ROSE . Biopolítica Molecular, Ética Somática e o Espírito Do Biocapital.

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  • ROSE, Nikolas. Biopoltica molecular, tica somtica e o esprito do biocapital. In: SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos; RIBEIRO, Paula Regina Costa (Orgs.). Corpo, gnero e sexualidade: instncias e prticas de produo nas polticas da prpria vida. Rio Grande: FURG, 2011, p. 13-31.

    BIOPOLTICA MOLECULAR, TICA SOMTICA E O ESPRITO DO BIOCAPITAL1

    Nikolas Rose London School of Economics London/UK.

    Peo desculpas pelo ttulo um tanto quanto pretensioso. Pretendo fazer algo bem mais modesto - esboar a perspectiva que tenho assumido para analisar a biopoltica do sculo XXI -. que tenho denominado como 'uma poltica da prpria vida'. Quero destacar cinco dimenses nas quais acredito que podemos ver significativas transformaes acontecendo. Nomeio essas transformaes, grosso modo, como molecularizao, otimizao, subjetivao, expertise e bioeconomia.

    Antes disso, porm, deixem-me dizer algumas poucas palavras acerca da medicina. Vocs no se surpreendero se eu iniciar com Michel Foucault. Seu grande livro sobre medicina, O nascimento da clnica (FOUCAULT, 1973)2, ensina uma lio metodolgica: o nascimento do olhar clnico no incio do sculo dezenove veio tona por meio de mudanas que aconteceram de modo interligado em muitas reas diferentes (mudanas nas prticas de assistncia; reorganizao das profisses mdicas e da formao mdica3; novas formas de manter registros nos hospitais, que permitiram novas estatsticas de sade e doena; avanos na anatomia patolgica e na disseco ps-morte daqueles que morriam nos hospitais; entre outras). Caso estejamos vivendo no centro de uma transformao, devemos prestar ateno a esta lio: no olhe para uma nica causa, mas tente mapear o modo pelo qual mltiplos deslocamentos permitem que algo novo emerja - algo que no se estabiliza, mas que continua mudando4.

    Embora o livro de Foucault, publicado pela primeira vez em 1963, tenha sido escrito no final da 'era de ouro' da medicina clnica, 'o prprio corpo' ainda permanece o foco do olhar clnico. Tal como ele escreveu, um novo tipo de medicina estava tomando forma - e muitos tm descrito este novo territrio (e.g. ARMSTRONG, 1983, 1995; ARNEY E BERGEN, 1984; CLARK ET AL., 2003; HORTON,2004; STARR. 1982). A competncia mdica estendeu-se

    1 Ttulo original "Molecular biopolitics, somathic ethics and the spirit of biocapital', publicado na revista Social

    Theory & Health, 2006, p. 1-27 2 Nota de traduo: Todas as referncias bibliogrficas listadas no texto so originais. Embora existam vrias

    tradues de Michel Foucault no Brasil, assim como de outros autores citados no texto, optamos, sobretudo devido extenso de referncias bibliogrficas indicadas pelo autor, por mant-las tal como na publicao original. Tambm destacamos que todas as notas (n=33) empregadas pelo autor foram suprimidas nesta traduo. 3 Nota de traduo: optamos por traduzir o termo "medical pedagogy" por "formao mdica" por se tratar do modo

    como o profissional da medicina tomado e no sobre um conjunto de saberes advindos de uma rea especfica sob a designao "pedagogia". 4 Nota de traduo: para aprofundar este aspecto, vide o texto "Como se deve fazer a histria do eu", publicado na

    revista Educao e Realidade, Porto Alegre, v.26, n.l, p. 33-57, jan.-jul., 2001.

  • para alm dos acidentes e das doenas, da sade fragilizada para o gerenciamento das doenas crnicas e da morte, a administrao da reproduo, a avaliao e governamento do 'risco', e para a promoo da sade. A manuteno do corpo sadio tornou-se central para a auto-administrao de muitos indivduos e famlias. E embora o escopo da autoridade mdica se tenha ampliado nessa direo, tornou-se, ao mesmo tempo, alvo de desafios sem precedentes. Os crticos diagnosticaram a medicalizao dos problemas sociais, argumentando que se tratava de imperialismo mdico fundado em alegaes no realistas sobre os poderes teraputicas dos mdicos, e afirmaram que os mdicos estavam se intrometendo em questes morais e polticas que no deveriam ser suas preocupaes. Os movimentos sociais desafiaram o poder paternalista dos mdicos sobre os seus pacientes, um desafio que rapidamente se transformou em uma estratgia mdico-social para 'empoderar' os beneficirios dos cuidados mdicos. Isto estava relacionado s ideias de 'cidado ativo' e transformao dos pacientes em 'consumidores', bem como ao crescimento das culturas da culpa, litgio e compensao. [p. 14]

    A prpria 'medicina' estava se transformando. Ela tornou-se tecnomedicina, altamente dependente de diagnsticos sofisticados e equipamentos teraputicos. Ela foi fragmentada por uma complexa diviso do trabalho entre os especialistas. Os mdicos perderam o monoplio do olhar diagnstico e das decises teraputicas: seus julgamentos clnicos foram cercados por demandas da medicina baseada em evidncias e pela obrigao de usar procedimentos diagnsticos e de prescrio padronizados. Alm disso, a medicina tornou-se intensamente capitalizada, redesenhando, assim, a prtica clnica pelas exigncias dos seguros sade e pelos critrios de reembolso. As pesquisas biolgicas bsicas e aplicadas - em companhias de biotecnologia e em universidades - tornaram-se intimamente ligadas gerao de propriedade intelectual e de valores para os acionistas. A sade e a doena emergiram como um novo campo frtil para a rentabilidade das corporaes. Essa capitalizao da medicina d uma forma particular ao contestado campo da poltica vital no sculo XXI, e penso que ela est relacionada centralidade tica da sade no ocidente. Isto , penso que h uma 'afinidade eletiva' entre o esprito do biocapital e nossa tica somtica contempornea. Mais adiante retomarei este tpico.

    BIOPOLTICA MOLECULAR

    A maioria das pessoas ainda imagina os seus corpos no nvel 'molar'5, na escala de membros, rgos, tecidos, fluxos de sangue, hormnios e assim por diante. sobre esse corpo molar que atuamos atravs de dietas, exerccios, tatuagens e cirurgias cosmticas. Esse era o corpo que era o foco da medicina clnica ao longo do sculo dezenove, revelado ao olhar do mdico aps a morte na dissecao ps-morte, visualizado nos atlas anatmicos, acessado em vida por uma variedade de instrumentos que ampliavam o olhar clnico e permitiam perscrutar o interior do corpo vivente. Hoje, entretanto, a biomedicina visualiza a vida diferentemente. A vida entendida e sobre ela se opera no nvel molecular, em termos de propriedades dos cdigos de sequncia das bases de nucleotdeos e suas variaes, dos mecanismos que regulam a expresso gnica e a transcrio, da relao entre as propriedades funcionais das protenas e suas topografias moleculares, da funo dos componentes intracelulares - canais inicos, atividades enzimticas, genes transportadores, potenciais de membrana - com os seus mecanismos

    5 Nota de traduo: O autor refere que faz uso do termo molar no sentido de estar relacionado massa, agindo sobre

    ou por meio de grandes massas de matria, frequentemente em oposio molecular.

  • particulares e propriedades biolgicas.

    Podemos usar o termo de Ludwik Fleck: este olhar molecular um elemento em um 'estilo de pensamento' molecular (FLECK, 1979; HACKING, 2002; ROSE, 2000a, b). Um estilo de pensamento um modo particular de pensar, ver e praticar. Declaraes, argumentos e explicaes s so possveis e inteligveis inseridos naquele dado modo de pensar. Desde a, certos fenmenos so vistos como significantes, certas coisas so designadas como evidncia e so reunidas e utilizadas de determinados modos; sujeitos so escolhidos e recrutados; sistemas-modelo so imaginados e agenciados; instrumentos so inventados para fazer medies e inscries como grficos, mapas e tabelas. Tudo isso est articulado a prticas complexas, como experimentos e ensaios clnicos. Um estilo de pensamento tambm envolve membros participantes de uma 'comunidade de pensamento' e suas relaes de poder e status. Alm disso, um estilo de pensamento tambm incorpora um modo de identificar dificuldades, questionar argumentos, identificar falhas explicativas e de tentar corrigi-los.

    Um estilo de pensamento no se refere apenas a certo modo de explicao, sobre o que para ser explicado, mas tambm sobre o que h para ser explicado, Isto , ele estabelece o prprio objeto de explicao, os problemas, as questes e os fenmenos que uma explicao deve considerar. O crebro, para as contemporneas cincias do crebro, no o que ele era nos anos 1950; a clula, na biologia celular, no o que ela era nos anos 1960; 'o gene' - se ainda podemos cham-lo assim - no o que ele era antes de o genoma ser sequenciado, e assim por diante.

    Certamente, muitos diagnsticos e tratamentos de pacientes permanecem molares, e so realizados em termos de patologias de rgos ou sistemas. No entanto, a virada molecular no pensamento sobre a vida ainda significativa. no nvel molecular que os agentes teraputicos so selecionados, [p. 15] manipulados, testados e desenvolvidos, e em termos moleculares que os seus modos de ao so explicados. Antigas prticas teraputicas, da cura atravs das ervas at a psicanlise, procuram uma nova legitimao molecular para os seus aparentemente misteriosos modos de ao. Um programa de pesquisa em expanso procura as bases moleculares dos diagnsticos clnicos atuais e est comeando a reformatar os diagnsticos nessas bases. Por um lado, muitas condies fenotipicamente distintas agora parecem estar relacionadas no nvel molecular. Por exemplo, a descoberta das bases genticas do PXE (Pseudoxanthoma elasticum) no cromossomo 16, uma desordem hereditria em que o tecido elstico do corpo comea a se mineralizar, tambm pensada como estando relacionada s bases genticas e moleculares da hipertenso e da doena cardiovascular, assim como tambm da degenerao macular. Por outro lado, desordens anteriormente agrupadas, como a depresso monopolar, esto comeando a ser fragmentadas em subgrupos, em parte como um resultado da investigao das bases moleculares da variao nas respostas dos pacientes nova gerao de antidepressivos manipulados molecularmente.

    Uma nova ontologia da vida est tomando forma nesse nvel molecular. As tcnicas de visualizao que podiam criar imagens ou simular a vida nesta escala foram cruciais para essa ontologia molecular (CARTWRIGHT, 1995a, b; ROSE, 2001). Contudo, apenas a visualizao no foi suficiente. A genmica molecular e a neurocincia molecular tm se valido da inveno de uma grande variedade de tecnologias de decomposio, anatomizao, manipulao, ampliao e reproduo da vitalidade nesse nvel molecular. Combinadas, de modos subitamente

  • extraordinrios, estas tcnicas abriram os genes e o crebro ao conhecimento e tcnica no nvel molecular. Uma vez que a vitalidade foi anatomizada nesse nvel, a interveno no est mais limitada pela normatividade de uma dada ordem vital. Primeiro foi o sangue, ento os rgos, a seguir os elementos da reproduo - vulos, espermatozoides, embries e clulas-tronco -, agora tecidos, clulas e fragmentos de DNA podem ser isolados, decompostos, estabilizados, armazenados em 'biobancos', comodificados, transportados no meio cientfico, submetidos reengenharia por manipulao molecular, tendo suas propriedades transformadas. A molecularizao isola tecidos, protenas, molculas e drogas de suas afinidades especficas - para uma doena, para um rgo, para um indivduo, para uma espcie. Ela confere uma nova mobilidade aos elementos da vida. Eles podem ser deslocados - removidos de um lugar para outro, de organismo para organismo, de doena para doena, de pessoa para pessoa. A mobilizao da vitalidade no nova - pense na longa histria das colees e cruzamentos de plantas. No entanto, a molecularizao no suficiente por si mesma - como veremos, muitos outros fatores devem ser adicionados: capitalizao; padronizao; regulao mesmo tica - para permitir que as entidades se movam por esses circuitos de vitalidade. Entretanto, nesta escala molecular que nossa biopoltica contempornea opera: a 'biopoltica molecular' diz respeito, agora, a todos os modos pelos quais esses elementos moleculares da vida - de estruturas moleculares que compem medicamentos a ocitos e clulas-tronco - podem ou devem ser mobilizados, controlados, combinados, sendo-lhes atribudas propriedades que anteriormente no existiam.

    TECNOLOGIAS DE OTIMIZAO

    Uma mudana epistemolgica acompanha esta mudana ontolgica. A 'biologia' que veio a existir no sculo dezenove era uma biologia do 'profundo'. Ela tentava descobrir as leis subjacentes que determinavam o funcionamento dos sistemas vivos fechados. A biologia contempornea, contudo, opera, ao menos em parte, em um campo 'superficial'6 de circuitos abertos. Sei que isto parece contra intuitivo - referir-se aos 'genes' no seria explicar os seres vivos em termos do mais profundo de todas as profundezas? Ainda assim, penso que o discurso de verdade da genmica contempornea no mais apresenta suas explicaes nestes termos. Na biologia molecular contempornea - por exemplo, sistemas biolgicos - a busca no por leis simplificadoras subjacentes, mas, pelo contrrio, por simulaes de sistemas abertos, dinmicos e complexos, combinando elementos heterogneos para modelar futuros estados vitais, portanto, para possibilitar intervenes na direo de reformatar aqueles [p. 16] futuros.

    As intervenes na vida deste mundo superficial parecem no mais estar limitadas pelas normas vitais de um corpo natural. Previamente parecia que, confrontada com doenas ou patologias, toda medicina poderia esperar apreender a anormalidade, restabelecer as normas naturais vitais do corpo. Entretanto, essas normas no parecem mais to inescapveis. Nas palavras de Ian Wilmut, um dos criadores da ovelha Dolly, ns ingressamos na era do 'controle biolgico'. 'Isto significa que no podemos mais aceitar que a 'prpria' biologia impor limites s ambies humanas. Como resultado, os humanos devem aceitar maiores responsabilidades em relao ao domnio biolgico, que se tornou, de certo modo, em uma

    6 Nota de traduo: empregamos o termo 'superficial', em oposio ao 'mundo profundo', embora o termo mais

    apropriado para a traduo de 'flattened' fosse 'raso, achatado'.

  • condio completamente contingente' (citado em FRANKLIN, 2003, p. l00). Certamente, nem tudo possvel, mas quase tudo pode ser imaginado. Deste modo, as tecnologias mdicas contemporneas no buscam meramente curar doenas, mas controlar e gerenciar processos vitais do corpo e da mente. Elas no so mais apenas tecnologias da sade, mas tecnologias da vida.

    Emprego o termo 'tecnologias', aqui, para referir o agenciamento de relaes sociais e humanas, hbridos de conhecimento, instrumentos, pessoas, sistemas de julgamento, edificaes e espaos, estruturados por uma racionalidade prtica governada por uma meta mais ou menos consciente e sustentada por certos pressupostos sobre os seres humanos (BROWN e WEBSTER, 2004; ROSE, 1996, p. 26). Por exemplo, as novas tecnologias reprodutivas implicam em muito mais do que as habilidades manuais dos mdicos para usar novos instrumentos e tcnicas - elas engendram certos modos de pensamento sobre reproduo, para o sujeito e para o especialista, certa rotinas e rituais, tcnicas de testagem e prticas de visualizao, modos de dar aconselhamento e assim por diante (FRANKLIN, 1997; RAPP, 1999; STRATHERN, 1992). O transplante de rgos no apenas um triunfo das tcnicas cirrgicas, mas requer novos conjuntos de relaes sociais, que renem doadores e receptores ao longo do tempo e do espao, colocando em circulao e gerando novas ideias sobre o fim da vida, novos sentidos de propriedade do corpo e direitos cura, assim como relaes financeiras e instituies complexas que tornam o procedimento possvel (LOCK, 2002; SCHEPER-IIUGHES, 2000, 2003a, b). O mesmo pode ser dito das neurotecnologias que esto tomando forma no contexto das novas cincias do crebro.

    A caracterstica-chave dessas novas tecnologias da vida sua viso voltada para o futuro: elas procuram otimizar o futuro vital atuando no presente vital. Deixem-me dizer um pouco mais sobre duas dessas tecnologias orientadas para o futuro - aquelas que se caracterizam pela suscetibilidade e pelo melhoramento.

    As tecnologias da suscetibilidade objetivam identificar e tratar as pessoas no presente em relao a doenas que elas predizem que essas pessoas podem vir a sofrer no futuro. Sabemos que o sequenciamento do genoma humano no produziu uma nica sequncia 'normal' e que h muito menos sequncias que codificam protenas do que se havia antecipado. Alm disso, havia milhes de loci no genoma nos quais os indivduos diferiam um do outro por uma simples base nas cadeias de As, Cs, Gs e Ts que constituem o 'cdigo gentico' - um A substitudo por um C, por exemplo. Toda sequncia identificada como um 'gene' agora aparece marcada por tais polimorfismos de base nica (SNPs)7. As diferenas humanas - entre indivduos, entre populaes - tm sido reescritas no nvel molecular. H algumas 'desordens de um nico gene' que so relativamente raras e outras que so relacionadas a anomalias mais importantes, tais como as extenses repetidas de sequncias particulares de bases - como na repetio da extenso CAG que predispe ao desenvolvimento da doena de Huntington. Para desordens complexas comuns, tais como doenas do corao, diabetes e cncer, o paradigma do 'gene para' foi abandonado em favor de tentativas para identificar as variaes genmicas nos polimorfismos de base nica que podem aumentar a suscetibilidade doena. Os testes genticos esto sendo desenvolvidos (para crianas e adultos, embries, e mesmo para vulos no fertilizados) e

    7 Nota de traduo: polimorfismo de base nica a traduo encontrada na literatura nacional especializada para o

    termo 'Single Nucleotide Polymorphisms' (SNPs). Essa mesma literatura mantm o uso da sigla em ingls.

  • identificaro tais polimorfismos de base nica, frequentemente em combinaes em loci mltiplos no mesmo cromossomo, que podem aumentar a probabilidade do desenvolvimento de uma doena. [p.17]. Uma vez identificado, esperado que as aes de remediao se tornem possveis, com opes que vo desde a implantao seletiva dos embries, seja por terapia gnica e terapia de drogas preventivas, seja por mudana de estilos de vida.

    A suscetibilidade indica um movimento do determinismo gentico em direo a um novo mundo de probabilismo genmico. Em certo sentido, isto meramente a extenso de dois modos de pensar que tm uma longa histria - predisposio e risco. Uma predisposio, desde o sculo dezoito pelo menos, era uma falha ou um defeito herdados e que poderiam, nas devidas (ou indevidas) circunstncias, se manifestar em doena ou patologia (CHAMBERLIN e GILMAN, 1985; PICK, 1989; ROSE, 1985). Ideias de suscetibi1idade gentica reavivam crenas de que as debilidades eram herdadas como predisposies que poderiam permanecer despercebidas at que fossem disparadas por eventos externos, que incluam o uso de bebidas em excesso, os acidentes ou a idade, e que deveriam ser evitados pela adoo de modos de vida mais cuidadosos e moderados. Elas tambm reavivam as mais recentes tecnologias de avaliao do risco, a predio e o gerenciamento do risco, que emergiram das pesquisas sobre prevalncia de desordens e doenas entre diferentes setores da populao. Enquanto a alocao a uma categoria de risco geralmente epidemiolgica - ou seja, emerge mais de correlaes estatsticas do que a partir da identificao de um caminho etiolgico claro para a doena - o sonho do diagnstico contemporneo a preciso molecular: identificao de variaes precisas nos polimorfismos de base nica cujos produtos - uma baixa atividade enzimtica, um gene transportador defeituoso - formam parte do caminho da prpria doena.

    Tal como o pensamento sobre o risco, a ideia de suscetibilidade traz para o presente potenciais futuros, torna-os sujeitos ao clculo e objeto de intervenes teraputicas. As tecnologias da vida no apenas procuram revelar estas patologias invisveis, mas, numa cultura de preveno e precauo, incorporam uma obrigao moral ou profissional - intervir para otimizar as chances de vida do indivduo suscetvel. Dado que iremos adoecer e morrer, todos ns; mesmo se nos encontramos saudveis somos verdadeiramente doentes pr-sintomaticamente - somos todos tanto pacientes efetivos quanto 'pr-pacientes'. J podemos ver a proliferao de testes pr-sintomticos e o ethos da responsabilidade, preveno e prudncia que eles trazem consigo. Isso tem como resultado: novas formas de vida que esto tomando forma na era da suscetibilidade; novas subjetivaes individuais e coletivas daqueles 'em risco'; e a extenso dos poderes da expertise potencialmente para todos.

    As tecnologias de melhoramento, assim como aquelas da suscetibilidade, esto orientadas ao futuro. Praticamente qualquer capacidade do corpo ou da alma humana - fora, resistncia, ateno, inteligncia, bem como a prpria estimativa de vida - parecem potencialmente abertas ao aperfeioamento pelas intervenes tecnolgicas. Sem dvidas, os humanos sempre tentaram aperfeioar seus prprios corpos com ao auxlio de instrumentos de aprimoramento. No obstante, hoje, as possibilidades de melhoramento biomdico tm atrado muita preocupao. Por qu? Talvez a sensao de que estamos nos movendo, nas palavras de Adele Clark e seus colegas, 'da normalizao para a customizao': previamente as intervenes das especialidades mdicas eram utilizadas a fim de curar patologias; agora as intervenes so demandadas por consumidores que fazem escolhas com base em desejos constitudos no por necessidades mdicas, mas pela cultura do consumo e do mercado (CLARKE ET AL, 2003, p.181-182). Parte

  • da ansiedade sobre as tecnologias de melhoramento contemporneas emerge da crena de que elas se tornaram mais poderosas, precisas, focadas e bem sucedidas em razo da base cientfica de entendimento dos mecanismos do corpo (ELLIOTT, 2003; PARENS, 1998). Para alguns, estamos sob o perigo/ameaa de perder algo que em grande medida essencial para todos ns e para nossa natureza como seres humanos (FUKUYAMA, 2002; HABERMAS, 2003; CONSELHO DE BIOTICA DO PRESIDENTE (EUA) e KASS, 2003).

    Naturalmente, a ideia de um corpo natural um mito, embora no menos importante por isso. Talvez, tal como Ian Hacking sustentou, tenhamos nos tornado cartesianos agora, pelo menos, no que diz respeito aos nossos corpos, confortveis com a ideia de nossos corpos como um tipo de mquina cujas partes e funes podem ser manipuladas segundo a vontade (HACKING, 2005). Porm, o florescente debate biotico sobre melhoramento um ndice do profundo desconforto que acompanha [p. 18] a ideia de projetar. Concepes de projetar8 bebs, projetar humores, reprojetar inteligncia, e mesmo projetar novos organismos, certamente vm acompanhadas de pressupostos no realistas acerca das capacidades para projetar e reprojetar sistemas vivos abertos e complexos. Elas tambm estabelecem distines estranhas entre intervenes biolgicas e aquelas que procuram os mesmos fins atravs de meios sociais ou psicolgicos. Mais importante para minhas atuais preocupaes que a ideia de projetar tropea em dois limiares. Primeiro, aquele em que a reproduo - projetada no nvel de genomas e embries ainda parece transgredir um poderoso limite tico. Segundo, quando o design/projeto estende suas atribuies para a mente. Alguns se preocupam com a possibilidade de nos tornarmos aptos a submeter reengenharia os processos neurobiolgicos responsveis pelas variaes nos impulsos humanos: o que, dizer ento, das ideias de livre arbtrio e responsabilidade criminal (ROSE, 2000). Outros acreditam que devemos reformatar nossos humores, emoes e desejos segundo a vontade, sem esforos, pelo mero consumo de uma plula: para alguns, isso implode o ncleo de suas compreenses do que ser humano (CONSELHO DE BIOTICA DO PRESIDENTE (EUA) e KASS, 2003). Outros ainda referem que devemos estar aptos a melhorar nossa cognio, como na sugesto de que drogas aparentemente bem sucedidas na mitigao da perda de memria inicial na doena de Alzheimer abrem o caminho para frmacos que aprimoram a memria, a inteligncia, a concentrao e correlatos, algumas vezes apelidados de 'Viagra para o crebro'. Especulaes sobre o futuro ps-morte, seja por especialistas em biotica ou transumanistas, esto indubitavelmente baseadas em alegaes exageradas sobre as. capacidades das novas neurotecnologias. Porm, algo est mudando. Um aspecto deste 'algo' um redirecionamento parcial do entendimento que temos de nossa identidade cerebral e sua neuroqumica. Ou, para colocar de outro modo, nossas mentes tambm se tornaram corporificadas, coisas carnais, para serem anatomizadas, dissecadas, reformadas.

    Recentemente, a ideia de ciborgue entrou na teoria social - o ciborgue como uma fuso de humano e artefato (GRAY, 2000; HARAWAY, 1991). Penso, contudo, que os corpos e mentes melhorados artificialmente que tenho discutido no se conformam ideia de ciborgue. Enquanto a ampliao mecnica, robtica e computacional parecem tornar o ser humano menos biolgico, os novos melhoramentos moleculares reformatam a vitalidade desde dentro: neste processo, o humano se torna ainda mais biolgico. A vida se torna mecanismo - nossa prpria biologia est

    8 Nota de traduo: o verbo 'projetar' foi empregado para substituir a ideia de 'to design', cuja traduo para

    'desenhar', em portugus, perde grande parte do sentido encontrado na lngua inglesa.

  • sujeita reengenharia.

    SUBJETIVAO

    Por volta da segunda metade do sculo XX, a sade se tornou um dos valores-chave ticos para aquilo que denominei de sociedades 'liberais avanadas'. Encorajados pelos educadores em sade a assumir um interesse ativo por suas prprias sades, e 'ativados' pelas novas culturas da cidadania ativa, muito se recusaram a permanecer como receptores meramente 'passivos' da expertise mdica. 'Pacientes' tomaram-se 'consumidores', escolhendo ativamente e fazendo uso da medicina, das biocincias, dos produtos farmacuticos e da 'medicina a1ternativa' na direo de maximizar e melhorar suas vitalidades. Eles tambm aprenderam a demandar informaes dos mdicos, a esperar por terapias bem sucedidas e a estarem prontos para reclamar ou mesmo para processar quando desapontados. A sade, entendida como uma maximizao das foras e potencialidades vitais de um corpo vivente, passou a ser um desejo, um direito e uma obrigao - um elemento-chave nos regimes ticos contemporneos.

    Paul Rabinow foi um dos primeiros a reconhecer que algo novo estava ocorrendo nas relaes entre medicina e subjetividade (cf. ROSE, 1994; RABINOW, 1996a, b). Sua anlise emergiu da observao que ele realizou, na Frana, na primeira metade dos anos 1990, acerca da mobilizao dos pacientes, parentes e outros afetados por distrofias, reunidos na forma de organizaes no governamentais - a Associao Francesa contra as Miopatias (AFM) (RABINOW, 1999). Isto o levou a argumentar que novos tipos de identidades individuais e de grupo - biossociabilidades - estavam surgindo a partir das novas tcnicas de diagnstico gentico, monitoramento dos riscos e suscetibilidades. Tais [p. 19] grupos biolgicos encontram-se para trocar experincias, para fazer presso por recursos para pesquisas sobre 'suas' doenas, reconfigurando suas formas de vida luz do novo conhecimento gentico. Eles desenvolvem novas relaes com especialistas mdicos, clnicas e laboratrios. A auto-compreenso deles enquanto indivduos e coletivos reconfigurada na linguagem da medicina contempornea.

    Carlos Novas e eu identificamos desenvolvimentos similares em relao a doenas to divergentes quanto desordem afetiva bipolar e doena de Huntington (ROSE e NOVAS, 2004). Empregamos o termo 'cidadania biolgica' para sugerir que os desenvolvimentos contemporneos representam transformaes numa histria muito mais longa: no Ocidente, desde pelo menos o sculo dezoito, a cidadania tem sido formatada com base em concepes de caractersticas vitais especficas dos seres humanos. Desde aquele tempo, as caractersticas de cidados reais, desejveis e impossveis tm, pelo menos em parte, sido entendidas e colocadas em prtica em termos de suas biologias, suas naturezas orgnicas vitais e caractersticas como membros de um grupo tnico, uma raa, uma nao ou civilizao.

    Para a biopoltica da primeira metade do sculo XX - seja na sua forma eugnica ou de bem-estar -, o corpo do cidado, o cidado individual e o corpo coletivo da populao, a nao ou o Povo (Volk), eram valores primordiais. Mas mesmo aqui a biopoltica no foi esgotada pela esterilizao, eutansia e pelos campos de concentrao. Na educao dos cidados germnicos durante o terceiro Reich, nas campanhas de educao eugnica nos Estados Unidos, Inglaterra e muitos outros pases europeus, produzir cidados envolveu instruir aqueles cidados quanto ao cuidado com os seus corpos, desde a alimentao escolar ao uso da escova de dente; a incu1cao de hbitos de limpeza e domesticidade, especialmente para mulheres e mes; a

  • regulao estatal da qualidade dos alimentos; intervenes nos locais de trabalho em nome da sade e da segurana; a instruo daqueles que pretendiam se casar e procriar para escolher melhor os parceiros; o planejamento das famlias e muito mais. Ser um cidado no era ser um mero recipiente passivo dos direitos sociais: isto envolvia obrigaes de proteger o prprio corpo, e para as mulheres tambm aquelas obrigaes relativas ao seu cnjuge e a sua prole. O estado poderia empregar medidas para a preservao e o gerenciamento da sade coletiva, mas os prprios indivduos deveriam exercitar a prudncia biolgica, para o seu prprio bem, de suas famlias, de sua linhagem e de sua nao como um todo.

    As noes biolgicas de cidadania tambm estiveram ligadas a demandas vindas 'de baixo', feitas s autoridades pblicas. Exemplos disso so as campanhas feministas para a legalizao da contracepo, na primeira metade do sculo dezenove, e as demandas mais recentes de compensao estatal por danos biolgicos, tal como aqueles que ocorreram na Ucrnia aps a fuso do reator nuclear de Chernobyl, explorado por Adriana Petryna (PETRYNA, 2002). A cidadania biolgica adquire sua forma a partir dos modos mais gerais de cidadania nos regimes governamentais particulares. Os grupos de apoio e servios, que proliferaram em torno da sade e da doena na Inglaterra, Europa e Amrica do Norte, participavam da tica da 'cidadania ativa' que tomou forma nas democracias liberais avanadas. Essa uma tica em que a maximizao do estilo de vida, potencial, sade e qualidade de vida tornaram-se praticamente obrigatrias. Porm, podemos ver dois desenvolvimentos recprocos: primeiro, julgamentos negativos so dirigidos queles que, seja qual for a razo, adotam uma postura ativa, informada, positiva e prudente em relao ao futuro (CALLON e RABEHARISOA, 2004); segundo, muitos dos cidados biolgicos contemporneos devem sentir que, agora, eles adquiriram direitos para o tratamento de suas doenas e incapacidades e que os outros - polticos, autoridades sanitrias e mdicos - devem ser responsveis por eles, requerendo ser recompensados ou compensados por suas condies: grupos de cidados ativos e injustiados competem uns com os outros pela prioridade e justia de seus prprios 'estados particulares de injria' (BROWN, 1995; ROSE, 1999).

    A biomedicina, ao longo do sculo vinte e at mesmo em relao a ns, mudou, ento, no apenas nossa relao com a sade e a doena. Ela ajudou a fazer de ns os tipos de pessoas que nos tornamos. Ou, para colocar isso de outra maneira, ela transformou os tipos de seres humanos que ns mesmos pensamos ser (ROSE, 1985, 1989, 1996). Sugiro que vimos crescentemente nos relacionando com ns mesmos como indivduos 'somticos', ou seja, como seres cuja individualidade , ao menos [p. 20] em parte, fundada dentro de nossa carne, na existncia corporal, e que experimentamos, articulamos, julgamos e agimos sobre ns mesmos em parte na linguagem da biomedicina. E, como j indiquei, essa somatizao estende-se para a prpria mente. Ao longo dos aproximadamente primeiros sessenta anos do sculo XX, os seres humanos vieram a entender a si mesmos como habitados por um profundo espao psicolgico interior, a avaliar e a agir sobre si mesmos em termos desta crena (ROSE, 1989). Viemos a assentar nossas prticas ticas num entendimento de ns mesmos como criaturas habitadas por um profundo espao interior, a fonte de todos os nossos desejos e a fonte secreta de todos os nossos problemas. Porm, estas relaes com ns mesmos esto sendo transformadas nos jogos de verdade da biopoltica molecular. Aquele espao profundo passou a tornar-se mais superficial, mais raso, a ser deslocado por um mapeamento direto da personalidade e de suas doenas, sobre o corpo ou o crebro, que ento se torna o alvo principal para as questes ticas. Em alguns aspectos importantes, temos nos tornado 'sujeitos neuroqumicos'.

  • As novas cincias do crebro e do comportamento forjam relaes diretas entre o que fazemos - como conduzimos a ns mesmos - e aquilo que somos. Elas tambm trabalham no nvel molecular - o nvel dos neurnios, stios receptores, neurotransmissores e dos precisos pares de sequncias de bases, em localizaes particulares naquilo que agora pensamos como genoma humano. Esses fenmenos moleculares, tornados visveis e transformados em determinantes de nossos humores, desejos, personalidades e patologias, tornaram-se o alvo das novas tcnicas farmacuticas. E essas tcnicas no prometem apenas enfrentar, ou mesmo curar - elas prometem nos auxiliar na realizao de ns mesmos, a nos tornarmos os tipos de pessoas que realmente somos. Aqui tambm, em relao aos humores, desejos, capacidades cognitivas e afetos, em termos corporais que nossas verdades e destinos so imaginados e nossa corporalidade, agora no nvel molecular, o alvo de nossos julgamentos e das tcnicas que empregamos para nos aprimorarmos. Em torno deste novo sentido de ns mesmos, e nossas novas capacidades para intervir sobre a mente atravs da manipulao do crebro, uma nova biopoltica - neuropoltica - tem tomado forma9.

    Assim, podemos ver que nas democracias liberais avanadas, a 'biologia' no ser facilmente aceita como destino ou que a reao a ela ser a impotncia. Certamente, uma tica organizada em torno de ideias de sade e vida produz ansiedade, medo e mesmo terror acerca de qual futuro biolgico algum, ou aqueles que cuidam de algum, poder manter. Mas enquanto isso pode gerar desespero ou coragem, frequentemente tambm gera uma moral econmica na qual ignorncia, resignao e desesperana em face ao futuro so desaprovadas. Ao menos em parte, medos e ansiedades acerca da morbidade e mortalidade esto sendo recompostos dentro de um ethos de esperana, antecipao e expectativa (BROWN, 1998; FRANKLIN, 1997; NOVAS, 2001). O ethos da esperana rene diferentes atores - aqueles que sofrem ou aqueles que podero vir a sofrer de alguma doena buscando a cura, cientistas e pesquisadores procurando um avano que os tornar conhecidos e far suas carreiras avanarem, mdicos e profissionais do cuidado em sade necessitando de uma terapia que auxiliar a tratar seus pacientes, companhias de biotecnologia almejando encontrar produtos que gerem lucros, governos procurando por desenvolvimentos na indstria e no comrcio que geraro empregos e estimularo a. atividade econmica e a competitividade internacional. Da o termo empregado por Carlos Novas: esta uma poltica econmica da esperana.

    ESPECIALISTAS DA PRPRIA VIDA

    Novas formas de especialidade esto tomando forma neste campo biopoltico: especialistas da prpria vida. J sugeri que a especialidade clnica, hoje, tem seu alcance para alm do diagnstico e do tratamento de doenas - isto no novo. Os mdicos eram especialistas do estilo de vida muito antes da sade e da doena tornarem-se responsivos a um conhecimento positivo no sculo XIX. Mas, [p. 21] sem dvidas, o novo positivismo mdico aprimorou sua autoridade e a expanso do aparato mdico ao longo do sculo XX, bem como consolidou a autoridade e ampliou seu escopo e alcance (cf. ROSE, 1994, p.69-70). Na medida em que a

    9 Nota de traduo: o autor discute estas questes de modo mais ampliado no livro Politics of life itself (2007). Uma

    interessante leitura, em portugus, acerca dos deslocamentos que Nikolas Rose operou em seus interesses de pesquisa, pode ser encontrada na entrevista ('Crebro, self e sociedade: uma conversa com Nikolas Rose') que Mary Jane Spink fez com o autor em 2008, publicada na revista Physis Revista Sade de Coletiva, Rio de Janeiro, 20 (I): 301-324. 2010.

  • busca pela sade tornou-se central ao telos dos seres humanos viventes nas democracias liberais avanadas, muitos vieram a vivenciar a si mesmos e suas vidas em termos fundamentalmente mdicos. Logo, com as melhores intenes por parte de todos os lados, questes acerca de como algum deveria viver passaram a estar fortemente associadas aos julgamentos e intervenes das especialidades mdica e paramdica.

    No campo emergente da biopoltica do sculo XXI, novos tipos de poder pastoral envolvem os cidados biolgicos contemporneos (cf. RABINOW, 1999). Podemos observar isto em particular no exerccio daquilo que Margareth Lock denominou de conhecimento 'premonitrio' - nas prticas em proliferao em que o conhecimento das suscetibilidades traz futuros potenciais vitais para o presente. O poder pastoral que est tomando forma aqui no daquele tipo de pastoralismo em que o pastor sabe e dirige as almas das ovelhas confusas e indecisas. Esses novos pastores do soma compartilham os princpios ticos do consentimento informado, da ao e escolha voluntrias e da no-diretividade. Na era da biologia da prudncia, na qual os indivduos - especialmente as mulheres - so obrigados a assumir responsabilidades em relao aos seus futuros mdicos, bem como aqueles relacionados s suas famlias e crianas, esses princpios ticos so inevitavelmente traduzidos em microtecnologias para o gerenciamento da comunicao e informao, que so inescapavelmente normativos e direcionados. Eles borram os limites entre coero e consentimento. Eles transformam as subjetividades daqueles que so aconselhados, fornecendo-lhes novas linguagens para que descrevam suas situaes, novos critrios para calcularem suas possibilidades e perigos, ao mesmo tempo em que parecem colocar em uma armadilha a tica das diferentes partes envolvidas. Isto , este poder no um caminho livre, ele implica um conjunto de relaes entre as emoes daqueles que aconselham e daqueles que so aconselhados. Logo todos poderemos passar a seguir estes 'pioneiros ticos' - ativistas da AIDS e mulheres experimentando novas tecnologias reprodutivas -, que tm que gerenciar seus presentes vitais em face aos seus futuros incertos, desenvolvendo novas ticas pragmticas de vitalidade (cf. RAPP, 1999).

    Envolvendo estes especialistas da vida h outra casta de especialistas - os especialistas em biotica. A biotica deixou de ser um sub-ramo da filosofia para se tornar um florescente campo de especialidade profissional. A tica foi uma vez parte do prprio mdico, incutida a partir de um longo treinamento e da experincia junto cabeceira dos pacientes, apoiada por um cdigo de conduta e aplicado, quando necessrio, pelos prprios grupos profissionais. A tica mdica comeou sua transformao em expertise nos anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial, quando foi consagrada em documentos oficiais e teve procedimentos de fiscalizao formalizados. Porm, ao longo dos ltimos vinte anos, temos assistido ao cerco da biotica s cincias biomdicas e prtica clnica - comits nacionais de biotica, conselhos de reviso institucionais locais, assim como um completo aparato de consentimentos informados e de informaes ao paciente aprovadas pelos comits para qualquer forma de procedimentos mdicos ou etapas de pesquisa biomdica. No mesmo perodo, podemos observar uma reconfigurao biotica das auto-representaes dos atores comerciais nos setores biotecnolgicos, especialmente daqueles envolvidos com produtos farmacuticos ou servios genticos para os pacientes. Em um mercado orientado pela busca de ganhos para os acionistas, em que o consumo biomdico de produtos farmacuticos ele mesmo formatado pela imagem e lealdade marca, em que a confiana nos produtos crucial, e em que h espirais de esperanas no realistas e desconfianas manipuladas, as corporaes incluem os especialistas em biotica em seus comits de aconselhamento e usam uma variedade de tcnicas para se apresentarem

  • como ticas e responsveis.

    Talvez esta expanso da biotica e sua imbricao com estratgias regulatrias sejam uma resposta para um tipo de 'crise de legitimao' vivida pela gentica e pelas biotecnologias nas democracias liberais avanadas (SALTER E JONES, 2002, 2005). A incorporao rotineira das preocupaes bioticas nos procedimentos burocrticos de conduo da pesquisa pode servir mais para isolar os pesquisadores do que para constrang-los. A quase inescapvel incluso de consideraes relacionadas [p.22] s implicaes ticas, legais e sociais10 nos editais para financiamento de pesquisa e em propostas bem sucedidas pode servir para amenizar as vozes crticas. Similarmente, onde os especialistas em biotica trabalham em ambientes clnicos, eles podem operar na direo de proteger as autoridades mdicas, os administradores hospitalares, os clnicos e outros, das consequncias de decises contestadas ou controversas, como aquelas relativas cessao do suporte vida a um indivduo com provvel morte cerebral. Adicionalmente, na medida em que as companhias de biotecnologia buscam transformar sequncias de DNA, tecidos, clulas-tronco, pele, sangue do cordo umbilical, alm de outras coisas, em commodities, fica claro que 'a tica' tem uma funo crucial na criao de mercado. Produtos que no vm com as garantias ticas apropriadas, notavelmente garantias como o 'consentimento informado' dos doadores, no encontraro facilidade para transitar pelos circuitos do biocapital. Tal como muitos reconhecem, tempo de abrir esta persuaso peculiar da biotica investigao crtica.

    Quais formas de especialidade a biotica reivindica ou se atribui para manter sua autoridade? E o que determina as questes que se 'tornam' bioticas? Enquanto os especialistas em biotica insistem em retornar a questes como autonomia individual, confidencialidade, direitos e protees na medicina de alta tecnologia, eles raramente se voltam para as questes ticas levantadas pelas doenas de alta prevalncia global, mundanas e rotineiras, e para as mortes prematuras (BERLINGUER, 2004). Por que o consentimento informado deveria ser 'biotico' nas tecnologias reprodutivas, mas no nas crescentes taxas de infertilidade feminina? Por que deveria ser uma questo biotica a 'dignidade' da pessoa no final da vida e no o massivo 'deixar morrer' de milhes de crianas abaixo dos cinco anos de causas previsveis? Por que a biopoltica contempornea parece requerer/exigir a autoridade biotica ainda que limite as questes s quais tais preocupaes ticas parecem relevantes (ROSE, 2002)? Caso a biotica aponte para a necessidade de uma soluo, deveramos procurar pelo problema. E, para alm do bvio - os avanos nas capacidades biomdicas -, qual o problema? Talvez um deslocamento em nossa 'substncia tica', como pontuou Foucault - a zona irreal que tem relevncia para o trabalho tico -, que a tica somtica ou corporal para a qual eu retomarei a seguir.

    BIOECONOMIA: A CAPITALIZAO DA VITALIDADE

    A biomedicina molecular contempornea requerer a garantia de fundos em larga escala durante muitos anos antes que a1cance um retorno: a compra de equipamentos caros; a manuteno de laboratrios bem equipados; uma multiplicao de testes clnicos; garantias financeiras para medidas necessrias para atender os obstculos regulatrios. De modo crescente, tais investimentos provm de capital de risco fornecido para as corporaes privadas que

    10 Nota de traduo: o autor faz meno aqui aos termos de consentimento livre e esclarecido.

  • tambm buscam levantar fundos no mercado de aes. Em razo disso, ela sujeita a todas as exigncias da capitalizao, tais como as obrigaes de obter lucro e gerar valor para os acionistas. O laboratrio e a fbrica esto intrinsecamente articulados - a indstria farmacutica tem sido central pesquisa sobre neuroqumica, assim como a indstria biotecnolgica para a pesquisa sobre clonagem e as empresas genticas para o sequenciamento do genoma humano. Precisamos de algo como um modo de proceder, dependente de uma teoria da verdade biomdica - embora isto seja para exagerar a extenso na qual os modos de proceder possam ser determinados em seu ponto de partida - como as estranhas vicissitudes do projeto para o sequenciamento do genoma humano demonstraram. Mesmo assim, onde os investimentos so necessrios para gerar verdade potencial na biomedicina, e onde a alocao de tais investimentos depende, inescapavelmente, do clculo do retorno financeiro, os investimentos comerciais configuram a prpria direo, organizao, espao de problemas e efeitos de soluo da bioeconomia e da biologia bsica que lhe d suporte. Isso menos uma questo de fabricao e comercializao de falsidades do que de produo e configurao de verdades. A reconfigurao dos seres humanos est, assim, ocorrendo dentro de uma nova poltica econmica da vida, na qual, em parte pelo menos, a biopoltica tem se tornado bioeconomia.

    Catherine Waldby props o termo 'biovalor' para caracterizar os modos pelos quais o [p. 23] corpo e os tecidos derivados das pessoas mortas so separados para a preservao e utilizados para o melhoramento da sade e da vitalidade dos viventes (WALDBY, 2000). Podemos usar o termo numa acepo mais ampla para referir todos os modos pelos quais a prpria vitalidade tem se tornado uma fonte potencial de valor (NOVAS e ROSE, 2000; WALDBY, 2002). A Organizao de Cooperao e de Desenvolvimento Econmico adere a tal sentido de biovalor em sua 'Proposta para Um Grande Projeto sobre Bioeconomia em 2030', que objetiva 'construir cenrios 'para imaginar' a bioeconomia nas 'paisagens futuras'. 'A bioeconomia' era aquela parte das atividades econmicas 'que captura o valor latente nos processos biolgicos e bio-recursos renovveis para melhoria na sade, desenvolvimento e crescimento sustentveis (ORGANIZAO DE COOPERAO E DE DESENVOLVIMENTO ECONMICO, 2004). Esse valor latente que deve ser capturado da vitalidade simultaneamente aquele da sade humana e do crescimento econmico.

    De certo modo, os projetos contemporneos para incorporar os desejos e aspiraes humanas dentro de entidades vivas - organismos, rgos, clulas, molculas - afim de extrair um excedente - seja alimento, sade ou capital - pode ser buscado em tentativas muito anteriores de colocar os processos vitais do mundo natural a servio dos humanos, tal como a domesticao de animais e plantas. No entanto, alguma coisa mudou. A prpria emergncia do termo bioeconomia traz tona um novo espao para pensamento e ao: um complexo composto por companhias trabalhando com tudo, desde clulas-tronco (com potenciais teraputicos) at testagem de paternidade por DNA, companhias farmacuticas, fabricantes de mquinas, equipamentos, reagentes e muito mais. O 'biocapital' tornou-se um termo constitutivo dentro da bioeconomia.

    A bioeconomia e seu biocapital constituinte esto inscritos e representados em nmeros -taxas de investimento, nmeros de companhias, taxas de retorno sobre o capital, nmeros de produtos levados ao mercado, divididos por setores, pases, regies, mapeados ao longo dos anos para mostrar crescimento ou declnio. Esses nmeros no apenas descrevem um dado campo de realidade - eles constituem 'a bioeconomia' atravs dos modos pelos quais eles a inscrevem em uma forma dcil, capaz de ser de pensada, discutida, analisada, sujeita a diagnstico e

  • governamento (ROSE, 1991). Em quase todas as regies geogrficas, projetos para governar essa bioeconomia tomam a forma de novas alianas entre as autoridades polticas e o capitalismo promissor. Uma conexo aparentemente virtuosa entre sade e riqueza mobiliza grandes oramentos para pesquisas e desenvolvimento, investidos por governos nacionais e fundaes privadas, as negociaes comerciais no campo da ateno sade e as indstrias de administrao da sade, a operao das companhias farmacuticas e biotecnolgicas, os fluxos de risco e de valor para os acionistas. Este , em especial, o caso em que um novo tema veio a dominar as racionalidades polticas para o governamento da economia - o tema da 'economia do conhecimento'. Por exemplo, o Primeiro Ministro da Inglaterra, Tony Blair, discursando na Conferncia Europeia de Biocincia, em novembro de 2000, em Lisboa, disse: 'a biotecnologia a nova onda da economia do conhecimento e eu quero que a Inglaterra se torne seu foco europeu'.

    Essa esperana por uma virtuosa aliana do Estado, cincia e comrcio na busca por sade e riqueza compartilhada por muitas outras autoridades polticas. Isto foi ilustrado de modo mais conhecido e controverso no apoio poltico - na Islndia, Sucia e em um nmero de outros pases - ao licenciamento para as companhias privadas realizarem testes de sequenciamento gentico das populaes, permitindo-lhes igualmente combinar os dados obtidos com aqueles de informaes genealgicas pblicas e com registros mdicos, na esperana de que elas seriam capazes de identificar as bases genmicas das desordens complexas mais comuns (ABBOTT, 1999; HOYER, 2002, 2003; NILSSON e ROSE, 1999; PALSSON e RABINOW, 1999; ROSE, 2003; ROSELL, 1991). O relativo fracasso desses modelos de negcios no dissuadiu outros pases de buscar tais parcerias pblico-privadas. notvel o modo pelo qual eles foram assumidos por naes com tradio de 'estados-fortes', oriundos da dominao sovitica, tal como a Litunia e a Estnia: registros mdicos e genealgicos detalhados, populaes relativamente estveis, combinadas com condies mdicas no habituais pareciam um bom pressgio para alianas que poderiam gerar empregos, estimular a indstria, bem como promover lucros, tanto pblicos quanto para os acionistas. O estoque gentico tornava-se, assim, uma commodity comercializvel.

    Este no apenas outro caso de capitalismo ocidental predatrio pilhando os recursos dos pobres. O relatrio da misso do governo britnico para a ndia, em 2003, iniciava com uma citao do ento Primeiro Ministro indiano Atal Behari Vajpayee: 'biotecnologia uma cincia de fronteira que traz uma grande promessa para a prosperidade da humanidade'. Naquele momento havia 160 companhias de biotecnologia na ndia, com receita oramentria de 150 milhes de dlares; esperava-se que a indstria atingisse 4,5 bilhes de dlares por volta de 2010 e gerasse empregos na ordem de um milho de vagas ou mais. A receita oramentria da produo biomdica em Singapura estava projetada para atingir sete bilhes de dlares em 2005. Na China, o governo gastou cerca de 180 milhes de dlares construindo uma indstria biotecnolgica, de 1996 a 2002, uma cifra prevista a triplicar nos trs anos posteriores. A despeito de, ou por causa de sua poltica de um nico filho, a China ativa e avanada na pesquisa e no desenvolvimento da medicina reprodutiva e uma das lderes mundiais na pesquisa e no uso clnico de clulas-tronco. Antes do escndalo de Hwang, o Centro de Pesquisas de Clulas-tronco na Coria do Sul tinha um oramento governamental garantido de 7,5 milhes de dlares pelos dez anos seguintes.

    Por volta do incio do sculo XXI, o valor do complexo biotecnolgico global era imenso.

  • Alguns crticos acreditam que isto seja uma bolha econmica (HO ET AL., 2003), mas os comentadores do mercado de informaes no sustentam esta viso. O 'Relatrio Global de Biotecnologia de 2005' - Beyond Borders - , de Ernst e Young, argumenta que a biotecnologia est se movendo

    'para alm das fronteiras', evoluindo, reestruturando-se e recombinando-se rapidamente... Com a biotecnologia se espalhando pelo globo e o seu forte progresso na sia... as respostas aos desafios esto se estabelecendo em nveis globais, os obstculos em uma regio so superados por fortes possibilidades e capacidades em outra parte do globo... Da Malsia a Michigan, os governos esto desenvolvendo planos de desenvolvimento estratgico com ambiciosas metas para a biotecnologia (2005. Grifos no original).

    Eles calculam que 'a indstria global cresceu (para um estgio inicial de desenvolvimento) assombrosos 21,2 bilhes, em 2004'; ainda assim isto no foi suficiente para responder ao desafio de encontrar o capital na fase inicial. Enquanto a 'renda oramentria da indstria biotecnolgica global cresceu por volta ele 17% em 2004, para 54,6 bilhes de dlares', e cresceu 21,2 bilhes em termos de capital de investidores privados e de outros no mercado de capitais, ela ainda estava sofrendo perdas lquidas de 5,3 bilhes de dlares. Os tempos eram 'desafiadores', em razo do desenvolvimento de regulaes, dos debates sobre tica, e da tendncia dos principais formuladores de polticas de 'escrutinarem os acordos de pesquisa entre os centros mdicos acadmicos, clnicos e companhias farmacuticas/de biotecnologia' e de questionarem os 'potenciais conflitos de interesse' (Ernst e Young, 2005, p. 35). Na Europa, contudo, apesar das contnuas preocupaes sobre a carga de regulao, depois 'de aguentar algumas tempestades fatais e reorientar seus recursos nos ltimos anos', os mercados de capitais esto se recuperando e a indstria biotecnolgica est se recuperando. O setor biotecnolgico na sia 'continua a crescer agressivamente' e 'as companhias de biotecnologia na regio aumentaram suas linhas de receita oramentria em 36%, em 2004', embora elas tambm enfrentem 'desafios' uma vez que os investidores ocidentais se preocupam com a propriedade intelectual e os recursos tenham que ser providos pelos governos (ERNST e YOUNG, 2005, p.67). A promissora seduo do biocapital continua forte.

    Os circuitos traados por essas economias contemporneas da vitalidade so, ento, conceituais, comerciais, ticos e espaciais. As companhias farmacuticas sediadas na Amrica do Norte e na Europa testam suas drogas experimentais na frica, leste da Europa e Amrica Latina, os resultados voltam base alimentando a produo de novos produtos rentveis para o mercado no mundo desenvolvido e fazendo a sua parte na gerao de lucro para os acionistas. As comunidades biossociais, compreendidas por aqueles afetados por doenas que tenham um componente gentico, solicitam aos seus membros em todo o mundo para doarem sangue e tecidos, os armazenam em bancos de tecidos e os disponibilizam para pesquisa biomdica (CORRIGAN e TUTTON, 2004; TAUSSIG, [p. 25] 2005). Pesquisadores da Europa ou dos Estados Unidos viajam para reas remotas, extraem amostras de tecidos de suas populaes 'isoladas' e os transportam de volta para os seus pases de origem para anlises genmicas e para a potencial identificao de marcadores para a suscetibilidade a doenas que possam produzir

  • invenes patenteveis. A produo da explorao do conhecimento da vitalidade hoje, portanto, envolve circuitos transnacionais mltiplos para mobilizar e associar artefatos materiais, tecidos, linhagens celulares, reagentes, sequncias de DNA, tcnicas, pesquisadores, financiamento, produo e mercado. Percorrer tais circuitos superficiais requer muito trabalho, da unificao de condutas ticas para a padronizao de mtodos, da propagao de coletivos de pensamento11 para a regulao da propriedade intelectual. As naes que competem neste campo simultaneamente se envolvem em reverter este processo - procurando vantagens competitivas por meio da formulao de condies de investimento ou regulao dentro de suas prprias fronteiras ou acentuando suas prprias regras. Os cientistas sociais esto apenas comeando a modelar os conceitos que permitiro analisar esses novos circuitos de vitalidade (PARRY, 2004; WALDBY e MITCHELL, 2006).

    CONCLUSO: A TICA SOMTICA E O ESPRITO DO BIOCAPITAL

    bastante conhecido que Max Weber discutiu que havia uma 'afinidade eletiva' entre certas ticas religiosas de asceticismos mundanos que ele observou no calvinismo e o incio da emergncia do capitalismo na Europa e na Amrica do Norte (WEBER, 1930). Esta tese, certamente, tem sido assunto de extenso debate, interpretao e refutao emprica. No entanto, ela est embasada num insight mais profundo. Aquilo que Weber denominou de 'uma soteriologia', um modo de dar sentido ao sofrimento de algum, de encontrar razes para isso e de pensar os meios pelos quais algum pode entregar-se a partir disso, central para os modos pelos quais os seres humanos conduzem as suas vidas em diferentes tempos e espaos. Podemos fazer uma questo anloga hoje? Existem relaes entre o nascimento da bioeconomia e a emergncia do corpo biolgico vivente como um ponto-chave para o governamento dos indivduos, como o lcus contemporneo para muitos de nossos incmodos e desgostos, como o stio de esperana e superao potencial? H uma 'afinidade eletiva' entre esta 'tica somtica' e o 'esprito do biocapital'?

    Quando falo de tica somtica, compreendo uma tica nesse sentido weberiano - as consideraes ticas que formatam a lebensfhrung, a conduta da conduta, dos pacientes, famlias, pesquisadores, clnicos, reguladores e mesmo daqueles que atuam no mundo do comrcio. A prtica tica incorporada na real conduta de si mesmos e de suas vidas em relao aos dilemas que enfrentam e as decises e julgamentos que tm que fazer. Eles esto tendo que formular suas prprias respostas para as trs famosas questes de Kant - Que posso saber? Que devo fazer? Que devo esperar? - na era da biopoltica molecular da prpria vida. Se nossa tica tem se tornado, em aspectos-chave, somtica, porque o nosso 'soma' - ou existncia corporal - que est sendo salientado e problematizado - nosso genoma, nossos neurotransmissores - nossa 'biologia'. Isto acontece porque as autoridades, que articulam regras para o viver, agora incluem no somente mdicos e promotores de sade, mas muitos outros especialistas 'somticos' - aconselhadores genticos, grupos de aconselhamento e apoio, e, claro, especialistas em biotica. Isto tambm acontece porque as formas de conhecimentos que esto configurando nossos entendimentos de ns mesmos so elas prprias

    11 Nota de traduo: a expresso coletivo de pensamento (thought collectives) originada da obra de Ludwik

    Fleck, um autor frequentemente citado por Nikolas Rose, especialmente quando ele se refere noo de "estilos de pensamento", por exemplo, no livro Politics of life itself (2007).

  • crescentemente 'biolgicas' - mdicas, certamente, mas tambm vindo diretamente da genmica e da neurocincia, em suas elaboraes cientficas e nas formas hbridas que elas assumem nos discursos 'leigos' do cotidiano. E, por fim, porque nossas expectativas, esperanas por salvao, para o nosso prprio futuro- so elas mesmas configuradas por consideraes acerca da manuteno da sade e o prolongamento da existncia terrena. A administrao da sade e da vitalidade, outrora ridicularizada como ensimesmamento/egocentrismo narcisista, atingiu destaque tico sem precedentes na conduta das vidas de muitas pessoas.

    Esta , ento, a economia tica 'somtica', que talvez tenha certa afinidade eletiva com certas [p.26] formas de capital, biocapital, e com a capitalizao da prpria vida. Certamente, para seguir Weber, no temos que decidir entre uma interpretao materialista ou espiritualista destas situaes. tica somtica e biocapital esto ligados desde o nascimento. Apenas onde a prpria vida atingiu tal importncia tica, onde as tecnologias para sua manuteno e aprimoramento podem ser representadas como mais do que apenas a busca de lucros ilegais e ganhos pessoais, e podem colocar-se a servio da sade e da vida, seria possvel para o biocapital atingir tal fora em nossas economias da esperana, da imaginao e do lucro. Afirmo, neste sentido, que a tica somtica est intrinsecamente articulada ao 'esprito do biocapital'.

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    Traduo: Lus Henrique Sacchi dos Santos (FACED/PPGEDU-UFRGS) e Maria Isabel Edelweiss Bujes (PPGEDU-ULBRA)