o d e ma i s h a ve r i d é i a s , nem, p o r co n s eg u i n t e , p en s a men to s .

L o g o , a s i d é i a s n ã o p o d e m s e n ã o p r o v i r d o s s e n t i d o s : c o m o q u e r e m q u e , u m a v e z p r i v a d o s d e s s e s

s en t i d o s , a i nd a t enha mos i d é i a s ? J á q ue f a zem d a a l ma um s e r s ep a r a do d o co r p o a n ima l , p o r q ue nã o

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 8/41

f a z em d a v i d a u m s e r d i s t in t o d o c o r po v i v o? A v i d a é a s o m a d o s m o v i m en t o s d e t o d o o c o r po . O

s e n ti m e nt o e o p e n sa m e nt o s ã o p a r t e s d e s s e s m o v i m en t o s: d e ss e m o d o, n o h o m em m o r to , e s s es

m o v im e n to s c e s s a r ão a s si m c o m o o s o u tr o s . D e f a t o, p o r m e i o d e q u e r a c i o c ín i o p r e t e n de m n o s

mo s t r a r q ue e s s a a l ma , q ue nã o p o d e s en t i r , q ue r e r , p en s a r e a g i r s enã o p o r me i o d e s eu s ó r g ã o s ,

consegue sent i r do r ou p razer , ou a té mesmo ter consc iênc ia de sua ex i s tênc ia quando o s ó rgão s que a

in fo rmavam es ta rão decompos to s ? Não é ev idente que a a lma depende do a r ranjo das par tes do co rpo e

d a o r de m s e gu n d o a q u a l e s s a s p a r t es c o n c or r em a c u m pr i r s u a s f u n çõ e s ? D e s s e m o d o , u m a v e zd e s t r u í d a a e s t r u t u r a o r g â n i ca , n ã o há co mo d uv i d a r d e q ue a l ma t a mb ém o e s t e j a . Nã o vemo s , no

d eco r r e r d e no s s a v i d a , q ue e s s a a l ma é a l t e r a d a , i n co mo d a d a , p e r t u r b a d a p o r t o d a s a s mud a nça s

ex p e r imen ta d a s p o r no s s o s ó r g ã o s ? E e l e s t êm a e x t r a va g â nc i a d e ima g i na r s e r p r e c i s o q ue e s s a a l ma

aja , pense, sub s i s ta , quando es ses mesmos ó rgão s te rão comp letamente desaparec ido ! Que absurdo !

O s e r o r g a n i z a d o p o d e s e r co mp a r a d o a um r e l ó g i o q ue , uma ve z q ueb r a d o , f i c a imp r ó p r i o p a r a

o s u s o s a o s q ua i s s e d e s t i n a va . D i ze r q ue a a l ma s en t i r á , p en s a r á , g o za r á , s o f r e r á a p ó s a mo r t e d o

c o r p o , é p r e t e n d e r q u e u m r e l ó g i o q u e b r a d o e m m i l p e d a ç o s p o s s a c o n t i n u a r m a r c a n d o a s h o r a s .

A q u el e s q u e n o s d i z e m q u e n o s s a a l m a p o d e s u bs i s ti r a p e sa r d a d e s t r u iç ã o d o c o rp o , s u s t e n ta m

e v id en t em e nt e q u e a m o di fi c aç ã o d e u m c o rp o p od e rá c on s er va r -s e a pó s s eu s uj e it o t e r s i do

des t ru ído .

M i n h a f i l h a , a c e i t a q u e a p ó s t u a m o r t e t e u s o l h o s n ã o m a i s v e r ã o , t u a s o r e l h a s n ã o m a i s

e s cu t a r ã o . D o f und o d e t eu ca i x ã o , n ã o s e r á s ma i s t e s t emunha d e s s a s cena s q ue t ua ima g i na çã o t er ep r e s en ta ho j e em neg r a s co r e s . Nã o t o ma r á s ma i s p a r t e d o q ue o co r r e rá no mund o ; nã o s e r á s meno s

i nd i f e r en te co m o q ue f a r ã o d e t ua s c i n za s d o q ue p o d e r i a s t e r s i d o , à v é s p e r a d e t eu na s c imen to ,

com o t ipo de ó rgão s que acabar ia s po r receber da natureza . Mo r rer é de ixa r de pensar , de sent i r , de

gozar , de so f re r : tuas idé ia s perecerão cont igo ; tuas penas e teus p razeres não te segu i rão no túmulo .

P o r t an to , enca r a a mo r t e co m um o l ha r t r a nq ü i l o , n ã o p a r a a l imen ta r t eu s t emo r e s e t ua me l a nco l i a ,

mas para aco s tumar - te a vê - l a com um o lhar ca lmo, para a s segura r - te cont ra o s f a l s o s te r ro res que o s

in imigo s de teu repouso querem insp i ra r em t i .

SEGUNDO D I S C UR SO

Se remontarmos à s épocas ma i s remotas , não encont ramos , l amentave lmente, out ra s ga rant ia s

d o a b s u r do s i st e m a d a i m o rt a l id a d e d a a l m a a n ã o s e r e n t re o s p o v o s m e r g u l ha d o s n o s e r r o s m a i s

g r o s s e i ro s . S e e x a m ina r mos a s c a u s a s p o s s í v e i s q ue p e r m i t i r a m a e s t a i nép c i a ho r r end a s e r a d m i t i d a ,

e n c on t r am o - la s n a p o l ít i c a , n o t e r ro r e n a i g n or â n ci a : m a s , i n d e p e nd e n te m e nt e d a o r i ge m d e ss a

o p i ni ã o , r e s t a s a b e r s e e l a t e m f u n da m e nt o s . Te m o m u i t o q u e , a o e x a mi n á -l a , a a c h em o s t ã o

q u imé r i ca co mo o s cu l t o s q ue a u to r i z a . C o nv i r emo s q ue , no s p r ó p r i o s s é cu l o s em q ue e s s a o p i n i ã o

pareceu ma i s auto r i zada, sempre houve pes soas s áb ia s o bas tante para de la duv idar .

E r a imp o s s í v e l n ã o s en t i r o q ua n to o co nhec imen to d e s s a v e r d a d e s e t o r na va nece s s á r i o a o s

ho men s ; e , no en t a n to , nenhum d o s d eu s e s q ue s ua e x t r a va g â nc i a e r i g i u t o ma va o cu i d a d o d e i n f o r má -

l o s a r e s p e i t o . P a r e ce q ue e s s e a b s u r d o na s ceu en t r e o s e g í p c i o s, i s t o é , en t r e o p o vo ma i s c r éd u l o e

s up e r s t ic i o s o d a t e r r a . D eve - s e , en t r e t a nto , no t a r uma co i s a : M o i s é s , emb o r a c r i a d o em s ua s e s co l a s ,

nunca r e co r r eu a e s s a p a l a v r a q ua nd o f a l a va a o s j ud eu s . S u f i c i en temen te p o l í t i c o p a r a c r i a r o u t r o s

f r e i o s , nunca o u s o u , co mo s a b emo s , u s a r e s t e co m s eu p o vo : a a s ne i r a e x ce s s i v a q ue o ca r a c te r i z a va

f e z co m q ue nunca ima g i na s s e u s á - l o . O p r ó p r i o Je s u s , e s s e mo d e l o d e ve l ha ca r i a e imp o s t u r a , e s s e

a b o m iná ve l cha r l a t ã o , n ã o t i nha a meno r no çã o d e imo r t a l i d a d e d a a l ma . E l e s ó s e e x p r e s s a co mo

ma te r i a l i s t a ; e q ua nd o a mea ça o s ho men s , p e r ceb e - s e q ue é a o s co r p o s d e l e s q ue s eu s d i s cu r s o s s e

d i r i g em, j á q ue nunca s ep a r a co r p o e a l ma . M a s nã o q ue r o me a te r , a q u i , n a b u s ca d a o r i g em d e s s a

fábu la hed ionda: mos t ra r - vo s sua comp leta l oucura to rna - se o ún ico ob jet ivo de meu t raba lho .

P r ime i ro , f a l emos um ins tante , meus amigo s , das causas que puderam p roduz i - l a . As desg raças

d o m u n do , a s r e v ir a v ol t a s q u e s o f re u , o s f e n ôm e n os d a n a t ur e z a, f o ra m , i n c on t e st a v el m e nt e , a s

p r i me i r as ; a f í s ic a , m a l c o n he c i da , m a l i n t er p re t a da , d e v e t e r a u t or i z ad o a s s e g un d a s; a p o l ít i c a

to rnou- se a te rce i ra . A impotênc ia em que se encont ra o entend imento humano em re lação à f acu ldade

d e co nhece r a s i me s mo p r o vém meno s d a i nex p l i c a b i li d a d e d o en i g ma d o q ue d o mo d o s e g und o o q ua l

é p r o p o s t o . An t i g o s p r e co ncei t o s p r ed i s p u s e r am o ho mem co n t r a s ua p r ó p r i a n a tu r e za : e l e q ue r s e r o

q u e n ã o é . D e s g a s t a - s e e m e s f o r ç o s p a r a e n c o n t r a r - s e e m u m a e s f e r a i l u s ó r i a , a q u a l , m e s m o s e

ex i s t i s se , não se r ia sua . Como, apó s i s s o , pode e le encont ra r - se ? Será que o mecan i smo do in s t in to no s

a n ima i s j á n ã o f o i s u f i c i en temen te d emo n s t r a d o p o r me i o d a s i n t o n i a p e r f e i t a d e s eu s ó r g ã o s ? S e r á

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 9/41

q ue a e x p e r i ênc i a nã o no s co mp r o va q ue o i n s t i n t o — ne s s e s me s mo s a n ima i s , e n f r a q uece p o r ca u s a d a

a l t er a ç ão q u e n e l e s o c o r r e, q u e r p o r a c i de n t e, q u e r p o r v e l h i c e , e q u e o a n i ma l é f i na l m en t e

d e s t r u í d o q ua ndo ce s s a a ha r mo n i a d a q ua l n ã o e r a s enã o o r e s u l t a d o ? C o mo s e p o d e s e r ce g o a p o n to

d e nã o r e co nhece r q ue a co n tece e x a t a men te a me s ma co i s a co no s co ? E n t r e t a n to , p a r a t e r m ina r d e

i d en t i f i c a r e s s e s p r i n c í p i o s em nó s , é p r e c i s o co meça r p o r co nvence r - no s d e q ue a na tu r e za , emb o r a

una em s ua e s s ênc i a , s e mo d i f i c a a o i n f i n i t o . E m s e g u i d a , n ã o p e r d e r d e v i s t a e s s e a x i o ma d e ve r d a d e

e te r na : um e f e i t o nunca p o d e r i a s e r ma i o r d e q ue s ua ca u s a . E , f i n a l men te , l emb r ar - s e d e q ue t o d o so s r e s ul t a do s d e u m m o v im e n to q u a lq u e r s ã o d i v er s os e n t re s i ; q u e a u m en t a m o u e n f ra q u ec e m

propo rc iona lmente ao v igo r ou à f r aqueza do peso que dá sua impu l são ao mov imento .

A j ud a d o s p e l o u s o d e s s e s p r i n c í p i o s , p e r co r r e r e i s o c a mp o d a na tu r e za s en s í v e l a p a s s o s d e

g i g a n te s . G r a ça s a o p r ime i r o , d e s co b r i re i s e s s a un i d a d e q ue a nunc i a : em t o d a p a r t e d o r e i no a n ima l ,

há s angue, o s so s , ca rne, múscu lo s , nervo s , v í s ceras , mov imento , in s t in to .

P o r m e i o d o s e g u n d o , p e r c e b e r e i s a d i f e r e n ç a e x i s t e n t e e n t r e o s d i v e r s o s s e r e s v i v o s d a

n a tu r ez a . N ã o i r ei s c o mp ar ar o h o me m c o m a t a rt a ru ga , n e m o c a va l o c o m a m os c a. A n te s ,

co n s t i t u i r ei s um p l a no g r a d ua l d e d i v e r s i d a de t a l q ue ca d a a n ima l o cup e ne l e o l u g a r q ue l he co nvém.

O e x am e d a s e s p éc i es c o nv e nc e r- vo s -á d e q ue a e ss ên c ia é a m e sm a p or t o da p a rt e e q ue a s

d i v e r s i d a d e s a p ena s t êm o s mo d o s p o r o b j e t o . D i s s o co nc l u i r e i s q ue o ho mem nã o é ma i s s up e r i o r à

m a t ér i a , c a u s a p r o d ut o r a d o h o m em , d o q u e o c a v al o é s u p er i o r a e s s a m e s ma m a t ér i a , c a u s a

p r o d u to r a d o ca va l o ; e q ue s e há s up e r i o r i d a d e en t r e e s s a s e s p éc i e s , o ho mem e o ca va l o , é a p ena snas mod i f i cações ou nas f o rmas .

Ve r e i s, p e lo t e r c ei r o p r i n c í p io , o q u a l d i z q u e o s r e s ul t a do s d e u m m o v im e n to q u a lq u e r

d i fe rem- se ent re s i , e que aumentam ou enf raquecem- se p ropo rc iona lmente ao v igo r ou à f r aqueza do s

p e s o s q ue imp u l s i o na m e s s e mo v imen to , e co nvence r - v o s - e i s , p o r e s s e p r i n c í p i o , d e q ue na d a é ma i s

ma r a v i l h o so na co n s t r u çã o d o ho mem q ua nd o s e t r a t a d e co mp a r á - l o co m a s e s p éc i e s a n ima i s q ue l he

s ã o i n f e r i o r e s . Q ua l q ue r q ue s e j a o mo d o co mo o f a zemo s , s ó v emo s ma té r i a em t o d o s o s s e r e s q ue

ex i s t em — O q uê ! , d i r e i s , o ho mem e a t a r t a r ug a s ã o a me s ma co i s a ? — Nã o , c l a r o , d i f e rem na f o r ma ;

m a s a c a u sa d o m o v i m e nt o q u e c o n s t i tu i a m b o s é c e r t am e n te a m e sm a : " S u s p e nd e i u m p ê n du l o n a

p o n ta d e um f i o , ne s s e t e t o , e co l o ca i - o em mo v imen to : a p r ime i r a l i n ha d e s c r i t a p o r e s s e p ênd u l o

t e r á t o d a a e x t en s ã o q u e o c u m pr i m en t o d o f i o p e r m i ti r ; a s e g un d a t e r á m e n os , a t e r ce i r a m e n o s

a inda, a té que, f ina lmente, o mov imento do pêndu lo se reduza a uma s imp les v ib ração , a qua l acabará

em repouso ab so luto " .

D e s s a e x p e r i ênc i a co nc l uo : o ho mem r e s u l t a d o mo v imen to ma i s e x t en s o , a t a r t a r ug a a p ena s

de uma v ib ração , mas a matér ia ma i s b ruta fo i a causa de ambos .

P a r a e x p l i c a r o f enô meno ho mem, o s d e f en s o r e s d a imo r t a l i d a d e d a a l ma d o t a m- no d e uma

s ub s t â nc i a d e s co nhec i d a . Nó s , ma te r i a l i s t a s , s em d úv i d a mu i t o ma i s r a zo á ve i s , s ó co n s i d e r a mo s s ua s

q u a li d a de s c o m o o r e su l t ad o d e s u a o r g an i z aç ã o . C o n v i m os q u e a s s u p os i ç õe s r e so l v em m u i ta s

d i f i cu l d a de s , ma s nã o a ca b a m co m a s q ue s t õ e s. Ace l e r a nd o o p a s s o e i nd o d i r e t a men te a o p o n to , s ã o

p r o va s q ue v o s a p r e s en to . O ma i s e s t r a nho é q ue nenhum d e s s e s me i o - f i l ó s o f o s co nco r d a q ua n to à

n a t u re z a d a s u bs t â nc i a i m a te r i al q u e a d mi t e m . O a n t a go n i sm o d e s e u s s e n t i me n t os s e ri a m e sm o ,

convenhamos , um dos ma i s f o r tes a rgumento s que poder íamos opo r - l hes . No entanto , desp rezando es se

recur so , ent rego -me antes ao exame da ques tão que faz da a lma uma subs tânc ia c r iada .

M i l perdões , amigo s , s e no deco r rer des ta d i s se r tação ve jo -me ob r igada a admit i r, po r um momento ,

es se se r qu imér ico conhec ido pe lo nome de DEUS . Sabere i s , e spero , s e rdes su f i c ientemente jus to s para

vo s ce r t i f i c a r d e q ue , s end o o a t e í s mo o ma i s s a g r a d o d e meu s s i s t ema s , é a p ena s p o r nece s s i d a d e e

mo men ta nea men te q ue r e co r r o a e s s a s s up o s i çõ e s ; p o i s , uma ve z q ue t o d o s o s e r r o s s e enca d e i a m no

e s p í r i t o d o s q ue o s a d m i t em, t emo s , f r eq uen temen te , d e r ee r g ue r um p a r a co mb a te r e d i s s i p a r o u t r o .

P o r t an to , p e r g un to : d a d a e s s a h i p ó te s e d a a d m i s s ã o d e um D eu s , o nd e e s s e D eu s enco n t r o u a e s s ênc i a

d a a l ma ? E l e a c r i o u , d i r e i s . S e r á , co n tud o , e s s a c r i a çã o p o s s í v e l ? S e D eu s e x i s t i s s e s o z i nho , o cup a r i a

t ud o , e x ce to o a b s u r d o na d a . D eu s , a b o r r e c i d o co m o na d a , c r i o u , d i z em, a ma té r i a ; i s t o é , d eu o s e r

ao nada. E i s , po r tanto , tudo ocupado . Do i s s e res p reenchem todo o espaço : Deus e a matér ia . Se es ses

do i s s e res p reenchem tudo , se f o rmam o todo , não há l ugar para out ra s c r iações , po i s é impos s íve l que

u m a c o i s a s e j a e n ã o s e j a a o m e s mo t e m po . O e s pí r i t o e n t ão p r ee n c h e t o d o o v a z io m e t af í s ic o , a

ma té r i a p r eenche f i s i c a men te t o d o o v a z i o s en s í v e l , e l o g o nã o r e s t a ma i s e s p a ço p a r a o s s e r e s d a

no va c r i a çã o , p o r ma i s q ue s e r ed uza s ua e x i s t ênc i a . Aq u i , r e co r r em a D eu s e d i zem q ue e s s e D eu s

recebe em s i e s sa s novas p roduções . O f a to de Deus poder a l o ja r novas subs tânc ia s da mesma natureza

na e s f e r a e s p i r i t u a l d e s ua i n f i n i d a d e , s i g n i f i c a c l a r a men te q ue s ua i n f i n i d a d e nã o e r a co mp l e t a e

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 10/41

p e r f e i t a , uma ve z q ue s o f r eu a c r é s c imo s . Q uem f a l a em i n f i n i d a d e , f a l a em ex c l u s ã o d e t o d o l im i t e ;

mas um ser que exc lu i todo l imi te , não é su je i to a acrésc imos .

S e d i s s e r em q ue D eu s , p o r s ua o n i p o tênc i a , e s t r e i t o u s ua e s s ênc i a i n f i n i t a d e mo d o a a b r i r

e s p a ço p a r a s ub s t â nc i a s r e cém- c r i a da s , r e s p o nd o en t ã o q ue d e i x o u d e s e r i n f i n i t o , no e s t r e i t a men to ,

quando o l ado em que oco r reu de ixou t ransparecer um l imi te .

M e s mo s e D eu s p ud e s s e t e r r e ceb i d o em s ua e s f e r a a s s ub s t â nc i a s r e cém- c r i a d a s , co n t i nua

ce r t o q ue e s s a e s f e r a e x p e r imen ta r á um va z i o q ua nd o ca d a s ub s t â nc i a d e l a s a i r , p a r a , n a e s f e r a d ama té r i a , a n ima r um co r p o . E s s e v a z i o p o d e r á s ub s i s t i r p a r a s emp r e , p o i s , s e g und o o s a ma d o r e s d e s s e

absurdo , a s a lmas condenadas ao sup l í c io nunca sa i r ão do in fe rno .

S e D eu s p r eenche co n t i nua men te o v a z i o ca u s a d o p e l a a u s ênc i a d e uma a l ma , é p r e c i s o q ue imp r ima

um e f e i t o r e t r o a t i v o à s ua p r ó p r i a s ub s t â nc i a q ua nd o a l g uma s d e s s a s a l ma s v o l t a m à s ua e s f e r a . I s s o é

a b s u r d o , p o i s u m i n f i n i t o c o m p l e t o c o m o v o s s o D e u s , c u j a s p a r t e s s ã o e l a s m e s m a s i n f i n i t a s , n ã o

poder ia se es t re i ta r nem se expand i r .

S e o v a z i o ca u s a d o p e l a a u s ênc i a d e uma a l ma nã o f o r p r eench i d o , é um na d a , p o i s é p r e c i s o

q ue t o d o e s p a ço co n tenha e s p í r i t o o u ma té r i a . No en t a n to , D eu s nã o p o d e p r eenche r e s s e v a z i o nem

co m s ua p r ó p r i a s ub s t â nc i a nem co m p o r çõ e s d e ma té r i a , p o i s D eu s nã o p o d e co n te r ma té r i a . L o g o , h á

par tes nu la s na d iv indade.

Aq u i no s s o s a d ve r s á r i o s a d o t a m um t o m ma i s s ua ve . Q ua nd o d i zemo s , p r e tend em e l e s , q ue

D e us c ri o u a a l ma h u ma n a, i ss o s i gn i fi c a a p en a s q ue e l e a f or m ou . .. C o nv e nh a mo s q u e e s samod i f i cação de te rmos não t raz mui ta mudança à d i sputa .

S e D eu s f o r mo u a a l ma huma na , f o r mo u - a d e a l g uma e s s ênc i a . r e co r r end o a o e s p í r i t o o u à ma té r i a .

Não pode se r o e sp í r i to , po i s ex i s te apenas um, que é o in f in i to , ou o p róp r io Deus ; o ra , é um absurdo

p a r a t o d o m u n d o s u p o r q u e a a l m a s e j a u m a p o r ç ã o d a d i v i n d a d e . P r e s t a r u m c u l t o a s i m e s m o é

c o n tr a d it ó ri o ; é o q u e o c o rr e ri a c a s o a a l m a f o s se u m a p o r ç ã o d e D e u s. N ã o é m e n os a b su r d o u m a

s ub s t â nc i a p un i r e t e r na men te uma p o r çã o d e s t a ca d a d e s i me s ma . E m s uma : ne s s a h i p ó te s e , n ã o me

venha m f a l a r em i n f e r no o u p a r a í s o , p o i s s e r i a i n s en s a te z D eu s p un i r o u r e co mp en s a r uma s ub s t â nc i a

que de le emanou.

D eu s , p o r t a n to, f o r mo u a a l ma d e ma té r i a , uma ve z q ue s ó e x i s t e ma té r i a e e s p í r i t o ? P or ém,

s e a a l ma f o i f o r ma d a d e ma té r i a , n ã o p o d e s e r imo r t a l . D eu s , s e q u i s e r d e s , p ô d e e s p i r i t u a l i z a r e

f a ze r t r a n s p a r e ce r a ma té r i a a t é a imp a l p a b i l i d a d e , ma s nã o p ô d e t o r ná - l a imo r t a l , p o i s o q ue t e ve

começo há de te r um f im.

O s p r ó p r i o s d e í s t a s n ã o p o d em co nceb e r a imo r t a l i d a d e d e D eu s a nã o s e r p o r s ua i n f i n i d a d e ,

e e le s omente é in f in i to po r exc lu i r todo l imi te .

A ma té r i a , me s mo e s p i r i t u a l i za d a , n ã o d e i x a d e s e r d i v i s í v e l , uma ve z q ue a d i v i s i b i l i d a d e é e s s enc i a l

à ma té r i a e q ue a e s p i r i t u a l i z a çã o nã o mud a a e s s ênc i a d a s co i s a s ; o r a , o q ue é d i v i s í v e l e s t á s u j e i t o

a a l te rações , e o que é suscet íve l de so f re r a l te rações não é permanente e mui to menos imor ta l .

No s so s adver sá r io s , encur ra l ado s po r todas e s sa s ob jeções , l ançam mão da on ipo tênc ia de Deus . Bas ta -

no s , d i z em, t e r ce r t e za d e s e r mo s d o t a d o s d e uma a l ma e s p i r i t u a l e imo r t a l ; p o uco no s imp o r t a s a b e r

co mo e q ua nd o f o i c r i a d a . O q ue há d e co n s t a n te , a c r e s cen ta m, é q ue , p o r s ua s f a cu l d a d e s , n ã o a

podemos ju l ga r de out ra subs tânc ia senão a que se supõe ao s e sp í r i to s angé l i co s .

R e c o r r e r c o n s t a n t e m e n t e à o n i p o t ê n c i a , c o m o f a z e m o s t e í s t a s , n ã o s e r i a a b r i r a p o r t a a

t o d o s o s a b u s o s ? Nã o s e r i a i n t r o d uzi r um p i r r o n i smo un i ve r s a l em t o d a s a s c i ênc i a s ? P o i s , a f i n a l , s e a

o n i p o tênc i a a g e co n t r a a s l e i s q ue e l a me s ma , d i zem, d e te r m ino u , nunca p o d e r e i t e r ce r t e za d e q ue

um c í r cu l o nã o é um r e t â ng u l o , uma ve z q ue e l a p o d e r á f a ze r co m q ue a f i g u r a q ue t enho d eb a i x o d e

meus o lho s se ja ao mesmo tempo um e out ro .

A p a r t e m a i s s ã d o s t e í s t a s , a o s e n t i r o q u a n t o r e p u g n a v a à r a z ã o s u p o r s e r a a l m a u m a

subs tânc ia semelhante à de seu Deus , não hes i tou em d izer que e ra uma subs tânc ia , uma ente léqu ia de

f o r ma p a r t i cu l a r, t o ma d a nã o s e s a b e o nd e , e , a r e s p e i t o d e no s s a s o b j e çõ e s, q ue , co m a e x ceçã o d e

D eu s o q ua l , p o r c a u s a d e s ua i n f i n i d a d e e x c l u i nd o t o d o l im i t e , n ã o t i nha f o r ma , t ud o q ue r e s t a va na

na tu r e za ha v i a d e t e r uma f i g u r a e , p o r co n s eg u i n t e, uma ex ten s ã o , co n f e s s a nd o s em d i f i cu l d a d e q ue

a a l ma huma na t em uma ex ten s ã o , p a r t e s , um mo v imen to l o ca l , e t c . M a s b a s t a d e a r g umen ta r co n t r a

no s s o s a d ve r s á r i o s . E l e s no s co nced em, co mo v imo s , q ue a a l ma t em uma ex ten s ã o , q ue é d i v i s í v e l ,

q ue t em p a r t e s ; i s t o é o s u f i c i en te p a r a no s l e va r a a c r ed i t a r q ue a q ue l e s me s mo s q ue s u s t en t a m s ua

imo r t a l i d a de nã o e s t ã o mu i t o co nvenc i d o s d e s ua e s p i r i t u a l i d a d e e q ue e s s a o p i n i ã o é i n s u s t en t á ve l . E

ho ra de convencer - vo s d i s to .

Q uem f a l a em ma té r i a e s p i r i t u a l , f a l a em s e r a t i v o , p ene t r a n te , s em q ue s e p o s s a p e r ceb e r,

no co r p o em q ue p ene t r a , v e s t í g i o a l g um d e s ua p a s s a g em. E s t a r i a no s s a a l ma d en t r o d e s s a h i p ó te s e ?

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 11/41

E la vê sem ver , e s cuta sem dar ouv ido s , move-no s sem mover a s i mesma. Ora , ta l s e r não pode ex i s t i r

s em rever ter a o rdem soc ia l .

P a ra co mp r o vá - l o , p e r g un to d e q ue mo d o a s a l ma s v êem. U n s r e s p o nde r a m q ue a s a l ma s v i a m

t u do n a d i vi n da d e, c o mo n u m e sp el h o e m q ue o s o bj et o s s e r e fl et e m. O u tr os d i ss er am q u e o

co nhec imen to e r a - l he s t ã o na tu r a l q ua n to a s o u t r a s q ua l i d a d e s d e q ue s ã o d o t a d a s . C e r t a men te , é

d i fí c il d e te rm i na r q u al d es s as d u as o pi n iõ e s é m a is a b su r da . D e f a to , n ã o s e ri a i m po ss í ve l

compreender como uma a lma pode conhecer , numa espéc ie gera l , todas a s par t i cu l a r idades que ne la see n co n tr a m e t o da s a s c o nd i çõ e s d es sa s p ar t ic u la r id a de s? S u po n ha m os a a lm a d ot a da d e u m

co nhec imen to d o b em e d o ma l em g e r a l . E s s a c i ênc i a nã o l he b a s t a r á p a r a b u s ca r um e a b s t e r - se d o

out ro . É p rec i so , para que um ser se determine cons tantemente a es sa fuga ou a es sa busca , que tenha

co nhec imen to s d a s e s p éc i e s p a r t i cu l a r e s d o b em o u d o ma l co n t i d a s ne s s e d o i s g êne r o s a b s o l u t o s e

g e r a i s . O s p a r t i d á r io s d o s i s t ema d e S co t s u s t en t a va m q ue a a l ma huma na nã o t i nha em s i a f o r ça d e

ver , a qua l não l he fo ra dada quando de sua cr iação , mas que a a lma apenas receb ia suas p rop r iedades

durante a s c i r cuns tânc ia s em que era ob r igada a usá - l a s .

N a s u p o s iç ã o p r e c e d en t e , a a l m a, q u e t e m u m c o n h e c i me n t o, n a s ci d o c o m e l a, d o m a l e m

g e r a l , é uma s ub s t â nc i a imp o ten te , p o i s v ê o ma l q ue e s t á p o r v i r e d e l e nã o s e d e s v i a . A ma té r i a ,

então , é o agente; a a lma, o pac iente ; o que é ab surdo . Na op in ião de Sco t , i s s o f az com que o homem

na d a p o s s a p r e ve r , o q ue é f a l s o . S e o ho mem f o s s e r ea l men te r ed uz i d o a i s s o , s ua co nd i çã o s e r i a

m u it o i n fe ri o r à d a f o rm i ga , c u ja p re v id ê nc i a é i n co nc e bí v el . D i ze r q ue o h om e m i m pr im e oco nhec imen to na a l ma , à med id a q ue e s t a p r e c i s a e x e r ce r s ua s f a cu l d a d e s , co r r e s p o nd e a f a ze r d e

vo s s o D eu s o a u t o r d e t o d o s o s c r ime s ; e v o s p e r g un to s e e s s a s co nd i çõ e s nã o r e vo l t a r i a m o s ma i s

f i rmes sectá r io s des se Deus .

O s p a r t i d á r i o s d a a l ma imo r t a l e e s p i r i t u a l v êem- s e, p o r t a n to , r ed uz i d o s a o s i l ê n c i o q ua n to a

s a b e r co mo e p o r q ue me i o s e s s a a l ma vê e co nhece a s co i s a s . E n t r e t a n to , e l e s a i nd a nã o d e s i s t em: a

a l m a h u m a n a , d i z e m , v ê e c o n h e c e a s c o i s a s d o m e s m o m o d o q u e a s o u t r a s s u b s t â n c i a s s u t i s o u

e s p i r i t u a i s q ue t êm a me s ma na tu r e za q ue e l a s ; o q ue , co mo p o d emo s o b s e r va r , co r r e s p o nd e a d i ze r

abso lutamente nada.

Ao s e d e f end e r uma o p i n i ã o f a l s a , a s d i f i c u l d a de s r ena s cem à med id a q ue p en s a mo s d e r r ub á -

l a s . S e a a l ma huma na nã o p o s s u i a f a cu l d a d e d e p ene t r a r o s o b j e t o s p r e s en te s nem a d e r ep r e s ent a r

o s ausentes que desconhece e de les f o rmar - se idé ia s verdade i ra s s egundo a s qua i s po s sa j u l ga r de suas

d i s po s i çõ e s i n t e r i o re s , s e e l a n ã o p o d e r e c e b er i m p re s sõ e s a n ã o s e r p e l a p r e s en ç a s e n sí v e l d o s

o b j e t o s , e s e e l a n ã o p o d e j u l g a r d e s u a q u a l i d a d e a n ã o s e r p e l o s s i n t o m a s e x t e r i o r e s q u e o s

caracter i zam, seu in te lecto não tem, então , ma i s per sp icác ia nem ma i s p rop r iedades do que o in s t in to

d o s b r u t o s q ue b u s ca m o u f o g em d e ce r t o s o b j e t o s , s e g und o o s mo v imen to s q ue ne l e s e x c i t a m a s l e i s

i n a lt e r áv e i s d a s i m pa t i a o u d a a n t i pa t i a . S e a s si m f o r, c o m o t u d o o c o m pr o va , c o m o é i m p os s ív e l

d uv i d a r , co mo , en t ã o , p o d em o s ho men s t e r a l o u cu r a d e co nceb e r uma c r i a t u r a f o r ma d a p o r d ua s

s u b st â n c ia s d i s ti n t as , q u a nd o o s a n i ma i s , q u e c o n te m p la m c o m o p u r a s m á q ui n a s m a t er i a is , e s t ão

d o ta d o s , em r a zã o d o l u g a r q ue o cup a m na ca d e i a d o s s e r e s , d e t o d a s a s f a cu l d a d e s q ue no t a mo s na

espéc ie humana! ? Um pouco menos de va idade e a l guns in s tantes de re f l exão sob re s i mesmo bas ta r iam

para o homem se convencer de que nada tem a ma i s do que o s out ro s an ima i s a não se r o que convém à

s ua e s p éc i e na o r d em d a s co i s a s ; e q ue uma p r o p r i ed a d e i nd i s p en s á ve l d o s e r a o q ua l e s t á v i n cu l a d a

nã o é um p r e s en te g r a t u i t o d e s eu f a b u l o so a u to r, ma s uma d a s co nd i çõ e s e s s enc i a i s d e s s e s e r, s em a

qua l não se r ia o que é .

Re nu nc ie mo s, a ss im , a o r id íc ul o s is te ma d a i mo rt al id ad e d a a lm a, f ei to p ar a s er

cons tantemente tão desp rezado quanto o da ex i s tênc ia de um Deus tão f a l s o , tão r id ícu lo quanto e le .

IV. DO INF ERNO

P o r v e ze s , v emo - no s o b r i g a d o s , n ã o a a d m i t i r , ma s a s up o r ce r t o s d o g ma s , d e mo d o a p o d e r

c o m b a t e r o u t r o s . P a r a a n i q u i l a r a o s v o s s o s o l h o s o d o g m a e s t ú p i d o d o i n f e r n o , é p r e c i s o q u e m e

p e r m i t a i s , p o r um i n s t a n te , r e s t a b e l e ce r a q u ime r a d e í s t a . O b r i g a d a ' a u s á - l a co mo p o n to d e a p o i o

ne s t a imp o r t a n te d i s s e r t a çã o , p r e c i s o co nced e r - l he a b s o l u t a men te uma ex i s t ênc i a mo men tâ nea : i r e i s

p e r do a r- m e , e s p e r o, m a i s f a c il m e nt e a i n da , p o r c e r t a m e nt e n ã o s u po r d es q u e e u a c r ed i t e n e s s e

abomináve l f antasma.

C o n f e s s o q ue o d o g ma d o i n f e r no é , em s i , t ã o d e s p r o v i d o d e ve r o s s im i l h a nça e q ue t o d o s o s

a r gu m en t os q ue s e p re t en d e e st a be l ec e r p a ra s us t en t á- l o s ão t ã o f rá g ei s e c o nt ra d iz e m t ã o

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 12/41

ma n i f e s t a men te a r a zã o , q ue q ua s e en r ub e s cemo s d e t e r d e co mb a tê - l o. P o uco imp o r t a , a r r a nq uemo s

imp iedosamente ao s c r i s tão s a té a e sperança de aco r renta r -no s de novo ao s pés de sua re l i g ião a t roz e

mo s t r emo- l he s q ue o d o g ma s o b r e o q ua l s e a p ó i a m ma i s imp e r i o s a men te p a r a a p a vo r a r - nos , d i s s i p a -

se , como todas suas out ra s qu imeras , d iante do ma i s f r aco l ampejo do a rcho te da f i l o so f ia .

Os p r ime i ro s a rgumento s de que se se rvem para es tabe lecer e s sa f a r sa pern ic io sa s ão :

1 ° Q ue o p eca d o , p o r s e r i n f i n i t o e em co n s i d e ra çã o a o S e r o f end i d o , me r ece , p o r co n s eg u i n t e ,

cas t igo s in f in i to s ; que tendo Deus d i tado l e i s , é par te de sua g randeza pun i r quem as t ransg red i r .2° A un iver sa l idade des sa dout r ina e a mane i ra segundo a qua l é anunc iada na E s cr i tu ra .

3° A neces s idade des se dogma para conter pecado res e incrédu lo s .

E i s a s bases que p rec i s amos an iqu i l a r .

I r e is c o n v ir, l i s on j e io - m e, q u e a p r i me i r a s e d e st r ó i n a t ur a l me n t e p e l a d e s ig u a l da d e d o s

d e l i t o s . S e g und o e s s a d o u t r i na , o ma i s l e ve e r r o s e r i a p un i d o a s s im co mo o ma i s g r a ve : o r a , p e r g un to

s e é p o s s í v e l, a d m i t i nd o um D eu s j u s t o , s up o r uma i n i q ü i d a d e d e s s a e s p éc i e ? Q uem, p o r s i n a l , c r i o u o

ho mem? Q uem l he d eu a s p a i x õ e s q ue o s t o r men to s d o i n f e r no d evem p un i r ? Nã o f o i v o s s o D eu s ? A s s im ,

p o r t a n to, c r i s t ã o s imb ec i s , a d m i t i s q ue p o r um l a d o e s s e D eu s r i d í cu l o co n f e r e a o s ho men s i n c l i n a çõ e s

q ue é o b r i g a d o a p un i r p o r o u t r o ? S e r á q ue i g no r a va q ue e s s a s i n c l i n a çõ e s ha v i a m d e u l t r a j á - l o ? S e

s a b i a d i s s o , p o r q ue en t ã o co nced e r -l he s e s s e t i p o d e p end o r e s? E s e nã o s a b i a , p o r q ue p un i - l o s p o r

um er ro que compete apenas a e le ?

De aco rdo com as cond ições reputadas neces sá r ia s à s a l vação , parece ev idente que se remos bemm a i s c e r t a me n t e d a n a d os d o q u e s a l vo s . P o i s e u a i n da p e rg u n t o s e t e r c o l o c a do s u a o b r a f r á gi l e

i n f e l i z n u m a p o s i ç ã o t ã o c r u e l f a z p a r t e d a t ã o a l a r d e a d a j u s t i ç a d o v o s s o D e u s e , s e g u n d o e s s e

s i s t ema , co mo vo s s o s d o u to r e s o u s a m a f i r ma r q ue a f e l i c i d a d e e a i n f e l i c i d a d e e t e r na s a p r e s en t a m- s e

igua lmente ao homem e não dependem senão de sua esco lha ? Se a ma io r po rção do gênero humano es tá

des t inada a se r e ternamente in fe l i z , um Deus que tudo sabe dev ia s abê- l o . D i to i s s o , po r que, então , o

mo n s t r o no s c r i o u ? F o i p o r o b r i g a çã o ? L o g o , n ã o é ma i s l i v r e . F o i d e p r o p ó s i t o ? L o g o , é um b á r b a r o .

Nã o , D eu s nã o t i nha o b r i g a çã o nenhuma d e c r i a r o ho mem, e s e o f e z a p ena s p a r a s ub metê - l o a um t a l

d e s ti n o , a p r op a g aç ã o d e n o s sa e s pé c i e t o r n a -s e , e n t ã o , o m a i o r d o s c r i m e s e n a d a s e r á m a i s

desejáve l do que a ex t inção to ta l do gênero humano .

E n t r e t a n to , s e e s s e d o g ma vo s p a r e ce , um i n s t a n te q ue s e j a , nece s s á r i o à g r a nd eza d e D eu s ,

p e r g un to p o r q ue e s s e D eu s t ã o g r a nd e e t ã o b o m nã o d eu a o ho mem a f o r ça nece s s á r i a p a r a s a f a r - s e

d o s up l í c i o . Nã o é c r ue l d a p a r t e d e D eu s d e i x a r a o ho mem a f a cu l d a d e d e s e p e r d e r e t e r na men te ?

E nco n t r a r e i s a l g um d i a um me io d e l i v r a r v o s s o D eu s d a a cu s a çã o f und a men ta d a d e i g no r â nc i a e d e

maldade?

Se todos o s homens s ão ob ras i gua i s da d i v indade, po r que

to d o s nã o co nco r d a m q ua n to a o t i p o d e c r ime s q ue d evem va l e r a o ho mem e s s a e t e r n i d a d e d e

s up l í c i o s ? P o r q ue o ho ten to te é co nd ena d o p e l o me s mo mo t i v o q ue v a l e o p a r a í s o a o ch i nê s e o q ue

f a z c o m q u e e s t e g a r an t a o c é u e m a l go q u e l e v a o c r i st ã o a o i n f er n o ? Q u e re r r e l a t a r a s o p i n i õe s

v a r ia d a s d o s p a g ão s , d o s j u d eu s , d o s m a o me t a n os , d o s c r i s t ã os , q u a nt o a o s m e i o s q u e s e d e v em

emp r eg a r p a r a e s ca p a r a o s s up l í c i o s e t e r no s e o b te r a f e l i c i d a d e , e d e s c r e ve r a s i n vençõ e s p ue r i s e

r id ícu la s imag inadas para tanto se r ia um exerc íc io sem- f im.

A s e g u n da d a s b a s e s d e s sa r i d íc u l a d o u t ri n a é a m a n ei r a s e g u n do a q u al é a n u nc i a da n a s

E scr i tu ras e sua un iver sa l idade.

Ab s t emo - no s me s mo d e a c r ed i t a r q ue a un i v e r s a l id a d e d e uma d o u t r i n a p o s s a j a ma i s t o r na r - s e

um t í t u l o a s eu f a vo r. Nã o há l o ucu r a , n ã o há e x t r a va g â nc i a q ue nã o t enha s i d o g e r a l men te a ce i t a no

m u n d o . N e n h u m a d e i x o u d e t e r a d m i r a d o r e s e c r e n t e s ; e n q u a n t o h o u v e r h o m e n s , h a v e r á l o u c o s e

enq ua n to ho uve r l o uco s , h a ve r á d eu s e s , cu l t o s , um p a r a í s o , um i n f e r no , e t c . P o r ém, a s E s c r i t u r a s o

a nunc i a m! Ad m i t a mos , p o r um mo men to , q ue o s l i v r o s a s s im cha ma d o s t enha m a l g uma a u ten t i c i d a d e , e

q ue a l g um r e s p e i t o l he s s e j a v e r d a d e i r a men te d ev i d o . J á d i s s e q ue t emo s , p o r v e ze s , d e r eed i f i c a r

ce r t a s q u ime r a s p a r a co n s eg u i r c o mb a te r o u t r a s . P o i s b em. C o meça r e i o b j e t a nd o s e r mu i t o d uv i d o s o

q u e a s E s c r i t u r a s f a l e m d i s s o . S u p o n d o , e n t r e t a n t o , q u e a s s i m s e j a , o q u e d i z e m a p e n a s p o d e - s e

d i r i g i r à q ue l e s q ue t êm co nhec imen to d a s E s c r i t u r a s e a s a d m i t em co mo i n f a l í v e i s . Aq ue l e s q ue nã o a s

co nhecem o u q ue s e r e cu s a m a ne l a s a c r ed i t a r , n ã o p o d em s e r co nvenc i d o s p o r s ua a u to r i d a d e . No

en ta n to , n ã o d i zem q ue a q ue l e s q ue nã o t êm o meno r co nhec imen to d e s s a s E s c r i t u r a s , o u a q ue l e s q ue

ne l a s n ã o a c r ed i t a m s e e x p õ em t a n to a o s ca s t i g o s e t e r no s co mo a q ue l e s q ue a s co nhecem o u ne l a s

acred i tam? Ora , pergunto - vo s se há no mundo a l guma in jus t i ça ma io r do que es sa ?

D i r -m e - ei , t a l ve z , q u e p o v os p a ra o s q u a is v o s sa s a b su r d as E s c ri t u ra s e r a m t o t a l m e nt e

d e s co nhec i d a s nã o d e i x a r a m d e a c r ed i t a r no s ca s t i g o s e t e r no s numa v i d a f u t u r a . E mb o r a i s s o s e j a

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 13/41

ve r d a d e i r o em a l g un s p o vo s , mu i t o s o u t r o s n ã o t i v e r a m q ua l q ue r co nhec imen to d e s s e s d o g ma s : ma s

co mo um p o vo q ue d e s co nhec i a a B í b l i a p ô d e cheg a r a t e r e s s a o p i n i ã o ? Nã o me d i r ã o , e s p e r o , t r a t a r -

s e d e uma i d é i a i n a t a ; s e a s s im f o s s e , s e r i a co mum a t o d o s o s ho men s . Nã o s u s t en t a r ã o , p en s o , s e r

i s s o o b r a d a r a zã o ; p o i s , ce r t a men te , a r a zã o nã o en s i n a r i a a o ho mem q ue p a r a e r r o s f i n i t o s s o f r e r á

p e n as i n f in i t a s; n ã o é r e v el a ç ão , p o i s o p o vo q u e s u p o m os n ã o a t e v e. E s se d o gm a , c o n v e n ha m o s,

s o men te cheg o u a o p o vo q ue a ca b a mo s d e a d m i t i r p o r me i o d a i n s t i g a çã o d e s eu s s a ce r d o te s o u d e s ua

imag inação . D i to i s s o , pergunto - vo s : o que pode haver de só l ido n i s so !A q uem ima g i na s s e q ue a c r ença no s ca s t i g o s e t e r no s t i v e s s e s i d o t r a n s m i t i d a p o r t r a d i çã o a

p o vo s q ue nã o a r e ceb e r a m d a s E s c r i t u r a s , p o d e r emo s p e r g un ta r d e o nd e a q ue l e s me s mo s q ue , na

o r i g em, d i f und i r a m e s s a o p i n i ã o a r e ceb e r a m; e s e nã o s e p o d e p en s a r q ue f o i p o r r e ve l a çã o d i v i n a ,

t e r emo s d e a d m i t i r q ue e s s a o p i n i ã o g i g a n te s ca a p ena s s u r g e d o d e s r e g r a men to d a ima g i na çã o o u d a

pat i f a r ia .

S up o nd o q ue a E s c r i t u r a , s up o s t a men te s a n t a , a nunc i a a o s ho men s ca s t i g o s numa v i d a f u t u r a , e

a d m i t i nd o e s s e f a t o co mo uma ve r d a d e i n co n te s t á ve l , n ã o p o d e r í a mo s p e r g un ta r co mo o s a u t o r e s d a

E s c ri t u ra c o n se g u ir a m s a b er q u e t a i s c a s t i g os e x i st e m ? N ã o d e i xa r ã o d e r e sp o n de r q u e f o i p o r

i n s pi r a ç ão ; o q u e c o n vé m m a r av i l ho s a me n t e, m a s a q u e l e s q u e n ã o f o r a m f a v or e c i do s p o r e s s a

i l um ina çã o p a r t i cu l a r t i v e r a m, p o r t a n to, d e co n f i a r em o u t r o s . O r a , p eço - vo s , d i z e i - me q ue co n f i a nça

se pode te r em pes soas que, de um fa to de tanta impor tânc ia , vo s d i zem: acred i to n i s so po rque fu l ano

me d i s s e t e r s o nha d o co m i s s o . E n t ã o , é i s s o q ue a b s o r ve , q ue t o r na a r r ed i o s e t ím id o s me ta d e d o sh o m e n s ? I s s o q u e o s i m p e d e d e e n t r e g a r e m - s e à s m a i s d o c e s a s p i r a ç õ e s d a n a t u r e z a ? A q u e p o n t o

chegou o desvar io e o ab surdo ! Ent retanto , vo s so s in sp i rado s não f a l a ram com todo o mundo : a ma io r ia

d o g êne r o huma no i g no r a s eu s s o nho s . C o n tud o, nã o e s t a r i a m t o d o s o s ho men s t ã o i n t e r e s sa d o s em s e

c e r t i f i c a r e m d a r e a l i d a d e d e s s e d o g m a q u a n t o o s a u t o r e s d a B í b l i a o u s e u s a s s e c l a s ? P o r q u e n ã o

p o d e r i a m t e r t o d o s a me s ma ce r t e za a e s s e r e s p e i t o ? T o d o s t êm i n t e r e s s e em i n t e i r a r - s e q ua n to a o s

cas t igo s e terno s . Po r que se rá , então , que Deus não deu es se conhec imento sub l ime a todo s ,

d i r e t a e imed i a t a men te , s em a a j ud a e p a r t i c i p a çã o d e p e s s o a s q ue p o d em s e r s u s p e i t a s d e

f r a ud e o u e r r o ? P e r g un to s e o f a t o d e t e r l e i t o e x a t a men te o co n t r á r i o ca r a c te r i z a a co nd u ta d e um

s e r q ue me r e t r a t a i s c o mo i n f i n i t a men te b o m e s á b i o ? Bem l o ng e d i s s o , n ã o a ca r r e t a r á e s s a co nd u ta

todos o s a t r ibuto s da to l i ce e da ma ldade? Todos o s governo s , ao e r ig i r l e i s que a t r ibuem penas cont ra

o s i n f r a t o r e s , l a n ça m mã o d e t o d o s o s me i o s p o s s í v e i s p a r a t o r na r e s s a s l e i s e c a s t i g o s co nhec i d o s .

Pode- se razoave lmente cas t iga r um homem po r uma in f ração a uma l e i que desconhece? O que devemos

co nc l u i r d e s s a s é r i e d e ve r d a d e s ? Q ue o s i s t ema d o i n f e r no nunca f o i o u t r a co i s a s enã o o r e s u l t a d o d a

maldade de a l guns homens e da ex t ravagânc ia de mui to s out ro s .

A te rce i ra base des se dogma ho r rendo é sua neces s idade para conter pecado res e incrédu lo s .

S e a j u s t i ç a e a g l ó r i a d e D eu s e x i g i s s em a co nd ena çã o d e p eca d o r e s e i n c r éd u l o s a t o r men to s

e te r no s , n ã o r e s t a d úv i d a q ue a j u s t i ç a e a r a zã o e x i g i r i a m t a mb ém q ue f o s s e d o p o d e r d e un s nã o

pecarem e do poder de out ro s não se rem incrédu lo s ; o ra , qua l s e r é ab surdo o bas tante para p retender

q ue o ho mem s e j a l i v r e ? Q uem s e ceg a a p o n to d e nã o ve r q ue , imp e l i d o s em t o d a s no s s a s a çõ e s , n ã o

d o m ina mo s nenhuma e q ue o D eu s d e q uem r e ceb emo s e s s e s g r i l h õ es s e r i a ( s up o nd o s ua e x i s t ênc i a , o

q u e n ã o f a ç o , c o m o v ê e m , s e n ã o c o m d e s g o s t o ) , d i g o , o m a i s i n j u s t o e b á r b a r o d o s s e r e s , s e n o s

p u ni s se p or n os t o rn a rm o s, a pe sa r d e n ó s m e sm o s, v í ti m as d as c o nt i ng ê nc i as e m q ue s u a m ã o

inconseqüente no s mergu lha com p razer .

Nã o e s t á c l a r o q ue é o t emp e r a mento d a d o p e l a na tu r e za a o s ho men s , a s c i r cun s t â nc i a s d e s ua

v i d a , s ua ed uca çã o , s ua s s o c i ed a d e s , q ue d e te r m ina m s ua s a çõ e s e s ua i n c l i n a çã o p a r a o b em o u o

ma l ? M a s s e a s s im f o r, o b j e t a r - s e - á , t a l v e z , n ã o s ã o a s p un i çõ e s q ue l he s i n f l i g imo s ne s s e mund o , em

razão de sua má conduta , i gua lmente in jus ta s ? Cer tamente o s ão . Mas aqu i o in teres se gera l p reva lece

s o b r e o i n t e r e s s e p a r t i c u l a r . E d e v e r d a s s o c i e d a d e s a p a r t a r d e s e u s e i o o s m a l v a d o s c a p a z e s d e

p r e ju d i cá - l as ; e é i s so q u e j u s t i f ic a l e i s, a s q u a is , v i s ta s a p e na s p e la p e r sp e c ti v a d o i n t er e s se

p a r t i cu l a r , s e r i a m mo n s t r uo s a men te i n j u s t a s . O r a , t em vo s s o D eu s a s me s ma s r a zõ e s p a r a p un i r o

ma l v a d o ? Nã o , s em d úv i d a . Na d a t em a t eme r p e l a s ma l d a d e s d o ho mem q ue é a s s im a p ena s p o r q ue

a g r ad o u a e s s e D e u s c r i á- l o d e s s e m o d o. S e ri a , p o r t a n to , a t r oz i n f li g i r- l h e t o r m e n to s p o r t e r s e

to rnado na te r ra o que aque le Deus execráve l bem sab ia que se to rnar ia , Deus que pouco se impor tava

que e le a s s im se to rnas se .

P ro v a re m o s a g o r a q u e a s c i r c un s t ân c i a s q u e d e t er m i na m a s c r e nç a s r e l ig i o sa s d o s h o m en s

escapam to ta lmente a seu poder .

C o meço p e r g un ta nd o s e s o mo s s enho r e s d e v i r à l u z em t a l o u t a l c l ima ? E s e , a p ó s na s ce r mo s

num cu l t o q ua l q ue r, d ep end e d e nó s s u j e i t a r - l he no s s a f é ? H a ve r á uma ún i ca r e l i g i ã o q ue r e ceb a s ua

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 14/41

l u z d a s p a i x õ e s ? E n ã o s ã o a s p a i x õ e s , o r i und a s d e D eu s , p r e f e r í v e i s à s r e l i g i õ e s q ue no s p r o vêm d o s

ho men s ? Q ue D eu s b á r b a r o s e r i a e s t e q ue no s p un i r i a e t e r na men te p o r t e r mo s d uv i d a d o d a ve r d a d e d e

um cu l t o cu j a a d m i s s ã o a n i q u i l a em nó s p o r me i o d a s p a i x õ e s q ue o d e s t r o em a ca d a mo men to ? Q ue

ext ravagânc ia ! Que absurdo ! E como não se a r repender pe lo tempo perd ido a d i s s ipa r ta i s t revas ?

I r e m o s m a i s l o n g e a i n d a e n ã o d e i x a r e m o s , s e f o r p o s s í v e l , q u a l q u e r s a í d a a o s p a r t i d á r i o s

es túp ido s do ma i s r id ícu lo do s dogmas .

S e d ep end e s s e d e t o d o s o s ho men s s e r v i r t uo s o e a c r ed i t a r em t o d o s o s i t en s d e s ua r e l i g i ã o ,a inda se r ia p rec i so examinar se é j us to que homens se jam eternamente pun ido s , quer po r causa de sua

f r a qu e z a, q u e r p o r c a u sa d e s u a i n c r e d ul i d ad e , q u a n d o p e r m a ne c e c e r t o q u e n e n h u m b e m p o d e

resu l ta r des ses sup l í c io s g ra tu i to s .

A f a st e m os o p r e co n c ei t o p a ra d e c id i r e s sa q u e st ã o e r e f li t a mo s p r i nc i p al m e nt e s o br e a

e q u i d a d e q u e a d m i t i m o s n e s s e D e u s . N ã o s e r i a d i s p a r a t e d i z e r q u e a j u s t i ç a d e s s e D e u s r e q u e r a

e te r na p un i çã o d o s p eca d o r e s e i n c r éd u l o s ? A a çã o d e p un i r o s e r r o s co m s e ve r i d a d e d e s med id a nã o

e s t a r i a r e l a c i o na d a ma i s à v i n g a nça e à c r ue l d a d e d o q ue à j u s t i ç a ? A s s im , p r e tend e r q ue D eu s p une

d e s se m o do c o n st i t u i o b v i a m en t e u m a b l a sf ê m ia . C o m o p o d e r ia e s s e D e u s , r e t ra t a do c o m o b o m ,

g l o r i f i c a r- s e d e p un i r a s s im a s f r a ca s o b r a s d e s ua s mã o s ? C e r t a mente a q ue l e s q ue p r e tend em s e r i s s o

uma ex igênc ia da g l ó r ia de Deus não percebem o quanto es sa dout r ina é descab ida . Fa l am em g ló r ia de

D eu s e nã o co n s eg uem te r a meno r i d é i a a r e s p e i t o . S e f o s s em ca p a ze s d e j u l g a r a n a tu r e za d e s s a

g l ó r i a , s e co n s eg u i s s em t e r d e l a no çõ e s r a zo á ve i s , s en t i r i a m q ue , ca s o e s s e s e r e x i s t a , n ã o p o d e r i aa s s en t a r s ua g l ó r i a s enã o na s ua b o nd a d e e s a b ed o ri a , e no p o d e r i l im i t a d o d e co mun i ca r a f e l i c i d a d e

aos homens .

Ac r e s cen ta m, em s eg und o l u g a r , p a r a co n f i r ma r a e x ec r á ve l d o u t r i n a d a s p ena s , q ue e s t a f o i

a d o t a d a p o r mu i t o s ho men s p r o f und o s e s á b i o s t eó l o g o s . C o meço p o r neg a r e s s e f a t o : a ma i o r i a en t r e

e l e s d u v i do u d e ss e d o g m a . E s e o r e s to p a r ec e u d a r - l he f é , o s m o t iv o s p a r a t a n t o f i c am ó b vi o s : o

d o g ma d o i n f e r no e r a um j u g o , ma i s um g r i l h ã o co m o q ua l o s s a ce r d o te s q ue r i a m s o b r eca r r e g a r o s

ho men s . C o nhece - s e o imp é r i o d o t e r r o r s o b r e a s a l ma s e s a b e - s e q ue a p o l í t i c a p r e c i s a s emp r e d o

ter ro r, desde que se t ra te de sub jugar .

M a s p r o v i r i a m e s s e s l i v r o s s up o s t a men te s a n to s , q ue menc i o na i s , d e uma f o n te b a s t a n te p u r a

para não podermos re je i ta r o que no s o ferecem? O exame ma i s s uper f i c ia l bas ta para no s convencer de

q ue , mu i t o l o ng e d e s e r em, co mo o u s a m p r e tend e r, a o b r a d e um D eu s q u imé r i co q ue nunca e s c r e veu

nem f a l o u , e l e s s ã o , p e l o co n t r á r i o, a o b r a d e ho men s f r a co s e i g no r a n te s e q ue , ne s s a p e r s p ec t i v a ,

não merecem senão desconf iança e desp rezo . Ent retanto , supondo que es ses e s cr i to res t i ves sem a l gum

b o m s e n s o , q u a l s e r i a , p e ç o - v o s , o h o m e m n é s c i o a p o n t o d e a p a i x o n a r - s e a f a v o r d e t a l o u q u a l

o p i n i ã o , a p ena s p o r q ue a enco n t r o u num l i v r o ? S em d úv i d a , p o d e a d o tá - l a , ma s r ep i t o q ue a p ena s um

l o u co s e ri a c a p az d e s a c ri f i ca r - lh e s u a f e l ic i d ad e e a t r a nq ü i li d a de d e s u a v i d a. P or s i n al , s e

o p u s e r d e s - m e o c o n t e ú d o d e v o s s o s l i v r o s s u p o s t a m e n t e s a n t o s a f a v o r d e s s a o p i n i ã o , p r o v a r e i a

op in ião cont rá r ia a par t i r des ses mesmos l i v ro s .

Ab ro o Ec les ia s tes e ne le l e io :

" A co nd i çã o d o s ho men s é a me s ma d o s a n ima i s . O q ue s u ced e a o s ho men s e a o s a n ima i s é a

mes ma co i s a . T a l é a mo r t e p a r a un s e p a r a o u t r o s . T o d o s r e s p i r a m i g ua l men te ; e o ho mem nã o t em

vantagem sob re o s an im a i s , po rque tudo é va ida de, tudo va i pa ra o mesmo lugar , tudo fo i f e i to do pó e

ao pó re to rnará . ' ' ( E c le s ia s tes , Cap . I I I , v 18 , 19 e20 ) .

H a ve r á a l g o ma i s d e te r m ina n te co n t r a a e x i s t ênc i a d e o u t r a v i d a d o q ue e s s a p a s s a g em? H a ve r á

a l g o ma i s a d eq ua d o p a r a s u s t en t a r a o p i n i ã o co n t r á r i a à d a imo r t a l i d a d e d a a l ma e d o d o g ma r i d í cu l o

do in fe rno ?

Q u e r e fl e xõ e s s u rg e m, n o h om e m s en s at o, a o e xa m in a r e s sa f a bu l a a b su r da d a e t er n a

co nd ena çã o d o ho mem no p a r a í s o t e r r e s t re , p o r t e r co m id o o f r u t o p r o i b i d o ? P o r ma i s m inuc i o s a q ue

e s sa f á b ul a s e j a , p o r m a i s r e p u g na n t e q u e a a c h em o s, q u e m e p e r mi t a m d e t e r -m e n e la p o r u m

momento , uma vez que é de la que se par te para admit i r a s penas e ternas do in fe rno . Será p rec i so a l go

a l ém d o e x a me imp a r c i a l d e s s e a b s u r d o p a r a r e co nhece r s eu v a z i o ? O meu s a m i g o s ! P e r g un to -vo s , um

homem che io de bondade p lanta r ia em seu j a rd im uma á rvo re que p roduz i s se f ruto s de l i c io so s , embora

envenena d o s , e co n ten ta r - s e - i a em p r o i b i r s eu s f i l h o s d e co mê - l o s , d i z end o - l he s q ue mo r r e r i a m s e

ne l e s t o ca s s em? S e s o ub e s s e q ue t a l á r v o r e e x i s t i s s e em s eu j a r d im , e s s e ho mem p r ud en te e s á b i o nã o

te r i a t i d o a n te s o cu i d a d o em a r r a ncá - l a , a i nd a ma i s s a b end o q ue s eu s f i l h o s n ã o d e i x a r i a m d e mo r r e r

s e co mes s em e s s e f r u t o e d e l a nça r s ua p r o s p e r i d a d e na m i s é r i a ? E n t r e t a n to , D eu s s a b e q ue o ho mem

es t a r á p e r d i d o , e l e e s ua r a ça , c a s o co me r d e s s e f r u t o : n ã o a p ena s i n cu te ne l e o p o d e r d e ced e r, ma s

leva a ma ldade ao ponto de de ixa r que se ja seduz ido . E le sucumbe e es tá perd ido , f azendo o que Deus

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 15/41

p e r m i t i u q ue F i ze s s e , o q ue D eu s o co nv i d o u a f a ze r, e e i - l o e t e r na men te d e s g r a ça do . H a ve r á a l g o no

mund o ma i s c r ue l e ma i s a b s u r d o ? S em d úv i d a , r ep i t o , n ã o me d ed i ca r i a a co mb a te r t a l a b s u r d o , s e o

d o gm a d o i n f er n o , d o q u a l q u e ro a n i qu i l ar o m a i s l e v e t r a ç o e m v o ss a s m e n t e s, n ã o f o s s e u m a

hor renda seqüe la d i s so .

Nã o ve j a mo s em t ud o i s s o s enã o a l e g o r i a s q ue p o d em no s d i v e r t i r um i n s t a n te , ma s na s q ua i s

s e r i a o d i o s o a c r ed i t a r e d a s q ua i s n ã o d eve r i a nem mes mo s e r p e r m i t i d o f a l a r a n ã o s e r co mo s e f a z

d a s f á b u l a s d e E s o p o o u d a s q u ime r a s d e M i l t o n , co m a d i f e r ença q ue e s t a s s ã o p o uco imp o r t a n te senq ua n to a q ue l a s , a o t en t a r c a t i v a r no s s a co n f i a nça e p e r t u r b a r no s s o s p r a ze r e s , t o r na m- s e o ma i s

e v i d en te d o s p e r i g o s , s end o p r e c i s o a n i q u i l á - l a s a t é o p o n to d e nunca ma i s no s p r eo cup a r mo s co m

elas .

C o nvencemo- no s r e a l men te , p o r t a n to , q ue t a n to e s s e s f a t o s , q ua n to o s r e g i s t r a do s no i n s í p i d o

romance conhec ido pe lo nome de Santa E s cr i tu ra , não pas sam de ment i r a s abomináve i s , d ignas do ma i s

p r of u n do d e sp r e zo e d a s q u a i s n ã o d e v em o s t i r a r a m e n or c o n se q ü ên c i a q u a n t o à f e li c i d ad e o u

i n f e l i c i d a de d e no s s a v i d a . P e r s ua da mo - no s d e q ue o d o g ma d a imo r t a l i d a d e d a a l ma , q ue p r e c i s a r am

a d m i t i r a n t e s d e d e s t i n a r e s s a a l m a a p e n a s o u r e c o m p e n s a s e t e r n a s , é a m a i s i n s í p i d a , a m a i s

g r o s s e i r a , a ma i s i nd i g na d e t o d a s a s men t i r a s q ue s e p o s s a f a ze r ; d e q ue t ud o p e r e ce em nó s co mo

no s a n ima i s e q ue , p o r e s s e mo t i v o , q ua l q ue r q ue l enha s i d o no s s a co nd u ta ne s t e mund o , nã o s e r emo s

mai s f e l i zes nem ma i s in fe l i zes apó s te rmos es tado ne le pe lo tempo que ag radar à natureza .

D i s se ram que a c rença no s cas t igo s e terno s e ra ab so lutamente neces sá r ia para conter o s homense q ue é p r e c i s o , p o r e s s e mo t i v o , cu i d a r p a r a nã o d e s t r u í - l a . M a s s e é e v i d en te q ue e s s a d o u t r i n a é

f a l s a , s e e l a nã o r e s i s t e a um ex a me , nã o s e r i a i n f i n i t a men te ma i s p e r i g o s o d o q ue ú t i l s u s t en t a r co m

ela a mora l ? E como não apos ta r que e l a i r á p re jud ica r ma i s do que t razer o bem, a s s im que o homem,

a p ó s t ê - l a a p r e c i a d o , en t r e g a r - se a o ma l p o r r e co nhece r - l he a f a l s i d a de ? Nã o s e r i a m i l v e ze s me l ho r

nã o ha ve r f r e i o s , d o q ue t e r um q ue s e r o mp e t ã o f a c i l men te ? No p r ime i r o ca s o , a i d é i a d o ma l t a l v e z

nã o l he o co r r e s s e ; e l a l he o co r r e r á ce r t a men te q ua nd o o f r e i o s e r o mp e r, uma ve z q ue i s s o p r o d uz um

prazer sup lementar e que a perver s idade do homem é ta l que es te nunca ap rec ia tanto o ma l e nunca a

e le se apega com ma i s p razer do que quando acred i ta encont ra r um obs tácu lo ao ab raçá - l o .

Aq ue l e s q ue r e f l e t i r a m cu i d a d o s a men te a r e s p e i t o d a na tu r e za d o ho mem te r ã o d e co nv i r q ue

to d o s o s p e r i g o s , t o d o s o s ma l e s , p o r ma i o r e s q ue p o s s a m s e r, p e r d em mu i t o d e s eu p o d e r q ua nd o s ã o

a f a s t a d o s e p a r e cem meno s p e r i g o s o s q ue o s p eq ueno s , q ua nd o e s t e s e s t ã o d eb a i x o d e no s s o s o l ho s .

N ã o é e v i d e n t e q u e o s c a s t i g o s p r ó x i m o s s ã o m u i t o m a i s e f i c a z e s e m u i t o m a i s a p r o p r i a d o s p a r a

a fas ta r o s c r imes do que o s cas t igo s po r v i r ? Com respe i to ao s e r ro s s ob re o s qua i s nenhuma le i inc ide,

o s ho men s nã o s e a f a s t a m d e l e s d e mo d o mu i t o ma i s e f i c i en te p o r mo t i v o s d e s a úd e , d e d ecênc i a , d e

r ep u ta çã o , e p o r o u t r a s co n s i d e r a çõe s t emp o r a i s e p r e s en te s q ue t êm s o b o s o l ho s , d o q ue p e l o t emo r

d e i n t e r m iná ve i s d e s g r a ça s f u t u r a s q ue s ó s e a p r e s en t a m a s eu e s p í r i t o r a r a men te e d e f o r ma va g a ,

incer ta e f ác i l de ev i ta r ?

P a r a j u l g a r s e o t emo r d e ca s t i g o s e t e r no s e r i g o r o s o s no o u t r o mund o é ma i s a d eq ua d o p a r a

d e s v i a r o s ho men s d o ma l d o q ue o d e ca s t i g o s t emp o r a i s e p r e s en te s no mund o a t ua l , a d m i t a mo s , p o r

u m m o m en t o , q u e o p r i me i r o d e s s e s t e m o r es s u bs i s ti s s e e t e r n a me n t e e o o u t ro f o ss e t o t al m e nt e

a b o li d o . N e s s a h i p ót e s e, n ã o s e ri a o u n i ve r s o l o g o i n u n da d o d e c r i me s ? A d m i t am o s o c o n tr á ri o ,

s u p on d o q u e o t e m or d e c a s ti g o s e t e r n os f o s se a n i qu i l ad o a o p a s s o q u e o d o s c a s t i go s v i s í v e i s

p e rm a ne c er i a e m t od o s eu r i go r ; e e n qu a nt o v er í am o s e ss e s c a st i go s a pl i ca do s i n fa l ív e l e

u n i ve r s al m e nt e , n ã o r e c on h e ce r í am o s , e n t ã o , q u e e s s es ú l t i mo s a g e m c o m m u i to m a i s f o r ç a n o s

e s p í r i t o s d o s ho men s e i n f l uenc i a m mu i t o ma i s s ua co nd u ta d o q ue ca s t i g o s num f u tu r o r emo to , q ue s e

esvaecem as s im que a s pa ixões se p ronunc iam?

A e x p e r i ênc i a co t i d i a na nã o no s f o r nece p r o va s co nv i n cen te s d o p o uco e f e i t o q ue o t emo r a o s

ca s t i g o s em o u t r a v i d a p r o d uz em mu i t o s d a q ue l e s q ue ma i s s e co nvence r a m d i s t o? Nã o há p o vo s ma i s

co nvenc i d o s d o d o g ma d a e t e r n i d a d e d a s p ena s d o q ue o s e s p a nhó i s , o s p o r t u g ue s e s e o s i t a l i a no s. E ,

no entanto , haverá povo s ma i s d i s so lu to s ? Enf im, onde se comete ma i s c r imes secreto s do que ent re o s

s a ce r d o tes e o s mo ng e s , i s t o é , en t r e a q ue l e s q ue p a r e cem ma i s co nvenc i d o s d a s v e r d a d e s r e l i g i o sa s ?

E i s s o não p rovar ia ev identemente que o s bons e fe i to s p roduz ido s pe lo dogma do s cas t igo s e terno s s ão

mu i t o r a r o s e i n ce r t o s ? Ve r emo s q ue e s s e s e f e i t o s ne f a s t o s s ã o i núme r o s e ce r t o s . D e f a t o , uma t a l

d o u t r i n a , a o enche r a a l ma d e a ma r g u r a , l a n ça s o b r e e l a a s ma i s r e vo l t a n te s no çõ e s d a D i v i nd a d e :

end u r ece o co r a çã o , me r g u l ha nd o - o num d e s e s p e r o p r e j ud i c i a l a e s s a D i v i nd a d e à q ua l p r e tend em

s u s t en t a r co m e s s e d o g ma . E s s e d o g ma ho r r end o l e va , p e l o co n t r á r i o , a o a t e í s mo , à imp i ed a d e : t o d a s

a s p es so a s r az o áv ei s a c ha m m u it o m a is s i mp l es n ã o a c re di t ar e m D e us d o q u e a dm i ti r u m ,

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 16/41

mi l i c i en temen te c r ue l , i n co n s eq üen te e b á r b a r o p a r a t e r c r i a d o o s ho men s co m o ún i co d e s í g n i o d e

mergu lhá - l o s e ternamente na in fe l i c idade,

S e q ue r e i s um D eu s na b a s e d e v o s s a r e l i g i ã o , f a ça i s a o meno s co m q ue s e j a s em d e f e i t o s ; s e

f o r che i o d e l e s , co mo o v o s s o , l o g o s e i r á d e te s t a r a r e l i g i ã o q ue a mp a r a , e , p o r v o s s a co mb ina çã o

e i rada, te re i s neces sa r iamente p re jud icado ambos .

S e r á p o s s í v e l q ue uma r e l i g i ã o p o s s a s e r a c r ed i t a d a , r e s p e i t a d a p o r mu i t o t emp o q ua nd o e s t á

f und a men ta da na c r ença em um D eu s q ue d eve p un i r e t e r na men te um númer o i n f i n i t o d e s ua s c r i a t u r a sp o r c a u s a s d e i n c l i n a ç õ e s q u e e l e m e s m o i n s p i r o u ? Q u a l q u e r h o m e m c o n v e n c i d o d e s s e s p r i n c í p i o s

ho r r end o s d eve v i v e r no t emo r i n ce s s a n te d e um s e r q ue q ue r t o r ná - l o e t e r na men te m i s e r á ve l . D i t o

i s so , como poderá e le j ama i s amar ou respe i ta r ta l s e r ? Se um f i l ho imag inas se que seu pa i f o s se capaz

de condená- l o B to rmento s c rué i s , ou se recusas se a l i v rá - l o de les , embora podendo fazê- l o , te r ia para

co m e l e r e s p e i t o o u a mo r ? Nã o s e r i a l e g í t imo q ue a s c r i a t u r a s f o r ma d a s p o r D eu s e s p e r a s s em d e l e

mu i t o ma i s s ua b o nd a d e d o q ue c r i a nça s p o r p a r t e d e um p a i , p o r ma i s i nd u l g en te q ue e s t e p o s s a s e r ?

Nã o é a c r ença em q ue s e enco n t r a m o s ho men s d e q ue é d a b o nd a d e d e D eu s q ue r e ceb em t o d o s o s

b e n s d e q u e g o z a m , q u e e s s e D e u s o s c o n s e r v a e p r o t e g e , q u e é e l e q u e l h e s p r o p o r c i o n a r á , e m

s eg u i d a , o b em- e s t a r q ue e s p e r a m, nã o s ã o i d é i a s co mo e s s a s q ue s e r vem d e a l i ce r ce à r e l i g i ã o ? S e a s

abomina i s , não ex i s te ma i s re l i g ião : donde vedes que vo s so dogma es túp ido do in fe rno des t ró i , em vez

d e c o n s o l i d a r , a b a l a a s b a s e s d o c u l t o e m v e z d e f i r m á - l a s e q u e , p o r c o n s e g u i n t e , a p e n a s t o l o s

puderam acred i ta r ne le e t ra tantes puderam inventá - l o .Nã o d uv i d emo s d e q ue e s s e s e r , d o q ua l o u s a m f a l a r i n ce s s a n temen te , e s t á v e r d a d e i r a men te

mur cho , d e s o n r a do p e l a s co r e s r i d í cu l a s à s q ua i s o s ho men s r e co r r em p a r a r e t r a t á - lo . S e nã o t i v e s s em

id é i a s a b s u r d a s e d i s p a r a t a d a s d a D i v i nd a d e , nã o a s up o r i a m c r ue l ; e s e nã o a a cha s s em c r ue l , n ã o

ima g i na r i a m q ue f o s s e ca p a z d e p un i - l o s p o r t o r men to s i n f i n i t o s , o u me s mo q ue p ud e s s e co n s en t i r q ue

as ob ras de suas mãos f o s sem eternamente p r i vadas de fe l i c idade.

P a r a e l ud i r a f o r ça d e s s e a r g umen to , o s p a r t i d á r i o s d o d o g ma d a d a na çã o e t e r na d i zem q ue a

i n f e l i c i d a de d o s r ep r o va d o s nã o é um ca s t i g o a r b i t r á ri o p o r p a r t e d e D eu s , ma s uma co n s eq üênc i a d o

p eca d o e d a o r d em imu tá ve l d a s co i s a s . E co mo s a b e i s d i s s o , p e r g un to- vo s en t ã o ? S e p r e tend e i s q ue a

E s c r i t u r a v o s i n s t r ua a r e s p e i t o , q ua l n ã o s e r á v o s s o emb a r a ço q ua nd o s e t r a t a r d e p r o vá - l o ? E s e

consegu í s se i s encont ra r um ún ico t recho que fa le d i s so , quantas co i s a s não vo s perguntar ia , po r minha

v e z , p a r a m e c o n v e n c e r d a a u t e n t i c i d a d e , d a s a n t i d a d e , d a v e r a c i d a d e d a p r e t e n s a p a s s a g e m q u e

enco n t r a r í e i s em s eu f a vo r . S e r i a a r a zã o a s u g e r i r e s s e d o g ma a t r o z ? D i ze i - me , ne s s e ca s o , co mo

co n s eg u i s a l i á - lo co m a i n j u s t i ç a d e um D eu s q ue f o r ma uma c r i a t u r a , emb o r a e s t e j a ce r t o d e q ue o s

d e c re t o s i m u t á v ei s d a s c o i s a s d e v a m e t e rn a m en t e e n v ol v ê -l a n u m o c e an o d e d e sg r a ça s . S e f o r

verdade i ro que o un iver so fo i c r iado , e é governado , po r um ser in f in i tamente podero so , in f in i tamente

s á b i o , é a b s o l u t a men te nece s s á r i o q ue t ud o co nco r r a a s eu s o b j e t i v o s e r e ve r t a p a r a o ma i o r b em.

O r a , q ue b em p o d e r e s u l t a r, p a r a ma i o r v a n t a g em d o un i ve r s o, d o f a t o d e uma c r i a t u r a f r a ca e i n f e l i z

se r e ternamente a to rmentada po r e r ro s que nunca dependeram de la ?

S e a m u l ti d ã o d e p e c ad o r es , d e i n f ié i s , d e i n c ré d u lo s f o ss e r e a lm e n t e d e s t i na d a a s o fr e r

t o r me n t os c r u éi s e s e m f i m , q u e h o rr í v el c e n a d e m i s ér i a p a r a a r a ç a h u m a na ! B i l h õ e s d e h o m en s

s e r i a m imp ied o s a men te s a c r i f i c a d o s em s up l í c i o s i n f i n i t o s . A í s im , d e f a t o , a s o r t e d e um s e r s en s í v e l

e r a zo á ve l co mo o ho mem to r na r - s e - i a r e a l men te ho r r í v e l . O q uê ? Nã o há b a s t a n te p e s a r e s a o s q ua i s

e s t á co nd ena d o ne s s a v i d a , t e r i a d e t eme r a i nd a p ena s e t o r men to s ho r r o r o s o s q ua nd o a ca b a s s e s eu

percur so ? Que ho r ro r ! Que execração ! Como podem ta i s idé ia s ent ra r no esp í r i to humano e como não se

co nvence r d e q ue s ã o s o men te o f r u t o d a imp o s t u r a , d a men t i r a e d a ma i s b á r b a r a p o l í t i c a ? Ah , n ã o

de ixemos de no s convencer de que es sa dout r ina , s em ser ú t i l , neces sá r ia , ou e f i c iente para desv ia r o s

ho men s d o ma l , s ó p o d e , a b s o l u t a men te , s e r v i r d e b a s e a uma r e l i g i ã o cu j a ún i ca me ta s e r i a d o ma r

s eu s e s c r a vo s ; co mp ene t remo - no s b em d a i d é i a d e q ue e s s e d o g ma ex ec r á ve l t em a s ma i s d ep l o r á ve i s

co n s eq üênc i as , uma ve z q ue nã o é a d eq ua d o s enã o p a r a enche r a v i d a d e a ma r g u r a , d e t e r r o r e s e d e

a la rmes . . . pa ra f azer conceber ta i s ide ia s da D iv indade de modo que não se ja ma i s po s s í ve l abandonar

es se cu l to , apó s te r t ido a in fe l i c idade de ado tar o que o deg rada ma i s f o rma lmente.

Cer tamente, se acred i ta rmos que o un iver so tenha s ido cr iado e se ja governado po r um ser cu jo

p o de r, s a b ed o r ia e b o n da d e s e j a m i n f in i t os , t e m os d e c o n c l u i r q u e t o d o m a l a b s ol u t o d e v e s e r

n e c e s s a r i a m e n t e e x c l u í d o d e s s e u n i v e r s o . O r a , n ã o r e s t a d ú v i d a s d e q u e a i n f e l i c i d a d e e t e r n a d a

ma io r i a d o s i nd i v í d uo s d a e s p éc i e huma na s e r i a um ma l a b s o l u t o . Q ue p a p e l i n f a me f a ze i s e s s e D eu s

a b o m iná ve l d e s emp enha r, a o s up ô - l o cu l p a d o d e t a l b a r b á r ie ! E m s uma : s up l í c i o s e t e r no s r ep ug na m à

b o nd a d e i n f i n i t a d o D eu s q ue a d m i t i s . L o g o , n ã o me f o r ce i s a a c r ed i t a r ne l a o u en t ã o s up r im i v o s s o

dogma das penas e ternas , s e qu i se rdes que eu ado te vo s so Deus po r um ins tante . Não tenhamos ma i s f é

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 17/41

no d o g ma d o p a r a í s o d o q ue no d o i n f e r no : a mb o s s ã o i n vençõ e s a t r o ze s d e t i r a no s r e l i g i o s o s q ue

pretend iam aco r renta r a op in ião do s homens e mantê- l o s curvados s ob o j ugo despó t ico do s s oberanos .

P e r sua d a mo - nos d e q ue s o mo s a p ena s ma té r i a , d e q ue nã o e x i s t e a b s o l u t a men te na d a f o r a d e nó s ; d e

q ue t ud o q ue a t r i b u ímo s à a l ma nã o p a s s a d e um e f e i t o mu i t o s imp l e s d a ma té r i a ; e i s s o a p e s a r d o

o r g u l ho d o s ho men s , o q ua l no s d i s t i n g ue d o s a n ima i s , a o p a s s o q ue , co mo e l e s , d e vo l vendo à ma té r i a

o s e lemento s que no s an imam, não se remos nem ma i s un ido s pe la s más ações à s qua i s no s impe l i r am o s

d i f e r en te s t i p o s d e o r g a n i z a çõ e s q ue r e ceb emo s d a na tu r e za , nem ma i s r e co mp en s a d o s p e l a s b o a s ,cujo exerc íc io apenas deveremos a um t ipo de o rgan ização opos to . Não impor ta , po r tanto , conduz i r - se

b em o u ma l , s e co n s i d e r a r mo s a s o r t e q ue no s e s p e r a a p ó s e s s a v i d a ; e s e co n s eg u i r mo s p a s s a r t o d o s

n o s s o s m o m e n t o s n o c e n t r o d o s p r a z e r e s , e m b o r a e s s a m a n e i r a d e v i v e r p o s s a p e r t u r b a r t o d o s o s

ho men s , t o d a s a s co nvençõ e s s o c i a i s , ce r t a men te , s e nã o i n f r i n g i r mo s a s l e i s , a ún i ca co i s a e s s enc i a l ,

e n t ã o , c o m t o d a a c e r t e z a , s e r e m o s i n f i n i t a m e n t e m a i s f e l i z e s d o q u e o i m b e c i l q u e , p o r t e m e r

c a st i go s n u ma o ut ra v i da , t e rá s e p ro i bi d o r i go ro s am e nt e n e st a t u do q u e p os sa l h e a g ra d ar e

p r o p o r c i ona r d e l e i t e . S e r ma i s f e l i z ne s t a v i d a , d e q ue t emo s ce r t e za , é i n f i n i t a men te ma i s e s s enc i a l

d o q ue r enunc i a r a e s t a f e l i c i d a d e a s s e g u ra d a , n a e s p e r a nça d e o b te r o u t r a , ima g i ná r i a, d a q ua l n ã o

temo s nem p o d emo s t e r a ma i s l e ve i d é i a . Ah , q ue i nd i v í d uo f o i s u f i c i en temen te e x t r a va g a n te p a r a

ten t a r co nvence r o s ho men s d e q ue p o d em s e t o r na r ma i s i n f e l i z e s a p ó s e s t a v i d a d o q ue e r a m a n te s

d e t ê - l a r e c e b i d o ? S e r i a m e s t e s , p o r t a n t o , q u e p e d i r a m p a r a v i r à l u z ? S e r i a m e l e s q u e s e d e r a m

p a i x õ e s q ue , s e g und o vo s s o ho r r end o s i s t ema , o s p r e c i p i t a m no s t o r men to s e t e r no s ? M a s co mo ? E l e snã o e r a m s enho r e s d e na d a , s end o imp o s s í v e l q ue p o s s a m j a ma i s s e r p un i d o s p o r a l g o q ue d e l e s n ã o

depend ia .

Nã o b a s t a r á d a r uma o l ha d a em no s s a m i s e r á ve l e s p éc i e huma na , p a r a me l ho r no s co nvence r d e

q ue na d a ne l a a nunc i a a imo r t a l i d a d e ? O q uê ? P o d e r i a e s s a q ua l i d a d e d i v i n a , me l ho r d i zend o , e s s a

q ua l i d a d e imp o s sí v e l à ma té r i a , p e r t ence r a e s s e a n ima l q ue cha ma mo s d e ho mem? Aq ue l e q ue b eb e ,

co me , p e r p e tua - s e co mo o s a n ima i s , q ue t em p o r ún i co t r un f o um i n s t i n t o um p o uco ma i s r e f i n a d o

p o d e r i a a s p i r a r a uma s o r t e t ã o d i f e r en te d a d e s s e s me s mo s a n ima i s ? P o d e- s e a d m i t i r i s s o um m inu to

sequer ? Mas o homem, d izem, chegou ao sub l ime conhec imento de seu Deus ; apenas po r i s s o a f i rma ser

d i g no d a imo r t a l i d a d e q ue s up õ e p a r a s i . E o q ue t em d e s ub l ime e s s e co nhec imen to d e uma q u ime r a ,

a nã o s e r q ue p r e tend ei s q ue o ho mem, t end o cheg a d o a o p o n to d e d e s va i r a r s o b r e um o b j e t o , t enha

de desva i ra r a re spe i to de tudo ? Ah, se o in fe l i z tem a l guma vantagem sob re o s an ima i s , quantas e s tes

não têm, po r sua vez, s ob re e le ? Não es tá e le su je i to a ma io r número de enfermidade e doenças ? Não é

e l e v í t ima d e mu i t o ma i s p a i x õ e s ? A f i n a l , s e r á q ue e l e t em mes mo a l g uma va n t a g em a ma i s ? E p o d e

es sa pouca vantagem confer i r - l he o o rgu lho su f i c iente para que acred i te poder s ob rev iver e ternamente

a s eu s i r mã o s ? O i n f e l i z huma n id a d e ! A q ue p o n to d e e x t r a va g â nc i a t eu a mo r - p r ó p r i o t e l e vo u ? E a

p a r t i r d e q ua nd o , l i v r e d e t o d a s e s s a s q u ime r a s , co meça r á s a v e r em t i me s ma um a n ima l , em t eu

Deus , o nec p lus u l t r a da ex t ravagânc ia humana, e no cur so des sa v ida somente uma pas sagem que te é

permit ido perco r rer no se io do v íc io como no da v i r tude?

Mas permit i -me ent ra r numa d i s cus são ma i s p ro funda e esp inho sa .

A l g un s d o u to r e s d a I g r e j a p r e tend e r a m q ue Je s u s d e s ceu a o s i n f e r no s . C o mo e s s a p a s s a g em f o i

a l v o d e r e f u t a çõ e s ! Nã o en t r a r emo s na s d i f e r en te s d i s s e r t a çõ e s o ca s i o na d a s p o r e s s e a s s un to : s em

d úv i d a s e r i a m i n s u s t en t á ve i s p a r a a f i l o s o f i a , e é s o men te a e s t a q ue no s d i r i g imo s . E f a t o q ue nem a

E s c r i t u r a , nem q ua i s q ue r d e s eu s co men ta r i s t a s t êm p o s i çã o d e f i n i d a q ua n to à l o ca l i z a çã o d o i n f e r no ,

nem quanto ao s to rmento s que l á s ío in f l i g ido s . Po s to i s to , a pa lav ra de Deus não esc l a rece nada, uma

vez q ue o q ue a E s c r i t u r a no s r e ve l a d eve s e r p o s i t i v o e d i s t i n t a men te enunc i a d o , p a r t i cu l a r men te

q ua nd o s e t r a t a d e um o b j e t o d a ma i o r imp o r t â nc i a . O r a , e s t á mu i t o ce r t o q ue nã o há , nem no t e x t o

em heb r a i co , nem na s s ua s v e r s õ e s em g r e g o e l a t im , uma ún i ca p a l a v r a q ue d e s i g ne o i n f e r no , n a

a c ep ç ão q u e c o nh e ce m os , i s to é , l u ga r d e t o rm e nt o s d e st i na d o a o s p e ca d or e s. N ã o é e ss e u m

te s t emunho mu i t o f o r t e co n t r a a o p i n i ã o d o s q ue s u s t en t a m a r ea l i d a d e d e s s es t o r men to s ? S e nã o há

r e f e r ênc i a s a o i n f e r no na E s c r i t u r a , co m q ue d i r e i t o , p eço - vo s , p r e tend e - s e a d m i t i r uma t a l n o çã o ?

S e r í a mo s o b r i g a do s , em ma té r i a d e r e l i g i ã o , a a d m i t i r o u t r a s co i s a s a l ém d o q ue e s t á e s c r i t o ? O r a , s e

es sa op in ião não cons ta , s e não a encont ramos em lugar a l gum, em v i r tude de quê a ace i ta r íamos ? Não

d evemo s o cup a r no s s o e s p í r i t o co m o q ue nã o f o i r e ve l a d o . T ud o q ue nã o s e i n c l u i n i s s o s ó p o d e s e r

p o r nó s co n s i d e r ad o co mo f á b u l a s , v a g a s s up o s i çõ e s , t r a d i çõ e s huma na s , i n vençõ e s d a imp o s t u r a .

Ent retanto , de tanto buscar , descobre- se que hav ia um lugar , per to de Jerusa lém, chamado de va le de

Geena , no q ua l e r a m ex ecu ta d o s o s c r im ino s o s e no q ua l t a mb ém j o g a va m o s ca d á ve r e s d o s a n ima i s . E

a e s s e l u g a r q u e J e s u s f a z r e f e r ê n c i a e m s u a s a l e g o r i a s , q u a n d o d i z : I l l i c e r i t f l e t u s e t s t r i d o r

d en t i um. E ss e v a l e e r a um l ug a r d e p ena , um l u g a r d e sup l í c i o ; e é i n con te s t a ve l men te d e l e q ue f al a

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 18/41

e m s u as p a r áb o la s , e m s e u s d i s c u r so s i n i nt e l i gí v e is . E s sa i d e ia g a n ha m a i s v e r o s si m i l ha n ç a s e

s o ub e r mo s q ue o s up l í c i o d o f o g o e r a u s a d o ne s s e v a l e . O s cu l p a d o s e r a m q ue ima d o s v i v o s . O u t r a s

ve ze s e r a m en f i a d o s no e s t e r co a t é o s j o e l ho s e co l o ca va - s e em s eu p e s co ço uma p eq uena p eça d e

tec i d o q ue d o i s h o men s p ux a va m ca d a um d e s eu l a d o d e mo d o a e s t r a ng u l á - l o e f a zê - l o a b r i r a b o ca

o n d e d e s p ej a v am c h u m bo f u n di d o q u e l h e s q u e i ma v a a s e n t ra n h as . E s t e é o f o g o d e q u e o g a l il e u

f a l a va . E s t e p eca d o ( co s t uma va d i ze r ) me r ece s e r p un i d o co m a p ena d o f o g o . I s t o é : o i n f r a t o r d eve

s e r q ue ima d o no v a l e d a Geena o u j o g a d o no mo n tu r o e q ue ima d o co m o s ca d á ve r e s d o s a n ima i s q uee r a m d ep o s i t a d o s ne s s e l u g a r . M a s , e a p a l a v r a e t e r no , à q ua l Je s u s f a z t a n t a r e f e r ênc i a a o f a l a r

d e s s e f o g o , s e r á q u e n ã o c o r r o b o r a a o p i n i ã o d o s q u e a c r e d i t a m s e r e m i n f i n d á v e i s a s c h a m a s d o

i n f e r no ? Nã o , s em d úv i d a . E s s a p a l a v r a e t e r no , mu i t o u s a d a na E s c r i t u r a , nunca t r a n s m i t i u s enã o a

i d é i a d a s c o i s a s f i n i t a s . D e u s f i z e r a c o m s e u p o v o u m a a l i a n ç a e t e r n a . N o e n t a n t o , e s s a a l i a n ç a

a ca b o u . A s c i d a d e s d e S o d o ma e Go mo r r a d ev i a m q ue ima r e t e r na men te ; ma s há mu i t o e s s e i n cênd i o

ces sou. Po r s ina l , é de no to r iedade púb l i ca que o f ogo ex i s t ia no va le da Geena, per to de Jerusa lém, e

que imava d ia e no i te . Também sabemos que a E s cr i tu ra reco r re a h ipérbo les e que nunca se deve l evar

o q ue d i z a o p é d a l e t r a . D eve r í a mo s, s e g und o e s s e s e x a g e r o s , co r r o mp e r, co mo f a zem, o v e r d a d e i r o

s en t i d o d a s co i s a s ? E , d e f a t o , n ã o s ã o e s s e s a mp l i f i c a d o r e s q ue d evemo s o l ha r co mo o s ma i s ce r t o s

in imigo s do bom senso e da razão ?

Mas de que natureza se rá es se fogo com o qua l no s ameaçam?

1° Não pode se r co rpó reo , uma vez que d izem ser no s so fogo uma f raca imagem de le .2 ° U m f o g o co r p ó r eo i l um ina o l u g a r em q ue a r d e e g a r a n tem- no s s e r o i n f e r no um l u g a r d e

t revas .

3 ° O f o g o co r p ó r eo co n s o me p r o n t a men te t o d a s a s ma té r i a s co mb u s t í ve i s e a ca b a co n s um ind o a

s i mesmo, ao pas so que o in fe rno deve dura r para todo o sempre e consumir - se e ternamente.

4° O fogo do in fe rno é inv i s í ve l ; s endo inv i s í ve l , não é co rpó reo .

5 ° O f o g o co r p ó r eo a p a g a -s e p o r f a l t a d e a l imen to e o f o g o d o i n f e r no , s e g und o no s s a a b s u rd a

re l i g ião , nunca se apagará .

6° O fogo do in fe rno é e terno e o f ogo co rpó reo apenas momentâneo .

7 ° D i z e m s e r a p r i v a ç ã o d e D e u s o m a i o r d e t o d o s o s s u p l í c i o s p a r a o s a m a l d i ç o a d o s . N o

en ta n to , e x p e r imenta mo s ne s t a v i d a q ue o f o g o co r p ó r eo é p a r a nó s um s up l í c i o mu i t o ma i o r d o q ue a

ausênc ia de Deus .

8 ° F i n a l men te , um f o g o co r p ó r eo nã o p o d e r i a a g i r s o b r e o s e s p í r i t o s ! O r a , o s d emô n i o s s ã o

e s p í r i t o s ; l o g o , o f o g o d o i n f e r no nã o p o d e r i a a g i r s o b r e e l e s . D i ze r q ue D eu s p o d e f a ze r um f o g o

m a t er i a l a g i r s o b re e s p ír i t os , e s se s e s pí r i t os s o b re v i ve r e m s e m a l i me n t os e o f o go d u r ar s e m

co mb us t í v e i s , é r e co r r e r a s up o s i çõ e s m i r a b o l a n te s q ue s ó t em p o r g a r a n t i a a s t o l a s d i v a g a çõ e s d o s

teó logo s e que, po r consegu inte , s ó comprovam sua to l i ce e ma ldade.

D ed uz i r d o f a t o d e t ud o s e r p o s s í v e l p a r a D eu s q ue e l e f a r á t o d o o p o s s í v e l é , s em d úv i d a , uma

e s t r a nha ma ne i r a d e r a c i o c i na r. O s ho men s d eve r i a m a b s t e r - s e me s mo d e f und a men ta r s eu s d eva ne i o s

na o n i p o tênc i a d e D eu s , uma ve z q ue nem s a b em o q ue vem a s e r D eu s . P a r a e l ud i r e s s a s d i f i c u l d ad e s ,

o u t r o s t eó l o g o s no s g a r a n tem q ue o f o g o d o i n f e r no nã o é co r p ó r eo ma s e s p i r i t u a l . O q ue vem a s e r,

peço -vo s , um fogo que não é matér ia ? Que idé ia s podem ter de le aque les que de le f a l am? Em que l ugar

D e u s l h e s d e c l a r o u a n a t u r e z a d e s s e f o g o ? N o e n t a n t o , a l g u n s d o u t o r e s , p a r a c o n c i l i a r a s c o i s a s ,

d i s s e r a m q u e e r a e m p a r t e e s p i r i t u a l e e m p a r t e m a t e r i a l . A s s i m , t e m o s d o i s f o g o s d e d i f e r e n t e s

e s p éc i e s , n o i n f e r no . Q ue a b s u r d o ! A q ue a r e l i g i ã o nã o s e v ê o b r i g a d a a r e co r r e r p a r a a s s en t a r s ua s

men t i r a s !

E s p a n tos o me s mo é o a mo n to a d o d e o p i n i õ e s r i d í cu l a s q ue t a mb ém t i v e r a m d e i n ven ta r q ua nd o

qu i se ram es ta tu i r a l go vero s s ími l quanto à l oca l i zação des se f abu lo so in fe rno . O sent imento gera l f o ra

o d e q ue s e enco n t r a va na s ma i s b a i x a s r e g i õ e s d a t e r r a . E n t r e t a n to , p eço - vo s , o nd e s e enco n t r a m

es s a s r e g i õ e s num g l o b o q ue g i r a s o b r e s i me s mo ? O u t r o s d i s s e r a m q ue s e enco n t r a va no cen t r o d a

ter ra , i s to é a mi l qu inhentas l éguas daqu i . Contudo , se a E s cr i tu ra es tá cer ta , a te r ra se rá des t ru ída ;

e s e f o r, o nd e f i c a r á o i n f e r no ? E n t ã o ved e s a q ue d e s va r i o cheg a mo s s e co n f i a r mo s no s d e s a t i no s d o s

e s p ír i t os d o s o u t ro s . P en s a do r e s m e n os e x t ra v a ga n t es p r et e n de r a m, c o m o a c a be i d e d i z er, q u e o

i n f e r no co n s i s t i a n a p r i v a çã o d a v i s ã o d e D eu s . Ne s s e ca s o , o i n f e r no j á co meça ne s t e mund o , p o i s

ne le não vemos es se Deus de que fa l am; i s s o , no entanto , não no s a f l i ge mui to e se es se Deus es t ranho

r e a l m e n t e e x i s t i s s e a s s i m c o m o o r e t r a t a m , n ã o r e s t a d ú v i d a s d e q u e o i n f e r n o , p a r a o s h o m e n s ,

cons i s t i r i a em vê- l o !

To d a s e s s a s i n c e r t ez a s e a f a l ta d e a c o rd o q u e s u b s i st e e n t re o s t e ól o g os v o s m o s t r am q u e

va g ue i a m na s t r e va s e q ue , co mo p e s s o a s éb r i a s , n ã o co n s eg uem enco n t r a r p o n tos d e a p o i o ; co n tud o ,

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 19/41

não é de se su rp reender não se rem e les capazes de conco rdar quanto a um dogma tão es senc ia l , o qua l

encont ram, d izem, tão c l a ramente exp l i cado na pa lavra de Deus ?

C on v in de , p or t an t o, c a na l ha t on su r ad a , q u e e ss e d o gm a t ã o t e mí v el é d e st i tu í do d e

f und a men to s, q ue é o p r o d u to d e v o s s a a va r e za , d e v o s s a a mb i çã o , e o f i l h o d o s d e s a t i no s d o s v o s s o s

e s p í r i t o s ; e q ue nã o s e a p ó i a s enã o no s t emo r e s d e imb ec i s v u l g a r e s a q uem en s i na i s a r e ceb e r , s em

e x a m e , o q u e v o s a g r a d a d i z e r - l h e s . R e c o n h e c e i f i n a l m e n t e q u e e s s e i n f e r n o s ó e x i s t e e m v o s s o s

cé r eb r o s e q ue o s t o r men to s ne l e i n f l i g i d o s s ã o a s i nq u i e t a çõ e s co m a s q ua i s g o s t a m d e o p r im i r o sm o r ta i s q u e p o r v ó s s e d e i xa m g u i ar. C o mp e n et r a do s d e s se s p r i nc í p io s , r e n un c i e mo s p a ra t o do o

sempre a uma dout r ina pavo ro sa para o s homens , in jur io sa para a D iv indade, e que, numa pa lavra , não

pode ser r azoave lmente comprovada ao esp í r i to .

Vár io s a rgumento s a inda se o ferecem; ve jo -me na ob r igação de combatê- l o s :

1 ° O t emo r , d i z em, q ue t o d o ho mem s en te d en t r o d e s i me s mo d e q ua l q ue r ca s t i g o f u t u r o , é

u m a p r o v a i n d ub i t áv e l d a r e a li d ad e d e ss e c a st i g o. M a s e s s e t e m or n ã o é i n a t o, a p e na s p r ov é m d a

ed uca çã o . Nã o é i g ua l em t o d o s o s p a í s e s nem em t o d o s o s ho men s ; n ã o e x i s t e em q uem v i u a s p a i x õ e s

an iqu i l a rem todos o s p reconce i to s . Em suma: a consc iênc ia j ama i s s e mod i f i ca a não se r pe lo háb i to .

2 ° O s p a g ã o s a d m i t i r a m o d o g ma d o i n f e r no . . . n ã o co mo nó s , ce r t a men te ; e s up o nd o q ue e l e s o

t enha m a d m i t i d o , uma ve z q ue r e j e i t a mo s s ua r e l i g i ã o , n ã o d eve r í a mo s t a mb ém r e j e i t a r s eu s d o g ma s ?

M a s, c o m c e r t e z a, o s p a g ã o s n u n c a a c r ed i t ar a m n a e t e rn i d ad e d a s p e n a s e m o u t ra v i d a; n u n ca

a d m i t i r a m a l a men tá ve l f á b u l a d a r e s s u r r e i çã o d o s co r p o s , e p o r i s s o o s q ue ima va m e co n s e r va va ms u a s c i n z a s e m u r n as . A c r e d i ta v a m n a m e t em p s ic o s e, n a t r a ns m i gr a ç ão d o s c o r po s , o p i n i ã o m u i t o

v e r os s ím i l e q u e t o d o s o s e s t ud o s d a n a t ur e z a c o n f i rm a m ; m a s o s p a g ã o s n u n c a a c r e d i ta r a m n a

r e s s u r r e i çã o : e s s a i d é i a a b s u r d a p e r t ence p o r i n t e i r o a o c r i s t i a n i s mo e , ce r t a men te , e r a b em d i g na

d e l e. P a re c e c e r t o q u e f o i e m P l a tã o e V i r gí l i o q u e n o ss o s d o u t o re s e n c o nt r a ra m s u a s n o ç õ e s d o s

i n f e r n o s , d o p a r a í s o e d o p u r g a t ó r i o , q u e , m a i s t a r d e , a r r a n j a r a m a s e u m o d o . C o m o t e m p o , o s

devane io s amor fo s da imag inação do s poetas t r ans fo rmaram- se em i tens de fé .

3 ° A r a zã o s ã p r o va o d o g ma d o i n f e r no e d a e t e r n i d a d e d a s p ena s : D eu s , s end o j u s t o , d e ve ,

p o r t a n to, p un i r o s c r ime s d o s ho men s . . . Ah , n ã o , n ã o , nunca a r a zã o s ã p ô d e a d m i t i r um d o g ma q ue a

u l t ra ja tão sens ive lmente.

4 ° M a s a j u s t i ç a d e D eu s e s t á s ub o r d i na d a a e l e . . . M a i s uma a t r o c i d a d e : o ma l é nece s s á r i o na

ter ra ; cabe, po r tanto , à j us t i ça de vo s so Deus , caso ex i s ta , não pun i r o que e le mesmo p rescreveu. Se

vo s s o D eu s é o n i p o ten te , p r e c i s a va p un i r o ma l p a r a imp ed i - l o ? Nã o p o d i a e x t i r p á - l o t o t a l men te d o s

ho men s ? S e nã o f e z i s s o é q ue o a cho u e s s enc i a l à ma nu tençã o d o eq u i l í b r i o ; e , s a b end o d i s s o, co mo ,

v i s b l a s femos ! pode i s d i zer que Deus pode pun i r um modo es senc ia l à s l e i s do un iver so ?

5 o To d o s o s t eó l o g o s co nco r d a m em a c r ed i t a r n a s p ena s d o i n f e r no e em a p r eg o á - l a s. S e r á q ue

i s s o p r o va a l g uma co i s a , a n ã o s e r q ue o s s a ce r d o te s , t ã o d e s un i d o s en t r e s i , e n tend em- s e ca d a ve z

q ue s e t r a t a d e eng a na r o s ho men s . P o r s i n a l , d e ve r i a m o s d eva ne i o s a mb i c i o s o s e i n t e r e s s e i r o s d o s

s a ce r d o te s r o ma no s f i x a r a s o p i n i õ e s d a s o u t r a s s e i t a s ? S e r i a r a zo á ve l e x i g i r q ue t o d o s o s ho men s

a c r ed i t as s em n o q u e o s m a i s d e s p r ez á v ei s e m e n os n u m e ro s o s d e l e s a c h a r a m b o m i n v en t a r? S e r ia ,

p o r t a n to , p r e f e r í v e l c o n f i a r ne s s e s v e l ha co s ma i s d o q ue na r a zã o , no b o m s en s o e na ve r d a d e ? E a

v e r d a d e q u e é p r e c i s o s e g u i r , n ã o a m u l t i d ã o : s e r i a a n t e s p r e c i s o c o n f i a r n u m ú n i c o h o m e m q u e

fa la s se a verdade do que no s homens de todas a s épocas que p ro ferem ment i r a s .

Os out ro s a rgumento s que se ap resentam são tão marcados po r sua f r ag i l idade, que se r ia perder

t emp o r e f u t á - l o s . T o d o s e s s e s a r g umen to s , p o r n ã o s e a p o i a r em na E s c r i t u r a nem na t r a d i çã o , h ã o

n e c e ss a r ia m e nt e d e c a i r p o r s i m e s mo s . A l e g am o c o n se n t i me n t o u n â n i m e ; c o m o p o de m , s e n ã o

enco n t r a mo s d o i s h o men s q ue r a c i o c i na m d o me s mo mo d o s o b r e uma d a s co i s a s ma i s imp o r t a n te s d a

v ida ?

P or f a l ta d e b o a s r a z õ e s, t o do s e s s es p a pa - D eu s a m e aç a m -v o s; m a s h á m u i to s a b e- s e q u e a

a mea ça é a a r ma d o f r a co e d a s imp l i c i d a d e . E d e r a zõ e s q ue p r e c i s a mo s , e s t úp i d o s f i l h o s d e Je s u s ,

s im , d e r a zõ e s e nã o d e a mea ça s . Nã o q ue r emo s q ue no s d i g a m: s en t i r e i s e s s e s t o r men to s , j á q ue nã o

q ue r e i s a c r ed i t a r ne l e s . Q ue r emo s , e é p o r n ã o co n s eg u i r d e s d a r co n t a d i s s o , q ue no s d emo n s t r a i s em

v i r tude do que p retende i s no s f azer acred i ta r .

O t emo r d o i n f e r no , numa p a l a v r a , n ã o é uma p r e ca uçã o co n t r a o p eca d o . . . Nã o há q ua l q ue r

m e n ç ã o a e l e e m l u g a r a l g u m . . . N ã o p a s s a , v i s i v e l m e n t e , d o f r u t o d a i m a g i n a ç ã o d e s r e g r a d a d o s

s a ce r d o te s , i s t o é , d o s i nd i v í d uo s q ue f o r ma m a c l a s s e ma i s v i l e ma l d o s a d a s o c i ed a d e . . . P a r a q ue

s e r ve , en t ã o , e s s e t emo r ? D e s a f i o q uem q ue r q ue s e j a a r e s p o nd e r - me . A s s e g u r a m- no s s e r o p eca d o

uma o f en s a i n f i n i t a e q ue d eve , p o r t a n to , s e r i n f i n i t a men te p un i d o . E n t r e t a n to , o p r ó p r i o D eu s q u i s

v incu la r e s sa o fensa a um ún ico cas t igo , e e s se cas t igo é a mor te .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 20/41

C o nc l ua mo s, s e g und o t ud o i s s o , q ue o d o g ma p ue r i l d o i n f e r no é uma i n vençã o d o s s a ce r d o te s ,

uma s up o s i çã o c r ue l , a ven tu r a d a p o r t r a t a n tes d e a m i c t o , q ue co meça r a m p o r e r i g i r um D eu s b a s t a n te

ins íp ido , tão desp rez íve l quanto e les , pa ra se darem o d i re i to de d izer a e s se ído lo no jento tudo o que

pudes se l i s onjear melho r suas pa ixões e f o rnecer - l hes , s ob retudo , mulheres e d inhe i ro , ún ico s ob jeto s

d a a m b iç ã o d e u m m o n te d e v a g ab u nd o s , e s c ó ri a v i l d a s o c ie d a de , q u e m a i s s a b i a me n t e a g i r i a

purgando - se rad ica lmente.

P o r t a nd o , b a n i p a r a s emp r e d e v o s s o s co r a çõ e s uma d o u t r i n a q ue co n t r a d i z i g ua l men te v o s s oD eu s e v o s s a r a zã o . E s t e é p r o va ve l men te o d o g ma q ue p r o d uz i u ma i s a t eu s na t e r r a , n ã o ha vend o

ho mem a l g um q ue nã o p r e f i r a a c r ed i t a r em na d a a a d o t a r um a mo n to a d o d e men t i r a s t ã o p e r i g o s o ; e i s

p o r q ue t a n t a s a l ma s ho ne s t a s e s en s í v e i s a c r ed i t a m s e r em o b r i g a d a s a b u s ca r n a i r r e l i g i ã o a b s o l u t a

c o n so l o s e r e c ur s os c o n tr a o s t e r ro r e s c o m o s q u a is a i n f am e d o u tr i n a c r i s t ã t e n t a s u b ju g á -l a s .

L i v r emo - no s , p o r t a n to , d e s s e s v ã o s t emo r e s ; c a l q uemo s p a r a s emp r e o s d o g ma s , a s ce r imô n i a s , o s

mis tér io s des sa abomináve l re l i g ião . O a te í smo ma i s enra izado va le ma i s do que um cu l to cu jo s per igo s

a c a ba m o s d e e x p or. N ã o s e i q u e i n c o n v en i e nt e p o d er i a h a v e r e m n ã o a c r e d i ta r e m n a d a; m a s ,

cer tamente, conheço mui to bem o s que podem nascer da adoção des ses per igo so s s i s temas .

V. A R E L I G I Ã O

Venho vo s o f e r e ce r g r a nd e s i d é i a s ; e l a s s e r ã o o uv i d a s e s o b r e e l a s s e r e f l e t i r á . S e t o d a s nã o

a g r a d a r em, a l g uma s a o meno s f i c a r ã o ; t e r e i d e a l g um mo d o co n t r i b u í d o p a r a o p r o g r e ss o d a s l u ze s , e

f i ca re i contente. Não o es condo , é com pesar que ve jo a l ent idão com que tentamos a t ing i r e s sa meta ,

é com inqu ietude que s in to que es tamos à véspera de f racas sa r novamente. Pensa - se que es te f im será

at ing ido quando no s t i ve rem dado a s l e i s ? Não acred i temos n i s so . Que fa r íamos das l e i s s em a re l i g ião ?

P r e c i sa mo s d e um cu l t o , e um cu l t o f e i t o p a r a o ca r á t e r d e um r ep ub l i c a no , b em ce r t o s d e nunca ma i s

r e t o ma r o d e Ro ma . Num s é cu l o em q ue e s t a mo s t ã o co nvenc i d o s d e q ue a r e l i g i ã o d eve a p o i a r - s e

s o b r e a mo r a l , e n ã o a mo r a l s o b r e a r e l i g i ã o , é p r e c i s o uma mo r a l q ue s e d i r i j a a o s co s t umes , q ue

s e j a co mo q ue o s eu d e s envo l v imen to , s ua co n s eq üênc i a nece s s á r i a , e q ue p o s s a , e l e va nd o a a l ma ,

ma n tê - l a p e r p e tua men te à a l t u r a d e s s a l i b e r d a d e p r e c i o s a d e q ue f a z ho j e s eu ún i co í d o l o . P e r gun to -

vo s s e é p o s s í v e l s up o r q ue a r e l i g i ã o d e um e s c r a vo d e T i t o , a d e um v i l h i s t r i ã o d a Jud é i a , p o s s a

co nv i r a uma na çã o l i v r e e g ue r r e i r a q ue a ca b a d e s e r e g ene r a r ? Nã o , meu s co mp a t r i o t a s, n ã o p o d e i sa c r ed i t ar n i s so . S e o f r a nc ê s , i n f e l i zm e n t e p a r a e l e , e s t i v e ss e a i n da a m o rt a l ha d o n a s t r e v a s d o

c r i s t i a n i s mo , d e um l a d o o o r g u l ho , a t i r a n i a , o d e s p o t i s mo d o s p a d r e s , v í c i o s s emp r e r e i n c i d en te s

nes ta ho rda impura , e , de out ro , a ba ixeza , a v i s ão es t re i ta , a vu l ga r idade do s dogmas e do s mi s té r io s

d e s t a i nd i g na e f a b u l o s a r e l i g i ã o , en f r a q uecend o o o r g u l ho d a a l ma r ep ub l i c a na , em b r e ve o t e r i a m

reconduz ido ao j ugo que sua energ ia acaba de quebrar .

N ã o p e r c a m o s d e v i s t a q u e e s s a r e l i g i ã o p u e r i l e r a u m a d a s m e l h o r e s a r m a s n a s m ã o s d e

no s s o s t i r a no s : um d e s eu s p r ime i r o s d o g ma s e r a : d a r á C é s a r o q ue éd e C é s a r . M a s nó s d e s t r o na mo s

C é s a r e nã o q ue r emo s l he d a r ma i s n a d a . F r a nce s e s , s e r i a em vã o v o s v a ng l o r i a r q ue o e s p í r i t o d e um

c l e r o j u r a men ta d o nã o d eva s e r o me s mo d e um c l e r o r e f r a t á r i o . H á v í c i o s d e E s t a d o q ue j a ma i s s e

c o r r i g e m . E m m e n o s d e d e z a n o s , m e d i a n t e a r e l i g i ã o c r i s t ã , s u a s u p e r s t i ç ã o , s e u s p r e c o n c e i t o s ,

v o s s o s p a d r e s , a p e s a r d e s eu j u r a men to , d e s ua p o b r e za , r e t o ma r i a m s o b r e a s a l ma s o imp é r i o q ue

ha v i a m i n va d i d o ; e l e s v o s a co r r en t a r i a m no va men te a o s r e i s , p o i s o p o d e r d e s t e s s emp r e a p o i o u o

out ro , e vo s so ed i f í c io repub l i cano se desmoronar ia po r f a l ta de bases .

O vó s q ue t end e s a f o i ce na s mã o s , d e s f e r i o d e r r a d e i r o g o l p e na á r vo r e d a s up e r s t i ç ã o ; n ã o

v o s c o n t en t ei s c o m p od a r o s r a mo s: d e se n ra i za i d e u m a v e z u m a p la n ta c u jo s e f ei t os s ão t ã o

co n ta g i o so s ; co nvence i - v o s p e r f e i t a men te d e q ue vo s s o s i s t ema d e l i b e r d a d e e d e i g ua l d a d e co n t r a r ia

d ema s i a d o a b e r t a men te o s m in i s t r o s d o s a l t a r e s d e C r i s t o p a r a q ue um s ó d e l e s o a d o te d e b o a - f é o u

nã o p r o cu r e a b a l á - l o , s e cheg a r a t e r d e no vo q ua l q ue r imp é r i o s o b r e a s co n s c i ênc i a s . Q ua l o p a d r e

q ue , co mp a r a nd o o e s t a d o a q ue a ca b a m d e r ed uz i - l o , co m o q ue g o za va o u t r o r a , n ã o f a r á t ud o o q ue

d e p e n d e r d e l e p a r a r e c o b r a r a c o n f i a n ç a e a a u t o r i d a d e q u e l h e f i z e r a m p e r d e r ? E q u a n t o s s e r e s

f r a co s e p u s i l â n ime s nã o s e t o r na r ã o l o g o e s c r a vo s d e s s e a mb i c i o s o t o n s u r a d o ? P o r q ue nã o ima g i na r

q ue o s i n co nven i en te s q ue e x i s t i r a m a i nd a p o d em r ena s ce r. Na i n f â nc i a d a I g r e j a c r i s t ã o s p a d r e s nã o

e r a m o q ue s ã o ho j e ? Vó s v i s t e s a o nd e cheg a r a m. Q uem, no en t a n to , o s co nd uz i u a t é l á ? Nã o f o r a m o s

m e i o s q u e a r e l i g i ã o l h e s f o r n e c e u ? O r a , s e n ã o p r o i b i r d e s a b s o l u t a m e n t e e s t a r e l i g i ã o , o s q u e a

p regam, tendo sempre o s mesmos me io s , l ogo a t ing i r ão o s mesmos f in s .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 21/41

A n i qu i l ai , p o i s, p a r a s e m p re t u d o o q u e p o d e r á u m d i a d e s t r u ir v o ss a o b ra . P en s a i q u e ,

e s t a nd o o f r u t o d e v o s s o s t r a b a l ho s r e s e r va d o a p ena s a o s v o s s o s d e s cend en te s , é v o s s o d eve r , v o s s a

p r o b i d a de , nã o l he s d e i x a r nenhum d e s s e s g e r mes p e r i g o so s q ue p o d e r i a m me r g u l há- l o s no va men te no

ca o s d e o nd e s a ímo s co m t a n t a d i f i cu l d a d e . No s s o s p r e co nce i t o s j á co meça m a d i s s i p a r - s e , o p o vo

co meça a a b j u r a r o s d i s p a r a te s ca t ó l i c o s ; e l e j á s up r im iu o s t emp l o s , d e r r ub o u o s í d o l o s , co nco r d o u

q u e o c a s am e n to n ã o p a s s a d e u m a t o c i v i l ; o s c o n f es s io n á ri o s q u e b r ad o s a b a s t ec e m a s l a re i r as

p úb l i c a s ; o s p r e ten s o s f i é i s , d e s e r t a nd o o b a nq ue te a p o s t ó l i c o , d e i x a r a m o s d eu s e s d e f a r i nha p a r a o sr a t o s . F r a nce s e s, n ã o p a r e i s ! A E u ro p a i n t e i r a , j á co m a mã o s o b r e a v end a q ue l he f a s c i n a o s o l ho s ,

e s p e r a d e v ó s um e s f o r ço p a r a a r r a ncá - la d a f r o n te . Ap re s s a i - v o s: n ã o d e i x a i s q ue a Ro ma s a n t a , q ue

se ag i ta em todos o s s ent ido s para rep r imi r vo s sa energ ia , não tenha tempo nem para conservar a l guns

p r o s é l i t o s . Go l p ea i s em p i ed a d e s ua ca b eça o r g u l ho s a e f r emen te , q ue , em meno s d e d o i s me s e s , a

á r vo r e d a l i b e r d a d e , s o mb r ea nd o o s d e s t r o ço s d a ca d e i r a d e S ã o P ed r o , co b r i r á co m o p e s o d e s eu s

ramos v i to r io so s todo s o s desp rez íve i s ído lo s do cr i s t ian i smo, descaradamente e rgu ido s s ob re a s c inzas

do s Catões e do s Bruto s .

E u v o s r e p i t o , f r a n c e s e s : a E u r o p a e s p e r a q u e v ó s a l i b e r t e i s d e u m a v e z d o c e t r o e d o

i n cen s ó r i o. P en s a i q ue é imp o s s í v el l i v r á - l a d a t i r a n i a r e a l s em l he q ueb r a r a o me s mo t emp o o s f r e i o s

d a s up e r s t i ç ã o r e l i g i o s a : o s l a ço s q ue unem a mb a s e s t ã o p o r d ema i s un i d o s i n t ima men te p a r a q ue ,

d e i x a nd o uma d e l a s s ub s i s t i r, n ã o t o mb e i s d e no vo s o b o imp é r i o d a q ue l a q ue t i v e r d e s neg l i g enc i a do

em d i s s o l v e r. Nã o é ma i s a o s p é s d e um s e r ima g i ná r i o o u d e um v i l imp o s t o r q ue um r ep ub l i c a no d eves e cu r va r ; s eu s ún i co s d eu s e s d evem s e r d o r a va n te a co r a g em e a l i b e r d a d e. Ro ma d e s a p a r eceu d e s d e

que o c r i s t ian i smo l á se p regou, e a F rança es ta rá perd ida se ne la a inda o venerarem.

E x am i n em o s c o m a t e nç ã o o s d o g ma s a b su r d os , o s a r r ep i a nt e s m i s té r i os , a s c e r i mô n i as

m o n st r u os a s, a m o ra l i m p os s í ve l d e ss a r e l i g i ã o r e p e le n t e, e v e r em o s s e e l a p o d e c o n vi r a u m a

Rep úb li c a . Ac r ed i t a i s d e b o a - f é q ue eu me d e i x a r i a l e va r p e l a o p i n i ã o d e um ho mem q ue a ca b a s s e d e

ve r a o s p é s d o imb ec i l s a ce r d o te d e Je s u s ? Nã o , n ã o , e v i d en temen te . E s t e ho mem, s emp r e v i l p e l a

b a i x e za d e s eu s f i n s , e s t a r á s emp r e l i g a d o à s a t r o c i d a d e s d o a n t i g o r e g ime ; d e s d e q ue e l e p o d e s e

s ub mete r à e s t up i d e z d e uma r e l i g i ã o t ã o o r d i ná r i a co mo a q ue t í nha mo s a l o ucu r a d e a d m i t i r , n ã o

p od e rá m a is n e m d i t a r l e i s n e m m e t ra n sm i ti r l u ze s. N ã o o v e jo s en ã o c o m o u m e sc r av o d os

p reconce i to s e da super s t i ção .

P a r a no s co nvence r d e s s a v e r d a d e , l a n cemo s o s o l ho s s o b r e o s p o uco s i nd i v í d uo s q ue a i nd a

e s t ã o l i g a d o s a o cu l t o i n s en s a t o d e no s s o s p a i s ; v e r emo s s e nã o s ã o t o d o s i n im i g o s i r r e co nc i l iá ve i s d o

s i s tema atua l ; veremos se não é ent re e les que se encont ra toda es sa cas ta tão j us tamente desp rezada

d e r ea l i s t a s e a r i s t o c r a t a s . Q ue o e s c r a vo d e um b a nd i d o co r o a do s e d o b r e , s e q u i s e r, a o s p é s d e um

íd o l o d e ma s s a : t a l o b j e t o é f e i t o p a r a s ua a l ma d e l a ma ; q uem p o d e s e r v i r a o s r e i s d e ve a d o r a r o s

d e us e s! M a s n ós , f r an c es e s, n ó s, m e us c om p at ri o ta s, r a st e ja r h u mi l de m en t e s ob f re io s t ã o

d e s p r e z í v e i s ? An te s mo r r e r m i l v e ze s d o q ue no s s u j e i t a r a i s s o d e no vo . J á q ue a c r ed i t a mo s s e r um

cu l t o nece s s á r i o , im i t emo s o d o s r o ma no s : a çõ e s , p a i x õ e s , he r ó i s , e i s s eu s r e s p e i t á ve i s o b j e t o s . Ta i s

í do l os e l ev a va m a a l ma , e l et r iz a va m -n a; e f az i am m a is : c o mu n ic a va m- l he a s v i rt u de s d o s e r

r e s p e i t a do . O a d o r a d or d e M i ne r va q ue r i a s e r p r ud en te . A co r a g em e s t a va no co r a çã o d a q ue l e q ue s e

v i a a o s p é s d e M a r te . N e n h u m d o s d e u se s d e s s e s g r a n de s h o m e n s e r a p r i va d o d e e n e rg i a ; t o d o s

t r a n s m i t i a m à a l ma d a q ue l e q ue o s v ene r a va o f o g o d e q ue e l e s p r ó p r i o s s e a b r a s a va m; e , co mo s e

t i nha e s p e r a nça d e s e r um d i a t a mb ém a d o r a d o , a s p i r a va - se cheg a r a s e r a o meno s t ã o g r a nd e q ua n to

a q ue l e q ue s e t o ma va p o r mo d e l o . O q ue vemo s , a o co n t r á r i o , no s d eu s e s v ã o s d o c r i s t i a n i s mo ? O q ue

vo s o f e r e ce e s s a r e l i g i ã o imb ec i l ? * O vu l g a r imp o s t o r d e Na za r é v o s d e s p e r t a g r a nd e s i d é i a s ? S ua

imund a e a s q ue r o s a mã e , a imp ud i ca M a r i a , v o s i n s p i r a a l g uma v i r t ud e ? E nco n t r a i s e n t r e o s s a n to s q ue

guarnecem seu E l i s eu a l gum mode lo de g randeza, de hero í smo ou de v i r tude? E ta l a verdade, que es ta

r e l i g i ã o e s t úp i d a em na d a co n t r i b u i p a r a a s g r a nd e s i d é i a s q ue nenhum a r t i s t a p o d e emp r eg a r s eu s

a t r i b u to s no s mo numen to s q ue e l e va . M e s mo em Ro ma , a ma i o r p a r t e d o s en f e i t e s e o r na men to s d o

P a l á c i o d o s p a p a s b a s e i a - s e n o s m o d e l o s d o p a g a n i s m o , e , e n q u a n t o o m u n d o e x i s t i r , a p e n a s e l e

in f l amará a verve do s g randes homens .

E nco n t r a remo s no t e í s mo p u r o ma i o r e s mo t i v o s d e g r a nd eza e e l e va çã o ? S e r á a a d o çã o d e uma

q u ime r a q ue , d a nd o a no s s a a l ma e s s e g r a u d e ene r g i a e s s enc i a l à s v i r t ud e s r ep ub l i c a na s , l e v a r á o

homem a ado rá - l a s e a p ra t icá - l a s ? Não acred i temos n i s so , j á no s curamos des se f antasma; e o a te í smo

é no p r e s en te o ún i co s i s t ema d o s q ue s a b em r a c i o c i na r . Na med id a em q ue f o mo s no s e s c l a r e cend o ,

s e n ti m o s q u e , o m o v im e n to s e n do i n e r en t e à m a t é ri a , o a g e nt e n e c e ss á ri o p a r a i m p r i mi r e s se

m o v i m e n t o t o r n a v a - s e u m s e r i l u s ó r i o e q u e , d e v e n d o t u d o o q u e e x i s t i a e s t a r e m m o v i m e n t o p o r

e s sê n c i a, o m o t or e r a i n ú ti l . S e n ti u - se q u e e s se d e u s q u i m é r ic o , p r ud e n t em e n te i n v e nt a d o p e l o s

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 22/41

p r i m e i r o s l e g i s l a d o r e s , n ã o p a s s a v a e m s u a s m ã o s d e u m m e i o a m a i s p a r a n o s a c o r r e n t a r , e q u e ,

r e s e r va ndo - s e o d i r e i t o d e s ó f a ze r f a l a r e s s e f a n t a s ma , s a b e r i a m f a zê - l o d i ze r a p ena s o q ue s e r v i r i a

d e a p o i o à s l e i s r i d í cu l a s p o r me i o d a s q ua i s p r e tend i a m no s e s c r a v i z a r. L i cu r g o , Numa , M o i s é s , Je s u s

Cr i s to , Maomé, todo s es ses g randes cana lhas , todo s es ses g randes déspo tas de no s sas idé ia s , s ouberam

a s s o c i a r à s d i v i nd a d e s q ue f a b r i c a va m a p r ó p r i a a mb i çã o d e s mes u r a d a , e , ce r t o s d e ca t i v a r o s p o vo s

com a s anção des ses deuses , t i ve ram sempre, como se s abe, o cu idado de só o s in ter rogar a p ropós i to ,

ou de o s f azer re sponder o que acred i tavam poder se rv i - l o s .Conservemos ho je o mesmo desp rezo , tanto pe lo deus vão que o s impos to res p regam como po r

t o d a s a s s u t i l e za s r e l i g i o s a s d eco rr en te s d e s ua r i d í cu l a a d o çã o . O s ho men s l i v r e s n ã o s e d e i x a m ma i s

i l ud i r po r um choca l ho co mo e s se . Q ue a e x t i n çã o to t a l d o s cu l t o s fa ça p a r t e d o s p ri n c í p i o s q ue

propagamos po r toda Europa. Não no s contentemos em quebrar o s cet ro s ; pu l ver i zemos para sempre o s

ído lo s . A super s t i ção es teve sempre a um pas so do rea l i smo . E é p rec i so que a s s im se ja , s em dúv ida ,

j á q ue um d o s p r ime i r o s a r t i g o s d a s a g r a çã o d o s r e i s ma n teve s emp r e a r e l i g i ã o d o m ina n te co mo uma

d a s me l ho r e s b a s e s p o l í t i c a s d e s u s t en t a çã o d o t r o no . M a s uma ve z a b a t i d o e s s e t r o no , f e l i zmen te

para sempre, não receemos ex t i rpar também o que l he se rv ia de apo io .

S im , c i d a d ã o s , a r e l i g i ã o é i n co e r en te co m o s i s t ema d a l i b e r d a d e ; j á o s en t i s t e s . O ho mem

l i v r e j a ma i s s e cu r va r á a o s d eu s e s d o c r i s t i a n i s mo ; j a ma i s s eu s d o g ma s, s eu s r i t o s , s eu s m i s t é r i o s o u

s u a m o r a l c o n v i r ã o a u m r e p u b l i c a n o . M a i s u m e s f o r ç o ! J á q u e t r a b a l h a i s p a r a d e s t r u i r t o d o s o s

p r e co nce i t o s , n ã o d e i x a i s s ub s i s t i r n enhum, s e um a p ena s b a s t a p a r a t r a ze r t o d o s d e v o l t a . E co monã o e s t a r ce r t o s q ua n to a o s eu r e t o r no , s e a q ue l e q ue d e i x a i s v i v e r é p o s i t i v a men te o b e r ço d e t o d o s

o s o u t r o s ! D e i x e m o s d e a c r e d i t a r q u e a r e l i g i ã o p o s s a s e r ú t i l a o h o m e m . T e n h a m o s b o a s l e i s , e

p a s s a r emo s b em s em a r e l i g i ã o . M a s , a s s e g u r a m, o p o vo p r e c i s a d e uma r e l i g i ã o ; e l a o d i s t r a i , e l a o

c o n t é m . A g o r a s i m ! D a i - n o s n e s s e c a s o a r e l i g i ã o q u e c o n v é m a o s h o m e n s l i v r e s . D e v o l v e i - n o s o s

d eu s e s d o p a g a n i s mo . Ad o r emos d e b o a v o n t a d e Júp i t e r, H é r cu l e s o u P a l a s; ma s nã o q ue r emo s ma i s o

qu imér ico auto r de um un iver so que se move po r s i mesmo, não queremos ma i s um deus sem ex tensão e

q ue t o d a v i a p r eenche t ud o co m s ua imen s i d a d e , um d eu s t o d o - p o d e r o s o q ue j a ma i s e x ecu ta o q ue

deseja , um ser s oberanamente bom que só f az descontentes , um ser amigo da o rdem e em cujo governo

s ó há d e s o r d em. Nã o , nã o q ue r emo s ma i s um d eu s q ue p e r t u r b a a na tu r e za , q ue é o p a i d a co n f u s ã o,

q ue mo ve o ho mem no i n s t a n te em q ue e l e s e en t r e g a a o s ho r r o r e s. U m d eu s co mo e s t e no s f a z t r eme r

d e i nd i g na çã o e nó s o r e l e g a mo s p a r a s emp r e a o e s q uec imen to , d e o nd e o i n f a me Ro b e s p i e r r e q u i s

t i r á - l o .

F r a nce s e s, s ub s t i t ua mo s e s t e i nd i g no f a n t a s ma p o r imp o nen te s s imu l a c r o s q ue f i z e r a m d e

Ro ma a s enho r a d o un i ve r s o ; t r a t emo s t o d o s o s í d o l o s c r i s t ã o s co mo f i z emo s co m o s d o s no s s o s r e i s .

N ó s r e c o l o ca m o s o s e m b le m a s d a l i b er d a de s o b re a s b a s es q u e o u t ro r a s u s t e n t av a m o s t i r an o s;

reed i f iquemos também a e f íg ie do s g randes homens sob re o s pedes ta i s des ses ve lhaco s ado rados pe lo

c r i s t i a n i s mo . C e s s emo s d e t eme r o e f e i t o d o a t e í s mo em no ss a s a l d e i a s . O s ca mp o ne s e s nã o s en t i r a m

a nece s s i d a d e d e a n i q u i l a men to d o cu l t o ca t ó l i c o , t ã o co n t r a d i t ó ri o co m o s v e r d a d e i r o s p r i n c í p i o s d a

l i b e r d a d e ? Nã o v i r a m, s em a s s o mb r o o u d o r , c a i r p o r t e r r a s eu s a l t a r e s e p r e s b i t é r i o s ? Ah , p o d e i s

a c r ed i t a r q ue e l e s t a mb ém r enunc i a r ã o a o s eu r i d í cu l o d eu s . A s e s t á t ua s d e M a r t e , d e M i ne r va e d a

L i b e r d a d e s e r ã o co l o ca d a s no s l u g a r e s ma i s imp o r t a n tes d e s ua s ha b i t a çõ e s ; uma f e s t a a nua l ce l eb r a r -

s e - á ne l e s , em q ue uma co r o a c í v i c a s e r á co nced i d a a o c i d a d ã o q ue ma i s mé r i t o t i v e r a o s o l ho s d a

p á t r i a . A en t r a d a d e um b o s q ue s o l i t á r i o , Vênu s , H imeneu e Amo r , e r i g i d o s s o b um t emp l o a g r e s t e ,

receberão a homenagem dos amantes ; a í , s e rá pe la mão das Graças que a be leza co roará a cons tânc ia .

A m a r a p e n a s n ã o s e rá s u f ic i e n te p a r a s e r d i g no d e s sa c o r oa ; s e rá p r ec i s o t e r m e r ec i d o s ê - l o .

H e r o í s mo , t a l en to s , huma n id a d e , g r a nd eza d e a l ma , um c i v i s mo a t o d a p r o va , e i s o s t í t u l o s q ue o

a ma n te s e r á o b r i g a d o a d i s p o r a o s p é s d a a ma d a ; e l e s v a l e r ã o p e l o s t í t u l o s d e na s cença e d e r i q ueza ,

o u t r o r a e x i g i d o s p o r um o r g u l ho e s t úp i d o. A l g uma s v i r t ud e s a o meno s b r o t a r ã o d e s t e cu l t o , enq ua n to

s ó na s cem c r ime s d a q ue l e q ue t i v emo s a f r a q ueza d e p r o f e s s a r . E s t e cu l t o s e a l i a r á co m a l i b e r d a d e

q ue s e r v imo s ; e l e a a n ima r á , a co n s e r va r á , a a b r a s a r á , a o p a s s o q ue o t e í s mo é , p o r s ua e s s ênc i a e

n a t u re z a , o m a i s m o r t al i n i m ig o d a l i b e r d ad e q u e s e r vi m o s. C u s to u u m a g o t a d e s a n gu e q u a nd o o s

í d o l o s p a g ã o s f o r a m d e s t r u í d o s s o b o Ba i x o I mp é r i o ? P r ep a r a d a p e l a e s t up i d e z d e um p o vo o u t r a v e z

e s c r a v i z a d o , a Revo l u çã o o p e r o u - s e s em o meno r o b s t á cu l o . C o mo p o d e r emo s r e cea r q ue a o b r a d a

f i l o so f ia se ja ma i s penosa do que a do despo t i smo? Apenas o s pad res a inda mantêm cat ivo s , ao s pés de

s e u d e u s q u i m é r i co , e s t e p o v o q u e v ó s t a n to t e m ei s e s c la r e ce r ; a f a s t ai - o d e l e s , e o v é u c a i r á

na tu r a l mente . C r ed e q ue e s t e p o vo , b em ma i s s en s a t o d o q ue ima g i na i s , l i b e r t o d o s f e r r o s d a t i r a n i a ,

em b r e ve o s e r á d o s d a s up e r s t i çã o . Vó s o s t eme i s s em e s s e f r e i o ? Q ue e x t r a va g ânc i a ! Ah , a c r ed i t a i ,

c i d a d ã o s , a q ue l e q ue o g l á d i o ma te r i a l d a s l e i s n ã o d e tém, mu i t o meno s s e r á d e t i d o p o r med o mo r a l

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 23/41

d o s s u p l í c i o s d o i n f e r n o , d e q u e e l e z o m b a d e s d e a i n f â n c i a . E m s u m a : v o s s o t e í s m o f e z c o m e t e r

mu i t o s c r ime s , ma s j a ma i s co n s eg u i u e v i t a r a l g um. S e é v e r d a d e q ue a s p a i x õ e s ce g a m, q ue s eu e f e i t o

é e l e va r s o b r e no s s o s o l ho s uma nuvem q ue no s e s co nd e o s p e r i g o s d e q ue s e ce r ca m, co mo p o d e r emos

s up o r q ue a q ue l e s q ue e s t ã o l o ng e d e nó s , co mo e s t ã o a s p un i çõ e s a nunc i a d a s p o r v o s s o d eu s , p o s s a m

d i s s i p a r e s s a nuvem q ue nem mes mo o g l á d i o d a s l e i s c o n s eg ue d i s s o l v e r , s emp r e s u s p en s o s o b r e a s

pa ixões ? Se es tá p rovado que es se sup lemento de f re io s impos to pe la idé ia de um deus to rna - se inút i l ,

s e e s t á d e m on s t ra d o q u e e l e é p e r ig o s o p o r o u t r o s e f e i to s , p e r g un t o e m q u e e l e p o de s e r vi r e e mqua i s r azões no s apo ia remos a f im de p ro longar sua ex i s tênc ia ? D i r -me-ão que a inda não amadurecemos

o b a st a n t e p a r a c o n s o l id a r n o s s a r e v o l uç ã o d e u m m o d o t ã o b r i lh a n te . A h , m e u s c o n c i da d ã os ; o

ca m inho q ue p e r co r r emo s d ep o i s d e 8 9 f o i i n co mp a r a vel men te ma i s d i f í c i l d o q ue e s t e q ue a i nd a no s

r e s t a a f a ze r , e t e r emo s d e t r a b a l ha r mu i t o meno s a o p i n i ã o na q u i l o q ue v o s p r o p o nho , d o q ue j á a

a t o r men ta mo s em t o d o s o s s en t i d o s d e s d e a q ued a d a Ba s t i l h a . Ac r ed i t emo s q ue um p o vo b a s t a n te

s en s a t o , b a s t a nte co r a j o s o p a r a co nd uz i r um mo na r ca imp ud en te d o t o p o d e s ua s g r a nd eza s a o s p é s d o

ca d a f a l so , q ue em t ã o p o uco s a no s s o ub e vence r t a n to s p r e co nce i t o s , q ueb r a r t a n to s f r e i o s r i d í cu l o s ,

o s e r á s u f i c i en temen te p a r a imo l a r a o b em d a co i s a , à p r o s p e r i d a d e d a Rep úb l i c a , um f a n t a s ma b em

mais i l u só r io a inda do que poder ia se r o de um re i .

F r an c e s es , d e sf e r ir e i s o s p r i me i r os g o l pe s : v o s s a e d u ca ç ã o n a c i o n a l f a r á o r e st o . M a s

t raba lha i p rontamente nes sa ta re fa ; que e l a se to rne um de vo s so s encargo s ma i s impor tantes ; que e l a

t enha s o b r e tud o p o r b a s e e s s a mo r a l e s s enc i a l , t ã o neg l i g enc i a d a na ed uca çã o r e l i g i o s a. S ub s t i t u í a sto l i ces de í f i ca s com que fa t iga i s a s j ovens vozes de vo s sas c r ianças po r exce lentes p r inc íp io s s oc ia i s ;

q ue cm l u g a r d e a p r end e r a r e c i t a r p r e ce s f ú t e i s q ue f a r ã o a g l ó r i a d e e s q uece r a o s d e ze s s e i s a no s ,

e l a s s e j a m i n s t r uí d a s d e s e u s d e v e re s n a s o ci e d ad e ; e n s i n a i- l h es a a m a r a s v i r tu d e s d e q u e l h e

f a l á v e i s a n t i g a m e n t e , e q u e , s e m v o s s a s f á b u l a s r e l i g i o s a s , s ã o s u f i c i e n t e s p a r a a s u a f e l i c i d a d e

p e s s o a l . F a z e i - l h e s s e n t i r q u e e s s a f e l i c i d a d e c o n s i s t e e m f a z e r o s o u t r o s t ã o f e l i z e s q u a n t o n ó s

mes mo s d e s e j a mo s s ê - l o . S e a s s en t a i s e s s a s v e r d a d e s s o b r e q u ime r a s c r i s t ã s , c o mo t í nhe i s a l o u cu r a

d e f a ze r o u t r o r a , t ã o l o g o v o s s o s a l uno s t enha m r e co nhec i d o a f u t i l i d a d e d a s b a s e s , d e r r ub a r ã o o

ed i f í c i o , t o r na r - se - ã o ce l e r a d o s a p ena s p o r a c r ed i t a r q ue a r e l i g i ã o q ue l a nça r a m p o r t e r r a o s p r o i b i a

d e s ê - l o . F a zend o - o s s en t i r , a o co n t r á r i o , a nece s s i d a d e d a v i r t ud e un i ca men te p o r q ue s ua p r ó p r i a

f e l i c i d a d e d ep end e d e l a , e l e s s e r ã o ho ne s t o s p o r e g o í s mo , e e s s a l e i q ue r e g e t o d o s o s ho men s s e r á

s e m p r e a m a i s c e r t a d e t o d a s . Q u e s e e v i t e , p o i s , c o m o m a i o r c u i d a d o , m i s t u r a r a l g u m a f á b u l a

re l i g io sa a e s sa educação nac iona l . Não percamos j ama i s de v i s ta que são homens l i v res que desejamos

f o rm a r e n ã o v i s a d o ra d o re s d e u m d e us . Q u e u m f i l ós o fo s i m pl e s i n s t r ua o s n o vo s a l u n o s n a s

s u b l i m i d a d e s i n c o m p r e e n s í v e i s d a n a t u r e z a ; q u e e l e l h e s p r o v e q u e o c o n h e c i m e n t o d e u m d e u s ,

f r eq uen temen te mu i t o p e r i g o s o a o s ho men s , j a ma i s s e r v i u a s ua f e l i c i d a d e, e q ue e l e s n ã o s e r ã o ma i s

fe l i zes admit indo como causa do que não compreendem a l go que compreendem menos a inda; que é bem

meno s e s s enc i a l e n tend e r a na tu r e za d o q ue r e s p e i t a r s ua s l e i s e d e l a s d e s f r u t a r ; q ue e s s a s l e i s s ã o

tão sensatas quanto s imp les ; que es tão escr i ta s no co ração de todos o s homens , e que bas ta in ter rogar

o co r a çã o p a r a l he d e s vend a r o imp u l s o . S e e l e s q u i s e r em a b s o l u t a men te q ue vó s l he s f a l e i s d e um

cr iado r , re sponde i - l hes que a s co i s a s tendo s ido sempre o que são , não tendo hav ido j ama i s um começo

e nã o d evend o t e r j a ma i s um f im , é t ã o i nú t i l q ua n to imp o s s í v e l a o ho mem r emo n ta r a uma o r i g em

i m a gi n á ri a q u e n a d a e x p l i c ar i a o u f a r ia a v a nç a r. D i z ei - l he s s e r i m p os s í ve l a o s h o m e n s t e r i d é ia s

verdade i ra s s ob re um ser que não age em nenhum de no s so s sent ido s .

T o d a s a s no s s a s i d é i a s s ã o r ep r e s en t a çõ e s d e o b j e t o s q ue no s imp r e s s i o na m. Q uem p o d e no s

r ep r e s en tar a i d é i a d e D eu s , q ue , e v i d en temen te , é uma i d é i a s em o b j e t o ? U ma t a l i d é i a , a j un t a r í e i s ,

nã o é t ã o imp o s s í v e l q ua n to e f e i t o s s em ca u s a ? U ma i d é i a s em p r o t ó t ip o p o d e s e r o u t r a co i s a a l ém d e

uma q u ime r a ? A l g un s d o u to r e s , co n t i nua r ei s , a s s e g u r a m q ue a i d é i a d e D eu s é i n a t a e q ue o s ho men s a

p o s su e m d e sd e o v e n tr e m a t er n o . M a s i s s o é f a l so , p o de r e is a c r es c e nt a r. To d o p r i n c í p io é u m

j u l g a men to, t o d o j u l g a men to é o e f e i t o d a e x p e r i ênc i a, e a e x p e r i ênc i a s ó s e a d q u i r e p e l o e x e r c í c i o

d o s s en t i d o s ; d e o nd e s e s e g ue q ue o s p r i n c í p i o s r e l i g i o s o s , e v i d en temen te , n ã o s e a s s en t a m s o b r e

na d a e d e mo d o a l g um s ã o i n a t o s . C o mo é p o s s í v e l , p r o s s e g u i r e i s , t e r p e r s ua d i d o s e r e s r a zo á ve i s d e

q ue a co i s a ma i s d i f í c i l d e s e co mp r eend e r e r a a ma i s e s s enc i a l p a r a e l e s ? E q ue f o r a m p o r d ema i s

a t e r r o r i z a d o s , e q ue , q ua nd o s e t em med o , ce s s a - s e d e r a c i o c i na r ; e q ue p r i n c i p a l men te q ua nd o s e

r e co mend a q ue s e d e s co n f i e d a r a zã o e q ua nd o o cé r eb r o é p e r t u r b a d o , a c r ed i t a - se em t ud o e na d a s e

e x a m i n a . A i g n o r â n c i a e o m e d o , a i n d a d i r e i s a e l e s , s ã o a s d u a s b a s e s d e t o d a s a s r e l i g i õ e s . A

i n ce r t e za em q ue o ho mem s e enco n t r a em r e l a çã o a s eu D eu s é p r e c i s a men te o mo t i v o q ue o l i g a à

r e li g iã o. N as t r ev a s o h o me m t e me , f í si c a e m o ra lm e nt e ; o m e do t o rn a -s e n e le h a bi t ua l e s e

t r a n s f o rma em nece s s i d a de : e l e p en s a r á q ue l he f a l t a a l g uma co i s a , s e nã o t i v e r ma i s n a d a a e s p e r a r

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 24/41

ou temer . Reto rna i em segu ida à ut i l idade da mora l : da i - l hes mu i to ma i s exemp lo s do que l i ções s ob re

e s s e g r a nd e o b j e t o , mu i t o ma i s p r o va s d o q ue l i v r o s , e f a r e i s d e l e s ho men s t a n to ma i s d e vo t a d o s à

l i b er d a de d e s e u p a í s q u e n e n hu m a i d é i a d e s e r v i d ão p o d er á m a i s s e a p r es e n ta r a o s e u e s p ír i t o e

nenhum ter ro r re l i g io so poderá per turbar seu gên io . Então , o verdade i ro pat r io t i smo ec lod i rá em todas

a s a l ma s ; r e i n a r á ne l a s em t o d a a s ua f o r ça e em t o d a a s ua p u r e za , p o r q ue s e r á o ún i co s en t imen to

d o m i n a n t e e n e n h u m a i d é i a e s t r a n h a d i m i n u i r á s u a e n e r g i a . E n t ã o , v o s s a s e g u n d a g e r a ç ã o e s t a r á

a s s e g u r a d a , e v o s s a o b r a , co n s o l i d a d a p o r e l a , t o r na r - s e - á a l e i d o un i v e r s o . M a s , s e , p o r t emo r o up u s i l a n im ida d e , e s t e s co n s e l ho s nã o f o r em s eg u i d o s, s e s e d e i x a r em s ub s i s t i r a s b a s e s d o ed i f í c i o q ue

s e a c r ed i t a va d e s t r u í d o , o q ue a co n tece r á ? Reco n s t r u i r - s e - á s o b r e e s s a s b a s e s , e s o b r e e l a s s e r ã o

e r i g i d o s o s me s mo s co l o s s o s, co m a c r ue l d i f e r ença d e q ue s e r ã o d e s s a v e z c imen ta d o s co m t a l f o r ça ,

que nem a vo s sa geração nem as que a segu i rem consegu i rão der rubá- l o s .

Q ue j a ma i s s e d uv i d e q ue a s r e l i g i õ e s s e j a m o b e r ço d o d e s p o t i s mo . O p r ime i r o d é s p o t a f o i um

p a d r e ; o p r i m e i r o r e i e o p r i m e i r o i m p e r a d o r d e R o m a , N u m a e A u g u s t o , a s s o c i a r a m - s e a m b o s a o

s a ce r d ó c i o; C o n s t a n t i no e C l ó v i s f o r a m ma i s b i s p o s q ue s o b e r a no s ; H e l i o g á b a l o f o i s a ce r d o te d o S o l .

E m t o d o s o s t emp o s , em t o d o s o s s é cu l o s, h o uve en t r e o d e s p o t i smo e a r e l i g i ã o uma t a l c o nex ã o , q ue

es tá ma i s do que demons t rado que des t ru indo um se der rubará o out ro , pe la cons ideráve l r azão de que

o p ri m ei r o s em p re s er v ir á d e l e i a o s e gu nd o . E nt r et a nt o , n ã o p ro po n ho n em m a ss ac r es n e m

d ep o r t a çõ e s ; t o d o s e s t e s ho r r o r e s e s t ã o d ema s i a d o l o ng e d e m inha a l ma p a r a q ue eu o u s e co nceb ê - l o s

a inda que num minuto . Não , não deve i s a s sa s s ina r nem depor ta r : ta i s a t roc idades s ão p róp r ia s do s re i so u d o s ce l e r a d o s q ue o s im i t a r a m. Nã o é f a zend o co mo e l e s q ue f a r e i s c o m q ue s e t o me ho r r o r p o r

a q ue l e s q ue a s e x e r c i a m. E mp r eg uemo s a f o r ça a p ena s co n t r a o s í d o l o s ; b a s t a r i d i cu l a r i z a r a q ue l e s

q ue o s s e r vem: o s s a r ca s mo s d e j u l i a no p r e j ud i ca r a m ma i s a r e l i g i ã o c r i s t ã d o q ue t o d o s o s s up l í c i o s

d e Ne r o . S im , d e s t r ua mo s p a r a s emp r e t o d a i d é i a d e D eu s e f a ça mo s s o l d a d o s d e s eu s p a d r e s ; a l g un s

j á o s ã o ; q ue e l e s s e a t enha m a e s s a o cup a çã o , t ã o no b r e p a r a um r ep ub l i c a no , ma s q ue nunca ma i s

vo l t em a no s f a l a r d e s eu s e r q u imé r i co o u d e s ua r e l i g i ã o f a b u l o s a , ún i co o b j e t o d e no s s o d e s p r e zo .

C o n de n e mo s a s e r v a i a d o , r i d i c u la r i za d o , c o b e r to d e l a ma e m t o do s o s c r u z am e n to s d a s m a i or e s

c i d a d e s d a F r a nça o p r ime i r o d e s t e s cha r l a t ã e s a b enço a do s q ue v i e r no s f a l a r d e D eu s o u d e r e l i g i ã o;

p r i s ã o p e r p é tua s e r á a p ena p a r a q uem co mete r d ua s v e ze s a me s ma f a l t a . Q ue a s ma i s i n s u l t a n te s

b l a sf ê m ia s , o s l i v ro s m a i s a t e u s , s e j a m e m s e gu i d a p l e n a m en t e a u t o r i za d o s, a f i m d e e x t ir p ar

co mp l e t a men te d o co r a çã o e d a memó r i a d o s ho men s e s s e s b r i nq ued o s ho r r i p i la n te s d e no s s a i n f â nc i a .

Q u e p o r u m c o n c ur s o s e e l e ja a o b ra m a i s c a p a z d e e s c la r e c er o s e u r o p eu s s o b r e u m a m a t é ri a t ã o

imp o r t a n te , e q ue um p r êm io co n s i d e r á ve l , o u t o r g a d o p e l a na çã o , s e j a a r e co mp en s a d a q ue l e q ue ,

t end o d i t o e d emo n s t ra d o t ud o s o b r e e s s a ma té r i a , n ã o d e i x e a o s s eu s co mp a t r i o t a s n a d a ma i s d o q ue

uma f o i ce p a r a ce i f a r t o d o s e s s e s f a n t a s ma s , e um co r a çã o í n t e g r o p a r a o s o d i a r. E m s e i s me s e s t ud o

e s t a r á a ca b a d o ; v o s so i n f a me D eu s ca i r á no na d a , e i s s o s em q ue d e i x e i s d e s e r j u s t o s , c i umen to s d a

e s t im a d o s o u t ro s , s e m q u e d e i x e i s d e t e m er o g l á di o d a s l e i s; e s e j ai s h o ne s t os , p o r q u e t e r e mo s

s e n t i d o q u e o v e r d a d e i r o a m i g o d a p á t r i a n ã o d e v e , c o m o o e s c r a v o d o s r e i s , s e r a m e a ç a d o p o r

q u i m e r a s ; q u e n ã o é , a f i n a l , n e m a e s p e r a n ç a f r í v o l a d e u m m u n d o m e l h o r n e m o m e d o d e m a l e s

ma i o r e s d o q ue a q ue l e s q ue a na tu r e za no s env i a q ue d evem co nd uz i r um r ep ub l i c a no , cu j o ún i co g u i a

é a v i r tude e o ún ico f re io , o remor so .

VI . O S   COS TUME S

Após te r demons t rado que o te í smo de modo a l gum convém a um governo repub l i cano , parece-

me nece s s á r i o p r o va r q ue o s co s t umes f r a nce s e s t a mb ém l he s ã o i n co nven i en te s . E s t e a r t i g o é t a n to

ma i s e s senc ia l quanto s ão o s co s tumes que se rv i r ão de mot ivo à s l e i s que se va i p romulgar .

F r a nce s e s, s o i s e s c l a r e c i d o s d ema i s p a r a nã o p e r ceb e r q ue um no vo g o ve r no p r e c i s a d e no vo s

c o s t u m e s . Ê i m p o s s í v e l q u e o c i d a d ã o d e u m E s t a d o l i v r e s e c o n d u z a c o m o o e s c r a v o d e u m r e i

d é s p o t a . A s d i f e r ença s d e i n t e r e s s e s , d e ve r e s e r e l a çõ e s en t r e e l e s , d e te r m ina m e s s enc i a l men te uma

ma ne i r a t o t a l men te d i v e r s a d e s e co mp o r t a r em s o c i ed a d e ; uma i n f i n i d a d e d e p eq ueno s e r r o s , d e

p eq ueno s d e l i t o s s o c i a i s , c o n s i d e ra d o s mu i t o e s s enc i a i s s o b o g o ve r no d o s r e i s q ue d ev i a m a g i r t a n t o

m a i s p o r t e r e m n e c e s s i d a d e d e i m p o r f r e i o s p a r a s e t o r n a r e m r e s p e i t á v e i s o u i n a c e s s í v e i s a s e u s

súd i to s , aqu i s e rão inúte i s . Out ro s c r imes , conhec ido s pe lo nome de reg ic íd io ou de s acr i l ég io , s ob um

g o ve r no q ue n ão c o nh ec e m a is n e m r ei n e m r e li g iã o, d ev e m t am b ém d e sa p ar ec e r n u m E st a do

r ep ub l i c a no . Ao co nced e r a l i b e r d a d e d e co n s c i ênc i a e a d e imp r en s a , p en s a i , c i d a d ã o s , q ue i s s o é

q ua s e o me s mo q ue co nced e r a l i b e r d a d e d e a g i r , e q ue , co m ex ceçã o d o q ue cho ca d i r e t a men te a s

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 25/41

b a s es d o g o v er n o , r e s t ar - v os - á m u i t o m e n os c r i me s a p u n ir, p o i s, d e f a t o, h á b e m p o u c a s a ç õ e s

c r im ino s a s numa s o c i ed a d e q ue t em p o r b a s e a l i b e r d a de e a i g ua l d a d e ; e q ue p en s a nd o e e x a m ina nd o

b e m a s c o i s a s , o q u e h á d e v e r d a d e i r a m e n t e c r i m i n o s o é s ó a q u i l o q u e a l e i r e p r o v a ; p o i s s e a

na tu r e za no s d i t a i g ua l men te v í c i o s e v i r t ud e s d ev i d o à no s s a o r g a n i z a çã o o u , ma i s f i l o s o f i c a men te

a i nd a , d ev i d o à nece s s i d a d e q ue e l a t em d e a mb o s , o q ue e l a no s i n s p i r a t o r na r - s e uma med id a mu i t o

i n ce r t a p a r a r e g r a r co m p r ec i s ã o o q ue é b em e o q ue é ma l . M a s p a r a me l ho r d e s envo l ve r m inha s

i d é i a s s o b r e um o b j e t o t ã o e s s enc i a l , c l a s s i f i q uemo s a s d i f e r en te s a çõ e s d a v i d a huma na q ue , a t éa q u i , s e co nvenc i o no u cha ma r d e c r im ino s a s , e em s eg u i d a v a mo s co mp a r á - l a s co m o s v e r d a d e i r o s

d eve r e s d e um r ep ub l i c a no .

E m t o d o s o s t emp o s o s d eve r e s d o ho mem f o r a m co n s i d e r a do s s o b t r ê s d i f e r en tes a s p ec to s , a

saber :

1 . Aque les que sua consc iênc ia e sua credu l idade l he impõem em re lação ao Ser Sup remo;

2 . Aque les que e le é ob r igado a manter com seus i rmãos ;

3 . Enf im, aque les que só d izem respe i to a e le mesmo.

A ce r t e za q ue d evemo s t e r d e q ue nenhum d eu s v enha s e i n t r o mete r co no sco e q ue , c r i a t u r a s

nece s s i t a d as d a na tu r e za co mo a s p l a n t a s e o s a n ima i s , n ó s e s t a mo s a q u i p o r q ue s e r i a imp o s s í v e l q ue

a q u i n ã o e s t i v é s s emo s ; e s t a ce r t e za s em d uv i d a a n i q u i l a imed i a t a men te , co mo s e v ê , a p r ime i r a p a r t e

des ses deveres , i s to é , aque les que no s j u l gamos f a l s amente responsáve i s em re lação à d iv indade; com

eles desaparecem todos o s de l i to s re l i g io so s conhec ido s pe lo s nomes vago s e indef in ido s de imp iedade,d e s a c r i l é g i o , d e b l a s f êm ia , d e a t e í s mo , e t c . , e n f im , t o d o s e s s e s q ue A tena s p un i u co m t a n t a i n j u s t i ç a

em Al ceb íades e a F rança no in fo r tunado La Bar re . Há a l go ma i s ex t ravagante no mundo do que homens

q u e , s ó c o n he c e nd o s e u D e u s e a q u il o q u e e s t e D e u s p o d e e x i g i r s e g u n do s u a s i d é i a s l i m i t ad a s ,

q ue i r a m no en t a n to d ec i d i r s o b r e a na tu r e za d o q ue co n ten ta o u d e s a g r ad a e s t e r i d í cu l o f a n t a s ma d e

s u a i m a gi n a çã o ? N ã o g o st a r ia q u e n o s l i m it á s se m o s a p e r mi t i r i n d if e r en t e me n t e t o d os o s c u l to s ;

d e s e j a r i a q ue f ô s s emo s l i v r e s p a r a ca ço a r e r i r d e t o d o s ; q ue ho men s , r eun i d o s num temp l o q ua l q ue r

p a r a i n vo ca r o E t e r no s e g und o s ua f a n t a s i a , f o s s em v i s t o s co mo co med i a n te s num tea t r o cu j o j o g o

p e r m i t e a q ua l q ue r um r i r . S e nã o co n s i d e r a r d e s a s r e l i g i õ e s s o b e s s e â ng u l o , e l a s t e r ã o d e v o l t a a

g r a v i d a d e q ue a s t o r na imp o r t a n te s, e l a s f a vo r e ce rã o a s o p i n i õ e s , e l o g o ma i s e s t a r emo s nã o a p ena s

d i s p u t a nd o s o br e a s r e l i g i õ e s , co mo t a mb ém no s b a tend o p e l a s r e l i g i õe s . A i g ua l d ad e d e s t r u í d a p e l a

p r ef e rê nc i a o u a p ro t eç ã o c o nc e di d a a u ma d el a s i r á d e pr e ss a d es a pa r ec e r d o g o ve r no , e a

a r i s t o c r a c i a l o g o r ena s ce r á d a t eo c r a c i a r eed i f i c a d a . E u nã o me ca n s a r e i d e r ep e t i r : n ã o há d eu s e s ,

f r a nce s e s, n ã o há d eu s e s , s e nã o q u i s e r d e s q ue s eu f une s t o imp é r i o v o s me r g u l he d e no vo em t o d o s o s

h o r ro r e s d o d e sp o t is m o. M a s s ó o s d e st r u i re i s r i d ic u l a ri z a nd o -o s ; t o d os o s p e ri g o s q u e a r r as t a m

cons igo renascerão depres sa ao s mi lhares , s e po r e le s der ramardes b í l i s , ou l hes derdes impor tânc ia .

Não der rube i s s eus ído lo s com có le ra : pu l ver i za i - o s b r incando , e a op in ião ca i r á po r s i mesma.

É o bas tante , e spero , para demons t ra r que nenhuma le i deve se r p romulgada cont ra o s de l i to s

r e l i g i o s o s p o r q ue o q ue o f end e uma q u ime r a nã o o f end e na d a , e s e r i a a ú l t ima d a s i n co n s eq üênc i a s

p un i r a q ue l e s q ue u l t r a j a m o u q ue d e s p r e za m um cu l t o cu j a p r i o r i d a d e s o b r e o s o u t r o s n a d a v o s p o d e

s e r d e m on s t ra d o c o m e v i dê n c ia ; s e r ia n e c es s a ri a m en t e a d o ta r u m p a rt i d o e , c o m o r e s u l t ad o ,

in f l uenc ia r a ba lança da i gua ldade, p r ime i ra l e i de vo s so novo governo .

P a s s emo s a o s s e g und o s d eve r e s d o ho mem, a q ue l e s q ue o l i g a m a o s s eu s s eme l ha n te s ; e s s a

c l a s s e é p r o va ve l men te a ma i s e x t en s a . A mo r a l c r i s t ã , d ema s i a d o v a g a s o b r e a s r e l a çõ e s d o ho mem

c o m s e u s s e m e l h a n t e s , e s t a b e l e c e b a s e s t ã o c h e i a s d e s o f i s m a s , q u e n o s é i m p o s s í v e l a d m i t i - l a s ,

po rque, quando se quer ed i f i ca r p r inc íp io s , é p rec i so ev i ta r l hes a t r ibu i r s o f i smas como bases . E l a no s

d i z , e s t a m o r a l a b s u r da , p a r a a m a r o p r ó xi m o c o m o a n ó s m e s m os . N a d a s e g ur a m en t e s e r i a t ã o

s ub l ime , s e o q ue é f a l s o p ud e s s e a l g uma ve z co n s e r va r a s c a r a c te r í s t i c a s d a b e l e za . Nã o s e t r a t a d e

a ma r s eu s s eme l ha n te s co mo a s i me s mo s , p o i s i s s o co n t r a r i a t o d a s a s l e i s d a na tu r e za , e a p ena s s ua

vo z d eve d i r i g i r t o d a s a s a çõ e s d e v o s s a v i d a . S ó s e t r a t a d e a ma r no s s o s s eme l ha n te s co mo i r mã o s ,

c o mo a m ig os q u e a n a tu r ez a n os d á e c o m o s q u ai s d ev e re m os v i ve r t an t o m e l h or n u m E s t ad o

repub l i cano , em que o desaparec imento das d i s tânc ia s deve neces sa r iamente es t re i ta r o s l aço s .

Que a human idade, a f r a tern idade, a benef icênc ia no s p rescrevam, de aco rdo com i s so , no s so s

deveres rec íp roco s , e cumpramo- lo s ind iv idua lmente com o s imp les g rau de energ ia que a natureza no s

d e u s ob r e e ss e p on t o s em c en s ur ar, e , s ob re t ud o, s em p un i r a q ue l es q u e, m a is f ri o s o u m a is

a t r a b i l i á r i o s , n ã o s en tem ne s s e s v í n cu l o s , p o r ma i s t o ca n te s q ue s e j a m t o d a s a s d o çu r a s q ue o u t r o s

ne l e s enco n t r a m; p o i s , c o nvenha mo s , s e r i a um a b s u r d o p a l p á ve l d e s e j a r p r e s c r e ve r l e i s un i v e r s a i s .

E s se p roced imento se r ia tão r id ícu lo quanto o de um genera l de a rmada que ex ig i s se que seus s o ldados

s e v e s t i s s e m c o m u n i f o r m e s d o m e s m o t a m a n h o . E u m a i n j u s t i ç a e s p a n t o s a e x i g i r q u e h o m e n s d e

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 26/41

caracteres des igua i s s e curvem a l e i s i gua i s ; o que convém a um não se rve para out ro . E s tou de aco rdo

q u e n ã o s e p o d e f a z e r t a n t a s l e i s q u a n t o s s ã o o s h o m e n s , m a s a s l e i s p o d e m s e r t ã o b r a n d a s , e m

número tão pequeno , que todos o s homens , de qua lquer ca rá ter , po s sam fac i lmente su je i ta r - se a e l a s .

E u a i n d a e x i g i r i a q u e e s s e p e q u e n o n ú m e r o d e l e i s f o s s e d e u m a e s p é c i e p a s s í v e l d e s e a d a p t a r

f a c i l men te a t o d o s o s d i f e r en te s ca r a c te r e s . O e s p í r i t o d e q uem a s d i r i g i s s e t e r i a d e a p l i c á - l a s ma i s

o u m e n os e m r a z ão d o i n d iv í d uo q u e s e r i a p r ec i s o a t i n g i r. E s tá d e m on s t ra d o q u e h á v i r tu d e s c u j a

p r á t i c a é imp o s s í v e l a ce r t o s ho men s , co mo há r eméd i o s q ue nã o s e r i a m co nven i en te s a d e te r m ina d ost emp e r a men to s . O r a , a q ue cúmu l o s nã o cheg a r i a v o s s a i n j u s t i ç a s e a t i n g í s s e i s c o m a l e i a q ue l e a

quem ser ia impos s íve l s u je i ta r - se à l e i ! A in iqü idade que cometer íe i s não se r ia i gua l àque la de que vo s

s e n t i r í e i s c u l p a d o s s e q u i s é s s e i s f o r ç a r u m c e g o a d i s c e r n i r a s c o r e s ? D e s s e s p r i m e i r o s p r i n c í p i o s

d eco r r e , p e r ceb e - s e , a nece s s i d a d e d e s e f a ze r l e i s s u a ve s , e s o b r e tud o d e a n i q u i l a r p a r a s emp r e a

a t r o c i d a d e d a p ena d e mo r te ' , p o r q ue a l e i q ue a t en t a co n t r a a v i d a d e um ho mem é imp r a t i c á ve l ,

i n j u s t a , i n a d m i s s í ve l . Nã o q ue nã o ha j a uma i n f i n i d a d e d e ca s o s , co mo d i r e i a s e g u i r, n o s q ua i s , s em

u l t r a j a r a n a tu r e za ( o q ue d emo n s t ra r e i ) , o s ho men s nã o t enha m r e ceb i d o d e s t a mã e co mum a i n t e i r a

l i b e r d a de d e a t en t a r em co n t r a a v i d a un s d o s o u t r o s ; ma s é imp o s s í v e l a l e i o b te r o me s mo p r i v i l é g i o,

p o r q ue a l e i , f r i a em s i me s ma , nã o p o d e r i a s e r a ce s s í v e l à s p a i x õ e s q ue p o d em l e g i t ima r no ho mem a

a çã o c r ue l d o a s s a s si n a t o . O ho mem r e ceb e d a na tu r e za a s imp r e ss õ e s q ue p o d em l he f a zer p e r d o a r

e s t a a çã o , e a l e i , a o co n t r á r i o , s empr e em o p o s i çã o à na tu r e za e nã o r e ceb end o na d a d e l a , n ã o p o d e

es ta r auto r i zada a se permit i r o s mesmos e r ro s ; s em o s mesmos mot ivo s , é impos s íve l que e l a tenha o smes mo s d i r e i t o s . E i s uma d a s d i s t i n çõ e s s á b i a s e d e l i c a d a s q ue e s ca p a m a mu i t a g en te p o r q ue mu i t o

p o u c a g e n t e r e f l e t e ; m a s e l a s s e r ã o a c o l h i d a s p e l a g e n t e i n s t r u í d a a q u e m m e d i r i j o e i n f l u i r ã o ,

espero , s ob re o novo Cód igo que p reparam para nó s .

A s e g u nd a r a z ã o p e l a q u a l s e d e v e a n i q ui l a r a p e n a d e m o r t e é q u e e l a j a m a i s r e p r im i u o

cr ime, j á que e le é comet ido todos o s d ia s ao s pés do cadafa l so . Em suma: deve- se sup r imi r e s sa pena

p o r q ue nã o há cá l cu l o ma i s mo l e s t o d o q ue l e va r um ho mem à mo r te p o r t e r ma ta d o o u t r o , j á q ue

d e s s e p r o ced imento e v i d en temen te r e s u l t a q ue , em l u g a r d e um ho mem a meno s , h a ve r á d o i s d e uma

v e z , e t a l a r i t m ét i c a s ó p o d e s e r f a m i l ia r a c a r ra s c os e a i m b ec i s . E n f i m, q u a is q ue r q u e s e ja m o s

c r ime s q ue p o s s a mo s co mete r co n t r a no s s o s i r mã o s , e l e s s e r ed uzem a q ua t r o p r i n c i p a i s : a c a l ún i a , o

r o u bo , o s c r i m es q u e , c a u s a do s p e l a i m p u r e za , p o de m a t i ng i r d e sa g r ad a v el m e nt e o s o u t ro s , e o

a s s a s s i na t o . To d a s e s s a s a çõ e s , co n s i d e r a d a s ca p i t a i s num g o ve r no mo ná r q u i co , s e r ã o t ã o g r a ve s num

E s t a d o r ep ub l i c a no ? E o q ue v a mo s a na l i s a r s o b o f a cho d a f i l o s o f i a , p o i s s o men te s o b a s ua l u z s e

p o d e r á r ea l i z a r t a l e x a me . Q ue nã o me t a x em d e i n o va d o r p e r i g o s o ; q ue nã o me d i g a m q ue há n i s s o

r i s co de embotar o remor so na a lma do s ma l fe i to res , como ta l vez f a r iam es tes e s cr i to s ; que há um mal

a i nd a ma i o r em a umen ta r p e l a d o çu r a d e m inha mo r a l a i n c l i n a çã o q ue e s s e s me s mo s ma l f e i t o r e s t êm

para o s c r imes . Ates to f o rma lmente aqu i não te r em v i s ta nenhum des ses ob jet ivo s perver so s . Exponho

a s i d é i a s co m a s q ua i s me i d en t i f i c o d e s d e a i d a d e d a r a zã o e a o j o r r o d a s q ua i s o i n f a me d e s p o t i s mo

d o s t i r a no s há t a n to s s é cu l o s s e o p õ e . P i o r p a r a a q ue l e s q ue e s t a s g r a nd e s i d é i a s co r r o mp e r a m, p i o r

p a r a a q ue l e s q ue s ó s a b em t i r a r o ma l d a s o p i n i õ e s f i l o só f i c a s , s u s ce t í v e i s d e s e co r r o mp e r p o r t ud o !

Q u e m s a b e s e e l e s n ã o s e g a n g r e n a r i a m l e n d o S é n e c a e C h a r r o n ? N ã o é p a r a e l e s q u e f a l o : s ó m e

endereço ao s que são capazes de me entender ; e s tes me l e rão sem per igo .

C o n f e s s o co m a ma i s e x t r ema f r a nq ueza j a ma i s t e r a c r ed i t a d o q ue a ca l ún i a f o s s e um ma l ,

s ob re tu do n um g ov er no c om o o n os so n o q ua l t od os o s h om en s m ai s l ig ad os o u p ró xi mo s,

e v i d en temen te , t êm o ma i o r i n t e r e s s e em s e co nhece r em b em. D e d ua s uma : o u a ca l ún i a a t i n g e um

ho mem ve r d a d e i r a men te p e r ve r s o , o u e l a r e ca i s o b r e um s e r v i r t uo s o . H a ve r emo s d e co nv i r q ue , no

p r ime i r o ca s o , é q ua s e i nd i f e r en te f a l a r ma l d e um ho mem co nhec i d o p o r co mete r o ma l em d ema s i a ;

t a l v e z a t é o m a l q u e n ã o e x i s t e e s c l a r e ç a a q u e l e q u e d e f a t o e x i s t e , e c o m i s s o o m a l f e i t o r s e r á

melho r conhec ido .

S e r e i na em H a no ve r , s up o nho , uma i n f l uênc i a ma l s ã , e eu nã o d eva co r r e r r i s co s ma i o r e s ,

e x p o n d o - m e a e s s a i n c l e m ê n c i a d o a r , d o q u e g a n h a r u m a c e s s o d e f e b r e , p o d e r i a q u e i x a r - m e d o

h o me m q u e, p a ra i m pe di r -m e d e i r a té l á , m e d i ss e ss e q u e e u m o rr e ri a a ss i m q u e c h e g as se ?

O b v i a men te nã o , p o r q ue t end o me a s s u s t a d o co m um g r a nd e ma l e l e t e r i a me imp ed id o d e s o f r e r um

p eq ueno . E s e a ca l ún i a , a o co n t r á r i o , r e ca i r s o b r e um ho mem v i r t uo s o ? Q ue e l e nã o s e a l a r me ; q ue

e le se mos t re , e todo o veneno do ca lun iado r acabará sendo inocu lado no p róp r io . Pa ra ta i s pes soas , a

ca l ún i a é a p ena s um e s c r u t í n i o d ep u r a t ór i o d o q ua l s ua v i r t ud e s ó s a i r á ma i s b r i l h a n te . N i s s o ha ve r á

mes mo p r o ve i t o p a r a a ma s s a d a s v i r t ud e s d a Rep úbl i c a ; p o i s e s t e ho mem v i r t uo s o e s en s í v e l , p i c a d o

pe la in jus t i ça que acaba de so f re r , ap l i ca r - se -á em fazer a inda melho r . E l e va i querer u l t rapas sa r e s sa

ca l ún i a d e q ue s e a c r ed i t a va a s a l v o , e s ua s b e l a s a çõ e s a d q u i r i rã o um g r a u a ma i s d e ene r g i a . A s s im ,

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 27/41

no p r ime i r o ca s o , o ca l un i a d o r t e r á p r o d uz i d o e f e i t o s b a s t a n te s a t i s f a t ó r i o s , mu l t i p l i c a nd o o s v í c i o s

d o ho mem p e r i g o s o ; no s e g und o , o s e f e i t o s s e r ã o e x ce l en tes , o b r i g a nd o a v i r t ud e a s e o f e r e ce r a nó s

p o r i n t e i r a . O r a , e n t ã o v o s p e r g u n t o , e m q u e o c a l u n i a d o r v o s p a r e c e r á t e m í v e l , s o b r e t u d o n u m

g o ve r no o nd e é t ão e s se n ci a l c o n h ec e r o s m a us e a u me n ta r a e n er gi a d os b on s ? Q u e s e e vi t e

p r o nunc i a r a l g uma p ena co n t r a a ca l ún i a ; co n s i d e r emo - l a s o b o d up l o a s p ec to d e um f a na l e d e um

es t imu l a n te e , em t o d o s o s c a s o s , co mo a l g o mu i t o ú t i l . O l e g i s l a d o r , q ue d eve t e r s emp r e g r a nd e s

i dé ia s c om o a o br a a q ue s e d ed ic a, j am ai s d ev e e st ud ar o e fe it o d o d el it o q ue s ó a ti nj ai nd i v i d ua l men te ; é s eu e f e i t o em ma s s a q ue e l e d eve e x a m ina r . E q ua nd o o b s e r va r d e s s a ma ne i r a o s

e f e i t o s q u e r e s u l t a m d a c a l ú n i a , d e s a f i o - o a e n c o n t r a r a í a l g o q u e p o s s a s e r p u n i d o ; d e s a f i o - o a

co l o ca r a l g uma s o mb r a d e j u s t i ç a na l e i q ue o p un i r i a ; e l e s e t o r na r , a o co n t r á r i o , o ma i s j u s t o e o

ma i s ín teg ro do s homens se a f avo recer ou a recompensar .

O roubo é o segundo do s de l i to s mora i s que no s p ropusemos examinar .

S e p e rc o r re m o s a A n t i gu i d ad e , v e r em o s o r o ub o p e rm i t i do , r e c om p e n sa d o e m t o d as a s

repúb l i ca s da Gréc ia . E spar ta e a Lacedemônia o f avo rec iam aber tamente. A l guns out ro s povo s v iam-no

como uma v i r tude guer re i r a . É cer to que e le mantém a co ragem, a f o rça , a hab i l idade, enf im, todas a s

v i r t ud e s ú t e i s a um g o ve r no r ep ub l i c a no e p o r co n s eq üênc i a a o no s s o . O u s a r e i p e r g un ta r - v o s , s em

imparc ia l idade ago ra , s e o roubo , cu jo e le i to é n ive la r a s r iquezas , é um g rande ma l num governo cujo

o b j e t i v o é a i g ua l d a d e . Nã o , s em d úv i d a , p o r q ue , s e d e um l a d o e l e ma n tém a i g ua l d a d e , d e o u t r o

mo s t r a co mo s e d eve co n s e r va r o s b en s . H a v i a um p o vo q ue nã o p un i a o l a d r ã o , ma s q uem s e d e i x a s s er o ub a r , a f im d e en s i n a r - l he a cu i d a r me l ho r d e s ua s p r o p r i ed a d e s . I s s o no s l e va a r e f l e x õ e s ma i s

ex tensas .

D eu s me l i v r e d e q ue r e r a q u i a t a ca r o u d e s t r u i r o j u r a men to d o r e s p e i t o à s p r o p r i ed a d e s q ue

a n a ç ã o a c a b a d e p r o n u n c i a r ; m a s q u e m e s e j a p e r m i t i d o a o m e n o s e x p o r a l g u m a s i d é i a s s o b r e a

i n j u s t i ç a d e s s e j u r a men to . Q ua l o e s p í r i t o d e um j u r a men to p r o nunc i a d o p o r t o d o s o s i nd i v í d uo s d e

uma na çã o ? Nã o é o d e ma n te r uma p e r f e i t a i g ua l d a d e en t r e o s c i d a d ã o s , d e s ub metê - lo s i g ua l men te à

l e i p r o t e t o r a d a s p r o p r i ed a de s d e t o d o s ? P e r g un to - vo s a g o r a s e é j u s t a a l e i q ue o r d ena a q uem na d a

pos su i r e spe i ta r quem tem tudo . Qua i s s ão o s e lemento s do pacto soc ia l ? E l e não cons i s te em ceder um

pouco de sua l iberdade e de suas p rop r iedades para a s segura r e manter o que se conserva de uma e de

out ra ?

To d a s a s l e i s a s s e n ta m - se s o br e e s sa s b a se s ; e l as s ã o o s m o t iv o s d a s p u n iç õ e s i n f l i gi d a s

àque les que abusam de sua l iberdade. E l a s também auto r i zam as impos ições ; o que faz que um c idadão

nã o r e c l a me q ua nd o s e a s e x i g e d e l e , é s a b e r q ue p o r me i o d o q ue d á , co n s e r va a q u i l o q ue l he r e s t a .

M a s, u m a v e z m a i s , c o m q u e d i r e it o a q u e l e q u e n a d a t e m s e p r e n de r i a a u m p a c t o q u e s ó p r o t eg e

a q ue l e q u e t e m t u do ? S e p ra t ic a is u m a t o d e e qu i da de c o ns e rv a nd o , p or v o ss o j u ra m en t o, a s

p r o p r i eda d e s d e um r i co , n ã o co mete r í e i s uma i n j u s t i ç a e x i g i nd o e s s e j u r a men to d o " co n s e r vad o r " q ue

nã o t em na d a ? Q ue i n t e r e s s e e l e p o d e r i a t e r em vo s s o j u r a men to ? E p o r q ue ha ve i s d e q ue r e r q ue e l e

p r om e ta a lg o q ue s ó s ej a f av o rá v el à qu e le q u e t a nt o d i fe re d e le p or s ua s r i qu e za s ? N a da ,

s e g u r a men te , é ma i s i n j u s t o : um j u r a men to d eve p r o d uz i r i g ua l e f e i t o em t o d o s o s i nd i v í d uo s q ue o

p r o n u n c i a m ; é i m p o s s í v e l q u e e l e p o s s a a c o r r e n t a r a q u e l e q u e n ã o t e m n e n h u m i n t e r e s s e e m s u a

ma nu tençã o , p o i s n ã o s e r i a o p a c t o d e um p o vo l i v r e ; s e r i a a a r ma d o f o r t e co n t r a o f r a co , co n t r a a

q u a l e s t e d e v er i a i n c es s a nt e m en t e r e vo l t ar - se . E o q u e a c o n t e c e a o j u r am e n to d o r e s pe i t o d a s

p r o pr i e da d e s q u e a n a ç ão a c a ba d e e x i gi r ; s o m e n te o r i c o a c o r r en t a o p o br e , s o m e n te o r i c o t e m

in te r e s s e no j u r a men to q ue o p o b r e p r o nunc i a , co m t a n t a f a l t a d e co n s i d e r a çã o q ue nã o p e r ceb e q ue

p o r me i o d e s s e j u r a men to , e x t o r qu i d o à s ua b o a - f é , o b r i g a - s e a f a ze r a l g o q ue nã o s e p o d e f a ze r co m

e l e f a ce a f a ce .

A s si m c o n ve n c i do s , c o m o d e v ei s e s t ar, d e st a b á rb a r a d e si g u al d a de , n ã o a g ra v e i s v o s s a

i n j u s t i ç a p un i nd o a q ue l e q ue na d a t em p o r ha ve r o u s a d o f u r t a r q ua l q ue r co i s a à q ue l e q ue t em t ud o .

V os s o i n j us t o j u r am e n t o a s s e g ur a - lh e m a i s d i r e i t o q u e n u n ca ; o b r ig a n do - o a o p e r jú r i o p o r e s s e

j u r a men to a b s u r do p a r a e l e , v ó s l e g i t ima i s t o d o s o s c r ime s em q ue e s t e p e r j ú r i o o l e va r á . L o g o , n ã o

ca b e a v ó s p un i r a q u i l o d e q ue f o s t e s a ca u s a . Na d a ma i s d i r e i p a r a f a ze r s en t i r a ho r r í v e l c r ue l d ad e

que se p ra t ica ao pun i r o s l ad rões . Imi ta i a s áb ia l e i do povo de que vo s f a le i há pouco ; pun i o homem

neg l i g en te o b a s t a n te p a r a s e d e i x a r r o ub a r , ma s nã o p r o nunc i a i nenhum t i p o d e p ena co n t r a a q ue l e

q ue r o ub a . P en s ai q ue o v o s s o j u r a mento a u to r i z a - o a uma a çã o co mo e s s a e q ue a q ue l e q ue a p r a t i c a

n a d a m a i s f a z d o q u e s e g u i r o p r i m e i r o e o m a i s s á b i o d o s m o v i m e n t o s d a n a t u r e z a , q u e é o d e

conservar a todo cus to sua p róp r ia ex i s tênc ia .

O s d e l i t o s q ue d evemo s e x a m ina r ne s t a s e g und a c l a s s e d o s d eve r e s d o ho mem em r e l a çã o a

s e u s s e m e l ha n t e s c o n s i st e m n a s a ç õ es q u e s e p o de e m p re e n de r n a l i be r t in a g em , e n t re a s q u a is

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 28/41

d i s ti n g ue m - se , p a r ti c u l ar m e nt e , c o m o a s m a i s a t e n t a tó r i as a o q u e c a d a u m d e v e a o s o u t ro s , a

p r o s t i t u i ç ã o , o a d u l t é r i o , o i n ce s t o , o e s t up r o e a s o d o m ia . C e r t a men te nã o d evemo s d uv i d a r um s ó

mo men to q ue t ud o o q ue cha ma mo s c r ime s mo r a i s , i s t o é , t o d a s a s a çõ e s d a e s p éc i e q ue a ca b a mo s d e

c i t a r , s e j a m p e r f e i t a men te i nd i f e r en te s num g o ve r no cu j o ún i co d eve r co n s i s t e em co n s e r va r , p o r

q ua l q ue r me i o q ue s e j a , a f o r ma e s s enc i a l p a r a a s ua ma nu tençã o . E i s a ún i ca mo r a l d e um g o ve r no

r ep ub l i c a no . O r a , co mo e l e é s emp r e co n t r a r i a d o p e l o s d é s p o t a s q ue o ce r ca m, s e r i a d i f í c i l ima g i na r

d e mo d o r a zo á ve l q ue s eu s me i o s co n s e r va d o r e s p ud e s sem s e r me i o s mo r a i s , p o i s e l e s ó s e c o n s e r va ráp e la g u er r a e n ã o h á n a da m e no s m o ra l d o q ue a g ue r ra . P er g un to a go ra c o mo s e c o ns eg ui r á

d emo n s t r ar q ue , num E s t a d o imo r a l p o r s ua s o b r i g a çõ e s , é e s s enc i a l o s i nd i v í d uo s s e r em mo r a i s . D i g o

ma i s : é b o m q ue e l e s n ã o o s e j a m. O s l e g i s l a d o r e s d a G r éc i a s en t i r a m p e r f e i t a men te a imp o r t a n te

n e c e ss i d ad e d e g a n gr e n ar o s m e m b r o s p a r a q u e s u a d i s s o lu ç ã o m o r a l , i n f l ui n d o n a q u e é ú t i l à

má q u i na , p r o vo ca ss e a i n s u r r e i ção s emp r e i nd i s p en s á ve l num g o ve r no q ue , p e r f e i t a men te f e l i z co mo o

g o ve r no r e pu bl i ca n o, d ev e n ec e ss ar i am e nt e e xc i ta r ó d io e i n ve ja a t o do s o s q u e o c e rc a m. A

i n s u r r e i çã o , p en s a va m e s t e s s á b i o s l e g i s l a d o r e s , n ã o é um e s t a d o mo r a l ; n o en t a n to , e l a d eve s e r o

e s t a d o p e r ma nen te d e uma Rep úb l i c a . L o g o , s e r i a t ã o a b s u r d o co mo p e r i g o s o e x i g i r q ue a q ue l e s q ue

devem manter o perpétuo aba lo imora l da máqu ina fo s sem, e les mesmos , ex t remamente mora i s , po rque

o e s t a d o mo r a l d e um ho mem é um e s t a d o d e p a z e t r a nq ü i l i d a d e , enq ua n to q ue s eu e s t a d o imo r a l é

um e s t a d o d e mo v imen to p e r p é tuo q ue o a p r o x ima d a i n s u r r e i çã o nece s s á r i a , n a q ua l o r ep ub l i c a no

deve manter sempre o governo de que toma par te como membro .D e ta l hemo s a g o r a , co meça nd o a a na l i s a r o p ud o r , e s s e mo v imen to p u s i l â n ime , co n t r a d i t ó r i o

a o s a f e t o s imp u r o s . S e e s t i v e s s e na s i n t ençõ e s d a na tu r e za q ue o ho mem f o s s e p ud i co , s e g u r a men te ,

e l a nã o o t e r i a f e i t o na s ce r nu ; uma i n f i n i d a d e d e p o vo s meno s d eg r a d a d o s q ue nó s p e l a c i v i l i z a çã o

andam nus e não sentem a menor vergonha d i s so . Não duv idemos do f a to de que o co s tume de se ves t i r

t e ve p o r ún i ca b a s e a i n c l emênc i a d o a r e a v a i d a d e d a s mu l he r e s ; e l a s s en t i r a m q ue p e r d e r i a m l o g o

todos o s e fe i to s do desejo se o s p rec ip i ta s sem em vez de de ixá - l o s nascer ; imag inaram que a natureza ,

nã o a s t end o c r i a d o s em d e f e i t o s , l h e s t e r i a a s s e g u r a d o t o d o s o s me i o s d e a g r a d a r d i s f a r ça nd o e s t e s

d e f e i t o s co m a d o r no s ; a s s im , o p ud o r, l o ng e d e s e r uma v i r t ud e , f o i d e f a t o um d o s p r ime i r o s e f e i t o s

d a c o rr up ç ão , u m d o s p ri m ei r os m e io s d e c oq u et i sm o u sa d o p el a s m u lh e re s . L i cu r go e S ól o n,

convenc ido s de que o s re su l tado s do impudor mantêm o c idadão num es tado imora l e s senc ia l à s l e i s do

g o ve r no r ep ubl i c a no , o b r i g a ra m a s j o ven s a s e a p r e s en t a r em nua s no t ea t r o . Ro ma l o g o im i t o u e s se

exemp lo : dançava- se nu no s j ogo s de F lo ra ; a ma io r par te do s mi s té r io s pagão s e ram ce leb rados des sa

f o r ma ; a nud ez a t é f o i t i d a co mo v i r t ud e p o r a l g un s p o vo s . D e q ua l q ue r mo d o , d o imp ud o r na s cem

inc l inações l uxur iantes ; o que resu l ta des sas inc l inações compõe o s p retenso s c r imes que ana l i s amos e

cu j o p r ime i r o e f e i t o é a p r o s t i t u i ç ão . Ag o r a q ue a r e s p e i t o d e t ud o i s s o e s t a mo s cu r a d o s d a mu l t i d ã o

d o s e r r o s r e l i g io s os q u e n o s c a t i va v a m, e q u e , m a i s p r ó x i mo s d a n a t u r e za p e l a q u a n t id a d e d e

preconce i to s que acabamos de an iqu i l a r , s ó e s cutamos sua voz, e s te jamos seguro s de que, se houves se

c r ime em a l g uma co i s a , s e r i a a n te s p o r r e s i s t i r à s i n c l i n a çõ e s q ue a na tu r e za no s i n s p i r a d o q ue p o r

combatê- l o s , po i s , per suad ido s de que a l uxúr ia é uma conseqüênc ia des sas inc l inações , t r a ta - se mui to

menos de ex t ingu i r em nó s es sa pa ixão do que reg ra r o s me io s para s a t i s f azê- l a em paz. Logo , devemos

p ô r o r d e m n e s s a p a r t e e g a ra n t i r n e l a t o d a a s e gu r a nç a n e c e s s á ri a , p a r a q u e o c i d ad ã o q u e a

nece s s i d a de a p r o x ima d o s o b j e t o s d e l u x ú r i a p o s s a , co m e s s e s o b j e t o s , s e en t r e g a r a t ud o o q ue s ua s

p a i x õ e s l he p r e s c r e va m, s em j a ma i s s e p r end e r a na d a , p o r q ue nã o há no ho mem p a i x ã o nenhuma q ue

n e c e ss i t e d e t a m an h a l i be r d ad e q u a nt o e s s a. L o ca i s v a r ia d o s, s a u dá v e is , v a s to s , a d e qu a d am e n te

mo b i l i a d o s e s e g u r o s em t o d o s o s a s p ec to s , s e r ã o e r i g i d o s em t o d a s a s c i d a d e s . A í , t o d o s o s s e x o s ,

todas a s idades , todas a s c r ia turas se o ferecerão ao s cap r icho s do s l iber t ino s que v ie rem des f rutá - l o s ;

a ma i s co mp l e t a s ub o r di na çã o s e r á a r e g r a e x i g i d a en t r e o s i nd i v í d uo s p r e s en te s ; a meno r r e cu s a s e r á

a r b i t r a r ia men te p un i d a no me s mo i n s t a n te p o r a q ue l e q ue a t i v e r s o f r i d o. D evo e s c l a r e ce r i s s o me l ho r

f a zend o uma co mp a r a çã o co m o s co s t umes r ep ub l i c ano s . P r o met i a me s ma l ó g i ca em t ud o , ma n te r e i a

pa lavra .

S e , co mo a ca b o d e d i ze r, nenhuma p a i x ã o t em ma i s nece s s i d a d e d a ma i s a mp l a l i b e r d a de q ue

e s s a , nenhuma p r o va ve l men te é t ã o d e s p ó t i c a . É a í q ue o ho mem g o s t a d e co ma nd a r , s e r o b ed ec i d o ,

r o d ea d o d e e s c r a vo s o b r i g a d o s a s a t i s f a zê - l o . O r a , t o d a s a s v e ze s q ue nã o d e r d e s a o ho mem o me i o

s e c r e t o d e e x a l a r a d o s e d e d e s p o t i smo q ue a na tu r e za p ô s no f und o d e s eu co r a çã o , e l e co r r e r á p a r a

ex e r cê - l a s o b r e o s o b j e t o s q ue o ce r ca m, e l e p e r t u r b a r á o g o ve r no . P e r m i t i , s e q u i s e r d e s e v i t a r t a l

p e r ig o , u m a l i v re e x p an s ão a e s s es d e s ej o s t i r â n i co s q u e , c o n t r a a s u a v o n t a d e, o a t o rm e n ta m

inces santeme nte. Contente em ter pod ido exercer sua pequena soberan ia s ob re o harém de i cog lã s ou

d e s u l t a na s q ue v o s s o s cu i d a d o s e s eu d i nhe i r o l he p r o p o r c i o na m, e l e s a i r á s a t i s f e i t o e s em nenhum

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 29/41

d e s e j o d e p e r t u r b a r u m g o v e r n o q u e l h e a s s e g u r a c o m t a n t a c o m p l a c ê n c i a t o d o s o s m e i o s d e s u a

concup i s cênc ia . Exerce i , ao cont rá r io , p roced imento s d iver so s , impondo sob re es ses ob jeto s da l uxúr ia

p úb l i c a o s r i d í cu l o s en t r a ve s o u t r o r a i n ven ta d o s p e l a t i r a n i a m in i s t e r i a l e p e l a l ub r i c i d a d e d e no s s o s

S a r d a na pa l o s : O ho mem, l o g o i r r i t a d o co n tr a o v o s s o g o ve r no , i n vej o s o d o d e s p o t i smo q ue vo s v ê

ex e r ce r t o t a l men te s ó , s a cud i r á o j u g o a q ue o s ub mete i s e , f a r t o d e v o s s a ma ne i r a d e g o ve r ná - l o ,

mod i f i ca rá tudo , como, a l iá s , acaba de f azer .

Ve d e c o m o o s l e g is l ad o r es g r e go s , c o m pe n e tr a d os d e ss a s i d é ia s , t r a ta v a m o d e bo c h e n aL a c e d e m ô n i a e e m A t e n a s . L o n g e d e o p r o i b i r , i n e b r i a v a m o c i d a d ã o c o m e l e ; n e n h u m g ê n e r o d e

lub r ic idade era p ro ib ido . Sócra tes , dec la rado pe lo o rácu lo o ma i s s áb io do s f i l ó so fo s da Ter ra , pas sava

i nd i f e r en temen te d o s b r a ço s d e A s p á s i a p a r a o s d e A í ceb í a d e s , e nem p o r i s s o d e i x a va d e s e r a g l ó r i a

d a G r éc i a . Vo u a i nd a ma i s l o ng e ; p o r ma i s q ue m inha s i d e i a s co n t r a r i em o s co s t umes d e ho j e , co mo

m e u o b j e t o é p r o va r q u e d e v e m o s n o s a p r es s a r e m m u d á- l o s s e q u i se r m os c o n se r v ar o g o v er n o

adotado , tenta re i vo s convencer que a p ro s t i tu ição das mulheres d i ta s hones tas não é ma i s per igo sa do

q ue a d o s ho men s , e q ue nã o s o men te d evemo s a s s o c i á - l a s à s l u x ú r i a s p r a t i c a d a s na s r e f e r i d a s ca s a s ,

co mo t a mb ém d evemo s c r i a r o u t r a s c a s a s p a r a e l a s , n a s q ua i s s eu s ca p r i cho s e a s nece s s i d a de s d e s eu

temp e r a men to , mu i t o ma i s a r d en te q ue o no s s o , p o s s a m d o me s mo mo d o s e s a t i s f a ze r co m t o d o s o s

sexo s .

E m p r ime i r o l u g a r, co m q ue d i r e i t o p r e tend e i s q ue a s mu l he r e s d eva m s e r e x ce tua d a s d a ceg a

submis são que a natureza l hes p rescreve ao s cap r icho s do s homens ? Depo i s , com que d i re i to p retende i ssub jugar a mulher a uma cont inênc ia impos s íve l pa ra seu f í s i co e ab so lutamente inút i l à s ua honra ?

Vou t ra ta r s eparadamente de ambas a s ques tões .

E c e r t o q u e , n o e s t ad o d e n a t u r e za , a s m u l he r e s n a s c e m v u l g í va g a s, i s t o é , g o z an d o a s

va n t a g en s d o s o u t r o s a n ima i s f êmea s e p e r t encend o , co mo e l a s , s em nenhuma ex ceçã o , a t o d o s o s

ma cho s . Ta i s f o r a m, s em d úv i d a , a s p r ime i r a s l e i s d a na tu r e za e a s ún i ca s i n s t i t u i çõ e s d o s p r ime i r o s

g r up o s f o r ma d o s p e l o ho mem. O i n t e r e s s e, o e g o í s mo e o a mo r d eg r a d a r a m e s s a s p r ime i r a s f i n a l i d a d e s

t ã o s imp l e s e na tu r a i s . Ac r ed i t o u - se q ue s e p o d e r i a en r i q uece r t o ma nd o uma mu l he r e co m e l a o s b en s

d e s u a f a mí l ia ; e i s s a ti sf e it os o s d oi s p ri m ei r os s e nt i me n to s q u e a c ab o d e i n di c ar ; c om m a is

f reqüênc ia a inda rap tava - se es sa mulher para l i ga r - se a e l a ; e i s o segundo mot ivo em ação , e , em todo

ca s o , a i n j u s t i ç a .

J am ai s u m a to d e p os se p od e e xe rc er -s e s ob re u m s er l iv re ; é t ão i nj us to p os su ir

e x c l u s i v a men te uma mu l he r q ua n to p o s s u i r e s c r a vo s . To d o s o s ho men s na s cem l i v r e s , t o d o s s ã o i g ua i s

em d i r e i t o ; n ã o d evemo s j a ma i s p e r d e r d e v i s t a e s s e s p r i n c í p i o s . A p a r t i r d i s s o , n ã o s e p o d e , p o i s ,

j a ma i s co nced e r d i r e i t o l e g í t imo a um s ex o d e s e a p o d e r a r co m ex c l u s i v i d a d e d o o u t r o ; e j a ma i s um

des ses sexo s ou uma des sas c l a s ses poderá po s su i r o out ro a rb i t ra r iamente. Até mesmo uma mulher , na

pureza das l e i s da natureza , não pode a legar , pa ra j us t i f i ca r a recusa de a l guém que a deseje , o amor

q ue s en te p o r o u t r o , p o r q ue e s s e mo t i v o t o r na - s e uma ex c l u s ã o e nenhum ho mem p o d e s e r e x c l u í d o d a

p o s s e d e uma mu l he r, d e s d e q ue t enha f i c a d o c l a r o q ue e l a d ec i d i d a men te p e r t ence a t o d o s . O a t o d e

p o s s e s ó p o d e s e e x e r c e r s o b r e u m i m ó v e l o u u m a n i m a l , j a m a i s s o b r e u m i n d i v í d u o q u e s e n o s

a s s eme l he . E t o d o s o s l a ço s q ue p o d em p r end e r uma mu l he r a um ho mem, d e q ua l q ue r e s p éc i e q ue

p o d e i s s up ô - l os , s ã o t ã o i n j u s t o s q ua n to q u imé r i co s. S e é i n co n te s t á ve l q ue r e ceb emo s d a na tu r e za o

d i r e i t o d e e x p r im i r no s s o s d e s e j o s i nd i f e r en temen te a t o d a s a s mu l he r e s , é e v i d en te q ue p o d emo s

o b r i g á - la s a s e s ub mete r em a o s no s s o s d e s e j o s , s e nã o d e mo d o e x c l u s i v o , co n t r a d i r- me - i a , a o meno s

momentaneame nte . E incontes táve l que temos o d i re i to de es tabe lecer l e i s que a s ob r iguem ceder ao

f u r or d e q u em a s d e se j a ; s e n d o a v i o lê n c ia u m d o s e f e i t o s d e s s e d i r e i to , p o d em o s e m p r e gá - l a

l e g a l men te . Ah , a n a tu r e za j á nã o p r o vo u q ue t emo s e s s e d i r e i t o no s d a nd o a f o r ça nece s s á r i a p a r a

submetê- l a s ao s no s so s dese jo s ?

P a ra d e f end e r em- s e , a s mu l he r e s p o d em a p e l a r em vã o a o p ud o r o u à s ua l i g a çã o co m o u t r o s

ho men s ; e s s e s me i o s q u imé r i co s s ã o nu l o s ; v imo s a n te s o q ua n to o p ud o r é um s en t imen to a r t i f i c i a l e

d e s p r e z í v el . O a mo r, q ue p o d emo s cha ma r d e l o ucu r a d a a l ma , nã o p o s s u i ma i s t í t u l o s p a r a l e g i t ima r

s ua co n s t â nc i a . Nã o s a t i s f a zend o s enã o a d o i s i nd i v í d uo s , o s e r a ma d o e o a ma n te , n ã o p o d e s e r v i r à

fe l i c idade do s out ro s ; e f o i pa ra a fe l i c idade de todos , não para uma fe l i c idade ego í s ta e p r i v i l eg iada,

q ue no s f o r a m d a d a s a s mu l he r e s . T o d o s o s ho men s t êm um d i r e i t o d e g o zo i d ên t i co s o b r e t o d a s a s

mu l he r e s . Nã o há um s ó ho mem q ue , d i a n te d a s l e i s d a na tu r e za , p o s s a e r i g i r s o b r e uma mu l he r um

d i r ei t o ú n i c o e p e ss o a l. A l e i q u e a s o b r i g a rá a s e p r o s t i tu í r em q u a nd o q u i s e r mo s , n a s c a s as d e

d eb o che q ue há p o uco menc i o na mo s , q ue a s o b r i g a r á a f r eq üen tá - l a s , p un i nd o - a s ca s o s e r e cu s em a

i s s o , s e r á u m a l e i d a s m a i s e q u i t a t i v a s e c o n t r a a q u a l n e n h u m m o t i v o l e g í t i m o o u j u s t o p o d e r i a

rec lamar .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 30/41

U m ho mem q ue q ue i r a g o za r d e uma mu l he r o u d e uma g a r o t a q ua l q ue r p o d er á , s e a s l e i s q ue

promulga i s s ão j us ta s , in t imá- l a a comparecer a uma des sas casas de que fa le i ; e l á , s ob a s a l vaguarda

d a s ma t r o na s d e s s e t emp l o d e Vênu s , e l a l he s e r á en t r e g ue p a r a s a t i s f a ze r , co m i g ua l hum i l d a d e e

s ub m i s s ão , t o d o s o s c a p r i cho s q ue l he a g r a d a r, p o r ma i s e s t r a nho s e i r r e g u l a r es q ue p o s s a m p a r ece r ;

p o i s n ã o há nenhum q ue nã o e s t e j a na na tu r e za , nenhum em f a vo r d o q ua l e l a nã o s e co n f e s s e . S ó

t e r i a q ue s e f i x a r a i d a d e . O r a , c r e i o nã o p o d e r f a zê - l o s em p e r t u r b a r a l i b e r d a d e d e q uem d e s e j a

g o z ar d e u m a m u l h e r d e st a o u d a qu e l a i d a d e. Q u e m t e m o d i r ei t o d e c o m er o f r u to d e u m a á r v or ece r t a men te p o d e r á co l hê - l o v e r d e o u ma d u r o , co n f o r me a s i n s p i r a çõ e s d e s eu g o s t o . M a s , d i r ã o , h á

u m a i d a d e e m q u e a s a ú d e d a j o v e m d e c i d i d a m e n t e p o d e s e r p r e j u d i c a d a p e l o s p r o c e d i m e n t o s d o

ho mem. E s s a co n s i d e r a çã o nã o t em nenhum va l o r ; d e s d e q ue me co nced e i s o d i r e i t o d e p r o p r i ed a d e

s o b r e o g o zo , e s s e d i r e i t o é i nd ep end en te d o s e f e i t o s q ue e l e p r o d uz ; a p a r t i r d e en t ã o , t a n to f a z

e s s e g o zo s e r v a n t a j o s o o u p r e j ud i c i a l a o o b j e t o q ue a e l e d eve s e s ub mete r. Nã o p r o ve i a l e g a l i d a de

em co n t r a r i a r a v o n t a d e d e uma mu l he r ne s s e a s s un to e q ue , t ã o l o g o e l a i n s p i r e o d e s e j o d o g o zo ,

d eve s ub mete r - s e a e l e , a b s t r a i nd o t o d o s en t imen to e g o í s t a ? O me s mo a co n tece co m a s ua s a úd e .

D e s d e q u e a s c o n s i d e r a ç õ e s q u e s e f a ç a m a e s s e r e s p e i t o p o s s a m d e s t r u i r o u e n f r a q u e c e r o g o z o

d a q ue l e q ue a d e s e j a , e q ue t em o d i r e i t o d e s e a p r o p r i a r d e l a , e s s e cu i d a d o co m a i d a d e t o r na - s e

i nú t i l p o r q ue d e mo d o a l g um s e t r a t a a q u i d e s a b e r o q ue s en te o o b j e t o co nd ena d o p e l a na tu r e za e

p e l a l e i à s a t i s f a çã o mo men tâ nea d o s d e s e j o s d e o u t r o . Nã o s e t r a t a ne s s e e x a me s enã o d a q u i l o q ue

convém a quem deseja . Vamos res tabe lecer a ba lança .S im , d e ve m os r e st a be l ec ê -l a , s em d ú vi d a. A e s ta s m u lh e re s q u e a c ab am o s d e

e s c r a v i z a r d e f o r ma t ã o c r ue l , d e vemo s i n co n te s t a ve l men te i nd en i z a r , e i s s o r e s p o nd e r á a s e g und a

ques tão que me p ropus .

S e a d m i t imo s , co mo f i z emo s a g o r a , q ue t o d a s a s mu l he r e s d evem s e r s ub m i s s a s a o s no s s o s

desejo s , cer tamente devemos permit i r - l hes que também sat i s f açam amp lamente o s seus . E para ta l f im

que no s sas l e i s devem favo recer seu temperamento de fogo . E um absurdo te r co locado sua honra e sua

v i r t ud e na f o r ça a n t i n a tu r a l d e s ua r e s i s t ênc i a à s i n c l i n a çõ e s q ue r e ceb e r a m em mu i t o ma i o r p r o f u s ã o

q u e n ó s . E s s a i n j u s t i ç a d e n o s s o s c o s t u m e s é t a n t o m a i s g r i t a n t e q u e c o n s e n t i m o s d e u m a s ó v e z

en f r a q uece r a s mu l he r e s à f o r ça d e s ed uçã o , p a r a em s eg u i d a p un i - l a s p o r t e r em ced i d o a t o d o s o s

e s f o r ç o s q u e f a z e m o s p a r a p r o v o c a r s u a q u e d a . T o d o o a b s u r d o d e n o s s o s c o s t u m e s e s t á g r a v a d o ,

p a r ec e - me , n e ss a a t r oc i d a de d e si g u al . E s sa s i m pl e s e x p os i ç ão d e v er i a n o s f a z er s e n ti r a e x t re m a

nece s s i d a d e q ue t emo s d e t r o cá - l o s p o r o u t r o s ma i s p u r o s . D i g o , p o r t a n to , q ue t end o a s mu l he r e s

receb ido inc l inações mui to ma i s v io l entas para o s p razeres da l uxúr ia do que nó s , poderão ent regar - se

a e l e s o t a n to q ue q u i s e r em, a b s o l u t a men te l i v r e s d e t o d o s o s l a ço s d o h imeneu , d e t o d o s o s f a l s o s

p r e co n c e it o s d o p u d or, d e v ol v i da s c o m pl e t am e n te a o e s t ad o d e n a t ur e z a. Q u e ro q u e a s l e i s l h e

p e r m i t a m en t r e g a r - s e a t a n to s ho men s q ua n to s d e s e j a r em; q ue r o q ue a e l a s t a mb ém s e j a p e r m i t i d o ,

c o m o a o s h o m e n s , o g o z o d e t o d o s o s s e x o s e d e t o d a s a s p a r t e s d e s e u s c o r p o s . S o b a c l á u s u l a

e s p ec i a l d e s e en t r e g a r em d o me s mo mo d o a t o d o s o s q ue a s d e s e j a r em, q ue e l a s t enha m a l i b e r d a d e

d e g o za r i g ua l men te d e t o d o s a q ue l e s q ue j u l g a r em d i g no s d e s a t i s f a zê - l a s . Q ua i s s ã o , p e r g un to , o s

p e r ig o s d e s s a l i c e nç a ? C r i a n ç as s e m p a i s ? A h , o q u e i m p o r ta i s s o n u m a R e p ú bl i c a e m q u e t o d o s o s

i nd i v í d uo s nã o d evem te r o u t r a mã e s enã o a p á t r i a , em q ue t o d o s o s q ue na s cem s ã o f i l h o s d a p á t r i a ?

A h , o q u an t o n ã o i r ão a m á- l a m e l ho r a qu e le s q ue , s ó t e nd o c o nh ec i do a e l a, s ab e rã o d es de o

na s c imen to q ue a p ena s d e l a d evem e s p e r a r t ud o ? Nã o ima g i ne i s f a ze r b o n s r ep ub l i c a no s i s o l a nd o em

s ua s f a m í l i a s c r i a n ça s q ue s ó d evem p e r t ence r à Rep úb l i c a . D a nd o s o men te a a l g un s i nd i v í d uo s a d o s e

d e a f e i çã o q ue d evem r ep a r t i r e n t r e t o d o s o s i r mã o s , e l e s a d o t a m i nev i t a ve l men te o s p r e co nce i t o s

q ua s e s emp r e p e r i g o s o s d e s s e s i nd i v í d uo s . S ua s o p i n i õ e s , s ua s i d é i a s i s o l a m- s e , p a r t i cu l a r i z a m- s e , e

t o da s a s v i rt u de s d e u m h om e m d e E s ta do t o rn a m- se - lh e s a b so lu t am e nt e i m po ss í ve i s. E n fi m ,

a b a nd o na nd o s eu s co r a çõ e s co mp l e t a men te a o s a u t o r e s d e s eu s d i a s , e l e s n ã o enco n t r a r ã o ma i s ne l e s

nenhuma a f e i çã o p o r a q ue l a q ue d eve f a zê - l o s v i v e r , co nhece r e i l u s t r a r - s e , co mo s e e s s e s s e g und o s

b ene f í c i o s n ã o f o s s em ma i s imp o r t a n te s q ue o s p r ime i r o s ! S e há g r a nd e i n co nven i en te em d e i x a r a s

cr ianças sugarem as s im em suas f amí l ia s in teres ses quase sempre d i fe rentes do s da pát r ia , haverá uma

vantagem bem ma io r em separá - l a s de la s ; não haverá per igo , natura lmente, pe lo s me io s que p roponho ,

uma ve z q ue d e s t r u i nd o co mp l e t a men te t o d o s o s l a ço s d o h imeneu , o s ún i co s f r u t o s a na s ce r em d o s

p r a ze r e s d a mu l he r s e r ã o c r i a nça s a b s o l u t a men te p r o i b i d a s d e co nhece r em o p a i e p e r t ence r em a uma

ún ica f amí l ia , e que, em vez d i s so , s e rão como devem ser , ou se ja , apenas f i l ho s da pát r ia .

Haverá , po i s , ca sas des t inadas à l iber t inagem das mulheres s ob p ro teção do governo , como as

d e s t i n a d a s à l i b e r t i n a g em d o s ho men s . Ne l a s s e r ã o f o r nec i d o s t o d o s o s i nd i v í d uo s d e um s ex o e d e

o u t r o q ue e l a s p o s s a m d e s e j a r ; q ua n to ma i s f r eq üen ta r em e s s a s c a s a s , ma i s s e r ã o e s t ima d a s . Nã o há

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 31/41

nada ma i s bárbaro e r id ícu lo do que te r l i gado a honra e a v i r tude das mulheres à res i s tênc ia que e l a s

p õ em a o s d e s e j o s r e ceb i d o s d a na tu r e za e q ue i n ce s s a n temen te i n f l a ma m o s q ue f a zem a b a r b a r i d a d e

d e cen s u r á - l a s. D e s d e a ma i s t en r a i d a d e , uma mo ça , l i v r e d o s l a ço s p a te r na i s , n a d a ma i s t end o a

c o ns e rv a r p ar a o h i me n eu ( ab so l ut a me n te a bo l id o p el as l e is s e ns at a s q ue d e se jo ) , a c im a d o

p r eco nce i t o q ue o u t r o r a enca d ea va s eu s e x o , p o d e r á en t r e g a r - s e a t ud o q ue s eu t emp e r a men to l he

d i t a r n a s ca s a s e s t a b e l e c i d a s p a r a e s s e s f i n s . E l a s e r á r e ceb i d a co m r e s p e i t o , s a t i s f e i t a em p r o f u s ã o

e, re to rnando à soc iedade, poderá f a l a r pub l i camente do s p razeres que t i ver p rovado , como faz ho je ar e s p e i t o d e um b a i l e o u d e um p a s s e i o . S e x o enca n ta d o r, s e r e i s l i v r e ! E co mo o s ho men s , g o za r e i s d e

todos o s p razeres que a natureza to rnou para vó s um dever ; e não se re i s coag idas a nenhum. Dever ia a

p a r t e ma i s d i v i n a d a huma n id a d e s ub mete r- s e a o s f e r r o s d a o u t r a ? Ah , q ueb r a i -o s ! A na tu r e za o q ue r ;

nã o t enha i s o u t r o s f r e i o s s enã o o s d e v o s s a s i n c l i n a çõ e s , o u t r a s l e i s s enã o o s v o s s o s d e s e j o s , o u t r a

m or a l q u e n ã o s ej a a d a n a tu re z a. N ã o v o s d ei x ei s l a ng u es c er t an t o t e mp o n e ss e s b á rb a ro s

p reconce i to s que murchavam vo s so s encanto s e e s crav izavam o s impu l so s d iv ino s de vo s so s co rações .

S o i s l i v r e s co mo nó s , e o ca m inho d o s co mb a te s d e Vênu s e s t á a b e r t o p a r a v ó s , a s s im co mo p a r a nó s ;

nã o t ema i s a b s u r d a s cen s u r a s ; o p ed a n t i s mo e a s up e r s t i ç ã o f o r a m a n i q u i l a d o s . N i n g uém ma i s v o s v e r á

co r a r d ev i d o a o s v o s s o s enca n ta d o r e s e r r os . C o r o a d a s d e m i r t o s e d e r o s a s , a e s t ima q ue co nceb e r mos

po r vó s s ó l evará em conta a ma io r ex tensão que vó s mesmas permit i rdes l he dar .

O q ue a c ab a d e s e r d it o d ev e ri a , s em d ú vi d a, d i sp e ns a r- n os d e e xa m in a r o a du l té r io .

L a ncemo s , no en t a n to , um b r e ve o l ha r s o b r e e l e , p o r ma i s i r r e l e va n te q ue t enha s e t o r na d o a p ó s a sl e i s que es tabe lec i . A que ponto e ra r id ícu lo cons iderá - l o c r imino so em no s sas ant igas in s t i tu ições ! Se

ha v i a a l g o d e a b s u r d o no mund o , e r a co m ce r t e za a e t e r n i d a de d o s l a ço s co n j ug a i s . B a s t a r i a , a o q ue

me parece, examinar ou sent i r todo o peso des ses l i ames para de ixa r de ver como um cr ime a ação que

o s a l i j a s s e . A na tu r e za , co mo há p o uco d i s s emo s , t end o d o t a d o a s mu l he r e s co m um temp e r a men to

mai s a rdente, com uma sens ib i l idade ma i s p ro funda que a do s ind iv íduo s de out ro sexo , e ra para e l a s ,

s em d úv i d a , q ue o j u g o d e um h imeneu e te r no ma i s p e s a va . M u l he re s t e r na s e a b r a s a d a s p e l o f o g o d o

a m o r, d e sf o r ra i a g o ra s e m m e d o ; p e r s u a di - v os d e q u e n ã o p o de h a v er n e n hu m m a l e m s e gu i r o s

i m pu l so s d a n a tu re z a, q u e n ã o f oi p ar a u m ú n ic o h o me m q u e e l a v os c r io u , m a s p ar a a g ra da r

i nd i f e r en temen te a t o d o s . Q ue nenhum f r e i o v o s d e tenha . I m i t a i o s r ep ub l i c a no s d a G r éc i a ; j a ma i s o s

l e gi s la do r es q ue l h es d er a m a s l e is i ma g in a ra m f a ze r d o a d ul té r io u m c r im e , e q ua s e t od os

a u t o r i z a v a m a d e s o r d e m d a s m u l h e r e s . E m s u a U t o p i a , T h o m a s M o r u s p r o v a s e r v a n t a j o s o p a r a a s

mulheres se ent regarem ao deboche, e a s idé ia s des se g rande homem nem sempre e ram sonhos .

E n tr e o s T á r t a ro s , q u a n t o m a i s u m a m u l h e r s e p r os t i t uí a , m a i s h o n ra d a e l a e r a ; e x i b i a

pub l i camente no pescoço a s marcas de seu despudo r , e aque la s que não t inham o pescoço deco rado não

e r a m e s t ima d a s . No P e r u , a s p r ó p r i a s f a m í l i a s en t r e g a va m s ua s mu l he r e s o u men i na s a o s e s t r a ng e i r o s

q u e a í v i aj a va m: e ra m a lu ga d as p or d i a c o m o c a va l os e v i at u ra s! E nf i m, o s l iv r os n ão s er i am

s u f i c i e n t e s p a r a d e m o n s t r a r q u e j a m a i s a l u x ú r i a f o i c o n s i d e r a d a c r i m i n o s a e m n e n h u m d o s p o v o s

sáb io s da Ter ra . Todos o s f i l ó so fo s s abem mui t o bem que devemos ao s impos to res c r i s tã o s o f a to de e l a

t e r s i do i n st i tu í da c o mo c r im e . O s p ad re s t i nh a m s eu s m ot i vo s p r oi b in do -n o s a l u xú ri a : t al

r e co m en d aç ã o, r e se r va n do - lh e s o c o nh e ci m en to e a a bs ol v iç ã o d o s p ec a do s s ec r et o s, l h es

p r o p o r c i o na va um i n c r í v e l d o m ín i o s o b r e a s mu l he r e s e l he s a b r i a uma ca r r e i r a d e l ub r i c i d a d e cu j a

ex ten s ã o nã o t i nha l im i t e s . S a b emo s co mo e l e s d e s f r u t a va m d i s s o , e co mo a i nd a a b u s a r i a m ca s o s eu

créd i to não es t i ves se perd ido sem recur so s .

S e rá m a i s p e r i go s o o i n c e st o ? N ã o , s e m d ú v id a ; e l e e s t en d e o s l a ç os d e f a m í l i a e , e m

conseqüênc ia , to rna ma i s a t i vo o amor do s c idadãos pe la pát r ia . E l e no s f o i d i tado pe la s p r ime i ra s l e i s

d a na tu r e za , nó s o e x p e r imenta mo s , e o g o zo d o s o b j e t o s q ue no s p e r t encem no s p a r e ce s emp r e ma i s

d e l i c i o s o . A s p r ime i r a s i n s t i t u i çõ e s f a vo r e ce r a m o i n ce s t o ; enco n t r a mo - l o na o r i g em d a s s o c i ed a d e s ;

e le é consag rado em todas a s re l i g iões ; todas a s l e i s o f avo recem.

S e p e r co r r e r mo s o un i v e r s o , enco n t r a r emo s o i n ce s t o e s t a b e l e c i do em t o d a p a r t e . O s neg r o s

d a C o s t a d a P imen ta e d o R i o Ga b ã o p r o s t i t uem s ua s mu l he r e s co m o s p r ó p r i o s f i l h o s ; o f i l h o ma i s

v el ho , n o r ei no d e J ud á, d ev e d es po sa r a m ul he r d e s eu p ai ; o s p ov os d o C hi le d or me m

ind i f e r en temen te co m a s p r ó p r ia s i r mã s e f i l h a s e d e s p o s a m co m f r eq üênc i a d e uma s ó v e z a mã e e a

f i lh a . E m s u ma , o u so a ss e gu ra r q u e o i n ce st o d ev e ri a s e r a l e i d e t o do g o ve r no b a se a do n a

f r a t e r n i da d e . C o mo é q ue ho men s r a zo á ve i s cheg a r a m a o a b s u r d o d e c r e r q ue g o za r d e s ua mã e , i r mã

o u f i l h a p ud e s s e s e r um c r ime ? P e r g unto - vo s s e nã o é um a b o m iná ve l p r e co nce i t o q ue r e r f a ze r d e um

h o m em u m c r i m i n o so s ó p o r q u e e l e p r e f e re g o z ar d o o b j e t o q u e o s e nt i m e nt o d a n a t ur e z a m a i s

a p ro x i ma d e l e? I s s o e q u i va l e ri a d i z er q u e n o s é p r o ib i d o q u e r er t a n to o s i n d i v í d uo s a o s q u a is a

n a t u r e z a m a i s o r d e n a q u e a m e m o s , e q u e q u a n t o m a i s e l a n o s d á i n c l i n a ç õ e s p a r a u m o b j e t o , a o

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 32/41

mes mo t emp o , ma i s o r d ena q ue no s a f a s t emo s d e l e ! T a i s c o n t r a r i ed a d e s s ã o a b s u r d a s ; s o men te o s

p o vo s emb r u tec i d o s p e l a s up e r s t i ç ã o p o d em a c r ed i t a r ne l a s o u a d o tá - l a s. I n c l u i nd o nece s s a r i a men te o

i n ce s t o na co mun id a d e d e mu l he r e s q ue e s t a b e l e ço, r e s t a p o uco a d i ze r s o b r e um p r e ten s o d e l i t o cu j a

n u l id a d e e s t á s u f ic i e nt e m en t e d e m on s t ra d a, p a ra q u e n e c e ss i t em o s a p ro f u nd a r a i n da m a i s e s se

a s s un to . P a ss emo s a o e s t up r o q ue p a r e ce s e r , à p r ime i r a v i s t a , d e t o d o s o s d e s v i o s 9 d a l i b e r t i n a g em,

a q ue l e cu j a l e s ã o e s t á me l ho r e s t a b e l e c i d a d ev i d o a o u l t r a j e q ue e l e t a l v e z p r o vo q ue . E n t r e t a nto , é

ce r t o q ue o e s t up r o , a çã o t ã o r a r a e d i f í c i l d e p r o va r, c a u s a meno s d a no a o p r ó x imo d o q ue o r o ub o ,j á q ue e s s e ú l t imo i n va d e a p r o p r i ed a d e q ue o p r ime i r o s e co n ten ta em d e te r i o r a r . Q ue p o d e r e i s ,

a l iá s , ob jeta r ao v io l ado r , s e e le vo s re sponde que, de f a to , o ma l que causou é bem med íocre , j á que

d e i x o u ma i s ced o o o b j e t o d e q ue a b u s o u no e s t a d o em q ue l o g o ma i s s e r i a nece s s a r i a men te d e i x a d o

pe lo h imeneu ou pe lo amor ?

M a s a s o d o m ia , e s t e p r e ten s o c r ime q ue a t r a i u o f o g o d o céu s o b r e a s c i d a d e s q ue a e l a s e

en t r e g a va m, nã o é um ex t r a v i o mo n s t r uos o cu j o ca s t i g o nã o p o d e r i a s e r b a s t a n te f o r t e ? S em d úv i d a é

m u i to d o lo r o so p a r a n ó s t e r mo s d e c e n su r a r n o s s o s a n c e st r a i s p e l o s a s s as s i na t o s j u d i c i ár i o s q u e

o u s a r a m p e r m i t i r -s e s o b r e e s s e a s s un to . S e r á p o s s í v e l s e r t ã o b á r b a r o a p o n to d e co nd ena r a mo r t e o

in fe l i z ind iv íduo cujo ún ico cr ime é não te r o s mesmos go s to s que vó s ? T rememos quando pensamos que

há q ua r en ta a no s a p ena s o s a b s u r d o s d o s l e g i s l a d o r e s cheg a va m a i s s o . C o n s o l a i - v o s , c i d a d ã o s ! T a i s

a b s ur d o s n ã o s e r e p et i r ão ! A s a be d o ri a d e v o s so s l e g is l a do r e s r e sp o n de p o r i s s o. I n t ei r a me n t e

esc l a rec ido s s ob re es sa f r aqueza de a l guns homens , s abemos ho je per fe i tamente que ta l e r ro não podes e r c r im ino s o ; a n a tu r e za nã o t e r i a co l o ca d o no f l u i d o q ue co r r e em no s s o s r i n s uma imp o r t â nc i a t ã o

g rande para se enfurecer com o caminho que no s ag rada segu i r po r e s se l i co r . Que cr ime haver ia n i s so ?

S eg u r a men te nã o s e r i a o d e s e co l o ca r ne s t e o u na q ue l e l u g a r, a meno s q ue s e q u i s e s s e s u s t en ta r q ue

a s p a r t e s d o co r p o nã o s e a s s eme l ha m t o d a s , e q ue e x i s t em uma s p u r a s e o u t r a s s u j a s ; ma s , s end o

impos s íve l avançar ta i s ab surdo s , o ún ico p retenso de l i to aqu i s ó cons i s t i r i a na perda da semente.

O r a , p e r g un to - vo s s e é v e r o s s ím i l q ue e s s a s emen te s e j a t ã o p r e c i o s a a o s o l ho s d a na tu r e za ,

que não se po s sa perdê- l a sem cometer um cr ime? Se a s s im fo s se , e l a p roceder ia todo s o s d ia s a e s sa s

p e r d a s ? N ã o s e r i a a u t o r i z á - l a s , p e r m i t i - l a s d u r a n t e o s s o n h o s o u q u a n d o g o z a m o s d e u m a m u l h e r

g r á v i d a ? P o d e - s e ima g i na r a na tu r e za no s d a nd o a p o s s i b i l i d a d e d e um c r ime q ue a u l t r a j a s s e ? S e r á

p o s s í v e l q ue e l a co n s i n t a a q ue ho men s d e s t r ua m s eu s p r a ze r e s e s e t o r nem co m i s s o ma i s f o r t e s d o

q ue e l a ? E e s p a n to s o o a b i s mo d e a b s u r d o s em q ue me r g u l ha mo s q ua nd o nã o r a c i o c i na mo s à l u z d a

razão ! Tenhamos bem c la ro que é tão s imp les gozar de uma mulher de uma mane i ra ou de out ra , que é

a b s o l u t a men te i nd i f e r en te g o za r d e uma mo ça o u r a p a z , e q ue é co n s t a n te em nó s nã o e x i s t i r o u t r a s

i n c l i n a çõ e s a l ém d a s q ue r e ceb emo s d a na tu r e za ; e l a é p o r d ema i s s en s a t a e co n s eq üen te p a r a t e r

co locado em nós a s que pudes sem a l guma vez o fendê- l a .

A i n c l i n a çã o à s o d o m ia r e s u l t a d a o r g a n i z a ção e em na d a co n t r i b u ímos p a r a e s s a o r g a n i z a ção .

C r i an ç a s n a m a i s t e n r a i d a d e a n u n c ia m e s se g o st o , e d e l e j a m a is s e l i b e r t am . À s v e z es é f r u to d a

s a c i ed a de ; m a s, p o r c a u s a d i s s o , p e r t e nc e m e n os à n a t ur e z a? S o b t o d o s o s a s p ec t o s, a o b ra d a

n a t u r e z a , e , e m q u a l q u e r c a s o , o q u e e l a i n s p i r a , d e v e s e r r e s p e i t a d a p e l o s h o m e n s . S e , p o r u m

r ecen s ea men to e x a to , v i é s s emo s a p r o va r q ue e s s e g o s t o a f e t a i n f i n i t a men te ma i s q ue o o u t r o , q ue o s

p razeres que de le resu l tam são mui to ma i s v i vo s , e que dev ido a i s s o seus sectá r io s s ão mi l vezes ma i s

numer o s o s q ue s eu s i n im i g o s , n ã o s e r i a p o s s í v e l c o nc l u i r q ue , l o ng e d e u l t r a j a r a n a tu r e za , e s s e v í c i o

s e r ve s eu s d e s í g n i o s, e q ue e l a s e imp o r t a mu i t o meno s co m a p r o g en i tu r a d o q ue t emo s a l o ucu r a d e

c r e r? O r a, p e rc o r re n d o o u n i v er s o , q u a n t o s p o v o s n ã o v e r em o s d e s p r e za r a s m u l he r e s? A l g un s s ó

s e r vem d e l a q ua nd o a b s o l u t a men te nece s s i t a m d e um f i l h o p a r a s ub s t i t u í - lo s . O há b i t o q ue o s ho men s

têm d e v i v e r j un to s na s r ep úb l i c a s t o r na rá e s s e v í c i o ca d a ve z ma i s co mum, ma s e l e ce r t a men te nã o é

p e r i g o s o . O s l e g i s l a d o r e s d a G r éc i a t ê - l o - i a m i n t r o d uz i d o em s ua Rep úb l i c a s e a s s im o j u l g a s s em?

L o n ge d i s so ; a c h a v a m -n o n e c e ss á r io a u m p o v o g u e r re i r o. P l u ta r c o n o s f a la c o m e n t u s i as m o d o

b a ta l hã o d o s a ma n te s e d o s a ma d o s ; s o men te e l e s d e f end e r a m d u r a n te t a n to t emp o a l i b e r d a d e d a

G r éc i a . E s s e v í c i o r e i no u na a s s o c i a ção d o s i r mã o s d e a r ma s , c imen ta nd o - a , p r o p r i amen te . O s ma i o r e s

ho men s l he e r a m p r o p en s o s . A Amé r i ca i n t e i r a , q ua nd o d e s co b e r t a , enco n t r a va - s e p o vo a d a d e g en te

com es se go s to . Na Lu i s iana , ent re o s hab i tantes de I l i nó i s , índ io s ves t ido s de mulheres p ro s t i tu íam- se

co mo co r t e s ã s . O s neg r o s d e Beng ue l a ma n têm ho men s p ub l i c a men te . Q ua s e t o d o s o s h a r én s d a A r g é l i a

ho je em d ia s ó s ão povoados po r r apazes ; em Tebas , o amor ent re o s r apazes não e ra apenas to le rado ,

mas o rdenado ; o f i l ó so fo de Queroné ia o p rescrev ia para suav iza r o s co s tumes do s j ovens .

S ab em o s a q ue p o nt o e l e r e in o u e m R om a : h a vi a l u ga r es p ú bl ic o s e m q ue o s r a pa z es

p r o s t i t u ía m- s e ve s t i d o s d e mu l he r e s e a s mo ça s v e s t i d a s d e r a p a ze s . M a r c i a l , C a tu l o , T í b u l o , H o r á c i o ,

V i r g í l i o e s c r e v i a m ta n to p a r a ho men s como p a r a sua s a ma n te s, e p o demo s l e r em P l u t a rco q ue a s

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 33/41

mu l he r e s nã o d evem te r nenhuma p a r t e no a mo r d o s ho men s . O s a má s i o s d a I l h a d e C r e t a r a p t a va m

o u t r o r a r a p a ze s na s ce r imô n i a s ma i s s i n g u l a r e s : q ua nd o a ma va m um r a p a z i n f o r ma va m a o s p a i s o d i a

em q ue o r a p to r i r i a b u s cá - l o ; s e o a ma n te nã o l he a g r a d a s s e , o r a p a z mo s t r a va a l g uma r e s i s t ênc i a ;

em ca s o co n t r á r i o , p a r t i a co m e l e , e o s ed u to r o r e s t i t u í a à f a m í l i a t ã o l o g o s e s e r v i s s e d e l e ; ne s t a

p a i x ã o , co mo na d a s mu l he r e s , s emp r e s e q ue r ma i s q ua nd o j á s e t em o b a s t a n te . E s t r a b ã o no s co n t a

que, nes sa mesma i l ha , o s ha réns es tavam che io s s ó de rapazes ; e ram p ro s t i tu ído s pub l i camente.

Q ue r em u m a ú l ti m a a u to ri d ad e p a ra p ro v ar q u an t o e s se v í ci o é ú t il n um a R ep úb l ic a ?E s c u t e m o s J e r ô n i m o , o P e r i p a t é t i c o : o a m o r d o s r a p a z e s , n o s d i z , e x p a n d i u - s e p o r t o d a a G r é c i a

p o r q ue d a va co r a g em e f o r ça , e t a mb ém s e r v i a p a r a e x p u l s a r o s T i r a no s . A s co n s p i r a çõ e s s e f o r ma va m

en t r e o s a ma n te s e e l e s s e d e i x a r i a m a n te s t o r t u r a r a r e ve l a r s eu s cúmp l i ce s . O p a t r i o t i s mo a s s im

s a c ri f i ca v a t u d o à p r os p er i d ad e d o E s ta d o; t i n h a- s e c e r te z a d e q u e e s s as l i g aç õ e s f o r t a le c i a m a

Rep úb l i c a ; d ec l a ma va - s e co n t r a a s mu l he r e s ; l i g a r - s e a t a i s c r i a t u r a s e r a co n s i d e r a d o uma f r a q ueza

reservada ao despo t i smo.

A p e d e r as t i a f o i s e m pr e o v í c io d o s p o v o s g u e r re i r os . C é s a r n o s e n s in a q u e o s g a u le s e s

ent regavam- se ex t rao rd inar iamente a e l a . As guer ra s que a s repúb l i ca s t inham de supo r ta r , s eparando

os do i s s exo s , p ropagavam es se v íc io , e , quando ne le se reconheceu conseqüênc ia s ú te i s ao s E s tado , a

r e l i g i ã o t a mb ém o co n s a g r o u . S a b e - s e q ue o s r o ma no s s a n t i f i c a ra m o s a mo r e s d e Júp i t e r e Ga n imed e s .

S e xt u s E m p ir i c us a s se g u ra - n os q u e e s sa f a n ta s i a e r a t a m bé m p r at i c a da e n t re o s p e r sa s . E n fi m , a s

mu l he r e s , c i umen ta s e d e s p r e za d a s , o f e r e ce r a m- s e p a r a p r e s t a r a o s ma r i d o s o s me s mo s s e r v i ço s q uee l e s r e c e b i a m d o s r a p a z e s . A l g u n s t e n t a r a m , m a s v o l t a r a m a s e u s a n t i g o s h á b i t o s , n ã o a c h a n d o a

i l u são po s s í ve l .

O s t u r co s , f o r t e m en t e i n c li n a do s a e s sa d e p ra v a çã o c o n sa g r ad a p o r M a o m é n o A l c o r ã o,

a s s e g u r a m, t o d a v i a , q ue uma v i r g em b a s t a n te j o vem p o d e s a t i s f a t o r i a men te s ub s t i t u i r um r a p a z , e

r a r am e n te t o rn a m -s e m u l he r e s a n t e s d e t e r em p a s sa d o p o r e s sa p r o va . S i x to - Q ui n t o e S a n c he s

p e r m i t i a m e s s e d eb o che ; e s t e ú l t imo t en to u me s mo p r o va r q ue e l e e r a ú t i l à p r o c r i a çã o e q ue uma

c r i an ç a e n g en d r ad a a p ós e s t e d e c ur s o p r é vi o s e ri a i n f in i t am e n te m e l ho r c o n st i t u íd a . E n fi m , a s

mu l he r e s s e co mp en s a r a m en t r e e l a s . E s s a f a n t a s i a s em d úv i d a nã o t em ma i s i n co nven i en te s q ue a

o ut r a p or qu e o r es u lt a do é a p en a s a r e cu sa e m c r ia r, e o s m e io s d os q u e p o s su e m g os t o p e l a

p ropagação são podero so s o bas tante para que seus adver sá r io s j ama i s po s sam p re jud icá - l o s . Os g rego s

apo iavam igua lmente o s ex t rav io s das mulheres em razões de E s tado . Resu l tava d i s so que, bas tando - se

a s i me s ma s , s ua s co mun i ca çõ e s co m o s ho men s e r a m meno s f r eq üen te s e e l a s a s s im nã o p r e j ud i ca va m

o s neg ó c i o s d a Rep úb l i c a . L u c i a no no s en s i n a o p r o g r e s s o q ue f e z e s s a l i c enc i o s i d a d e , e nã o é s em

interes se que a vemos em Sa fo .

E m s u m a , n ã o h á u m ú n i c o p e r i g o e m t o d a s e s s a s m a n i a s , m e s m o q u e f o s s e m m a i s l o n g e ;

mes mo s e cheg a s s em a a ca r i c i a r mo n s t r o s e a n ima i s , c o mo no s d emo n s t r a o e x emp l o d e mu i t o s p o vo s ,

não haver ia nes sas f r i vo l idades o menor inconven iente po rque a co r rupção do s co s tumes , quase sempre

m u i t o ú t i l n u m g o v e r n o , n ã o p o d e r i a s e r n o c i v a s o b n e n h u m a s p e c t o ; d e v e m o s e s p e r a r d e n o s s o s

l e g i s l a d o r e s b a s t a n te s a b ed o r i a e p r ud ênc i a p a r a e s t a r mo s s e g u r o s d e q ue l e i a l g uma ema na r á d e l e s

p a r a r e p r i m i r e s s a s m i s é r i a s , q u e , l e v a n d o e m c o n t a a o r g a n i z a ç ã o , j a m a i s p o d e r i a m t o r n a r m a i s

cu lpado aque le que se acha inc l inado a e le do que o ind iv íduo que a natureza cr iou cont ra fe i to .

S ó no s r e s t a a e x a m ina r o a s s a s s i n a t o na s e g und a c l a s s e d o s d e l i t o s d o ho mem p a r a co m s eu

s eme l ha n te ; p a s sa r emo s em s eg u i d a a o s s eu s d eve r e s p a r a co n s i g o me s mo . D e t o d a s a s o f en s a s q ue o

h o m e m p o d e f a z e r a s e u s e m e l h a n t e , o a s s a s s i n a t o é , i n d u b i t a v e l m e n t e , a m a i s c r u e l , j á q u e l h e

r e t ir a o ú n i co b e m q u e r e c eb e u d a n a t ur e z a, o ú n i c o c u j a p e r d a é i r r ep a rá v e l. V á r i as q u e st õ e s

en t r e t a n to a q u i s e a p r e s en t a m, a b s t r a i nd o - s e t o d o o p r e j u í z o q ue o a s s a s s i n a t o ca u s a à q ue l e q ue s e

t o r na s ua v í t ima .

1 . E s sa ação , cons iderando apenas a s l e i s da natureza , é verdade i ramente cr imino sa ?

2 . E em re lação à s l e i s da po l í t i ca ?

3 . O a s sa s s inato é p re jud ic ia l à s oc iedade?

4 . Como e le deve se r cons iderado num governo repub l i cano ?

5 . Enf im, o a s sa s s inato deve se r rep r imido com o a s sa s s inato ?

Examinemos separadamente cada uma des sas ques tões ; o ob jeto é bas tante es senc ia l pa ra que

nos detenhamos ne le . P rovave lmente acharão no s sas idé ia s um tanto fo r tes , mas e da í ? Não adqu i r imos

o d i r e i t o d e d i ze r t ud o ? E x p l i c i t emo s a o s ho men s g r a nd e s v e r d a d e s ; e l e s a g ua r d a m- na s d e nó s . J á é

t emp o q ue o e r r o d e s a p a r eça ; q ue s ua vend a ca i a j un to a d o s r e i s . O a s s a s s i n a t o é um c r ime a o s o l ho s

da natureza ? E i s a p r ime i ra ques tão .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 34/41

Vamos aqu i s em dúv ida humi lhar o o rgu lho do homem reba ixando -o ao n íve l de todas a s out ra s

p r o d uçõ e s d a na tu r e za ; ma s o f i l ó s o fo nã o a ca r i c i a a s p eq uena s v a i d a d e s huma na s : s emp r e a r d en te na

busca da verdade, e le a d i s t ingue sob o s to l o s p reconce i to s do amor -p róp r io , a t inge-a , desenvo l ve -a , e

a mos t ra audac io samente à Ter ra espantada.

O q ue é o ho mem, e q ua l a d i f e r ença en t r e e l e e a s p l a n t a s , en t r e e l e e o s o u t r o s a n ima i s d a

na tu r e za ? C e r t a men te nenhuma . C o l o ca d o f o r t u i t a men te co mo e l e s s o b r e o g l o b o , n a s ce co mo e l e s ,

p r o p a g a -s e , c r e s ce e d ec l i n a co mo e l e s ; a t i n g e co mo e l e s a v e l h i ce e co mo e l e s t o mb a no na d a a p ó s ot e r mo q ue a na tu r e za a s s i n a a ca d a e s p éc i e d e a n ima i s d e v i d o à co n s t r u çã o d e s eu s ó r g ã o s . S e e s s a s

a p r o x ima çõ e s s ã . o t ã o e x a t a s q ue t o r na imp o s s í v e l a o o l ho e x a m ina d o r d o f i l ó s o f o p e r ceb e r a l g uma

d i s s eme l ha nça , h a ve r á , p o i s , t a n t o ma l em ma ta r um a n ima l q ua n to um ho mem, o u q ua s e mu i t o p o uco

em fazê- l o num caso ou no out ro , e a d i s tânc ia res id i r á apenas no s p reconce i to s de no s so o rgu lho . Mas

na d a i n f e l i zmen te é t ã o a b s u r d o co mo o s p r e co nce i t o s d o o r g u l ho . E ncu r t emo s , t o d a v i a , a q ue s t ã o .

Nã o p o d e r e i s d i s co r d a r q ue s e j a i g ua l d e s t r u i r um ho mem o u um a n ima l ; ma s a d e s t r u i çã o d e t o d o

a n ima l q ue v i v e nã o e d ec i d i d a men te um ma l co mo a c r ed i t a va m o s p i t a g ó ri co s e co mo a i nd a a c r ed i t a m

o s h a b i t a n t e s d a s m a r g e n s d o G a n g e s ? A n t e s d e r e s p o n d e r a i s s o , r e c o r d e m o s a o s l e i t o r e s q u e s ó

ex a m ina mo s a q ue s t ã o d o p o n to d e v i s t a d a na tu r e za . A f r o n t á - l a - emo s , em s e g u i d a , co m r e l a çã o a o s

ho men s . P e r g un to q ue v a l o r t e r ã o p a r a a na tu r e za i nd i v í d uo s q ue nã o l he cu s t a m a meno r p ena o u o

meno r cu i d a d o ? O o p e r á r i o s ó e s t ima s ua o b r a em r a zã o d o t r a b a l ho q ue e l a l he cu s t a e d o t emp o q ue

emp r eg a p a r a c r i á - l a . O ho mem cu s t a a l g uma à na tu r e za ? E , s up o nd o q ue cu s t e , cu s t a - l he ma i s d o q ueu m m a c ac o o u e l e f a n te ? V o u m a i s l o n g e: q u a is s ã o a s m a t ér i a s g e r a d or a s d a n a t ur e z a? D e q u e s ã o

compos to s o s s e res que nascem? Os t rês e lemento s que o s f o rmam não resu l tam da p r imi t i va des t ru ição

d e o u t r o s co r p o s ? S e t o d o s o s i nd i v í d uo s f o s s em e te r no s , n ã o s e t o r na r i a imp o s s í v e l à n a tu r e za c r i a r

no vo s s e r e s ? S e a e t e r n i d a d e d o s s e r e s é imp o s s í v e l à n a tu r e za , s ua d e s t r u i çã o t o r na - s e p o r t a n to uma

de suas l e i s . Ora , s e a s des t ru ições l he s ão tão úte i s que e l a não po s sa ab so lutamente pas sa r s em e la s ,

e s e nã o p o d e c r i a r s em ex t r a i r d e s s a s ma s s a s d e d e s t r u i çã o q ue a mo r t e l he p r ep a r a , a p a r t i r d e s s e

m om e nt o a i d éi a d e a n iq u il a me n to q u e l i g a mo s à m or t e d e i x ar á d e s er r e al ; n ão h a ve r á m a i s

a n i q u i l a mento p a s s í v e l d e s e co n s t a t a r. O q ue cha ma mo s f im d e ca d a a n ima l v i v en te nã o s e r á ma i s um

f im r ea l , ma s uma s imp l e s t r a n s muta çã o cu j a b a s e é o mo v imen to p e r p é tuo , v e r d a d e i r a e s s ênc i a d a

ma té r i a e q ue o s f i l ó s o f o s mo d e r no s a d m i t em co mo uma d e s ua s p r ime i r a s l e i s . A mo r t e , d e a co r d o

c o m e s s e s p r i n c í p i o s i r r e f u t á v e i s , n ã o é m a i s d o q u e u m a m u d a n ç a d e f o r m a , u m a i m p e r c e p t í v e l

pas sagem de uma ex i s tênc ia a out ra , e i s o que P i tágo ras chamava de metemps ico se .

U ma ve z a d m i t i d a s t a i s v e r d a d e s , p e r g un to s e s e r á p o s s í v e l a f i r ma r q ue a d e s t r u i çã o é um

cr ime ? V i s a nd o co n s e r va r no s s o s p r e co nce i t o s a b s u r d o s , o u s a r e i s me d i ze r q ue a t r a n s muta çã o é uma

d e s t r u i çã o ? Nã o , ce r t a men te . S e r i a p r e c i s o p a r a i s s o p r o va r um i n s t a n te d e i n a çã o , um mo men to d e

r ep o u s o na ma té r i a . O r a , j a ma i s d e s co b r i r e i s e s s e mo men to . P eq ueno s a n ima i s s e f o r ma m no i n s t a n te

e m q u e o g ra n de d ei x a d e r es pi r ar ; a v i da d e ss e s p e q ue no s a n im a is é a p en a s u m d os e f ei t os

nece s s á r i os e d e te r m ina do s p a r a o s o no mo men tâ neo d o g r a nd e . O u s a r e i s d i z e r q ue um a g r a d a ma i s à

na tu r e za d o q ue o o u t r o ? P a r a i s s o s e r i a p r e c i s o p r o va r uma co i s a imp o s s í v e l : q ue a f o r ma l o ng a o u

q ua d r a d a é ma i s ú t i l , ma i s a g r a d á vel à n a tu r e za d o q ue a o b l o ng a o u t r i a ng u l a r. S e r i a p r e c i s o p r o va r

q u e , c o m r e s pe i t o a o s p l a no s s u bl i m es d a n a t ur e z a, u m v a g ab u n do q u e e n g o r da d e p r e gu i ç a e

indo lênc ia é ma i s ú t i l do que o cava lo cu jo se rv iço é tão es senc ia l , ou o bo i cu jo co rpo é tão p rec io so

q ue s e a p r o ve i t a t o d a s a s s ua s p a r t e s ; s e r i a p r e c i s o d i ze r q ue a s e r p en te veneno s a é ma i s nece s s á r i a

do que o cão f ie l .

C om o t o do s e s se s s is t em a s s ão i n su s te n tá v ei s , é p re c is o a b so lu t am e nt e a d mi t ir a

imp o s s i b i l i d a d e em q ue no s enco n t r a mo s p a r a a n i q u i l a r a s o b r a s d a na tu r e za , a d m i t i nd o q ue a ún i ca

c o i s a q u e f a z e m o s , e n t r e g a n d o - n o s à d e s t r u i ç ã o , é o p e r a r u m a v a r i a ç ã o n a s f o r m a s q u e n ã o p o d e

ex t i n g u i r a v i d a ; l o g o , p r o va r q ue e x i s t e c r ime na p r e ten s a d e s t r u i çã o d e uma c r i a t u r a d e q ua l q ue r

i d a d e , s e x o o u e s p éc i e e s t á a c ima d a s f o r ça s huma na s . C o nd uz i d o s a i nd a ma i s p e l a s é r i e d e no s s a s

co n s eq üênc i a s q ue na s cem uma s d a s o u t r a s , s e r á , en f im , p r e c i s o co nv i r q ue , l o ng e d e p r e j ud i ca r a

na tu r e za , a a çã o q ue co mete i s v a r i a nd o a s f o r ma s d e s ua s d i f e r en te s o b r a s é v a n t a j o s a p a r a e l a , p o i s

l he fo rnece i s po r e s sa ação a matér ia -p r ima de suas recons t ruções cu jo t raba lho l he se r ia imprat icáve l

s e na d a a n i q u i l á s s e i s . O r a , d i r e i s , d e i x a i a n a tu r e za a g i r ! I s s o ce r t a men te é p r e c i s o , ma s nã o s ã o o s

s eu s imp u l s o s q ue o ho mem s eg ue q ua nd o s e en t r e g a a o ho m i c í d i o ; é a na tu r e za q ue o a co n s e l ha ; e o

h o m e m q u e d e s t r ó i s e u s e m e l h a n t e é p a r a a n a t u r e z a a q u i l o q u e é p a r a e l e a p e s t e o u a f o m e ,

i g u a l m e n t e e n v i a d a s p e l a s u a m ã o , a q u a l s e s e r v e d e t o d o s o s m e i o s p o s s í v e i s p a r a o b t e r m a i s

depres sa es ta matér ia -p r ima de des t ru ição , ab so lutamente es senc ia l à s s uas ob ras .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 35/41

D i g n e m o s e s c l a r e c e r u m i n s t a n t e n o s s a a l m a a o s a n t o a r c h o t e d a f i l o s o f i a . Q u e o u t r a v o z

senão a da natureza no s sugere o s ód io s pes soa i s , a s v inganças , a s guer ra s , enf im, todo s es ses mot ivo s

d e a s s a s s i n a t o s p e r p é tuo s ? S e e l a no s a co n s e l ha i s s o t ud o , é p o r q ue nece s s i t a . C o mo p o d emo s , em

c o n se q ü ên c i a , n o s c o n si d e ra r c u l pa d o s d i a n t e d e l a s e n ã o f a z e m o s o u t r a c o i sa q u e s e gu i r s e u s

des ígn io s ?

Mas e i s ma i s do que é p rec i so para convencer qua lquer l e i to r e s c l a rec ido não se r po s s í ve l que

o a s sa s s inato po s sa u l t ra ja r a natureza .Será e le um cr ime em po l í t i ca ? Ousemos confes sa r , pe lo cont rá r io , s e r e le , in fe l i zmente, uma

d a s g r a n d e s m o l a s d a p o l í t i c a . N ã o f o i à c u s t a d e a s s a s s i n a t o s q u e R o m a s e t o r n o u a s e n h o r a d o

mundo ? Não fo i à cus ta de a s sa s s inato s que a F rança ho je é l i v re ? E inút i l adver t i r que só f a l amos aqu i

d o s a s s a s si n a to s o c a si o n ad o s p e la g u e rr a , e n ã o d a s a t r o c i da d e s c o m e t i da s p e l os f a c ci o s os e

d e s o r d e i r o s ; e s t e s s ã o t ã o e x ec r a d o s p e l o p úb l i c o q ue b a s t a menc i o ná - l o s p a r a e x c i t a r d e uma ve z o

ho r r o r e a i nd i g na çã o g e r a l . Q ue o u t r a c i ênc i a huma na t em ma i o r nece s s i d a d e d e s e s u s t en t a r p e l o

a s s a s s i na t o d o q ue e s t a q ue t end e a eng a na r, q ue s ó a l me j a o c r e s c imen to d e uma na çã o à s e x p en s a s

d e o u t r o ? A s g ue r r a s , ún i co s f r u t o s d e s s a b á r b a r a p o l í t i c a , s ã o o u t r a co i s a a nã o s e r o s me i o s p e l o s

q ua i s e l a s e a l imen ta , s e f o r t i f i c a , s e s u s t ém? O q ue é a g ue r r a s enã o a c i ênc i a d e d e s t r u i r ? E s t r anha

ceg ue i r a a d o ho mem q ue en s i n a p ub l i c a men te a a r t e d e ma ta r , q ue r e co mp en s a q uem ne l a ma i s s e

d i s t i n g ue e q ue p une a q ue l e q ue p o r mo t i v o s p a r t i cu l a r e s s e d e s f a z d e s eu i n im i g o ! J á nã o é t emp o d e

nos a fa s ta rmos des ses e r ro s tão bárbaro s ?E n f i m , o a s s a s s i n a t o s e r á u m c r i m e c o n t r a a s o c i e d a d e ? Q u e m p o d e i m a g i n a r i s s o e m s ã

co n s c i ênc i a ? Al i , o q ue imp o r t a a e s s a numer o s a s o c i eda d e q ue ha j a em s eu s e i o um memb r o a ma i s o u

a meno s ? S ua s l e i s , s eu s mo d o s e co s t umes co r r o mp e r - s e - i a m? A mo r te d e um i nd i v í d uo a l g uma ve z

in f l u iu s ob re a mas sa gera l ? E apó s a perda da ma io r das bata lhas , ou se ja , apó s a ex t inção da metade

d o mund o , d e s ua t o t a l i d a d e , o p eq ueno númer o d e s e r e s q ue p ud e s s e s o b r e v i v e r s o f r e r i a a meno r

a l te ração mater ia l ? Oh, não ! A natureza in te i r a nada so f re r ia , e o to l o o rgu lho do homem que acred i ta

q u e t u d o é f e i t o p a r a e l e f i c a r i a b e m e s p a n t a d o , a p ó s a d e s t r u i ç ã o t o t a l d a e s p é c i e h u m a n a , a o

ver i f i ca r que nada muda na natureza e que o cur so do s a s t ro s nem sequer é desv iado . Cont inuemos .

Como o a s sa s s inato deve se r v i s to num E s tado repub l i cano e guer re i ro ?

C e r t a men te ha ve r i a o ma i o r p e r i g o em l e va r e s s a a çã o à d e s g r a ça o u p un i - l a . O o r g u l ho d o

r ep ub l i c a no p ed e um p o uco d e f e r o c i d a d e ; s e a mo l e ce , s e p e r d e a ene r g i a , l o g o s e r á s ub j ug a do . U ma

s ingu la r í s s ima re f l exão surge ago ra ; apesar de ousada é mui to verdade i ra ; vou d izê - l a : uma nação que

co meça a s e r g o ve r na d a co mo Rep úb li c a s ó s e s u s t en t a r á p o r v i r t ud e s, p o i s p a r a c heg a r a o má x imo é

p r ec i s o co meça r co m p o uco ; ma s uma na çã o ve l ha e co r r up t a, q ue , co r a j o s a men te , a b a l a r á o j u g o d e

s eu g o ve r no mo ná r q u i co p a r a a d o t a r um r ep ub l i c a no , s ó s e ma n te r á co m mu i t o s c r ime s ; co mo e l a j á

v i v e no c r ime , s e q u i s e r p a s s a r d o c r ime à v i r t ud e , i s t o é , s a i r d e um e s t a d o v i o l en to p a r a um s ua ve ,

ca i r á numa i né r c i a q ue ce r t a men te l o g o a l e va r á à r u í na . Q ue s e r i a d a á r vo r e t r a n s p l a n t a d a d e um

te r r eno p l eno d e v i g o r p a r a uma s up e r f í c i e a r eno s a e s e ca ? T o d a s a s i d é i a s i n t e l e c tua i s e s t ã o d e t a l

f o r ma s ub o r d i na d a s à f í s i c a d a na tu r e za , q ue a s co mp a r a çõ e s f o r nec i d a s p e l a a g r i cu l t u r a j a ma i s no s

enganarão em mora l .

O s ho men s ma i s i nd ep end en te s , q ue ma i s p r ó x imo s s e enco n t r a m d a na tu r e za , o s s e l v a g en s ,

en t r e g a m- s e d i a r i a men te a o a s s a s s i n a t o . E m E s p a r t a , n a L a ced emô n i a , c a ça va m- s e i l o t a s , co mo na

F r a nç a c a ç a mo s p e rd i z e s. O s p o vo s m a i s l i v r e s s ã o a q u el e s q u e m a i s a c o l he m o a s sa s si n a t o. E m

Mindanau, quem deseja cometer um as sas s ín io é e levado à ca tego r ia do s b ravo s , e l ogo o enfe i tam com

u m t u r b a n t e ; e n t r e o s C a r a g u o s , é p r e c i s o t e r m a t a d o s e t e h o m e n s p a r a o b t e r a s h o n r a r i a s d e s s e

toucado ; o s hab i tantes de Bo rnéu crêem que todos aque les que fo ram levados à mor te l he

s e r ã o ú t e i s a p ó s a mo r t e d e l e s me s mo s ; a t é o s d evo to s e s p a nhói s f a z i a m vo to s a S ã o Jo a q u im

d a G a l í c i a d e m a t a r d o z e a m e r i c a n o s p o r d i a ; n o r e i n o d e T a n g u t , e s c o l h i a - s e u m j o v e m f o r t e e

v i g o r o s o a o q u a l e r a p e r m i t i d o , e m c e r t o s d i a s d o a n o , a s s a s s i n a r t o d o s o s q u e e n c o n t r a s s e p e l a

f r en te . H a v i a um p o vo ma i s a m i g o d o a s s a s s i n at o d o q ue o s j ud eu s ? E o q ue s e v ê d e t o d a s a s f o r ma s ,

em todas a s pág inas de sua h i s tó r ia .

O imp e r a d o r e o s ma nd a r i n s d a C h i na , d e t emp o s em t emp o s , t o ma m med id a s p a r a r e vo l t a r o

povo a f im de ob ter , com es sas manobras , o d i re i to de p romover ho r rendas ca rn i f i c inas . Que es se povo

mo l e e a f em ina d o s e l i b e r t e d o j u g o d e s eu s t i r a no s ; e l e o s e s p a nca r á p o r s ua ve z co m mu i t o ma i s

r a zã o , e o a s s a s s i n a t o , s emp r e a d o r a d o , s emp r e nece s s á r i o , s ó t e r i a mud a d o d e v í t ima s ; e l e f a r i a o

p razer de a l guns e a fe l i c idade de out ro s .

U ma i n f i n i d a d e d e na çõ e s t o l e r a m o s a s s a s s i n a t o s p úb l i c o s : s ã o t o t a l men te p e r m i t i d o s em

Gêno va , Veneza , Ná p o l e s , e em t o d a a A l b â n i a . E m K a cha u , o s a s s a s s i no s , n a r i b e i r a d e S ã o D o m ing o s ,

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 36/41

em s eu co s t ume i r o t r a j e o f i c i a l , d eg o l a m s o b v o s s a s o r d en s e a o s v o s s o s o l ho s o s i nd i v í d uo s p o r v ó s

i nd i ca d o s . O s i nd i a no s t o ma m ó p i o p a r a s e enco r a j a r em a o a s s a s s i n a t o ; d ep o i s s e p r e c i p i t a m p e l a s

r ua s ma s s a c r a nd o t o d o s o s q ue enco n t r a m p e l a f r en te ; v i a j a n te s i n g l e s e s t a mb ém enco n t r a r a m e s s a

ma n i a na Ba t á v i a .

Q ue p o vo f o i a o me s mo t emp o ma i o r e ma i s c r ue l d o q ue o s r o ma no s e q ue na çã o co n s e r vo u

p o r ma i s t emp o s eu e s p l end o r e s ua l i b e r d a d e ? O e s p e t á cu l o d o s g l a d i a d o r e s a n ima va s ua co r a g em;

R om a t o rn o u -s e g u e r r ei r a p e l o h á b i t o d e f a z er d o a s s a s si n a to u m j o g o . M i l e d u z en t a s a m i l eq u i nh e n ta s v í t i m a s l o t a v am d i a ri a m en t e a a r en a d o c i r c o ; e a s m u l he r e s, m a i s c r u é i s d o q u e o s

ho men s , ex i g i a m q ue o s mo r i bund o s ca í ss em co m gr a ça e a i nda encena s sem s o b a s co nvu l s õ e s d e

mo r te . O s r o ma no s p a s s a r a m d a í a o p r a ze r d e ve r a nõ e s d eg o l a nd o - s e d i a n te d e l e s ; e q ua nd o o cu l t o

c r i s t ã o , i n f e c t a nd o a Te r r a , v e i o p e r s ua d i r a o s ho men s d e q ue e r a um ma l s e ma ta r em un s a o s o u t r o s ,

o s t i r an o s , i m e d i at a m e nt e , e n c ad e a ra m e s se p o v o, e o s h e r ói s d o m u n do d e p re s s a t o r n a ra m - se

br inquedos .

E m t o d a p a r t e , en f im , co m r a zã o a c r ed i t o u - s e q ue o a s s a s s i no , i s t o é , a q ue l e q ue s u f o ca s ua

sens ib i l idade a ponto de matar seu semelhante e de desa f ia r a v ingança púb l i ca ou par t i cu l a r , em toda

p a r t e , d i g o , a c r ed i t o u -s e q ue um t a l h o mem s ó p o d i a s e r b a s t a n te co r a j o so e , p o r co n s eg u i n t e , mu i t o

p r e c i o s o num g o ve r no g ue r r e i r o o u r ep ub l i c a no . P e r co r rend o a i nd a na çõ e s q ue , ma i s f e r o ze s a i nd a , s ó

f i c av a m s a t is f ei t a s i m o la n d o c r i a nç a s , c o m f r e qü ê n ci a a s p r óp r i as , v e r em o s e s sa s a ç õ es a d ot a d as

un i ve r s a l men te e a t é me s mo à s v e ze s f a zend o p a r t e d e s ua s l e i s . Vá r i a s p o p u l a çõe s s e l v a g en s ma ta ms eu s r e cém- na s c i d o s . À s ma r g en s d o O r eno q ue , a s mã e s imo l a va m s ua s f i l h a s t ã o l o g o l he s d a va m à

l u z ; a c r ed i t a va m q ue e l a s s ó na s c i a m p a r a s e r em i n f e l i z e s , j á q ue s eu d e s t i no e r a o d e t o r na r em- s e

e s p o s a s d o s s e l v a g en s d e s s a r e g i ã o q ue nã o p e r m i t i a mu l he r e s . Na T r a p o b a na e no r e i no d e S o p i t ,

t o d a s a s c r i a nça s d i s f o r me s e r a m imo l a d a s p e l o s p r ó p r i os p a i s . A s mu l he r e s d e M a d a g a s ca r e x p unha m

à s f e r a s a s c r i a nça s na s c i d a s em ce r t o s d i a s d a s ema na . Na s r ep úb l i c a s d a G r éc i a , t o d a s a s c r i a nça s

q ue v i nha m a o mund o e r a m cu i d a d o s a men te e x a m ina d a s , e ca s o s e co n s t a t a ss e nã o s e r em co n s t i t u í d a s

p a r a d e f end e r um d i a a Rep úb l i c a , e r a m imed i a t a men te imo l a d a s : l á n i n g uém a cha va e s s enc i a l e r i g i r

c a s a s r i c a men te d o t a da s p a r a co n s e r va r e s s a v i l e s có r i a d a na tu r eza huma na . A t é a mud a nça d a s ed e

do Impér io , todo s o s romanos que não qu i ses sem a l imentar seus f i l ho s o s j ogavam no depós i to de l i xo .

O s a n t i g o s l e g i s l a d o r e s nã o t i nha m nenhum e s c r úp u l o em d e s t i n a r c r i a nça s à mo r t e , e j a ma i s a l g um d e

s eu s có d i g o s r ep r im i a o s d i r e i t o s q ue um p a i s e a r r o g a va s o b r e s ua f a m í l i a . A r i s t ót e l e s a co n s e l ha va o

a b o rt o ; e s se s a n t ig o s r e pu b l ic a n os , c h e i os d e e n t us i a sm o e a r d or p e l a p á t r i a , d e s c o nh e c i am e s sa

comiseração ind iv idua l que se encont ra nas nações modernas ; amava- se menos a s c r ianças , mas amava-

s e ma i s o p a í s . E m t o d a s a s c i d a d e s ch i ne s a s enco n t r a - s e t o d a s a s ma nhã s uma i n c r í v e l q ua n t i d a d e d e

c r i a nça s a b a nd o na da s p e l a s r ua s ; a o f im d o d i a s ã o r e co l h i d a s p o r uma ca r r o ça e d ep o i s j o g a d a s numa

f o s s a ; p o r v e ze s a s p a r t e i r a s me s ma s a l i v i a m a s mã e s a f o g a nd o s eu s f r u t o s em t i n a s d e á g ua f e r ven te

o u j o g a n d o - o s n o r i o . E m P e q u i m , a s c r i a n ç a s s ã o p o s t a s e m p e q u e n o s c e s t o s d e j u n c o e d e p o i s

a b a nd o na da s no s ca na i s ; o cé l eb r e v i a j a n te D uha l d e ca l cu l a em a p r o x ima d a men te ma i s d e t r i n t a m i l o

númer o d o s q ue s a . o r e t i r a d o s d e l á em ca d a a ve r i g ua çã o . Nã o s e p o d e neg a r q ue s e j a a b s o l u t a men te

n e c e ss á r io e e x t re m a me n t e p o lí t i c o b a r r a r a p o p ul a ç ão n u m g o v er n o r e p ub l i c an o ; p o r o b j et i v o s

co mp l e t a men te o p o s t o s é p r e c i s o enco r a j á - l a numa M o na r q u i a o nd e o s t i r a no s , r i c o s a p ena s em r a zã o

d o númer o d e s eu s e s c r a vo s , s e g u ra men te nece s s i t a m d e ho men s ; ma s a a b und â nc i a d e s s a p o p u l açã o ,

não duv idemos d i s so , é um v íc io rea l num governo repub l i cano . Ent retanto , não é p rec i so dego la r para

d im inu i r a p o p u l a çã o , co mo d i z i a m no s s o s mo d e r no s d ecenv i r o s: d e ve - s e a p ena s nã o l he d a r me i o s d e

s e e s t end e r a l ém d o s l im i t e s q ue s ua f e l i c i d a d e p r e s c r e ve. E v i t a i mu l t i p l i c a r d ema i s um p o vo em q ue

ca d a s e r é s o b e r a no e e s t e j a i s b em ce r t o s d e q ue a s r e vo l u çõ e s j a ma i s s ão o u t r a co i s a q ue o s e f e i t o s

d e uma p o p u l a çã o numer o sa d ema i s . S e , p a r a o e s p l end o r d e um E s t a d o , co nced e i s a v o s s o s g ue r r e i ro s

o d i r e i t o d e d e s t r u i r h o men s , p a r a a co n s e r va çã o d e s s e me s mo E s t a d o , co nced e i a c a d a i nd i v í d uo o

d i r e i t o d e s e d e s f a ze r d a s c r i a nça s q ue nã o p o d e a l imen ta r o u d a s q ua i s o g o ve r no nã o p o s s a t i r a r

nenhum p r o ve i t o ; c a d a i nd i v í d uo p o d e en t r e g a r - s e a i s s o o q ua n to q u i s e r , j á q ue a s s im f a zend o nã o

u l t r a j a a na tu r e za . C o nced e i - l he t a mb ém q ue s e d e s f a ça , a s s um indo s eu s r i s co s e p e r i g o s , d e t o d o s o s

i n im i g o s q ue l he p o s s a m p r e j ud i ca r, p o i s o r e s u l t a d o d e t o d a s e s s a s a çõ e s , a b s o l u t a men te nu l a s em s i

me s ma s , s e r á co n s e r va r v o s s a p o p u l a çã o num E s t a d o mo d e r a d o e j a ma i s numer o s o o b a s t a n te p a r a

d e r r ub a r v o s s o g o ve r no . D e i x a i o s mo na r q u i s t a s d i z e r q ue um E s t a d o s ó é g r a nd e p o r ca u s a d e s ua

e x t re m a p o p u l aç ã o ; e s s e E s t a d o s e r á s e m p re p o br e s e a p o pu l aç ã o e x c e d e r o s m e i os d e v i d a , e

f l o r e s ce r á s emp r e s e , co n t i d o no s j u s t o s l im i t e s , p ud e r co me r c i a r s eu s e x ced en te s . Nã o é p r e c i s o

p o d a r a á r vo r e q ua nd o e l a s e enche d e g a l ho s e co r t a r s eu s r a mo s p a r a co n s e r va r - lhe o t r o nco ? To d o

s i s te m a q u e s e a f as t a d e s s e s p r i n c í pi o s é u m a e x t r a va g â nc i a c u j os a b u so s n o s l e v a r ia m l o go à

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 37/41

d e s t r u i ç ã o t o t a l d o e d i f í c i o q u e a c a b a m o s d e e r g u e r c o m t a n t o e s f o r ç o . N ã o s e d e v e d e s t r u i r u m

h o me m j á c ri a do p a ra d i mi n ui r a p o pu la ç ão ; é i n ju s to a br e vi a r o s d ia s d e u m i n di v íd uo b e m

co n s t i t u í d o; ma s nã o é i n j u s t o imp ed i r q ue venha a o mund o um s e r q ue ce r t a men te l he s e r á i nú t i l . A

e s p éc i e huma na d eve s e r d ep u r a d a no b e r ço ; s ó a s s im i r e i s p r e ven i r e s up r im i r d e s eu s e i o t ud o a q u i l o

q ue j a ma i s s e r i a ú t i l à s o c i ed a d e . E i s o s ún i co s me i o s r a zo á ve i s d e d im inu i r uma p o p u l a çã o q ue , p o r

ser ex tensa demai s , é , como acabamos de p rovar , o ma i s per igo so do s abuso s .

E tempo de resumir .O a s s a s s i n a t o d eve s e r r ep r im id o p e l o a s s a s s i n a t o ? Nã o , s em d úv i d a . S ó d evemo s imp o r a o

a s s a s s i no a p ena q ue p o d em i n co r r e r p o r v i n g a nça o s a m i g o s o u a f a m í l i a d a v í t ima . E u v o s p e r d ô o ,

d i s s e L u í s X V a C ha r o l a i s q ue ma ta r a um ho mem p a r a s e d i v e r t i r , ma s t a mb ém à q ue l e q ue i r á ma ta r -

vo s . Todas a s bases da l e i cont ra o s a s sa s s ino s se encont ram nes sas pa lav ras sub l imes .

E n f im , o a s s a s s i n a t o é um ho r r o r, ma s um ho r r o r q ua s e s emp r e nece s s á r i o , j a ma i s c r im ino s o ;

p o r i s s o é e s s enc i a l t o l e r á - l o num E s t a d o r ep ub l i c a no . O un i ve r s o i n t e i r o , co mo j á mo s t r e i , n o s d á

e x e m p l o s d e l e ; m a s , s e r á p r e c i s o c o n s i d e r á - l o u m a a ç ã o f e i t a p a r a s e r p u n i d a d e m o r t e ? O s q u e

r e s p o nd em a o s e g u i n t e d i l ema t e r ã o r e s o l v i d o a q ue s t ã o : o a s s a s si n a t o é o u nã o um c r ime ? S e nã o é ,

p a r a q ue f a ze r l e i s q ue o p unem? E s e f o r, p o r q ue b á r b a r a e e s t úp i d a i n co n s eq üênc ia o p un i r e i s c o m

um c r ime s eme l ha n te ?

S ó no s r e s t a f a l a r d o s d eve r e s d o ho mem p a r a co n s i g o me s mo . C o mo o f i l ó s o f o s ó a d o t a e s s e s

d eve r e s na med id a em q ue co n t r i b uem p a r a s eu p r a ze r e co n s e r va çã o , é i nú t i l r e co mend a r - l he s s uap rát ica e , ma i s inút i l a inda, impor cas t igo s se não o s cumpr i r .

O ún i co d e l i t o q ue o ho mem p o d e co mete r ne s s e g êne r o é o s u i c í d i o . Nã o me en t r e te r e i a q u i

e m p r o v a r a i m b e c i l i d a d e d a s p e s s o a s q u e f a z e m d e s s a a ç ã o u m c r i m e . R e m e t o à f a m o s a c a r t a d e

Rous seau " aque les que a inda t i verem dúv ida sob re i s s o . Quase todos o s ant igo s governo s auto r i zavam o

s u i c í d i o p e l a p o l í t i c a e p e l a r e l i g i ã o . O s a t en i en s e s e x p unha m no A r eó p a g o a s r a zõ e s p e l a s q ua i s s e

matavam e depo i s s e apunha lavam. Todas a s repúb l i ca s da Gréc ia to le ra ram o su ic íd io ; e le cons tava do

p l a no d o s l e g i s l a d o r e s ; a s p e s s o a s ma ta va m- s e em p úb l i co , f a zend o d a mo r te um e s p e tá cu l o p o mp o s o .

A R e p ú b l i c a r o m a n a e n c o r a j a v a o s u i c í d i o ; s e u s c é l e b r e s d e v o t a m e n t o s à p á t r i a n ã o p a s s a v a m d e

su ic íd io s . Quando Roma fo i tomada pe lo s gau leses , o s s enado res ma i s i l u s t res consag ra ram- se à mor te .

Re to ma nd o e s s e me s mo e s p í r i t o , a d o t a r emo s a s me s ma s v i r t ud e s . U m s o l d a d o ma to u - s e d e d e s g o s t o

d u r a n te a ca mp a nha d e 9 2 p o r n ã o p o d er a co mp a nha r s eu s ca ma r a d a s na q ue s t ã o d e Jemma p es . S e

fô s semos sempre co locados à a l tu ra des ses o rgu lho so s repub l i cano s , s uperar íamos l ogo suas v i r tudes . E

o g o ve r no q ue f a z o ho mem. U m há b i t o t ã o l o ng o d e d e s p o t i smo d eb i l i t a r a t o t a l men te no s s a co r a g em,

c o r ro m p er a n o s so s c o s tu m e s; n ó s r e na s c em o s . L o g o v e r em o s d e q u e a ç õ es s u bl i m es s ã o c a p a z e s o

gên io , o ca rá ter f r ancês quando l i v res . Sus tentemos ao p reço de no s sas f o r tunas e de no s sas v idas e s sa

l i b e r d a de q ue j á no s cu s t o u t a n t a s v í t ima s ; n ã o l a men ta r emo s nenhuma s e a t i n g i r mo s a me ta ; e l e s s e

s a c r i f i c a r am vo l un t a r i a men te . Q ue e s t e s a ng ue nã o s e j a i nú t i l ! M a i s un i ã o é p r e c i s o .. . ma i s un i ã o , o u

p e r de r e mo s o f r u to d e t a n to s e s fo r ç os . F u n de m o s e x c el e n te s l e i s s o br e a s v i t ó ri a s c o n qu i s ta d a s;

no s s o s p r ime i r o s l e g i s l a do r e s , a i nd a e s c r a vo s d o d é s p o t a q ue en f im a b a temo s , s ó no s t i nha m d a d o l e i s

d i gn a s d es se t i ra n o q u e e le s a i nd a i n ce n sa v am . R ef a ça m os s u a o br a, p e ns an d o q ue é p ar a o s

r ep ub l i c a no s e p a r a o s f i l ó s o f o s q ue v a mo s t r a b a l ha r. Q ue no s s a s l e i s s e j a m b r a nd a s co mo o p o vo q ue

devem re ger.

O f e r e cendo a q u i o n a d a , co mo a ca b o d e f a ze r, a i nd i f e r ença d e uma i n f i n i d a d e d e a çõ e s q ue

no s s o s a nce s t r a i s , s ed uz i d o s p o r uma f a l s a r e l i g i ã o , v i a m co mo c r im ino s a s , r ed uzo no s s o t r a b a l ho a

b em p o uca co i s a . F a ça mo s p o uca s l e i s , ma s q ue s e j a m b o a s . Nã o s e t r a t a d e mu l t i p l i c a r o s f r e i o s , ma s

d e d a r à q ue l e q ue o emp r eg a uma q ua l i d a d e i nd e s t r u t í v e l . Q ue a s l e i s p r o mu l g a d a s s ó t enha m p o r

f ina l idade a t ranqü i l idade do c idadão , sua fe l i c idade e o b r i l ho da Repúb l i ca . Mas , apó s te r rechaçado

o i n im i g o d e v o s s a s t e r r a s, f r a nce s e s , eu nã o d e s e j a r i a q ue o a r d o r d e p r o p a g a r v o s s o s p r i n c í p io s v o s

a r r a s t a s s e l o ng e d ema i s ; s o men te a f e r r o e f o g o p o d e r e i s l e v á - l o s a o s co n f i n s d o un i ve r s o . An te s d e

cump r i r e s s a s r e s o l u çõ e s , t enha i s s emp r e em men te o ma l o g r o d a s c r u za d a s . Q ua nd o o i n im i g o e s t i v e r

d o o u t r o l a d o d o R e n o , a c r e d i t a i - m e , g u a r d a i v o s s a s f r o n t e i r a s e f i c a i e m v o s s a c a s a ; r e a n i m a i o

c o m ér c i o, r e s ti t u i nd o a e n e rg i a e o m e r ca d o a v o s sa s m a n uf a t ur a s ; f a z e i r e f lo r e sc e r a s a r t es ,

e n c or a j ai a a g r ic u l tu r a , t ã o n e c es s á ri a n u m g o ve r n o c o m o o v o s so , c u j o e s p í ri t o d e v e s e r p o d er

f o r nece r a t o d a g en te s em t e r nece s s i d a d e d e n i n g uém; d e i x a i o s t r o no s d a E u r o p a d e s mo ro na r em p o r

s i m e s mo s ; o v o s so e x e mp l o , a p r os p e ri d a de , d e p re s s a o s l a n ça r ã o p o r t e r ra s e m q u e p r e c i s ei s

in ter fe r i r .

I n venc í ve i s em vo s s o t e r r i t ó r i o , mo d e lo s d e t o d o s o s p o vo s p e l a v o s s a p o l í c i a e b o a s l e i s , n ã o

ha ve r á g o ve r no no mund o q ue nã o f a r á t ud o p a r a v o s im i t a r e q ue nã o s e ho n r e co m a v o s s a a l i a n ça .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 38/41

M a s s e , p e l a h o n r a v ã d e l e v a r l o n g e v o s s o s p r i n c í p i o s , a b a n d o n a r d e s o c u i d a d o d e v o s s a p r ó p r i a

f el i ci da d e, o d es po t is m o, q ue e st á a pe na s a do r me c id o , r en a sc e rá ; d i sc ó rd i as i n te s ti n as v os

d i l a ce r a r ã o , t e r e i s e x a u r i d o v o s s a s f i n a nça s e v o s s o s s o l d a d o s , e t ud o i s s o p a r a o u t r a v e z b e i j a r o s

f e r ro s i m p os t os p e l os t i r an o s, o s q u a is v o s t e r ão s u b ju g a do d u ra n t e v o s s a a u s ên c i a. Tu d o o q u e

d e s e j a i s p o d e - s e co n s eg u i r s em q ue s e j a p r e c i s o d e i x a r v o s s o s l a r e s ; q ue o s o u t r o s p o vo s v o s v e j a m

fe l i zes e co r re rão ao encont ro da fe l i c idade pe lo mesmo caminho que l hes t i ve rdes t raçado .

V I I . SOC I E DADE  DO S  AM IGOS  DO   CR IME

MANDAMENTOS

A s o c i e d a d e s ó c o n v e n c i o n a l m e n t e s e s e r v e d a p a l a v r a " c r i m e " , m a s d e c l a r a n ã o d e s i g n a r

as s im nenhuma espéc ie de ação , de qua lquer t ipo que se ja .

P l e n a m e n t e c o n v e n c i d a d e q u e o s h o m e n s n ã o s ã o l i v r e s , e q u e , a c o r r e n t a d o s à s l e i s d a

natureza , s ão escravo s des sas l e i s p r ime i ra s , a s oc iedade ap rova tudo , l eg i t ima tudo e cons idera como

s e u s s e c t á ri o s m a i s z e l os o s a q u e l es q u e , s e m n e n hu m r e m or s o, s e e n t re g a re m a o m a i o r n ú m e ro

pos s í ve l des sas ações v igo ro sas a que o s to l o s po r f r aqueza denominam "cr imes " , v i s to e s ta r per suad ida

d e q u e s e r ve à n a tu r ez a q ue m s e e n tr eg a à s a ç õe s d i ta d as p or e l a; e o q ue v e rd a de i ra m en t e

ca r a c te r i z a r i a um c r ime s e r i a a r e s i s t ênc i a em s e en t r e g a r a t o d a s a s i n s p i r a çõ e s d a na tu r e za , d e

q ua l q ue r e s p éc i e q ue p o s s a m s e r . E m co n s eq üênc i a , a s o c i ed a d e p r o teg e t o d o s o s s eu s memb r o s , e a

t o d os p r om e t e a j u da , a b r ig o , r e f úg i o , p r o t e ç ão , c r é di t o c o n tr a o s e m p re e n di m e nt o s d a l e i . E l a

enca r r e g a -s e d a s a l v a g ua r d a d e t o d o s o s q ue t r a n s g r ed i r em a l e i e s e co l o ca r em a c ima d e l a , p o r q ue a

le i é ob ra do s homens , e a s oc iedade, f i l ha da natureza , s ó ouve e segue a p róp r ia mãe.

1 ° A s o c i ed a d e nã o f a z d i s t i n çã o a l g uma en t r e o s i nd i v í d uo s q ue a i n t e g r a m. Nã o q ue ve j a

todo homem igua l ao s o lho s da natureza ( es tá l onge des se p reconce i to popu la r , f ru to da f r aqueza e da

fa l s a f i l o so f ia ) , mas es tá per suad ida de que toda d i s t inção incomodar ia o s p razeres de la , per turbando -

o s ma i s cedo ou ta rde.

2 ° O i n d iv í d uo q u e q u e i r a s e r a d m it i d o n a s o c ie d a de d e ve r e n un c i a r a t o da e s p éc i e d e

r e l ig i ã o, s u b me t e n do - se a p r ov a s q u e c o n s t a ta r ã o s e u d e sp r e zo p o r e s s e s c u l to s h u m an o s e s e u

qu imér ico ob jeto . O ma i s l eve re to rno de sua par te a ta i s a sne i ra s imp l ica rá sua exc lusão imed ia ta .3 ° A s o c i ed a d e nã o a d m i t e d eu s a l g um; há q ue s e o s t en t a r a t e í s mo p a r a i n g r e s s a r ne l a . O

ún ico deus que conhece é o p razer ; po r e s te e l a s acr i f i ca tudo . Admite todas a s vo lúp ia s imag ináve i s e

a p r ec i a t o d o s o s d e l ei t e s; t o d os o s g o z o s s ã o a u t or i z ad o s e m s e u s e i o , n ã o h á n e n h u m q u e n ã o

incense, recomende ou p ro te ja .

4 ° A s o c i ed a d e r o mp e t o d o s o s l a ço s d o ca s a men to e co n f und e t o d o s o s d o s a ng ue . E m s ua

s ed e d eve - s e , i nd i s t i n t a men te , g o za r t a n to d a mu l he r d o p r ó x imo q ua n to d a p r ó p r i a , t a n t o d e s eu

i r mã o e i r mã , d e s eu s f i l h o s e s o b r i nho s , q ua n to o s d o s o u t r o s . A meno r r ep ug nâ nc i a a e s s a s r e g r a s é

um podero so mot ivo de exc lusão .

5 ° O ma r i d o t em o b r i g a çã o d e a p r e s en t a r a mu l he r ; o p a i , s eu f i l h o o u f i l h a ; o i r mã o , a i r mã ;

o t io , o s ob r inho ou sob r inha, e tc .

6 ° Nã o s e i n t r o d uz na s o c i ed a d e a q ue l e q ue nã o p r o ve t e r a o meno s v i n t e e c i n co m i l l i b r a s

d e r e n da , c o n si d e ra n d o- s e q u e a s d e s p e s as a n u ai s s ã o d e d e z m i l f r a nc o s p o r i n d iv í d uo . C o m e s s em on t an t e s ão c ob e rt a s t o da s a s d e sp es a s d a c a sa : a lu g ue l , h a ré n s, c a rr ua g en s, s ec r et a ri a ,

a s s e m b l é i a s , j a n t a r e s , i l u m i n a ç ã o . E q u a n d o s o b r a d i n h e i r o n a t e s o u r a r i a a o f i n a l d o a n o , e l e é

d iv id ido ent re o s i rmãos ; s e a s despesas excedem à rece i ta , co t i za - se para se reembo l sa r o tesoure i ro ,

cuja pa lavra sempre te rá c réd i to ab so luto .

7 ° V i n t e a r t i s t a s o u ho men s d e l e t r a s s e r ã o r e ceb i d o s a o p r e ço mó d i co d e m i l l i b r a s p o r a no .

A s o c i ed a d e , p r o te t o r a d a s a r t e s , o u t o r g a - l he s e s s a d e f e r ênc i a , l a s t ima nd o - s e nã o p e r m i t i r em s eu s

meio s admit i r po r ta l p reço med íocre um número ma io r de homens do s qua i s te rá sempre es t ima.

8 ° U n i d o s co mo num s e i o f a m i l i a r , o s a m i g o s d a s o c i ed a d e d i v i d em en t r e s i t o d a s a s p ena s ,

a s s im c o m o t o d o s o s p r a ze r es ; e l e s a j u d a m- s e e s o co r r em - s e m u t u a m en t e e m t o d as a s d i v er s a s

s i t ua çõ e s d a v i d a ; p o r ém, t o d a s a s e s mo l a s, c a r i d a d e s , a ux í l i o s d a d o s à s v i ú va s , ó r f ã o s o u i nd i g en te s

s ã o a b s o l u t a men te p r o i b i d o s a o s a s s o c i a d o s ; t o d o memb r o a p ena s s u s p e i t o d e s s a s s up o s t a s b o a s o b r a s

será exc lu ído .9° Haverá sempre em reserva uma soma de t r in ta mi l l ib ra s para um membro a quem a mão do

des t ino de ixa r em má s i tuação .

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 39/41

1 0° O p re s id en t e, e l ei t o p or e sc r ut í ni o , s ó f i ca rá u m m ê s e m e xe r cí c io ; é e sc o lh i do

a l t e r na d a men te d e um e d e o u t r o s e x o , e p r e s i d i r á d o ze a s s emb l é i a s ( s end o q ue há t r ê s p o r s ema na ) ;

s u a ú n i c a f u n ç ã o é f a z e r c o m q u e s e r e s p e i t e a s l e i s d a s o c i e d a d e e m a n t e r a c o r r e s p o n d ê n c i a

ex ecu ta d a p o r um co m i t ê p e r ma nen te che f i a d o p o r e l e me s mo . O t e s o u r e i r o e o s d o i s s e c r e t á r i o s d a

a s s emb l é i a s ã o memb r o s d e s s e co m i t ê , ma s r eno va m- s e o s s e c r e t á r i o s t o d o s o s me s e s , a s s im co mo o

p res idente.

11° Cada ses são é aber ta com um d i s cur so , ob ra de um dos membro s . O esp í r i to des se d i s cur soé co n t r á r i o a o s co s t umes e à r e l i g i ã o ; q ua nd o v a l e a p ena , é imed i a t a men te imp r e s s o a e x p en s a s d a

soc iedade e a rqu ivado .

1 2 ° No s ho r á r i o s co n s a g r a d o s a o p r a ze r , t o d o s o s i r mã o s d evem e s t a r nu s e m i s t u r a r - s e un s

co m o s o u t r o s , g o za nd o i nd i s t i n t a men te , e j a ma i s uma r e cu s a p o d e s ub t r a i r um i nd i v í d uo a o s p r a ze r e s

d e o u t r o . O q ue f o r e s co l h i d o d eve s e p r e s t a r e f a ze r t ud o o q ue l he f o r s o l i c i t a d o : n ã o t e r á e l e o

m e s mo d i r ei t o n o m o m en t o s e g u i n te ? O i n d iv í d u o q u e s e r e c u s a r a o s p r a ze r e s d e s e u s i r m ã os s e rá

obr igado a i s s o pe la f o rça , e depo i s expu l so .

1 3 ° No s e i o d a a s s emb l é i a , nenhuma p a i x ã o c r ue l é a ce i t a , co m ex ceçã o d o a ço i t e a p l i c a d o

s o men te na s ná d eg a s . E x i s t em ha r én s na s o c i ed a d e em q ue a s p a i x õ e s f e r o ze s p o d em s e r l e va d a s a o

ex t remo; po rém, ent re o s i rmãos , bas tam as vo lúp ia s c rapu lo sas , inces tuo sas , s odomitas e suaves .

1 4 ° A ma i o r co n f i a nça p o s s í v e l é e s t a b e l e c i d a en t r e o s i r mã o s ; e l e s d evem co n f e s s a r s eu s

g o s t o s en t r e s i , s u a s f r a q ueza s , d e l e i t a r - s e co m s ua s co n f i d ênc i a s , enco n t r a nd o ne l a s um a l imen to ama i s p a r a s eu s p r a ze r e s . O i nd i v í d uo q ue t r a i r o s s e g r ed o s d a s o c i ed a d e , o u q ue r ep r eend e r a um d e

seus i rmãos f r aquezas ou pa ixões que fazem a fe l i c idade de seu gozo , se rá imed ia tamente exc lu ído .

1 5 ° P e r t o d a s a l a p úb l i c a d o s g o zo s f i c a m o s g a b i ne te s s e c r e t o s o nd e é p o s s í v e l r e t i r a r - s e

p a ra e n t re g a s o l it á r ia a t o do s o s d e b oc h e s d a l i b er t i na g e m; p o d em a d e nt r á -l o q u a nt a s p e s so a s

qu i se rem. São p rov ido s de tudo o que é neces sá r io , e em cada um de les encont ram- se uma garo ta e um

men ino à d i s p o s i ç ã o p a r a e x ecu ta r em t o d a s a s p a i x õ e s d o s memb r o s d a s o c i ed a d e , i n c l u s i v e a s q ue s ó

s ã o p e r m i t i d a s no i n t e r i o r d o s ha r én s , p o i s e s s a s c r i a nça s , d a me s ma e s p éc i e q ue a s d o s ha r én s , e

mesmo dependentes de les , podem ser t r a tadas com ta i s .

1 6 ° To d o s o s e x c es s os d e m e s a s ã o a u t o ri z a do s ; t o d a a a j u da e t o d a a a s si s t ên c i a s ã o

p res tadas ao i rmão que se ent regar a e le s ; todo s o s me io s po s s í ve i s s ão fo rnec ido s para s a t i s f azê- l o s .

1 7 ° Nenhuma má cu l a j u r í d i c a , nenhum d e s p r e zo p úb l i c o , nenhuma d i f a ma çã o p o d em imp ed i r o

imp r e s s o na s o c i ed a d e . E s t a nd o o s p r i n c í p i o s d a me s ma b a s ea d o s no c r ime , co mo a q ue l e q ue vem d o

c r ime p o d e r i a s e r b a r r a d o? Re j e i t a d o s p e l o mund o , t a i s i nd i v í d uo s enco n t r a r ã o co n s o l o e a m i g o s numa

s o c ie d a de q u e o s c o n si d e ra r á e o s a d m it i r á p r e f e re n c i al m e nt e . Q u a nt o m a i s u m i n d iv í d uo f o r

d e s co n s i de r a d o no mund o , ma i s e l e a g r a d a r á à s o c i ed a d e ; o q ue p e r t encem a e s s e g r up o s e r ã o e l e i t o s

p res identes no mesmo d ia de sua recepção , e admit ido s no s haréns sem o nov ic iado .

1 8 ° C o n f i s s õ e s p úb l i c a s o co r r em na s q ua t r o g r a nd e s a s s emb l é i a s g e r a i s , c o i n c i d i nd o co m a s

ép o ca s cha ma d a s p e l o s c a t ó l i c o s d e " a s q ua t r o ma i o r e s f e s t a s d o a no " . E m t a i s o ca s i õ e s , c a d a um t em

o b r i g a çã o d e co n f e s s a r, em vo z a l t a e c l a r a , t ud o a q u i l o q ue f e z ; c a s o s ua co nd u ta s e j a co n s i d e r a d a

p u r a , s e r á r ep r eend i d o ; s e f o r i r r e g u l a r , s e r á co b e r t o d e l o u vo r e s ; e s e e l e f o i t e r r í v e l , s e e s t i v e r

co b e r t o d e c r ime s e d e e x ec r a çõ e s ? Ne s s e ca s o , s e r á r e co mp en s a d o, ma s t e r á d e t r a ze r t e s t emunha s .

Os p rêmio s e levam- se sempre a do i s mi l f r anco s , s empre tomados com base na to ta l idade.

1 9 ° O l o ca l d a s o c i ed a d e, co nhec i d o s o men te p o r s eu s memb r o s , é d e g r a nd e b e l e za , ce r ca d o

d e j a r d i n s ma g n í f i c o s . No i n ve r no a s s a l a s s ã o a q uec i d a s p o r g r a nd e s l a r e i r a s . O ho r á r i o d e r eun i ã o é

das c inco ho ras da ta rde à s doze ho ras do d ia segu inte . Po r vo l ta da me ia -no i te , é se rv ido um soberbo

janta r , e re f resco s durante todo o tempo.

20° Toda e qua lquer e spéc ie de j ogo é p ro ib ido na soc iedade; ocupada com re laxamento s ma i s

a g r ad á ve i s à n a t u re z a , e l a d e sd e n ha t u d o o q u e s e a f as t a d a s p a i xõ e s d i v i n a s d a l i b er t i na g e m, a s

ún icas capazes de e le t r i za r o homem.

2 1 ° O r e c i p i end á r i o , d e q ua l q ue r s e x o , d u r a n te um mês , p a s s a p e l o no v i c i a d o ; ne s s e í n t e r im

e le f i ca à s o rdens da soc iedade; é t ra tado qua l um joguete, não tendo aces so ao s haréns nem podendo

s e r a d m i t i do e m n e n hu m o u t ro l u g ar. S e r á c o n d e na d o à p e n a d e m o rt e c a so s e j a s u r p re e n di d o

recusando a s p ropos tas que l he fo rem fe i ta s .

22° Todos o s ca rgo s s ão dec id ido s po r e s crut ín io secreto ; p ro íbem- se severamente a s in t r i ga s .

O s ca r g o s s ã o , a s a b e r : o d a p r e s i d ênc i a , o s d o i s d o s e c r e t a r i a d o , o d a cen s u r a , o d a s d ua s d i r e t o r i a s

do s haréns , o do tesoure i ro , o do mordomo, o do s do i s méd ico s , o do s do i s c i ru rg iões , o do par te i ro , o

d a d i r eç ã o d a s e c re t a ri a , c u j o c h e fe t e m a b ai x o d e l e o s e s c r i t or e s, o s i m p r e s so r e s, o r e v i so r e o

censo r das ob ras , e o in speto r - gera l do s b i l hetes de ent rada.

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 40/41

2 3 ° N ã o s ã o a c e i t o s h o m e n s a c i m a d e q u a r e n t a a n o s e m u l h e r e s a c i m a d e t r i n t a e c i n c o ;

po rém, o s que enve lhecerem na soc iedade podem permanecer ne la po r toda a v ida .

2 4 ° To d o memb r o q ue nã o f o r v i s t o na s o c i ed a d e no p e r í o d o d e um a no s e r á e x p u l s o , s em q ue

seus encargo s púb l i co s ou seus emprego s po s sam jus t i f i ca r s uas ausênc ia s .

2 5 ° T od a o b ra c o n t ra o s c o s tu m e s o u c o n tr a a r e l ig i ão , a p re s e nt a d a p o r u m m e m br o d a

s o c i e d a d e , s e j a e l e o u n ã o o a u t o r , é i m e d i a t a m e n t e d e p o s i t a d a n a b i b l i o t e c a d a c a s a , e r e c e b e

r e c o m p e n s a q u e m a h o u v e r o f e r e c i d o , e m r a z ã o d o m é r i t o d a o b r a e p e l a p a r t e q u e n e l a h o u v e rtomado .

2 6 ° A s c r i a nça s co nceb i d a s na s o c i ed a de s e r ã o d e s d e ced o co l o ca d a s na ca s a d o no v i c i a d o d o s

ha r én s p a r a t o r na r em- s e s eu s memb r o s a s s im q ue a t i n g i r em o s d e z a no s , p a r a o s men i no s , e o s s e t e ,

p a r a a s men i na s . M a s a mu l he r o u g a r o t a q ue s e s u j e i t a r a co nceb e r s e r á p r o n t a men te e x c l u í d a : a

r ep r o d uçã o d e mo d o a l g um f a z p a r t e d o e s p í r i t o d a s o c i ed a d e . A v e r d a d e i r a l i b e r t i n a g em a b o m ina a

p rogen i tura ; po r tanto , a s oc iedade a rep r ime com r igo r . As mulheres denunc ia rão o s homens su je i to s a

ta l man ia , e , s e f o rem cons iderados inco r r ig í ve i s , s e rão do mesmo modo conv idados a se re t i r a rem.

2 7 ° A f unçã o d o p r e s i d en te é v i g i a r a p o l í c i a - g e r a l d a a s s emb l é i a . Ab a i x o d e l e há o cen s o r ;

a mb o s d evem ma n te r a ca l ma , a t r a nq ü i l i d a d e , o s c a p r i cho s d o s a g en te s , a s ub m i s s ã o d o s p a c i en te s , o

s i lê n ci o , m o de ra r o s r i so s, a s c o nv e rs aç õ es , t u do a qu i lo q u e, e n fi m , n ã o f or d o e sp í ri t o d a

l i b e r t i n a gem, o u q ue a p r e j ud i q ue . E nq ua n to p r e s i d en te , t a mb ém é enca r r e g a do d a " g r a nd e i n s p eçã o "

no s ha r én s . No cu r s o d a s s e s s õ e s , n ã o p o d e a b a nd o na r a me s a d a a s s emb l é i a s em s e r s ub s t i t u í d o p o rseu p redec es so r.

2 8 ° O s j u r a men tos e s o b r e tudo a s b l a s f êm ia s s ã o a u to r i z a d o s; p o d em- s e emp r eg á - l o s a t o d o s

o s p ropós i to s . Os membro s ent re s i j ama i s devem se t ra ta r s enão po r tu .

29° Os c iúmes , a s quere la s , a s cenas ou p ropos tas de amor s ão ab so lutamente p ro ib ido s : tudo

i s so p re jud ica a l iber t inagem, e só se deve ocupar de la .

3 0 ° T o d o i nd i v í d uo d e s o r d e i r o o u d uc l i s t a s e r á e x c l u í d o s em m i s e r i có r d i a . A p o l t r o na r i a é

r e ve r enc i a d a a q u i co mo em Ro ma ; o co va r d e v i v e em p a z co m o s ho men s ; a l ém d i s s o , g e r a l men te é

bas tante l iber t ino : a s oc iedade p rec i s a de ta i s s u je i to s .

3 1 ° O númer o d e memb r o s j a ma i s p o d e r á e x ced e r a q ua t r o cen to s , e s e r á ma n t i d o o me l ho r

po s s í ve l em igua ldade de sexo .

32° O roubo é permit ido no in ter io r da soc iedade, mas o a s sa s s inato somente no s haréns .

3 3 ° U m memb r o nã o p r e c i s a t r a ze r co n s i g o o s i n s t r umen to s nece s s á r i o s em l i b e r t i n a g em: a

casa fo rnecerá ta i s ob jeto s em abundânc ia , com d i s cern imento e l impeza.

3 4 ° Nenhuma en f e r m id a d e r ep ug na n te s e r á t o l e r a d a . Q uem q ue r q ue s e a p r e s en te a f e t a d o

d e s s a f o r ma s e g u r a men te nã o s e r á a ce i t o . C a s o memb r o s j á a d m i t i d o s co n t r a í r em s eme l ha n te s ma l e s ,

se rão ob r igados a se des l i ga rem.

3 5 ° U m m e m br o a t a c a d o d e d o e nç a v e n ér e a s e r á o b r ig a do a r e t ir a r- s e a t é s e u i n t e i r o

res tabe lec imento , a tes tado pe lo s méd ico s e c i ru rg iões da casa .

3 6° N e nh u m e s tr a ng ei r o s e rá r e ce bi d o, n em m e sm o o s h a bi t an t es d a p ro v ín c ia . E st e

res tabe lec imento só ex i s te para a s pes soas res identes em Par i s ou a r redo res .

3 7 ° T í t u l o s d e n a s c e n ç a n ã o t e r ã o v a l i d a d e p a r a a a d m i s s ã o ; b a s t a p r o v a r p o s s u i r o b e m

neces sá r io ind icado anter io rmente. Uma mulher , po r ma i s bon i ta que se ja , não se rá admit ida caso não

prove po s su i r a f o r tuna requ i s i tada. O mesmo va le para o r apaz, po r ma i s be lo que se ja .

3 8 ° Be l e za o u j u ven tud e nã o t em nenhum d i r e i t o e x c l u s i v o na s o c i ed a d e ; ca s o co n t r á r io , l o g o

des t ru i r iam a i gua ldade do s co s tumes que ne la devem re inar .

3 9 ° Q ua l q ue r memb r o q ue r e ve l a r o s s e g r ed o s d a s o c i ed a d e s e r á co nd ena d o à p ena d e mo r te ;

quem o f i ze r s e rá per segu ido po r toda a par te a mando da soc iedade.

4 0 ° C o mo d id a d e , l i b e r d a d e , imp i ed a d e , d eva s s i dã o , t o d o s o s e x ce s s o s d a l i b e r t i n a gem, t o d o s

o s d o d eb oc he , d a g ul a, d aq ui lo q ue , e m s um a, c ha ma -s e d e " su je ir a d a l ux úr ia ", r ei na m

imper io samente nes ta a s semb lé ia .

4 1 ° E x i s t em, s emp r e à d i s p o s i ç ã o , cem i r mã o s s e r v i nd o em a t i v i d a d e , a s s a l a r i a d o s d a ca s a ,

j o ven s e b e l o s , p o d end o s e r emp r eg a d o s co mo p a s s i v o s n a s cena s l i b i d i no s a s , ma s j a ma i s p o d end o

n e l as d e se m p en h a r o u t r o p a pe l . A s o c ie d a de m a n té m a s u a s o r d e n s d e z es s ei s c a r ru a g e ns , d o i s

e s c ud e i ro s e c i n qü e n ta c r i ad o s e x t er i or e s . P o s su i t a m bé m u m a i m p re n s a, d o z e c o p i s t as e q u at r o

le i to res , s em inc lu i r tudo o que neces s i tam o s haréns .

4 2 ° Na s s a l a s d e s t i n a d a s a o s g o zo s nã o é p e r m i t i d a a en t r a d a d e nenhuma a r ma o u b a s t ã o .

T ud o d eve s e r d e i x a d o na en t r a d a numa va s t a a n te câ ma r a , o nd e mu l he r e s d e co n f i a nça d e s p em o s

membro s e cu idam de suas roupas . No s a r redo res da s a l a , há numero sas l a t r inas se rv idas po r ga ro tas e

8/9/2019 O DIÁLOGO ENTRE O PADRE E O MORIBUNDO

http://slidepdf.com/reader/full/o-dialogo-entre-o-padre-e-o-moribundo 41/41

r a p a ze s o b r i g a d o s a s e p r e s t a r em a t o d a s a s p a i x õ e s d a me s ma e s p éc i e d a s enco n t r a d a s no s ha r én s .

Ne l a s h á s e r i n g a s , b i d ê s , p r i v a d a s , r o up a d e ca ma f i n a , p e r f umes , e t ud o o q ue é nece s s á r i o a n te s ,

d u r a n te e d ep o i s d a s a t i s f a çã o d a s nece s s i d a d e s ; a l ém d i s s o , a s l í n g ua s d e s s e s j o ven s e s t ã o s emp r e à

d i spo s ição do s membro s na s a ída .

43° É ab so lutamente p ro ib ido imi s cu i r - se no s a s sunto s do governo . Todo d i s cur so po l í t i co es tá

expres samente in terd i to . A soc iedade respe i ta o governo sob o qua l v i ve ; e , s e e l a se co loca ac ima das

le i s , é po rque acred i ta que o homem não tem o poder de cr ia r l e i s que incomodem ou cont ra r iem as dana tu r e za . M a s a s d e s o r d en s d e s eu s memb r o s , s emp r e i n t e r i o r e s , j a ma i s d e vem e s ca nd a l i z a r nem o s

governados nem o s governantes .

4 4 º D o i s h a r én s d e s t i n a m- s e a o s memb r o s d a s o c i ed a d e , e s ua s i n s t a l a çõ e s f o r ma m a s d ua s

a l a s d a ca s a p r i n c i p a l . U m d e l e s é co mp o s t o p o r t r e zen to s j o ven s d o s s e t e a o s v i n t e e c i n co a no s ; o

o u t r o , p o r um númer o eq u i v a l en te em g a r o t a s d e c i n co a o s v i n t e e um a no s . T a i s c r i a t u r a s v a r i a m

perpetuamente, e não há semana em que não se renovem pe lo menos t r in ta in teg rantes de cada harém,

a f im d e p r o p o r c i o na r no vo s o b j e t o s a o s memb r o s d a s o c i ed a d e . Na s p r o x im id a d e s há uma ca s a o nd e

s ã o c r i a d o s a l g un s i nd i v í d uo s d e s t i n a d o s à s s ub s t i t u i çõ e s ; s e s s en t a a l co v i t e i r a s enca r r e g a m- s e d e s s a s

r e no v aç õe s e , c o mo j á f oi d it o , h á u m i n sp e to r e m c a da h a ré m . O s h a ré n s s ã o c ô mo do s, b e m

d i s tr i b uí d o s; n e l e s s e f a z a b s o l ut a m en t e t u d o o q u e s e q u i se r. A s p a i xõ e s m a i s f e r oz e s a í s ã o

ex ecu ta d a s ; t o d o s o s memb r o s d a s o c i ed a d e s ã o a d m i t i d o s ne l e s s em p a g a r . S o men te o s a s s a s s i n a t o s

s ã o p a g o s , cem e s cud o s p o r i nd i v í d uo . O s memb r o s q ue d e s e j a r em co mer ne s s e r e c i n t o e s t ã o l i v r e sp a r a f a zê - l o ; o s i n g r e s s o s s ã o d i s t r i b u í d o s p e l o p r e s i d en te q ue j a ma i s p o d e r e cu s á - l o s a o s memb r o s

q ue ho uve r em f e i t o s eu no v i c i a d o . A ma i o r s ub o r d i na çã o d o s i nd i v í d uo s r e i na no s ha r én s ; a s q ue i x a s

q ue f o r em f e i t a s p o r f a l t a d e s ub m i s s ã o o u d e co mp l a cênc i a s e r ã o imed i a t a men te l e va d a s a o i n s p e to r

d o h a r é m o u a o p r e s i de n t e, e s e r á p u n id o e m s e gu i d a o c e l er a do c o m a p e n a p r o nu n c i ad a p e l o

memb r o , q ue t a mb ém te r á d i r e i t o d e i n f l i g i - l a s e i s s o l he a g r a d a r. E x i s t em d o ze g a b i ne te s d e s up l í c i o

p o r h a r é m , n o s q u a i s n ã o f a l ta n a d a d o q u e p o s sa m e r gu l h ar a v í t im a n o s t o r m en t o s m a i s c r u é i s e

mons t ruo so s .

P o d e - s e m i s t u r a r o s s e x o s à v o n t a d e , co nd uz i nd o o s ho men s a o d a s mu l he r e s , o u v i ce - ve r s a .

C on s ta m t am b ém d o ze c á rc e re s e m c a da h a ré m , p a ra a q ue l es q ue a p re c ia m d ei x ar a s v í ti ma s

l a ng ue s ce rem. E p r o i b i do co nd uz i r s e j a a o s eu q ua r t o , s e j a à s s a l a s , q ua l q ue r um d o s i n t e g r a n te s d o s

ha r én s . E nco n t r a m- s e i g ua l men te ne s s e s p a v i l h õ e s a n ima i s d e t o d a s a s e s p éc i e s , p a r a o s a d ep to s d o

go s to da bes t ia l idade: uma pa ixão s imp les e natura l , que é p rec i so se r re spe i tada como as out ra s .

T r ê s q ue i x a s co n t r a um mes mo i n t e g r a n te b a s t a m p a r a d e s p ed i - l o . T r ê s p ed i d o s d e mo r te ,

p a ra q u e s e ja e x e cu t a do i m e di a t am e n te . H á e m c a d a q u a t r o c a r ra s c os , q u a tr o c a r ce r e ir o s, o i t o

fus t igado res , quat ro es fo l ado res , quat ro par te i r a s e quat ro c i ru rg iões à s o rdens do s membro s que, em

s u a s p a i x õ es , n e c es s i ta r e m d o m i n is t é ri o d e t a i s p e r s o na g e ns , s e n do c l a ro q u e a s p a r te i r as e o s

c i r u r g i õ e s l á s e enco n t r a m a p ena s p a r a o s s up l í c i o s , e d e mo d o a l g um p a r a p r e s t a r a t end imen to. T ã o

l o g o um i n t e g r a n te s i n t a o ma i s l e ve s i n t o ma d e d o ença , é env i a d o a o ho s p i t a l e n ã o r e t o r na ma i s à

ca s a .

O s d oi s h a ré n s s ão c e rc a do s c o m m u ro s a l to s . T od as a s j a ne l as s ão e n gr a da da s, e o s

i n t e g r a n te s nunca s a em. E n t r e o ed i f í c i o e o mu r o a l t o co n f i n a n te , h á um i n t e r v a l o d e t r ê s me t r o s ,

f o r ma nd o uma a l a med a p l a n t a d a d e c i p r e s t e s , o nd e o s memb r o s d a s o c i ed a d e , à s v e ze s , f a zem d e s ce r

a l g un s i nd i v í d uo s p a r a s e en t r e g a r em co m e l e s , ne s s e s p a s s e i o s s o l i t á r i o s , a p r a ze r e s ma i s s o mb r i o s e

q ua s e s emp r e ma i s med o nho s . A s o mb r a d e a l g uma s d e s s a s á r vo r e s enco n t r a m- s e b u r a co s d i s p o s t o s ,

onde a v í t ima pode num ins tante desaparecer . Po r vezes ce ia - se sob ta i s c ip res tes , e a té mesmo nes ses

f o s s o s. A l g un s d e l e s s ã o e x t r ema men te p r o f und o s , a o s q ua i s s ó s e t em a ce s s o p o r e s ca d a s s e c r e t a s , e

o nd e s e p o d e en t r e g a r - s e a t o d a s a s i n f â m ia s p o s s í v e i s c o m a me s ma ca l ma , co m o me s mo s i l ê n c i o d e

q u e m e s t i v es s e n a s e n t ra n h a s d a t e r ra . 4 5 ° N i n g u é m p o d e s e r a c e i t o s e m p r e vi a m e nt e p r e st a r o

juramento , que deve p ronunc ia r , e submeter - se à s ob r igações impos tas a seu sexo .