OS FLUXOS DA ÁGUA NA METRÓPOLE

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  • 7/23/2019 OS FLUXOS DA GUA NA METRPOLE

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    MARIA ANGLICA MACIEL COSTA

    OS FLUXOS DA GUA NA METRPOLE

    - usos mltiplos e gesto participativa na Baa de Guanabara (RJ)

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado doPrograma de Ps-Graduao em PlanejamentoUrbano e Regional da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requi-sitos necessrios obteno do grau de Doutorem Planejamento Urbano e Regional.

    Orientador: Prof. Dr. Henri AcselradCo-orientador: Prof. Dr. Antnio AugustoRossotto Ioris

    Rio de Janeiro

    2013

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    C837f Costa, Maria Anglica Maciel.Os fluxos da gua na metrpole : usos mltiplos e gesto

    participativa na Baa de Guanabara (RJ) / Maria AnglicaMaciel Costa. 2013.

    216 f. : il. color. ; 30 cm.

    Orientadores: Henri Acselrad e Antnio AugustoRossotto Ioris.

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio deJaneiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano eRegional, 2013.

    Bibliografia: f. 197-211.

    1. gua Usos - Guanabara, Baa de (RJ). 2. Recursoshdricos Guanabara, Baa de (RJ). 3. Poltica Nacional deRecursos Hdricos (Brasil). 4. Ecologia poltica Guanabara, Baa de (RJ). 5. Comit de BaciasHidrogrficas da Baa de Guanabara e dos SistemasLagunares de Marica e Jacarepagu. I. Acselrad, Henri.II. Ioris, Antnio Augusto Rossotto. III. UniversidadeFederal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional. IV. Ttulo.

    CDD: 331.91

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    MARIA ANGLICA MACIEL COSTA

    OS FLUXOS DA GUA NA METRPOLE

    - usos mltiplos e conflitos ambientais na Baa de Guanabara (RJ) -

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado doPrograma de Ps- Graduao em PlanejamentoUrbano e Regional da Universidade Federal doRio de Janeiro UFRJ, como parte dos requi-

    sitos necessrios obteno do grau de Doutorem Planejamento Urbano e Regional.

    Aprovada em:

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________Dr. Henri Acselrad (orientador)Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ

    ________________________________________Dr. Orlando Alves dos Santos JuniorInstituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ

    ________________________________________

    Dra. Ceclia Campello do Amaral MelloInstituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ

    ________________________________________Dra. Ana Lcia Nogueira de Paiva BrittoFaculdade de Arquitetura e Urbanismo UFRJ

    ________________________________________Dr. Clber Marques de CastroInstituto de Geografia UERJ

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    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer, primeiramente, aos meus pais, Maria e Manoel, que sempretiveram como objetivo de vida o estudo dos filhos, e abriram mo de inmeras coisas para

    atingi-lo. Por este e tantos outros motivos vocs so exemplos. Meu muito obrigada!

    Agradeo tambm aos meus irmos, Gustavo, Lorena e Emanoela, parceiros de vida. Esta

    conquista de toda a famlia!

    Muitos professores foram importantes nesta trajetria, mas alguns estiveram presentes

    e me deram a oportunidade que precisava. Ao professor Carlos Eduardo Matheus, pela

    possibilidade de cursar especializao na USP - So Carlos. Ao professor Bernardo Gontijo,do IGC-UFMG, por ter me dado a to desejada carta de aceite para que eu pudesse

    participar do processo seletivo do mestrado em geografia! Ao professor Antnio Pereira

    Magalhes, por tudo que me ensinou durante a orientao da dissertao. professora

    Helosa Costa, tambm da UFMG, pelas aulas e dicas. Ao professor Antnio Ioris, por ter

    ministrado o curso de extenso em Ecologia Poltica das guas, no IPPUR-UFRJ (2007).

    Quando este curso aconteceu, eu era recm-chegada cidade do Rio de Janeiro, aprendi muito

    e conheci pessoas que, literalmente, mudaram o rumo da minha histria no novo estado. A

    partir da, me envolvi com projetos de pesquisa do professor Henri Acselrad e Antnio Ioris,

    sobre gesto de guas na Baixada Fluminense, que enriqueceram minha vida pessoal e

    acadmica. Sou grata a estes dois professores tambm pelas orientaes e incentivos

    recebidos para a concluso deste trabalho.

    Nestes anos trabalhando na Baixada conheci pessoas especiais, generosas, que travam

    batalhas dirias em defesa da gua. A todos vocs, meu muito obrigada pelas lies de vida

    passadas! Mesmo sabendo que muitos, injustamente, ficaro de fora, gostaria ento de citar

    alguns: Jos Miguel, Sr. Daniel, Saito, Ediel, Sebastio Raulino... e tantos outros. Nas

    pesquisas de campo, recebi ateno especial de muitas pessoas envolvidas com a gesto de

    guas na metrpole, desde os tcnicos do INEA, aos representantes de prefeituras, ONGs,

    empresas.

    Os professores e tcnicos do IPPUR tambm foram fundamentais nesta trajetria.

    Lembro o quanto foram angustiantes e necessrias as aulas de metodologia da professora Ana

    Clara Torres (in memorian), pessoa brilhante e generosa. Aos professores da banca, Orlando

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    Jnior, Ana Lcia Britto, Clber Casto e Ceclia Mello, obrigada pelo aceite do convite e

    contribuies realizadas.

    Quero aqui reconhecer a importncia das bibliotecas pblicas na capital fluminense,

    uma vez que todo este trabalho foi redigido nestes espaos. Obrigada UFRJ, Estcio de S,

    Biblioteca Pblica de Copacabana, UERJ, ENSP/FIOCRUZ e, em especial, biblioteca do

    CCBB (por ser a nica que permanece aberta aos domingos e feriados). Agradeo queles que

    mantm estes espaos disponveis ao pblico.

    Agradeo o apoio recebido dos professores e servidores tcnicos do Departamento de

    Administrao e Turismo, da UFRRJ, para a concluso deste trabalho, em especial aos chefes

    Denise, Francisco e Ricardo. Cito tambm as professoras Aline, Geruza, Luciana, Renata e

    Eliane, pois sempre me escutavam falar da tese nos longos deslocamentos para o trabalho.Agradeo a amizade dos demais professores do colegiado em turismo.

    No poderia me esquecer dos alunos que tive durante a pesquisa de doutorado. Com

    cada pergunta e discusso realizadas vocs me ajudaram a refletir melhor sobre os problemas

    e conflitos da metrpole. Aprendi muito com as nossas aulas, obrigada!

    Muitas coisas aconteceram durante estes quatro anos e meio cursando o doutorado,

    mas, com certeza, a mais especial delas foi o nascimento do meu pequeno Raul, em 2011.

    Quero aqui lembrar que foi muito importante ter compartilhado as alegrias e angstias dagestao com tantas amigas que tambm estiveram grvidas quase na mesma poca. Roberta,

    Helosa, Mara, Viviane, Adriana, Claudiana, Luciana, Taciana, Larissa, Natlia, Vnia,

    Renata, Vanessa, Severina e Camila. Desejo que os nossos pequenos - Raul, Ian, Marina,

    Anabela, Alice, Miguel e Teresa, Joo, Ana Clara, Pedro, Giovana, Juninho e Guilherme,

    Henrique, Bruna, Joo Pedro, Emanuel e Lara- possam ser amigos e que encontrem cidades

    mais justas para se viver.

    Muitos outros amigos torceram por mim e sempre me escutavam falar sobre a taltese. Ftima, Luciara, Arthur, Claudiana, Fernando, Gabriele: alm de escutar, vocs tambm

    tiveram que botar a mo na massa, provando que a tese tambm pode ser um trabalho

    coletivo. A vocs, o meu muito obrigada! Outros amigos mandaram energias positivas,

    compartilharam angstias e acompanharam, de perto ou de longe, esta etapa: Turminha

    (meus amigos to especiais de Betim), Edilaine, Taci, Max, Ivan, Marcelo, Paula, Vitor, Vivi,

    Tonim, Lel, Etiene, Rafa, Elizeth, v Ana, madrinha Isabel e todos os tios, tias, primos...

    obrigada por existirem.

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    Sou uma pessoa de muita sorte, pois sempre estudei com turmas muito especiais. A

    turma do doutorado IPPUR 2009 no fugiu regra. Deixo aqui o meu muito obrigada a

    todos, pelo aprendizado e convivncia. Em especial para aqueles amigos que participaram do

    Grupo de Auto Ajuda Tesstica: Fernando, Renata, Helosa, Clarice, Rodrigo e Edwin, as

    nossas sesses de desespero coletivo foram fundamentais para o trmino deste trabalho.

    Sem elas, certamente, a presso seria (ainda mais) insuportvel. Estou na torcida por vocs,

    contem comigo e no se esqueam do nosso mantra: CORAGEM!

    Por fim, agradeo ao meu marido, Daniel, super pai e companheiro para o que der e

    vier! S ns dois sabemos o quanto foi sacrificante a redao deste trabalho. E s eu sei o

    quanto foi importante a sua presena, carinho e apoio. O doutorado concludo a realizao

    de mais um dos sonhos que sonhamos juntos.

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    RESUMO

    A questo norteadora da presente tese a relao entre, por um lado, os discursos e as formasinstitucionais que tm por pressuposto formal a igualdade jurdica no acesso gua e, poroutro, as prticas concretas do conjunto de atores sociais envolvidos nos embates e debatesrelativos gesto dos recursos hdricos. A gua serve, neste trabalho, como ponto de entradapara se discutirem questes de insero social, eficcia de polticas pblicas e compromissosgovernamentais. A discusso de tal questo requerer que tracemos um quadro do modusoperandi das instituies de regulao em particular aquelas que so tidas comoparticipativas no contexto da Poltica Nacional de Recursos Hdricos - produzidas sob a

    constelao discursiva que alia bem de domnio pblico, valor econmico, uso mltiplo,participao e descentralizao no contexto brasileiro contemporneo de desenvolvimentoeconmico. A construo do argumento lanar mo da corrente da Ecologia Poltica da guae busca, na gesto comunitria, apontar a existncia de outros tipos de racionalidades distintas das hegemnicas - no que tange questo da gua. Atravs de tcnicas e mtodosqualitativos de pesquisa, especialmente a etnografia institucional, analisaremos a dinmica dagesto dita participativa de guas na metrpole fluminense, atravs do caso da atuao doComit de Bacia Hidrogrfica da Baa de Guanabara (CBH Guanabara). Em que pese ocarter deliberativo e participativo deste Comit, os resultados empiricamente observveisdenotam uma desigualdade real no acesso gua da metrpole, assim como aos prpriossistemas de deciso que regulam tal acesso.

    Palavras-chave: Gesto Comunitria de guas. Usos Mltiplos da gua. Ecologia Poltica dagua. Poltica Nacional de Recursos Hdricos. Baa de Guanabara. Comit de BaciaHidrogrfica da Baa de Guanabara (CBH Guanabara).

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    ABSTRACT

    The relationship between the discourses and the institutional forms that have legal equality byformal assumption regarding the access to water and concrete practices amongst all the socialactors involved, was the main driver of this Thesis. In this work, the water provides an entrypoint to discuss issues of social intersection, public policies effectiveness and governmentalcommitments. Therefore, the discussion of it required a framework that traced the modusoperandi of the institutions of regulation - in particular those that are regarded as"participative" in the context of the National Policy on Water Resources - produced under a

    discursive constellation that combines public domain, economic value, multiple use,participation and decentralization in the Brazilian contemporary economic developmentcontext. The construction of the argument made use of the researches of Water PoliticalEcology and attempted, through community management, to pinpoint the existence of othertypes of rationalities regarding the water issue. Thus, by methods and techniques forqualitative research, especially institutional ethnography, the dynamics of water participatorymanagement in the metropolis of Rio de Janeiro were analyzed through the agency ofWatershed Committee of the Guanabara Bay (CBH Guanabara). Despite the deliberative andparticipatory character of this Committee, the empirical results observed, through our survey,denote a real inequality on the access to water in the metropolis, as well as on the decisionsystems that regulate such access.

    Keywords:Community Management of Water. Multiple Uses of Water. Political Ecology ofWater. National Policy on Water Resources. Guanabara Bay. Guanabara Bay WatershedCommittee.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara.............................................................20

    Figura 2: Regies de Governo no estado do Rio de Janeiro....................................................21

    Figura 3: Exemplo de usos mltiplos das gua na Baa de Guanabara (transporte de cargas,

    pesca artesanal e esporte), no final da dcada de 1990. ...........................................................54

    Figura 4: Matriz institucional do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hdricos

    (SIGERH).................................................................................................................................94

    Figura 5: Regies Hidrogrficas do Estado do RJ.................................................................106Figura 6: Carta da Baa de Guanabara, 1573-78................................................................110

    Figura 7: Obra Pesca da Baleia. Tinta leo sobre painel, de Leandro Joaquim, 1784....... 111

    Figura 8: Imagem do Centro da Cidade do Rio de Janeiro em 1608, esquerda, e em 2002,

    direita ......................................................................................................................................112

    Figura 9: Tigre: escravo transportador de esgoto ..................................................................114

    Figura 10: Paisagem Baa de Guanabara, final da dcada de 1990....................................... 118

    Figura 11: Folder campanha gua Limpa para o Rio Olmpico........................................124Figura 12: Empreendimentos estruturantes do governo fluminense. ....................................126

    Figura 13: Mapa das reas afetadas pelos empreendimentos da Petrobrs na Baa de

    Guanabara...............................................................................................................................129

    Figura 14: Os Cinco Municpios com Maior Vazo de Captao de gua...........................132

    Figura 15: Os Cinco Municpios com Maior Vazo de Lanamento deEfluentes ...............133

    Figura 16: Evoluo do CNARH no estado do Rio de Janeiro.............................................136

    Figura 17: Proporo da Vazo de Captao (m) por Tipo de Uso da gua na RHV .........137

    Figura 18: Delimitao geogrfica dos Subcomits de Bacia Hidrogrfica..........................143

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABRH - Associao Brasileira de Recursos Hdricos

    ACRJ - Associao Comercial do Rio de Janeiro

    AHOMAR - Associao Homens e Mulheres do Mar

    ANA - Agncia Nacional das guas

    APA - rea de Proteo Ambiental

    CBH - Comits de Bacia Hidrogrfica

    CEPERJ - Fundao Centro Estadual de Estatstica, Pesquisa e Formao de Servidores

    Pblicos do Rio de Janeiro

    CERHI - Conselho Estadual de Recursos Hdricos

    CNARH - Cadastro Nacional de Usurios de Recursos Hdricos

    CTs - Cmaras Tcnicas

    CTAP - Cmara Tcnica de Anlise de Projetos

    CTAS - Cmara Tcnica guas Subterrneas

    CTEM - Cmara Tcnica Educao Ambiental e Mobilizao

    CTIG - Cmara Tcnica de Instrumentos de Gesto

    CTIL - Cmara Tcnica Institucional e Legal

    DIGAT - Diretoria de Gesto das guas e Territrio

    EIA - Estudo de Impacto Ambiental

    ETA - Estao de Tratamento de guas

    FECAM - Fundo Estadual de Conservao Ambiental e Desenvolvimento Urbano

    FIRJAN - Federao das Indstrias

    FMI - Fundo Monetrio Internacional

    FUNDRHI - Fundo Estadual de Recursos Hdricos

    GTs - Grupos de Trabalhos

    GEDEG - Grupo Executivo da Despoluio da Baa de Guanabara

    INEA - Instituto Estadual do Ambiente

    MAB - Movimento dos Atingidos por Barragem

    MPF Ministrio Pblico Federal

    MPE Ministrio Pblico EstadualNASA -Nacional Aeronautics and Space Administration

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    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    ONU - Organizao das Naes Unidas

    PAC - Programa de Acelerao do Crescimento

    PCRJ - Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

    PECRJ - Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro

    PERH - Plano Estadual de Recursos Hdricos

    PNAD - Pesquisa Nacional de Amostra de Domiclios

    PNRH - Poltica Nacional de Recursos Hdricos

    PRODES - Programa Despoluio de Bacias Hidrogrficas

    REDUC - Refinaria de Duque de Caxias

    RHBG - Regio Hidrogrfica da Baa de GuanabaraRHV Regio Hidrogrfica V (cinco)

    RIMA - Relatrio de Impacto Ambiental

    RMRJ - Regio Metropolitana do Rio de Janeiro

    RMSP - Regio Metropolitana de So Paulo

    SEGRH - Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hdricos

    SERLA - Superintendncia Estadual de Rios e Lagoas

    SINGERH - Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hdricos

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    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................14

    A Pesquisa .............................................................................................................................18

    O olhar, o ouvir e o escrever .................................................................................................23

    Observao Participante........................................................................................................27

    Entrevistas .............................................................................................................................28

    Anlise dos dados..................................................................................................................30

    Os captulos...........................................................................................................................32

    PARTE 1: ASPECTOS CULTURAIS, POLTICOS E INSTITUCIONAIS DA GUA.35

    1 ECOLOGIA POLTICA DA GUA..............................................................................36

    1.1 Introduo ..................................................................................................................36

    1.2 O discurso da escassez...............................................................................................37

    1.3 gua: um bem de uso comum (?)..............................................................................42

    1.4 Os usos (e os atores) mltiplos da gua.....................................................................48

    1.4.1 Usos mltiplos da gua e conflitos ambientais ......................................................51

    1.5 Qual o valor da gua?..............................................................................................56

    1.5.1 A cobrana pelo uso da gua..................................................................................65

    1.6 Quem o dono da gua? ........................................................................................67

    1.6.1 A Tragdia dos Comuns .........................................................................................68

    1.6.2 A dominialidade das guas nas legislaes brasileiras...........................................70

    2 RECURSOS HDRICOS: ESTADO, RACIONALIDADES DE GESTO E

    SOCIEDADE ..........................................................................................................................77

    2.1 Introduo ..................................................................................................................77

    2.2 O Estado Regulador e a gesto de guas ...................................................................78

    2.2.1 Crticas ao do Estado .......................................................................................79

    2.3 A Poltica Nacional de Recursos Hdricos .................................................................852.3.1 Burocracia e tcnica na gesto de recursos hdricos ..............................................86

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    2.3.2 Os comits de bacia hidrogrfica: algumas reflexes ............................................93

    2.4 Legislao Estadual de Gesto de Recursos Hdricos ...............................................98

    PARTE 2: CONHECENDO O TERRITRIO E A DINMICA DA GESTOPARTICIPATIVA DOS USOS MLTIPLOS DA GUA .................................................103

    3 BAA DE GUANABARA ..............................................................................................104

    3.1 Introduo ................................................................................................................104

    3.2 A Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara.........................................................105

    3.3 Aspectos histricos da Baa de Guanabara ..............................................................108

    3.3.1 Sculos XVI ao XVIII..........................................................................................1083.3.2 Sculos XIX e XX: aspectos relevantes do RJ Imperial e RJ Republicano.. 114

    3.4 Sculo XXI: a Baa Olmpica e a Baa da Petrobrs ........................................122

    3.5 A ecologia poltica da gua no lado oeste da metrpole..........................................130

    3.5.1 O protagonismo da CEDAE na RMRJ.................................................................135

    4 O COMIT DA BAA DE GUANABARA E A GESTO PARTICIPATIVA..........140

    4.1 Introduo ................................................................................................................140

    4.2 Breve histrico do CBH Guanabara ........................................................................141

    4.3 A questo da representao......................................................................................149

    4.3.1 O poder pblico....................................................................................................151

    4.3.2 A dependncia do setor de usurios .....................................................................155

    4.3.3 O papel da sociedade civil....................................................................................160

    5 O CARTER DELIBERATIVO DO COMIT E A GESTO DOS USOS

    MLTIPLOS DA GUA .....................................................................................................164

    5.1 Introduo ................................................................................................................164

    5.2 Hegemonia das questes tcnicas e burocrticas.....................................................166

    5.3 Plano Diretor de Bacia Hidrogrfica .......................................................................170

    5.4 Outorga de Uso da gua...........................................................................................174

    5.5 Cobrana pelo Uso da gua ....................................................................................178

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    5.6 A dinmica deliberativa no CBH Guanabara...........................................................182

    5.6.1 So Jos da Boa Morte .........................................................................................186

    5.6.2 Planos Municipais de Saneamento.......................................................................1875.6.3 Projeto Maric e Belfort Roxo .............................................................................190

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................193

    REFERNCIAS ...................................................................................................................198

    ANEXO..................................................................................................................................213

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    Esta tese tem por objeto a configurao e o modo de implementao das polticas

    pblicas relativas aos corpos hdricos na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), em

    particular no que toca remisso formal, feita por seus responsveis, a suas dimenses ditas

    participativas e descentralizadas aplicadas considerao da gua em seus usos mltiplos.O

    estudo tem como referncia emprica a Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara (RHBG)1,

    um territrio alvo de presses polticas e de disputas entre usurios de suas guas e que h

    dcadas recebe projetos (ditos) de despoluio com aporte significativo de recursosfinanceiros oriundos do Estado e organismosfinanceirosinternacionais.

    A questo norteadora da presente tese a relao entre, de um lado, os discursos e as

    formas institucionais que tm por pressuposto formal a igualdade jurdica no acesso gua e,

    de outro, as prticas concretas do conjunto de atores sociais, cujo desenrolar, empiricamente

    observvel, denota uma desigualdade real no acesso gua, assim como aos sistemas de

    deciso que regulam tal acesso. A discusso de tal questo requerer que tracemos um quadro

    do modus operandidas instituies de regulao em particular aquelas que so tidas como

    participativas.

    O fio condutor para se chegar a uma apreciao mais profunda sobre o processo

    histrico de politizao das relaes socionaturais e das interaes entre diferentes atores,

    mediadas pela natureza (gua em particular), ser a anlise dos sentidos e as contradies da

    aplicao prtica dos atuais fundamentos de gesto de guas, previstos na Poltica Nacional de

    Recursos Hdricos (PNRH). Em especial, aquele que proclama que: a gesto dos recursos

    hdricos deve sempre proporcionar o uso mltiplo das guas (BRASIL, 1997. Grifo

    nosso).

    Para apresentar, brevemente, o contexto poltico institucional das guas brasileiras,

    cabe recordar que no incio da fase da industrializao foi aprovado o Cdigo de guas de

    19342, a primeira legislao que regulamentou o uso dos recursos hdricos. Tal lei enfatizava o

    1 prudente ressaltar que o espao geogrfico da RMRJ , praticamente, o mesmo da RHBG. Deste modo,

    neste trabalho, apesar de estarmos cientes que h uma pequena diferena, em diversos momentos tratamos onosso objeto de estudo, RHBG, como metrpole.2Sobre Cdigo de guas de 1934, ver item 2.3 desta tese.

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    aproveitamento privilegiado da gua para a produo de energia hidreltrica (indstria), o que

    estava de acordo com os sucessivos modelos de desenvolvimento econmico adotados no

    pas. Assim, havia um ntido privilgio em destinar o uso da gua para a gerao de energia

    eltrica.

    J na dcada de 1990, a PNRH3, Lei 9433-97, substituiu o Cdigo de guas da dcada

    de 1930 e apresentou questes marcadas pelo peso das novidades4, mas tambm das

    heranas (manuteno da lgica centralista e elitista). Isto porque, no foram identificados

    processos de transformaes socioambientais em curso, ou, em outras palavras, uma nova

    etapa teve incio, com enfrentamento das desigualdades socioeconmicas que se expressam

    no acesso aos mnimos vitais de gua (VALENCIO, 2009. p.2).

    Uma das novidades apresentadas foi que, a partir desta legislao, encerrou-se apredileo legal ao usurio do setor hidroeltrico e instituiu-se o fundamento que diz que a

    gesto deve privilegiar os usos mltiplos da gua. Inclui-se aqui a questo simblica da gua,

    j que as guas, de forma geral, comportam diferentes tipos de usos, variadas utilidades e

    sentidos. A gua pode ser usada para o abastecimento domstico, para ser engarrafada e

    importada (vide o mercado crescente de gua mineral), para a irrigao na agricultura, em

    rituais religiosos, como insumo no processo industrial, como via de transporte, para a gerao

    de energia eltrica, como fonte de sustento para pescadores etc. Sobre esta questo, valelembrar os argumentos de Milton Santos, quando o mesmo afirma que o uso do territrio

    e no o territrio em si mesmo que faz dele objeto da anlise social (SANTOS, 1994).

    O fato da gesto dos recursos hdricos ser descentralizada em nvel de bacias

    hidrogrficas e contar com a participao de representantes do Poder Pblico, dos Usurios e

    da Sociedade Civil em Comits de Bacia Hidrogrfica (CBH), merece ateno especial. Tais

    ideias adquiriram um espao importante na arena poltico-administrativa brasileira, nas

    ltimas dcadas, principalmente a partir da Constituio de 1988. Desde ento, potencializam-se pelo Brasil inmeras formas ampliadas de participao popular poltica (AVRITZER e

    PEREIRA 2005; BRASIL, 2004; DAGNINO, 2002; MACHADO, 2003; TATAGIBA, 2002).

    3 Vale ressaltar que antes da elaborao desta Lei (9.433/97), j se acumulavam no Brasil algumasexperincias de gesto de bacias hidrogrficas atravs de diferentes tipos de organizaes, tais como os ComitsEspeciais de Estudos Integrados de Bacias Hidrogrficas, Consrcios Intermunicipais e Associaes de Usurios(CARDOSO, 2002).

    4 As principais novidades apresentadas foram: i) necessidade da gesto ser feita atravs de um arranjo

    poltico participativo especfico, que ir atuar de forma descentralizada, denominado de Comit de BaciaHidrogrfica (CBH); ii) reconhecimento do valor econmico da gua; iii) a bacia hidrogrfica como unidadeterritorial de gesto.

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    Deste modo, uma caracterstica que ser ressaltada neste trabalho o fato dos (mltiplos)

    atores sociais, que fazem uso da gua em suas atividades dirias, apresentarem condies

    assimtricas de poder e de disput-la. Alm do mais, uma situao que pode gerar problemas

    a sobreposio de usurios de gua em um mesmo territrio, onde certo tipo de uso

    prejudica ou inviabiliza a possibilidade de realizao de outro5.

    Cabe ainda lembrar que o processo de urbanizao intenso, vivido no sculo XX,

    consolidou um ritmo crescente de casos de injustias ambientais, especialmente nas cidades

    metropolitanas. No por coincidncia, as bacias hidrogrficas com maior frequncia de

    conflitos ambientais6 e degradao so justamente aquelas que foram mais intensamente

    transformadas por barragens, captaes e lanamentos de efluentes ligados produo

    industrial, aglomeraes urbanas ou irrigao (IORIS, 2010).Em vrios pases do mundo, e em especial no Brasil, recorrente observar o projeto

    desenvolvimentista colocar em segundo plano os aspectos ambientais, naquilo em que possa

    representar menos lucro ou maior custo para os negcios. Ioris (2010) descreveu a trajetria

    de uso dos recursos hdricos no Brasil como originria de uma inescapvel contradio entre o

    capitalismo e sua base natural, devido aos impactos ambientais que tal sistema impe ao meio

    ambiente. Para o autor, na fase desenvolvimentista brasileira, se analisadas as formas de uso

    e apropriao da gua, por exemplo, verifica-se que esta serviu basicamente como matriaprima e fonte indireta de acumulao. Por sua vez, na fase neoliberal contempornea, a

    gua continuou a ser empregada como insumo fundamental da atividade produtiva, mas a

    prpria gesto torna-se tambm objeto de transaes comerciais e fonte direta de acumulao.

    No entanto, para alm de meras questes tcnicas e gerenciais, neste texto defendemos

    a posio de que o uso e a gesto da gua so partes integrantes da reproduo de

    desigualdades sociais e assimetrias polticas profundas (MOLLINGA, 2008). Assim, o nosso

    foco analtico estar voltado tanto para o plano institucional e das inovaes da PNRH

    5 guas contaminadas e poludas por esgotos domsticos e ou industriais, por exemplo, podero inviabilizaroutros usos, tais como a pesca, certas prticas de lazer e recreao, a dessedentao de animais e humanos,dentre outros.

    6 Para Acselrad (2004), os conflitos ambientais so aqueles que: envolvendo grupos sociais com modosdiferenciados de apropriao, uso e significao do territrio, tendo origem quando pelo menos um dos grupostem a continuidade das formas sociais de apropriao do meio que desenvolvem, ameaada por impactosindesejveis transmitidos pelo solo, pela gua, ar ou sistemas vivos decorrentes do exerccio das prticas de

    outros grupos (...) Este conflito tem por arena unidades territoriais compartilhadas por um conjunto de atividadescujo acordo simbitico rompido em funo da denncia dos efeitos indesejveis da atividade de um dosagentes sobre as condies materiais do exerccio das prticas de outros agentes. (ACSELRAD, 2004. Pg. 25).

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    (BRASIL, 1997), quanto para o contexto onde atuam os agentes sociais que participam do

    comit de bacia da metrpole fluminense, ou seja, o territrio da RHBG.

    Para tanto, optou-se por fazer uma etnografia institucional do arranjo poltico (dito)

    participativo, responsvel pela gesto de guas neste territrio - o Comit da Regio

    Hidrogrfica da Baa de Guanabara e dos Sistemas Lagunares de Maric e Jacarepagu (CBH

    Guanabara), uma vez que pesquisar a gesto dos usos mltiplos da gua na Baa de

    Guanabara algo extremamente relevante. Tal relevncia se deve ao fato de que este corpo

    hdrico encontra-se encravado no centro da segunda Regio Metropolitana (RM) mais

    importante deste pas, cujos corpos hdricos se encontram em situao de degradao

    ambiental extrema, onde existem fortes desigualdades de poder poltico e econmico entre os

    usurios de gua e os municpios que fazem parte deste territrio.Alm do mais, a Baa de Guanabara, em si, mais do que uma regio hidrogrfica

    cortada por rios, e vai muito alm de um esturio retratado em cartes postais7. Sua

    configurao o resultado de diferentes formas de apropriao dos territrios, da

    consolidao de polticas pblicas que regulamentam seus usos sobrepostos neste espao

    geogrfico, cabendo aqui ressaltar que, muitas vezes, as aes que incidem no local so

    frutos de polticas definidas em outras escalas de atuao, conforme defende Vainer (2002)8.

    O resultado um mapa difuso, entrecortado por linhas que unem e fragmentam os interessesdos grupos sociais que participam e interagem com este territrio. Alm do mais, notrio o

    dinamismo econmico e interesse poltico da Baa de Guanabara, e RMRJ, na cena nacional e

    internacional. Toda esta conjuntura tem fortes reflexos nas demandas e usos das guas e,

    consequentemente, nas condies ambientais dos fluxos das guas da metrpole.

    Selecionamos este recorte devido relevncia que a dimenso ambiental tem obtido na

    literatura e no campo das polticas pblicas de planejamento urbano nas ltimas dcadas.

    Quando se trata da questo ambiental, mais do que uma discusso acadmica, o que est emevidncia e em disputa so modelos de gesto e poltica urbana e suas implicaes no uso e na

    gesto dos recursos naturais (BRAGA, 2001).

    7 Em 2012 a cidade do RJ recebeu o ttulo de Patrimnio Cultural da Humanidade da UNESCO, categoriapaisagens culturais. A Baa de Guanabara e os seus fortes foram critrios que ajudaram a capital a receber talhonraria.

    8 Para Vainer (2002), o poder das estratgias de resistncia reside exatamente na capacidade de articularescalas distintas e recusar o confinamento. O contrrio uma perspectiva de atores sem disputas, de no sujeitos;

    onde os sujeitos coletivos e as tenses em um campo em disputa no aparecem, embora as relaes em mltiplasescalas sejam o modo como se conformam as relaes hoje no globo.

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    De forma geral, pretendemos verificar se em uma situao de conflito pelo uso da

    gua, em face da atual racionalidade de gesto de gua dominante, tende a prevalecer o

    interesse daqueles atores que detm certos tipos de capitais (BOURDIEU, 2007), em um

    processo de luta simblica pela autoridade e legitimidade (ACSELRAD, 2009) de definir

    quais os usos da gua sero priorizados. Para Bourdieu (2007), a estrutura do espao social

    determinada pela distribuio dos vrios tipos de capitais (poderes), determinados em sua

    expresso fundamental pelo capital econmico, o capital cultural, o capital social (conjunto

    agregado de relaes que os agentes ou grupos desenvolvem e acessam para conquistar ou

    reproduzir posies no espao social) e o capital simblico (as formas que tomam os

    diferentes tipos de capital, apropriados de relevncia e reconhecidos como legtimos nos

    campos especficos).Em que pese a pertinncia deste enfoque, percebemos, no entanto, que h uma lacuna

    referente a estudos sociolgicos tratando sobre a questo dos usos mltiplos, j que so

    poucas as pesquisas que analisam o acesso gua sob o ponto de vista das relaes de poder,

    que se estabelecem no momento das decises polticas relativas aos usos deste recurso, se

    comparadas aos estudos realizados nas reas das cincias biolgicas e exatas. Diante disto,

    faz-se relevante pesquisar o que a evocao da categoria usos mltiplos, pelos distintos

    atores, justifica (e/ou legitima) no plano das prticas de apropriao e uso da gua.

    A Pesquisa

    Para descrever as etapas metodolgicas desta pesquisa, iniciamos pela interpretao do

    seu ttulo: Os Fluxos da gua na Metrpole: - usos mltiplos e gesto participativa na baa

    de Guanabara (RJ). Sobre a primeira parte deste, a ideia de fluxos foi pensada com base na

    teoria do Ciclo Hidrossocial da gua, proposto por Erik Swyngedouw (2004). O Ciclo

    Hidrossocial descreve os caminhos da gua sob outro ponto de vista, se comparado

    perspectiva qumica do ciclo hidrolgico convencionalmente descrito nos livros didticos.

    Este autor elegeu a gua como um fio condutor, a partir do qual seria possvel revelar uma

    srie de relaes sociais que perpassam processos espaciais de diferentes ordens. O simples

    movimento de uma gota de gua que engarrafada para ser vendida como mercadoria, por

    exemplo, pode demonstrar a complexidade do Ciclo Hidrossocial - uma vez que a

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    interferncia humana, os usos realizados e as relaes sociais (de poder) so partes

    fundamentais desta trajetria. Ou seja,

    [...] esses fluxos poderiam narrar muitas histrias inter-relacionadas dacidade: a estria do seu povo e dos poderosos processos scio-ecolgicosque produzem o urbano e seus espaos de privilgio e excluso, departicipao e marginalidade, de ratos e banqueiros, de doena de veiculaohdrica e especulao acerca do futuro e das opes da indstria da gua, dereaes e transformaes qumicas, fsicas e biolgicas, do ciclo hidrolgicoe do aquecimento global, do capital, das maquinaes e estratgias dosconstrutores de barragens, dos incorporadores do solo urbano, dosconhecimentos dos engenheiros, da passagem do rio para o reservatriourbano (SWYNGEDOUW, 2004, p. 85).

    Diante das inmeras possibilidades de pesquisas que poderiam ter sido feitas a partirdo Ciclo Hidrossocial da gua, optamos por analisar a sobreposio de usos diferentes da

    gua em um mesmo espao geogrfico e, sob este contexto, verificar o modo de

    equacionamento adotado por um comit de bacia hidrogrfica para realizar a gesto do

    territrio. Para entender como a poltica se transforma, precisamos compreender tanto como

    os participantes em processos polticos promovem novas ideias, quanto como estruturas

    institucionais recebem ou resistem quelas ideias ao longo do tempo (ABERS, 2010).

    Adotamos esta perspectiva de anlise, pois temos como interesse contribuir para odebate sobre o futuro da gesto de recursos hdricos em reas metropolitanas uma questo

    que, a nosso ver, tem sido abordada, prioritariamente, de forma tcnica e operacional.

    Seguimos, assim, as consideraes de Bourdieu, para quem a pesquisa talvez a arte de se

    criarem dificuldades fecundas e de cri-las para os outros. Nos lugares onde havia coisas

    simples9, faz-se aparecer problemas(BOURDIEU, 2000. Grifo nosso).

    J sobre a metrpole por onde passam tais fluxos da gua citados no ttulo,

    selecionamos a Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara (RHBG) justamente em razo da

    sua localizao privilegiada, no centro da segunda metrpole mais importante do Brasil, a

    RMRJ. Esta centralidade espacial contribuiu sobremaneira para que ali fosse realizada uma

    9 Conforme destacou diversas vezes a professora Ana Clara Torres Ribeiro (in memorian), durante as aulasque lecionou para a turma de doutorado (entrada no ano de 2009), no curso de metodologia, ministrado noIPPUR no ano 2009, preciso estranhar a realidade!

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    sucesso de projetos polticos de desenvolvimento econmico, um exemplo notrio de

    territrio usado10, tal qual apresentado por Santos e Silveira (2001).

    Ademais, esta regio atrai ateno e desperta o interesse de diversos tipos de atores

    sociais, dentre eles empresrios, acadmicos, jornalistas, profissionais da rea de lazer e

    turismo, ambientalistas, governo e outros. Isto porque, o seu espelho dgua uma das

    principais paisagens cariocas, um smbolo forte do estado fluminense, rotineiramente

    veiculado em campanhas publicitrias nacionais e internacionais de turismo, sendo tambm o

    local onde grande parte dos turistas tem as primeiras impresses da cidade. Na Baa de

    Guanabara, quase todos os modais de transporte esto presentes, isto porque os dois principais

    aeroportos do estado (Santos Dumont e o internacional Tom Jobim) esto localizados nessa

    Baa, assim como o porto onde desembarcam os navios de carga e de passageiros doscruzeiros martimos, e tambm parte da Via Expressa Presidente Joo Goulart, popularmente

    conhecida como Linha Vermelha.

    Os mapas a seguir mostram a delimitao geogrfica da RHBG e RMRJ no contexto

    estadual.

    Figura 1: Mapa Regies Hidrogrficas do Rio de Janeiro

    Fonte: http://www.inea.rj.gov.br/recursos/re_hidrograf.asp. Consulta realizada em 15 de julho de

    2013.

    10 Para os autores, o territrio usado seria o prprio meio tcnico-cientfico informacional que, emcontextos metropolitanos, ganha dimenso e vitalidade devido aos mltiplos usos e, sobretudo, disputa de usos.

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    Figura 2: Regies de Governo no estado do Rio de Janeiro

    Fonte: Fundao Centro Estadual de Estatstica, Pesquisa e Formao de Servidores Pblicos do Rio

    de Janeiro (CEPERJ), 2010.

    Comparando estes dois mapas, possvel perceber a quase sobreposio entre RHBG

    e RMRJ. Esta semelhana explica ento a outra parte do ttulo deste trabalho: Os Fluxos da

    gua na Metrpole11.

    Assim, acreditando que os fenmenos econmicos, sociais e polticos que incidem

    sobre a metrpole fluminense, e igualmente sobre a RHBG, no so coisas simples, foi

    necessrio escolher um caminho, metodologicamente vivel, para ser percorrido, levando-se

    em conta as limitaes que uma tese de doutorado possui. Conforme explicou Durkheim(2000), preciso lutar metodicamente contra a iluso de um saber imediato que se apoia na

    familiaridade com o mundo social. Neste caso, o pesquisador deve levar em considerao que

    esse mundo desconhecido para ele. Portanto, necessrio considerar que as descobertas

    cientficas no so fceis nem verossmeis: a deciso de ignorar apresenta-se como uma

    11

    Mesmo cientes desta pequena diferena dos limites geogrficos da RHBG e RMRJ, os membros do CBHGuanabara tambm se referem RHBG como metrpole.

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    precauo metodolgica indispensvel em uma situao epistemolgica em que to difcil

    saber que ignoramos e o que ignoramos. (DURKHEIM, 2000, p.138).

    Convm aqui explicitar outra questo que aparece aps anlise (visual) destes mapas:

    a RHBG composta por rios interiores (gua doce) que desguam ou no mar ou no esturio

    da Baa de Guanabara. Deste modo, podemos afirmar que h uma sobreposio de legislaes

    atuando neste espao, quer seja, a Poltica Nacional de Recursos Hdricos 12(PNRH) e as de

    Gerenciamento Costeiro13, no Brasil.

    Apesar de no termos a pretenso de resolver este imbrglio, julgamos necessrio

    esclarecer a opo pelo estudo de caso sobre os usos mltiplos da gua na Baa de Guanabara,

    em detrimento de outro tipo de estudo que tivesse como foco as prerrogativas discriminadas

    nas legislaes referentes ao Gerenciamento Costeiro14.Ressaltamos aqui a experincia da autora deste trabalho com o tema de guas,

    principalmente no que tange aos instrumentos de gesto da PNRH. Especificamente no estado

    do RJ, tivemos a oportunidade de acompanhar as reunies do Comit de Bacia Hidrogrfica

    da Baa de Guanabara (desde 2008), criao das suas Cmaras Tcnicas (CTs), consolidao

    dos Subcomits, alteraes nas legislaes estaduais com relao Cobrana pelo Uso da

    gua, dentre outros. Ou seja, a principal vivncia foi com temas ligados RHBG e, em

    praticamente todos estes momentos, sejam eles reunies, eventos acadmicos, audinciaspblicas, observou-se que a discusso girava em torno dos princpios estabelecidos na PNRH

    e, portanto, no havia qualquer referncia s legislaes costeiras. Um exemplo que ilustra

    bem esta informao foi o lanamento de um livro sobre as legislaes de gua que incidem

    no estado fluminense, organizado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA), em 2011. Em

    que pese a extenso litornea do estado do RJ, alm das suas Baas, esta obra no cita

    quaisquer legislaes referentes ao gerenciamento costeiro e de recursos do mar que ali

    pudessem incidir.

    12 O legislador nacional ao utilizar o termo recursos hdricos se refere apenas s guas doces.13A Lei Federal n 7.661/88 (instituidora do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro) a definiu em seu

    art. 2, pargrafo nico: Para os efeitos desta Lei, considera-se Zona Costeira o espao geogrfico de interaodo ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos renovveis ou no, abrangendo uma faixa martima e outraterrestre.

    14Convm aqui mencionar a existncia de outro arranjo que se sobrepem ao CBH Guanabara, quer seja eleo Conselho Gestor da Baa de Guanabara, criado pelo decreto n. 26.174 de abril de 2000, dentro do ProgramaNacional de Gerenciamento Costeiro. Apesar deste conselho tambm ser um arranjo poltico participativo para a

    gesto das guas na Baa de Guanabara, ou seja, inserido no campo que pretendemos analisar, este no serestudado, pois ainda no se encontra em efetivo funcionamento. Alm do mais, delimitamos examinar osinstrumentos de gesto apenas da PNRH.

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    Deste modo, no nos causa estranhamento o fato dos instrumentos15 de gesto da

    PNRH estarem bem constitudos na RHBG, se comparados aos instrumentos discriminados

    nas polticas de gerenciamento costeiro16. E esta situao vivenciada no RJ no atpica no

    cenrio nacional. Segundo Perez (2007), confrontados os dois arcabouos legais, a poltica de

    gesto de recursos hdricos mais bem definida, em termos legais e conceituais, tanto na lei

    federal das guas (Lei 9.433/97), quanto nas leis estaduais e suas respectivas

    regulamentaes.

    O olhar, o ouvir e o escrever

    O ttulo deste tpico sofreu inspirao da obra de Oliveira (1996), quando este ressalta

    os trs momentos cruciais ao cientista social em trabalho de campo: o olhar, o ouvir e o

    escrever. O olhar e o ouvir, segundo o autor, compem as percepes da realidade

    focalizada na pesquisa emprica, podendo ser considerados como atos cognitivos mais

    preliminares no trabalho de campo. J o ato de escrever cumpre sua mais alta funo

    cognitiva, ao textualizar os fenmenos socioculturais observados em campo.

    Assim, inicialmente, o nosso olhar manteve-se focado nas caractersticas do

    territrio da Baa de Guanabara e atuao do arranjo poltico (dito) participativo

    institucionalizado para realizar a gesto dos usos mltiplos da gua naquele territrio: o CBH

    Guanabara. Este colegiado foi escolhido uma vez que, dentre os rgos que compem o

    Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hdricos (SEGRH), o Comit Guanabara

    aquele que foi designado para atuar, de forma especfica, no territrio em estudo.

    Alm do mais, o discurso oficial institucional apresenta o formato comits de bacia

    hidrogrfica para colocar em prtica os princpios da participao e descentralizao na gesto

    de guas. A nosso ver, a partir da, modificam-se os modos de constranger, de coagir, de

    15So eles: - enquadramento dos corpos de guas em classes de usos preponderantes, outorga de direitos deuso dos recursos hdricos, cobrana pelo uso dos recursos hdricos, Sistema de Informaes sobre RecursosHdricos, Plano Diretor de Recursos Hdricos.

    16So eles: i) Sistema de Monitoramento Ambiental da Zona Costeira, SMA-ZC; ii) Relatrio de QualidadeAmbiental da Zona Costeira, RQA-ZC; iii) Zoneamento Ecolgico Econmico Costeiro, ZEEC; iv) Plano de

    Ao Federal da Zona Costeira, PAF; v) Macrodiagnstico da Zona Costeira; vi) Plano Nacional deGerenciamento Costeiro, PNGC; vii) Pano Estadual de Gerenciamento Costeiro, PEGC; viii) Plano Municipal deGerenciamento Costeiro, PMGC; ix) Sistema de Informaes do Gerenciamento Costeiro, SIGERCOM.

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    permitir e proibir certos usos, negociar, dentre outros. Ou seja, criam-se novas regras,

    institucionalidades e instrumentos de gesto que regem diferentes aspectos da vida social e

    econmica, alm de mobilizar o interesse de diversos acadmicos em todo o mundo.

    Ao analisarmos os mecanismos que do acesso aos usos da gua, bem como as

    instituies que influenciam esses processos, acreditamos ser possvel visualizar, com maior

    clareza de argumentos, os momentos nos quais certos grupos obtiveram privilgios no acesso

    gua; compreender as relaes sociais em torno da gua; analisar as assimetrias polticas e

    de poder existentes neste territrio. Para ns, foi relevante treinar tanto o olhar quanto o

    ouvir, etapas importantes para captar se nestes momentos de negociao h a evocao

    discursiva, ou no, ao fundamento dos usos mltiplos das guas para legitimar tais

    apropriaes. Tentamos, ainda, descobrir a percepo que os participantes do campo de gestode guas possuem sobre este fundamento, haja vista as dificuldades conceituais para designar

    o termo usos mltiplos da gua, uma vez que este abre brechas para diferentes

    interpretaes17.

    Vale ressaltar que os trabalhos de campo se concentraram em dois momentos distintos.

    O primeiro foi iniciado em abril de 2008, no mbito do projeto de pesquisa Valorao da

    gua e Instituies Sociais: Subsdios para a Gesto de Bacias Hidrogrficas na Baixada

    Fluminense, RJ18

    . Foi a partir desta experincia que pudemos entender melhor a dinmica docampo de gesto de guas no RJ. Comeamos a frequentar reunies do CBH Guanabara e

    visitar localidades com histrico de enchentes e falta de gua, localizadas na Baixada

    Fluminense, que receberiam investimentos do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC)

    para saneamento. Alm das conversas (no gravadas) com populao residente em beira de

    curso dgua, fizemos entrevistas (gravadas) com ambientalistas, gestores pblicos,

    participantes do CBH Guanabara e outros. Entre 2008 e 2009, realizamos um total de 39

    entrevistas, sendo oito com representantes do CBH Guanabara, que auxiliaram nas anlisesaqui empreendidas, cuja listagem se encontra no anexo deste trabalho.

    A segunda etapa dos trabalhos de campo foi iniciada em 2011, com foco nas anlises

    etnogrficas institucionais do CBH Guanabara. Em 2012 e incio de 2013, outras seis

    17 Vide item 1.4 desta tese18

    Pesquisa realizada nos anos de 2008 e 2009, com apoio (parcial) do CNPq atravs do programa CT-Hidro,no mbito do laboratrio Estado, Trabalho, Territrio e Natureza (ETTERN), IPPUR/UFRJ. Sob coordenaodos professores Henri Acselrad e Antnio Ioris.

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    entrevistas foram realizadas, desta vez apenas com membros titulares do Comit19.

    Participamos de reunies do CBH Guanabara, seus subcomits e cmaras tcnicas; fizemos

    visitas tcnicas na rea de Proteo Ambiental (APA) Guapimirim20 e na Estao de

    Tratamento de guas (ETA) Alegria; participamos de eventos ligados ao campo estadual de

    gesto de guas (vide relao em anexo) e, por fim, fizemos visitas ao rgo gestor ambiental

    estadual, o INEA, para coletar dados e tirar dvidas.

    O recorte temporal da anlise desta tese concentra-se, majoritariamente, no estudo dos

    acontecimentos a partir da criao do CBH Guanabara, em 2006, at o ms de dezembro de

    201221. Contudo, ao analisarmos a gesto dos usos mltiplos da gua na Baa de Guanabara,

    fez-se necessrio discutir aspectos histricos deste territrio22.

    Deste modo, para melhor abarcar a complexidade que perpassa a sobreposio de usosmltiplos, e conflitantes, da gua na Baa de Guanabara, lanamos mo do mtodo

    etnogrfico institucional23(VERS, 2011; ESCOBAR, 2007).

    Tendo as relaes sociais como ponto central de anlise, acreditamos que a etnografia

    institucional pode oferecer um caminho para explicar de que forma o cotidiano institucional

    se articula com as relaes sociais do amplo processo social e econmico vigente. Nessa

    perspectiva, o pesquisador objetiva analisar uma instituio como um todo, mapeando e

    avaliando de que forma a vida social organizada, levando em conta as relaes de poder ecomo o processo de trabalho ativado (DE VAULT, 2002 e CARROL, 2006 apud VERAS,

    2011). Os trechos abaixo reforam nossas expectativas.

    No que concerne produo cuidadosa e anlise detalhada das descriesdos fenmenos sociais, a etnografia institucional similar a outras formas deetnografia, que procuram apenas desvelar o contexto da vida em sociedade.Entretanto, diferente de muitas pesquisas etnogrficas, a institucional nofoca somente nas experincias ou na cultura. Ao invs disso, seuinteresse se volta para os processos de organizao social. Os etngrafosinstitucionais esto voltados para a explorao e a descrio das vrias forassociais e institucionais que modelam, limitam e organizam o mundo

    19 Vide anexo o quadro de entrevistados.20 Nesta unidade de conservao, localizada ao fundo do esturio da Baa de Guanabara, existe uma

    importante rea de manguezal ainda preservado, cujo ecossistema encontra-se ameaado devido proximidadegeogrfica com o Complexo Petroqumico do Rio de Janeiro (COMPERJ).

    21Reservamos o primeiro semestre de 2013 para anlise dos dados levantados e idas a campo apenas paratirar dvidas, ou entrevistar atores relevantes na histria do CBH Guanabara.

    22 Ver item 3.323Consideramos, por estrutura institucional (organizacional), como aquela que o suporte social das normas

    vigentes que definem quem est autorizado para tomar decises, que tipos de aes so permitidas ou proibidas,quais os procedimentos a serem seguidos, quais encargos ou crditos podem ser atribudos aos indivduos(OSTROM, 1986, apud SOARES, 2005).

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    26

    cotidiano das pessoas (VERS, 2011 apud MYKHALOVSKIY, 2002, p.59).

    El propsito de la etnografa institucional es poner al descubierto el trabajode las instituciones y las burocracias para prepararnos en la tarea de ver loque culturalmente hemos aprendido a ignorar, es decir, la participacin de lasprcticas institucionales en la construccin del mundo. La etnografainstitucional nos prepara para discernir cmo vivimos e incluso nosproducimos inevitablemente dentro de los espacios conceptuales y socialestejidos, como una fina telaraa, por la montona pero eficaz labor deinstituciones de todo tipo. Una labor etnogrfica como esta trata de explicarla produccin de la cultura que hacen instituciones que son, en s mismas, elproducto de una cultura determinada (ESCOBAR, 2007, pp. 194 e 195).

    De forma complementar, em O Ofcio do Socilogo, Bourdieu et al. (2010)alertavam para a necessidade de perceber as relaes totais pelas quais, e nas quais, os fatos

    aconteciam. Portanto, no a simples descrio das atitudes, opinies e aspiraes individuais

    que apresenta o princpio explicativo do funcionamento de uma organizao, mas sim a

    apreenso da lgica objetiva da organizao que dirige o princpio apropriado para explicar,

    por acrscimo, as atitudes, opinies, aspiraes (Ibidem).

    Uma vez que nos interessa analisar o quadro do modus operandidas instituies de

    regulao de gua, e relaes de poder a imbricadas, optamos pela etnografia institucional,

    devido ao fato desta conectar o cotidiano das instituies s relaes de dominao

    previamente estabelecidas (SMITH, 1999 apud YANEZ, 2011)24.

    Abordamos as anlises etnogrficas combinando-as com outras tcnicas

    metodolgicas de coleta de dados: i) observao participante; ii) as entrevistas

    semiestruturadas; iii) anlise de contedo das entrevistas, dos documentos institucionais

    (principalmente as atas de reunio do CBH, resolues e ofcios redigidos no mbito do CBH

    Guanabara) e das anotaes do caderno de campo.

    24 Segundo o autor, ese complejo coordinado internamente de organizacin administrativa, gerencial,profesional y discursiva que regula, organiza, gobierna y por dems controla nuestras sociedades. No es, sinembargo, monoltico, pero s predominante y predominantemente interconectado. Es un modo realmente nuevode organizar la sociedad, ya que se organiza em abstraccin de los escenarios locales, extra-localmente, y sucarcter textualmente mediado es esencial (no podra operar sin textos, ya sean escritos, impresos, televisados o

    computarizados) y caracterstico (sus formas organizativas distintivas y su capacidad de crear relaciones tantoindependientes como reguladoras del escenario local dependen de los textos)... Son las relaciones las quedominan, y las personas dominan y son dominadas a travs de ellas (Smith, 1999 apud Yanez, 2011. Pag 49).

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    Observao Participante

    A tcnica de observao participante possibilita o contato direto do pesquisador com ofenmeno observado, conseguindo informaes acerca da realidade dos atores sociais em seus

    prprios contextos; representa um caminho para obter conhecimento a respeito das crenas,

    valores, atitudes e outros aspectos de um determinado grupo social (VERS, 2011).

    Para Becker (1997), o observador participante aquele que, i) recolhe informaes

    atravs da sua participao nos momentos importantes do grupo ou organizao que estuda;

    ii) observa as reaes e comportamento das pessoas diante de um determinado fato; e iii)

    incita conversao com alguns ou com todos os participantes do evento e desvenda as

    interpretaes que eles tm sobre os acontecimentos que observou.

    Sobre a pesquisa de campo, relevante esclarecer dois detalhes referentes ao arranjo

    poltico participativo em estudo. O primeiro deles que o CBH Guanabara no possui um

    espao fsico, como um escritrio, por exemplo, com pessoas trabalhando de forma

    especfica para o Comit, onde seja possvel fazer algumas visitas e permanecer para observar

    a rotina de trabalho na instituio. Apenas constatamos a existncia de uma sede provisria e

    a contratao de uma empresa para funcionar como secretaria executiva durante alguns meses

    do ano de 2012.

    Sendo assim, nossa participao atenta nas reunies foi de fundamental importncia

    para i) captar os discursos, ii) aprender sobre quais eram as demandas e encaminhamentos

    dados durante as plenrias do Comit, iii) conhecer o perfil das pessoas que participam deste

    campo, iv) perceber se os conflitos relacionados ao uso da gua so resolvidos ou

    invisibilizados, dentre outras possibilidades. Nesses momentos de participao nos eventos

    relacionados com o Comit e com a Baa de Guanabara, e tambm durante as conversas

    informais com os membros do CBH, as anotaes no caderno de campo foram

    fundamentais para registrar as percepes e questes levantadas, registrar a dinmica de

    funcionamento da organizao em estudo e perceber aqueles atores que seriam os possveis

    interlocutores para uma entrevista formal.

    O segundo aspecto a ser citado refere-se estrutura organizacional de um CBH, para

    termos assim uma melhor compreenso sobre a rotina de trabalhos institucionais. Os comits

    de bacia brasileiros, no geral, possuem em seu organograma cmaras tcnicas e subcomits,

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    estes ltimos responsveis por discutir questes regionais relativas a um determinado afluente

    do corpo hdrico principal.

    No caso do CBH Guanabara, so quatro cmaras tcnicas: Cmara Tcnica de Anlise

    de Projetos (CTAP), Cmara Tcnica de Instrumentos de Gesto (CTIG), Cmara Tcnica

    Institucional Legal (CTIL) e Cmara Tcnica Educao Ambiental e Mobilizao (CTEM).

    composto tambm por seis subcomits: Subcomit Leste, Subcomit Oeste, Subcomit Lagoa

    Rodrigo de Freitas, Subcomit Maric-Guarapina, Subcomit Itaipu-Piratininga e Subcomit

    Jacarepagu. Cada um destes organismos possui uma agenda distinta e encontros especficos.

    Portanto, alm da reunio ordinria do CBH Guanabara, que acontece quatro vezes ao ano

    (quadrimestral), e as reunies extraordinrias, que no possuem regularidade para acontecer,

    foi necessrio tambm participar de alguns encontros de cmaras tcnicas e subcomits (osquais no possuam um cronograma definido), para melhor compreenso da dinmica de

    funcionamento do colegiado (vide em anexo a relao dos eventos que participamos).

    Cabe aqui ressaltar que uma das principais dificuldades vividas nestes momentos foi

    descobrir quando e onde estas reunies aconteceriam, porque no existia um site especfico do

    CBH ou outro canal de difuso de acesso pblico devidamente atualizado. Em janeiro de

    2013, o CBH lanou o seu site (http://www.comitebaiadeguanabara.org.br), contudo ainda

    bastante incompleto at o ms de maio de 2013. Alm disso, apesar de ter assinado nome eendereo eletrnico em vrias listas de presena, ter explicitado secretria executiva sobre a

    necessidade de receber informaes referentes ao comit, s conseguimos participar destes

    encontros devido gentileza de alguns colegas membros do CBH, que respondiam nossos

    emails avisando sobre as datas e locais onde estes aconteceriam. Geralmente eram realizados

    em auditrios de rgos pblicos, de empresas privadas, ou de entidades de classe.

    Entrevistas

    No momento da coleta de dados com fontes orais, optamos pela realizao de

    entrevistas com perguntas semiestruturadas, buscando reduzir ao mximo a violncia

    simblica que poderia ocorrer no momento das mesmas, procurando manter uma relao de

    escuta ativa e metdica, diferindo tanto da total no interveno da entrevista dirigida, quanto

    do dirigismo do questionrio (BOURDIEU, 1997, p. 695). Deste modo, elaboramos questes

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    abrangentes que pudessem nos ajudar a entender a dinmica de funcionamento do comit, os

    interesses envolvidos na participao do segmento que o entrevistado representava, suas

    aspiraes pessoais, bem como o tratamento dado ao fundamento usos mltiplos da gua.

    Os principais pontos elencados na preparao das entrevistas tinham como objetivo buscar:

    - a histria (pessoal e institucional) daquele membro no CBH Guanabara;

    - opinio sobre os temas que deveriam ser priorizados no comit;

    - percepes quanto ao carter deliberativo e capacidade dos grupos de influenciar

    nas decises;

    - tratamento dado ao fundamento usos mltiplos da gua no comit;

    - percepes com relao ao trabalho desempenhado pelas cmaras tcnicas e

    subcomits;- pontos positivos e negativos, bem como os desafios do comit.

    Para Duarte (2002), a definio de critrios segundo os quais sero selecionados os

    sujeitos que vo compor o universo de investigao algo primordial, pois interfere

    diretamente na qualidade das informaes, a partir das quais ser possvel construir a anlise e

    chegar compreenso mais ampla do problema delineado. No caso desta pesquisa, foi

    principalmente durante a participao em eventos e reunies do CBH Guanabara que

    percebemos quem seriam os nossos informantes vlidos, ou seja, aqueles que se supemde antemo que possuem uma vivncia daquilo que se procura conhecer (QUEIROZ, 1991,

    p.199). Alm do mais, a participao nas reunies propiciou que inicissemos uma rpida

    conversa para marcar uma entrevista, solicitar os contatos (telefone e email), dentre outras

    situaes importantes no contexto desta pesquisa.

    Para a realizao das entrevistas, foi feito um contato prvio por telefone, ou por

    email, para o agendamento do encontro. As entrevistas foram transcritas na sua ntegra para

    uma posterior anlise de contedo. Os critrios usados na escolha dos entrevistados buscaramcontemplar todos os segmentos do CBH Guanabara, alm de outros aspectos, tais como:

    destaque da pessoa e/ou da entidade que ela representa no comit, disponibilidade de tempo,

    dentre outros, sempre respeitando a vontade de cada um de participar do estudo e seu

    consentimento para o uso das entrevistas nesta pesquisa.

    No geral, todas as entrevistas aconteceram de forma tranquila e sem interrupes.

    Contudo, preciso ressaltar aqui as tentativas frustradas de entrevistar o representante da

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    principal empresa usuria de gua da metrpole fluminense25, e atual presidente do CBH

    Guanabara. A princpio, tnhamos conseguido agendar uma entrevista para maro de 2013,

    porm esta foi adiada e, apesar da nossa insistncia, no recebemos retorno para uma nova

    oportunidade.

    Anlise dos dados

    A redao deste trabalho foi possvel graas anlise combinada de uma srie de

    dados, desde a reviso bibliogrfica e levantamento de matrias jornalsticas veiculadas na

    mdia at, e principalmente, os registros do dirio de campo, as entrevistas realizadas, os

    documentos que pertencem ao CBH Guanabara ou que esto presentes no cotidiano deste

    comit. Em todos estes momentos, nosso foco se manteve na questo/fundamento, usos

    mltiplos da gua, tratada e interpretada de modos distintos pelos atores e documentos.

    Segundo a perspectiva etnogrfica institucional adotada nesta pesquisa, o compromisso

    adotado preocupou-se mais com a prtica cotidiana real do que com os conceitos em si,

    buscando estabelecer uma relao dialgica entre os conceitos e as relaes sociais (SMITH,

    2005).

    Com relao s entrevistas, estas foram transcritas na sua ntegra. A posteriori,

    seguimos as recomendaes de Queiroz (1991) para uma anlise de contedo, as quais

    sugerem uma leitura cuidadosa para refletir sobre o seu teor e selecionar as informaes

    necessrias. Conforme ressaltado por Smith (2005), no se trata de buscar pontos em comum

    entre os diferentes informantes, mas sim encontrar as interseces e complementaridades de

    seus diferentes relatos.

    Assim, efetuou-se uma anlise preliminar do contedo das entrevistas, visando

    distino dos temas principais e seleo dos assuntos considerados importantes para o

    objeto de estudo. Estes temas ou tpicos so unidades de identidade diferentes que compem

    a estrutura de uma narrativa (QUEIROZ, 1991, p. 103). Nesta etapa, a checagem nas

    anotaes do caderno de campo do pesquisador trouxe importantes contribuies.

    25 Neste caso, trata-se da Companhia Estadual de guas e Esgoto (CEDAE).

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    Lanamos mo da tcnica de anlise de contedo tambm durante a etapa de leitura e

    exame das atas de reunies do CBH Guanabara e outros documentos institucionais, como

    resolues, Plano Diretor de Recursos Hdricos da RHBG, ofcios, dentre outros.

    As atas de reunies se apresentaram como um instrumento de anlise importante, pois

    possibilitaram entender o processo de criao do comit, sua trajetria e sua atuao dentro do

    contexto social, ambiental, poltico e institucional da RHBG. Possibilitaram ainda distinguir

    os representantes de cada segmento participante, esclarecer quais foram as questes

    discutidas, bem como os encaminhamentos dados. Vale ressaltar que as atas so diferentes,

    algumas so sucintas e diretas, outras so mais detalhadas. Outra informao relevante que

    todas as reunies ordinrias e extraordinrias tiveram ata redigida e aprovada. Contudo, cabe

    registrar aqui a grande dificuldade para se ter acesso s atas de reunies deste colegiado,principalmente em funo destas no estarem totalmente disponibilizadas no site.

    Um ponto que observamos, e cabe aqui citar, que a ltima reunio realizada, antes do

    Comit paralisar temporariamente as suas atividades (ver histrico do Comit no item 4.2),

    aconteceu em novembro de 2008, nona reunio ordinria. Contudo, quando o Comit retornou

    as suas atividades rotineiras, no ano de 2010, aconteceu um erro e a primeira reunio desta

    nova fase foi considerada como de nmero 20 (vigsima reunio ordinria), quando o certo

    teria sido numer-la com o nmero 10 (dcima reunio ordinria). A partir da, todas as atasforam numeradas erradamente (vide tabela em anexo). Alertamos este fato para a diretoria,

    que ainda no nos informou sobre qual foi o encaminhamento adotado. Deste modo,

    mantivemos na tese as numeraes conforme publicado nas atas e no realizamos as

    correes.

    Outro documento importante analisado foi o Cadastro Nacional de Usurios de guas

    (CNARH)26da Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara, cedido pelo INEA, referente aos

    26O CNARH (Cadastro Nacional de Usurios de Recursos Hdricos) foi desenvolvido pela Agncia Nacionalde guas (ANA), em parceria com autoridades estaduais gestoras de recursos hdricos. O objetivo principal permitir conhecer o universo dos usurios das guas superficiais e subterrneas em uma determinada rea, baciaou mesmo em mbito nacional. O contedo do CNARH inclui informaes sobre a vazo utilizada, local decaptao, denominao e localizao do curso d'gua, empreendimento do usurio, sua atividade ou ainterveno que pretende realizar, como derivao, captao e lanamento de efluentes. O preenchimento do

    cadastro obrigatrio para pessoas fsicas e jurdicas, de direito pblico e privado, que sejam usurias derecursos hdricos, sujeitas ou no outorga (Resoluo ANA n. 317, de 26 de agosto de 2003, que instituiu oCNARH).

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    anos de 2008 e 201227. Deste modo, foi possvel extrair dados interessantes relativos tanto

    extrao de gua, quanto aos lanamentos realizados por setor de usurios de recursos

    hdricos. Estas informaes foram dispostas em grficos, no captulo 3 deste trabalho, para

    melhor ilustrar os fluxos de gua na metrpole.

    Retomando as etapas metodolgicas, a ltima fase desta pesquisa consistiu da anlise

    e sntese final dos dados. Queiroz (1991) argumenta que, em uma pesquisa, a toda anlise

    segue-se uma sntese, e que essa reconstri de uma nova maneira a realidade a partir dos

    elementos descobertos, pois cria algo mais alm do que se encontrava na primeira forma,

    anterior anlise.

    No momento da redao da sntese final da pesquisa, relembramos Geertz (1989),

    quando este afirma que, alm de tecnicamente difcil, este tipo de trabalho aindaconsiderado moral, poltica e epistemologicamente delicado, ao interpretar e transcrever

    situaes da vida alheia em textos cientficos.

    Antes de encerrar o tpico, relevante lembrar as orientaes de Minayo (1992),

    quando esta ressalta que os resultados de uma pesquisa em cincias sociais constituem-se

    sempre numa aproximao da realidade social, que no pode ser reduzida a nenhum dado de

    pesquisa. Deste modo, salientamos aqui as fragilidades de uma tese de doutorado, bem como

    as limitaes pessoais de um pesquisador da rea de cincias sociais. No temos a ambio dedescrever fielmente a realidade do CBH, mas sim de nos aproximarmos de uma anlise

    crtica, com qualidade e contedo, capaz de subsidiar novas pesquisas e auxiliar no cotidiano

    da gesto participativa de guas na RMRJ.

    Os captulos

    O trabalho foi organizado em cinco captulos e duas partes. A primeira parte discorre e

    analisa aspectos polticos, culturais e institucionais da gua, e engloba dois captulos.

    No captulo 1, Ecologia Poltica da gua, interessa-nos verificar como autores

    ligados corrente terica da Ecologia Poltica vm analisando a questo de acesso e usos da

    27

    Tivemos acesso ao CNARH da Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara, referente ao ms de maro de2008 e maro de 2012. Este documento nos foi gentilmente cedido pela Diretoria de Gesto das guas eTerritrio (DIGAT), para fins acadmicos. Apenas os dados de 2012 foram analisados neste trabalho.

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    gua. Procuramos destacar a existncia de outras racionalidades de gesto para as guas, onde

    os atores sociais do processo tratam as guas como bens de uso comum (commons), e definem

    entre os seus pares as regras de acesso e usos da gua. E tendo em vista que os recursos da

    natureza so apresentados como bens de uso comum do povo, na Constituio de 1988,

    abrimos a discusso sobre a natureza scio-jurdica da gua enquanto um bem de domnio

    pblico, um bem de domnio privado e como um bem de uso comum. Ressaltamos,

    ainda, a sobreposio da racionalidade econmica na gesto de recursos hdricos frente s

    dimenses de cidadania, bem como as consequncias da mudana do carter da gua no que

    tange a valor, ou seja, o seu processo de mudana de gua valor de uso para gua valor

    de troca.

    No captulo 2, Recursos Hdricos: Estado, racionalidades de gesto e sociedade, oobjetivo foi o de ressaltar o papel do Estado regulador e o contexto poltico vivenciado no

    momento da institucionalizao da PNRH. Ao ressaltar o carter tcnico e burocrtico da

    gesto pblica ambiental, analisamos a invisibilidade poltica dada ao conhecimento popular,

    bem como s dimenses extraeconmicas do acesso e uso da gua, na vida cotidiana dos

    cidados. Realizou-se, tambm, uma anlise das questes da participao e descentralizao

    da PNRH, os avanos e desafios para implement-los. Em seguida, partimos para uma

    apreciao do cenrio estadual de gesto de recursos hdricos no Rio de Janeiro, a fim derefletir sobre o contexto institucional legal onde est inserido o CBH Guanabara.

    A segunda parte do trabalho abarca trs captulos, responsveis por analisar o territrio

    da Baa de Guanabara e a gesto participativa dos usos da gua.

    Assim, o captulo 3, intitulado Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara,

    apresenta a Baa de Guanabara como um espao imbudo de tenses e descreve aspectos

    histricos e atuais que incidem neste territrio. Ateno especial foi dada s questes

    histricas e aos atuais projetos de desenvolvimento que regem e dinamizam a paisagem e aspolticas pblicas desta regio. Ao final, h uma anlise das relaes desiguais de poder

    envolvidas no fluxos da gua na metrpole e suas consequncias em reas perifricas da

    metrpole.

    No captulo 4, cujo ttulo Comit da Baa de Guanabara: aspectos histricos e a

    representao dos segmentos, lanamos mo do suporte metodolgico das tcnicas que

    compem a etnografia institucional e, assim, analisamos o processo histrico de construo e

    amadurecimento do CBH Guanabara, bem como a sua dinmica de funcionamento. Para

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    melhor refletir sobre o carter participativo da gesto, analisamos a atuao dos segmentos

    que compem a plenria.

    Por fim, o captulo 5, O carter deliberativo do comit e a gesto dos usos mltiplos

    da gua, analisa o funcionamento do CBH e a forma como ele interfere na dinmica dos usos

    da gua na RHBG.

    No tpico Consideraes Finais, as questes incialmente postas so retomadas.

    Revendo aspectos ligados racionalidade econmica, burocratizada e tcnica da Lei de

    guas, questiona-se o papel do Estado na gesto (dita) participativa de guas e algumas

    especificidades deste campo territorializado na RMRJ.

    Feita esta apresentao da disposio do contedo desta tese, partiremos para a

    discusso terica que subsidia as nossas anlises.

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    1.1 Introduo

    Ao longo da histria, as sociedades humanas tenderam a se estabelecer, sobretudo, nas

    margens dos rios, j que estes proporcionavam a gua para beber, facilitavam o deslocamento

    de pessoas e produtos, eram utilizados como fonte de irrigao e de energia, dentre outras

    caractersticas. Contudo, nos ltimos cem anos, o desenvolvimento industrial potencializouuma crescente capacidade de transportar e controlar a gua, fato este que resultou em um

    aumento da capacidade de consumir mais, desperdiar mais e poluir mais (PNUD, 2006).

    Anlogo a isto, o processo de urbanizao intenso, neste mesmo perodo, tambm afetou

    significativamente o desenho dos corpos hdricos nas cidades, em todo o mundo. Em outras

    palavras, medida que as cidades crescem, tornam-se mais complexos os fluxos das guas

    urbanas, sejam elas destinadas ao abastecimento da populao, diluio de efluentes, ao

    escoamento das guas pluviais, ao uso industrial, dentre outras situaes.Deste modo, no contexto urbano industrial contemporneo, preciso reconhecer que

    h uma permanente e dialtica interao entre as atividades humanas e o ciclo hidrolgico o

    Ciclo Hidrossocial, j mencionado, que se estende da problemtica local a nveis regionais,

    nacionais e internacionais de interao. Sob esta perspectiva, a cidade ao mesmo tempo

    natural e social, ou seja, essa coisa hbrida designada por cidade, cheia de contradies,

    tenses e conflitos, os quais Swyngedouw (2004) chama de socionatureza.

    Ser com o vis da ecologia poltica que investigaremos, neste captulo, as questespolticas de acesso e usos da gua. Para tanto, este foi organizado em trs argumentos

    principais: o primeiro relacionado ao discurso da escassez e discusso sobre os usos

    mltiplos da gua; em seguida, as questes relacionadas ao valor de uso e de troca da gua e,

    por fim, a dominialidade dos recursos hdricos no Brasil, ou seja, questes relacionadas a

    sua propriedade e posse. O fato de a gua poder ser gerida tanto como se esta fosse um bem

    de uso comum, quanto como se fosse uma mercadoria, ser o fio condutor das nossas

    reflexes.

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    1.2 O discurso da escassez

    Nas metrpoles ao redor do mundo, comum a gua passar por uma srie de

    transformaes at chegar ao usurio final. Trata-se de modificaes no apenas em termos de

    caractersticas fsico/qumicas, mas tambm em termos de suas peculiaridades sociais e seus

    significados simblicos e culturais. Nas cidades capitalistas, ou pelo menos nas cidades onde

    as relaes de mercado so a forma dominante de troca, a circulao de gua tambm parte

    integrante da circulao de dinheiro e capital (SWYNGEDOUW, 2003). Assim como

    acontece com outros bens e servios urbanos, a circulao de gua (ou os servios que

    envolvem o saneamento ambiental) est diretamente imbricada com a economia poltica e os

    sistemas de poder, que do estrutura e coerncia ao tecido urbano (Ibidem).

    A demanda crescente para usos diversificados deste recurso, nos grandes centros

    urbanos, pressiona cada vez mais a explorao dos mananciais de guas superficiais e

    subterrneas. A explorao demasiada pode ocasionar a degradao e escassez do recurso,

    alm de tornar oneroso o processo de captao de guas em mananciais cada vez mais

    distantes, fato cada vez mais comum nas metrpoles brasileiras. Ter o direito de acesso

    gua, mas, acima de tudo em nveis de elevada qualidade, deixou de ser uma reivindicao

    exclusiva da populao pobre localizada na zona rural para ser includa entre os anseios de

    milhes de habitantes das periferias das cidades metropolitanas, que ainda no so atendidos

    pelos servios da gua.

    Pesquisas da Agncia Nacional das guas (ANA)28mostram que o Brasil rico em

    termos de disponibilidade hdrica, contudo, reconhecem que h uma grande variao espacial

    e temporal das vazes. Assim, bacias localizadas em reas que possuem uma combinao de

    baixa disponibilidade e grande utilizao dos recursos hdricos passam por situaes de

    escassez e estresse hdrico (ANA, 2007). Um cenrio crtico ressaltado aquele observado

    nas regies em que existe uma associao entre elevada densidade populacional e baixa

    disponibilidade hdrica, fator este que obriga a busca de fontes externas. o caso da bacia do

    Alto Tiet e dos rios da RMRJ, que desguam na regio da Baa de Guanabara, ambos

    28

    O clculo de demandas no Pas foi realizado a partir dos dados dos censos demogrficos, agropecurios eindustriais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE e do projeto Estimativa das vazes paraatividades de uso consuntivo da gua nas principais bacias do Sistema Interligado Nacional SIN.

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    atingindo valores menores que 500 m3de gua por habitantes, ao ano29. No geral, outro fator

    agravante nessas bacias, geralmente localizadas prximas aos grandes centros urbanos, diz

    respeito ao comprometimento da qualidade das guas, devido ao lanamento de efluentes,

    sobretudo esgotos e industriais, que ocasionam o aumento nos custos de tratamento e

    restringem as possibilidades de usos da gua. Neste contexto, os conflitos relacionados

    apropriao e usos da gua so praticamente inevitveis.

    A este respeito cabe, porm, discutir o prprio conceito de escassez, uma vez que este

    pode ser socialmente produzido, criando o que Lefebvre (2001) denominou novas

    raridades, originrias da apropriao da natureza como mercadoria, dotadas, portanto, de

    valor econmico, valor de troca. O autor cita como exemplo disto o solo urbano, mananciais

    de gua para abastecimento, remanescentes florestais preservados, uma determinadapaisagem, dentre outros atributos naturais em condies de serem transformados em renda

    diferencial, capturada pelo mercado imobilirio (LEFEBVRE, 2001).

    Um ponto a ser ressaltado nesta discusso que, ao adotar a escassez como causa

    nica dos problemas de quantidade e qualidade de guas disponveis, so desconsiderados os

    processos histricos e sociais que constituem as situaes de escassez e as formas desiguais

    de apropriao da gua pelos diferentes segmentos sociais e econmicos nos momentos de

    embate (CARNEIRO, 2003). Neste trabalho, defendemos a posio de que a escassez da gua socialmente determinada, em contraposio viso hegemnica que trata das questes

    relativas gua urbana, predominantemente sob o vis da engenharia, economia ou gesto,

    deixando de lado o papel central que as questes polticas, tanto seus atos quanto as omisses,

    assumem neste debate.

    Portanto, a "real crise da gua" surge a partir de um certo discurso de escassez,

    socialmente produzido e fruto do imediatismo da lgica do crescimento econmico,

    combinado com o aumento do poder das grandes corporaes (BAKKER, 2007). Em outraspalavras, a dificuldade para acessar gua em quantidade e qualidade satisfatrias algo

    intrnseco s decises das foras sociais. Mesmo assim, o argumento da escassez tem sido

    lanado recorrentemente para legitimar uma srie de polticas pblicas, desde aquelas

    referentes valorao econmica dos recursos naturais quanto as que buscam legitimar a

    29

    ANA (2007) considera inferior a 500 m3/hab/ano como situao de escassez ; de 500 a 1.700 m3/hab/ano designado como situao de estresse e acima de 1.700 m3/hab/ano a situao dita confortvel.

  • 7/23/2019 OS FLUXOS DA GUA NA METRPOLE

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    atuao e interveno do Estado na gesto do meio ambiente, conforme ser discutido ao

    longo deste trabalho.

    Em contraposio corrente da economia ambiental neoclssica, que evoca que o mito

    da escassez da gua resultado do elevado crescimento populacional (Teoria de Malthus)30,

    da ausncia de propriedade privada31, bem como da falta de uma regulao pelo mercado,

    tm-se os argumentos da Ecologia Poltica. Esta ltima, ao no dissociar natureza e

    sociedade, e tempo e espao, capaz de visualizar melhor a clara manifestao dos

    interesses dos detentores de poder econmico em se apropriar cada vez mais dos bens naturais

    tidos, segundo certas concepes, como capital natural (BORDALO, 2008). Ento, sob o

    ponto de vista da ecologia poltica da gua, o fluxo de gua no contexto urbano expressa

    diretamente fluxos de poder entre grupos sociais, assim como fluxos de recursos financeiros(SWYNGEDOUW, 2004).

    No caso brasileiro, por exemplo, a cada ano, os dados da Pesquisa Nacional de

    Amostra de Domiclios (PNAD) reiteram que persiste uma sria desigualdade socioespacial

    no acesso gua entre a populao urbana32. A importncia da noo de justia ambiental

    decorre desta constatao, de que as dificuldades para acessar gua em quantidade e qualidade

    satisfatrias, bem como as consequncias da desestabilizao dos ecossistemas, afetam de

    modo desigual os diferentes grupos sociais ou reas geogrficas33

    . Isto porque, geralmente, a

    30 Porto-Gonalves (2006) argumenta que o malthusianismo ainda exerce uma forte influncia no debateambiental camuflado por um discurso catastrfico em nome do qual se tenta convencer os outros da validade desuas propostas, quase sempre, o controle da populao. Tambm com relao aos recursos hdricos, a mesmacantilena aduzida como se os problemas derivassem do crescimento da populao. Entretanto, a questo pareceser mais complexa do que esse reducionismo, at porque se a populao mundial cresceu 3 vezes desde os anos50, a demanda por gua cresceu 6 vezes, citando entrevista com o diretor da Agncia Nacional de guas doBrasil, Jerson Kelman. Alerta o autor que no Canad, entre 1972 e 1991, enquanto a populao cresceu 3% oconsumo de gua cresceu 80%, segundo a Organizao das Naes Unidas (ONU). Considerando-se o nvel de

    vida da populao canadense, com os dados acima, quando comparados com o crescimento da populaomundial e a demanda global por gua, observa-se que o crescimento exponencial de populaes com o nvel devida europeu e norte-americano que est aumentando a presso sobre esse e outros recursos naturais de modoinsustentvel. Assim, a demanda por gua cresce mais que o crescimento demogrfico, indicando que devemosbuscar em outro campo as razes do desequilbrio hidrolgico (PORTO-GONALVES, 2005, p. 121).

    31Baseada nos argumentos da Tragdia dos Comuns, ver item 2.3.1 deste trabalho.32No ano de 2007, por exemplo, entre os 20% mais pobres, o nvel de cobertura de gua canalizada por rede

    geral de pouco mais de 83%, enquanto que entre os 20% mais ricos este ndice de cobertura chega a 95,7% -uma diferena de quase 13 pontos percentuais. E ao observar as desigualdades socioeconmicas no acesso aoesgotamento sanitrio, esta diferena ainda mais relevante, chegando a mais de 28 pontos