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    Os direi tos terri toriais repre s en t a m , ainda hoje , um dos pon tos cen tra i s

    da pauta de reivindicação dos povos e comunidades indígenas do Brasil. A tí-tulo de exem p l o, basta revermos o doc u m en to el a borado pelos mem bros da“Conferência dos Povos In d ígen a s”, que reun iu cerca de 3.000 represen t a ntesde 140 povos indígen a s , em Santa Cruz de Ca brália (BA ) , du ra n te as com e-morações que marc a ram os “500 anos do Bra s il ”, em 2000.No docum ento fi-nal redigido pelos conferencistas, pode-se verificar que a demarcação e a regu-larização de todas as terras indígenas e a retirada dos invasores (“desintrusão”)figuram em lu gar de destaqu e , ao lado de outras solicitações igualmen te fun-

    dament ais: o fim de todas as formas de discri m in ação, a apuração dos crimescom etidos con tra os povos indígenas nos últimos 20 anos e várias provi d ên-cias nas áreas da educação e da saúde2.

    Além das reivindicações formu l adas pelos repre s en t a n tes indígenas reu-nidos em Cabrália,cabe mencionar outra questão não menos complexa e con-tu n den te , derivad a , den tre outras con d i ç õ e s , do fato de ainda preva l ecer nas oc i ed ade bra s i l ei ra uma visão esqu em á tica sobre o que é ser efetiva m en teum índio ou uma comu n i dade indígen a . Ref i ro-me à luta de várias comu n i-

    d ades no sen ti do de serem ofi cia lmente recon h ecidas como ten do ori gem ét-

    RESUMO

    Ne s te arti go são analisados os direi to sterr i toriais indígenas du ra n te o séculoXIX,o impacto da Lei de Terras de 1850s obre tais direi to s , e o processo históri-

    co-social de expulsão e de ex propri aç ãoterritorial, então em curso,contra as po-pulações de índios do Espíri to Sa n to(Tupiniquins, Puris e Botocudos).Pa l avra s - ch ave : terras indígen a s ; Lei deTerras de 1850; índios.

    ABSTRACT

    In this arti cl e , I discuss the terri tori a lri ghts of the indigenous pop u l a ti ondu ring the 19t h cen tu ry, the impact of the Land Law of 1850 on su ch r i gh t s ,

    and the historical and social process of terri torial ouster and ex propri a ti ona gainst the pop u l a tions of Tu p i n i qu i m ,Puri and Botocudo Indians.Key word s : In d i genous people land; t h eLand Law of 1850; indians.

    Terras Indígenas do Espírito Santo

    sob o Regime Territorial de 18501

    Vânia Maria Losada MoreiraUniversidade Federal do Espírito Santo

    Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 43, pp. 153-169. 2002

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    nica pré-colombiana,a despeito de não se amoldarem às imagens amplamen-te estabelecidas de primitividade ou do índio genérico.Este é o caso,por exem-p l o, dos Caxixós (ou Ka x i x ó s ) , do Capão do Zezinho (MG), cujo recon h ec i-m en to oficial ainda está em processo de discussão e ava l i a ç ã o. Foi também

    um probl ema enf rentado pelos Tupin i quins do Espírito Santo,que con s eg u i-ram o reconhecimento da FUNAI e da sociedade regional,após longa luta pa-ra rea fi rmar a iden ti d ade étnica do gru po e pre s ervar seus trad i c i onais terr i-t ó ri o s , a m e a ç ados pela expansão com ercial da produção de eu c a l i ptos e porum discurso que lhes negava a ascendência indígena3.

    No presente artigo,proc uro discutir uma questão essencial para a sobre-vivência das comunid ades indígenas já assimiladas ou em vias de assimilaçãodu ra n te o século XIX, mas que obteve pouca atenção das autori d ade s , per-

    manecendo durante todo o Segundo Reinado como um assunto bastante con-troverti do e imprec i s o : a posse e a propri ed ade terri tor ial indígen a . De s n e-ce s s á ria se faz uma argumentação mais lon ga para dem on s trar qu a n to sãoperti n en tes e atuais as ref l exões histori ográficas sobre os probl emas terri to-riais en f ren t ados pelos índios ao longo do processo de de s envo lvi m en to his-t ó ri co do Pa í s . Uma com preensão mais vasta dos desafios que as comu n i d a-des indígenas ainda hoje en f rentam no campo de seus direi tos terri tori a i sp a s s a , como ac red i to, por uma revisão histórica sobre os diferen tes casos deassimilação social e de expulsão das comun i dades indígenas de seus tradicio-

    nais territórios.

    PATRIMÔNIO TERRITORIAL INDÍGENA

    A questão indígena du ra n te o século XIX era com p l exa e mu i to maisabrangente do que o desafio representado pelo contato e pacificação dos gru-pos indígenas isolados e independentes que viviam nos sertões, pois,além dos

    povos então consi derados “s elva gens”,ex istiam outras tantas comu n idades jái n tegradas ao tec i do soc i a l . No en t a n to, de s de a publicação do Reg u l a m en to Acerca das Missões de Catech e se e Civilização dos Índios , em 1845, a ação insti-tucional oc upou-se fundamentalmente do fom en to de aldeias e missões para“civili z ar” e “ca tequizar” as chamadas “h ordas selvagens” do Pa í s ,d a n do pou-ca atenção a outros fatores que também afet avam ou poderiam ter impactos obre a população indígena daqu ele per í odo. Isso fica bastante evi den te emrelação aos direi tos terr i toriais e patri m oniais dos índios, em que preva l eceua simplificação, o descaso, e até mesmo a arbitrariedade.

    Em maior ou men or ex tensão ou com maior ou men or cl a re z a , de s de oper í odo co l on i a l , a po l í tica insti tu c i onal em relação aos índios manteve - s e

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    indissoci ável da política terr itoria l. Já no século XVII, a legislação portuguesafornecia inequ í vocas provas da ligação entre essas duas po lí ti c as . O Alvará de1º de abril de 1680 foi absolut a mente claro sobre a posse e os direi tos dos in-d í genas em relação aos terri t ó rios que oc up a ssem, mesmo qu a ndo tais terre-

    nos estive s s em en c ravados em sesmarias con ced i d a s . De acordo com a legi s-lação de 1680, “(…) na con cessão de sesmarias se re s erva sem pre o preju í zode terceiro s , e muito mais se en tende, e quero que se enten d a , ser re servado oprejuízo e direito dos índios, primários e naturais senhores dellas” 4.

    A correlação en tre questão indígena e po l í tica terri torial re a p a rece deforma inequí voca em todos os mom en tos import a n tes que marc a ram a evo-lução da po l í tica indigen i s t a .E s teve pre sente, desse modo, nas reg u l a m en t a-ções pombal i nas, que asseguram liberdade aos índios, mas igualmen te a po s-

    se de seus bens e com é rc i o. Ou ainda, na po l í tica de alde a m en tos e noRegulamento das Missões,pois em ambos os casos se reservavam as terras dasaldeias e missões ao uso e benefício dos índios aldeados.A rigor, inexistiu umapo l í tica indigenista que não envo lvesse uma po l í tica de terras de s ti n ada aosí n d i o s , com preendida no cen á rio mais va s to da po l í tica terri torial gl obal dec ada per í odo históri co. Um dos re su l t ados da evo lução das po l í ticas indige-nistas e territoriais foi , obviamente , a produção de situações patrim oniais di-versas en tre os índios assimilados ou em processo de assimilação, con d i c i o-nadas pelo momento histórico-social em que foram incorporados à sociedade

    dominante em expansão.A situação patri m onial dos índios no Espíri to Sa n to du ra n te a pri m ei ra

    met ade do século XIX é um testemunho da va ri ed ade de condições reais e le-gais histori c a m en te produzidas em relação à terra . Depois da expulsão do s j e suítas em 1759-60, por exem p l o,os índios da capitania, que eram sobretu-do de ori gem Tu p i n i quim e Tem i m i n ó , receberam sesmarias (o caso dos ín-dios da Missão de Reri tiba) ou tiveram suas sesmarias con f i rm adas (o casodos índios da Missão dos Reis Magos).Do ponto de vista legal,tais índios tor-

    n a ram - s e , por direi to, po s su i dores de sesmari a s. Já os Pu ris e Bo toc u do s ,i n-corporados à soc i ed ade local sobretu do a partir de 1800, foram reu n i dos ema l de a m en tos e agrac i ados com as terras das aldei a s . Os índios das tri bos in-depen dentes estavam em situação rel ativamente nebulosa . Poderiam ser con-s i derados como os pri m ei ros oc u p a n tes da terra e, port a n to, port adores dedi reito primá rio e ori gin ário sobre ela. No mínimo e na pior das hipóte s e s ,a stribos indepen den tes tinham por direi to pelo menos as terras dos alde a men-tos que deveriam ser fundados para eles.

    Do pon to de vista re a l , no en t a n to, em bora os índios pude s s em en con-

    trar na legislação fundamentos para ga ra n tir seus direitos sobre os territó riosque ocu pava m , a tendência geral foi o con t í nuo avanço sobre seus terri t ó ri o s

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    e , por fim, a ex pu l s ã o.Pouco mais de cinqüenta anos depois da saída dos pa-dres jesuí tas , as terras das sesmarias indígenas do Espírito Santo eram alvo dei nvasões e ex propri a ç õ e s , i n clu s ive com o aval dos ad m i n i s tradores loc a i s .Quando o naturalista Saint-Hilaire esteve no Espírito Santo, em 1818, ele ob-

    s ervou que a sesmaria indígena de Ben even te (anti ga Missão de Reri tiba) es-tava sendo ocupada de diversas formas por luso-brasileiros: graças às doaçõesfeitas pelos govern adores aos seus amigo s ; por meio de pequ enas con tribui-ções pagas à mu nicip a lid ade para o uso de terras que índios cediam para po-derem com prar aguardente; pela simples posse ilegal e, final mente , em vi rtu-de da distri buição oficial de sesmarias nas terras indígen a s5. Em todos essesca s o s, como observou Sai n t -Hi l aire , tra t ava-se de proced i m en tos ilegai s , quedesrespeitavam abertamente os direitos terr itoriais indígenas.

    A ob s ervância e ga ra n tia dos direi tos indígenas fi cavam a cargo dos ad-m i n i s tradores e ju í zes loc a i s , mas esses setores diri gen tes mu i to ra ra m en tedefen deram os direi tos e as posses dos índios. A esse re s pei to, Sa i n t - Hi l a i resalientou:

    Q u a n do o índio pede ju s tiça con tra o portu g u ê s , como poderá obtê-la? É aosa m i gos e patrícios de seus advers á rios que ele é obri gado a diri gi r- s e , já que os ju í zes ord i n ários de Ben even te são exclu s iva m en te por tu g u e s e s .E , a i n d a , com o

    as qu eixas de uma raça de hom ens pobres e sem apoio ch egarão até os magi s-trados superiores , a tão gra nde distância desses infel izes e,na maioria das ve zes,surdos à voz dos que se apresentam de mãos vazias?6

    O destino das terras da antiga Missão dos Reis Magos, transformada apósa expulsão dos jesuítas na vi la de Nova Al m ei d a , en con trava-se em situ a ç ã oum po u co mel h or. Do pon to de vista de Sa i n t - Hi l a i re , duas razões ex p l i c a-vam a mel h or sorte daqu eles índios. Pri m ei ro, o distri to ainda era ad m i n i s-trado, por ocasião de sua viagem, por uma ampla maioria de índios. A aldeiaera diri gi d a , desse modo, por um capitão indígena e po s suía dois ju í zes qu ese alternavam , s en do um deles índio. A câmara era com posta to t a l m en te porí n d i o s , exceção feita ao provedor7. Esta situação ad m i n i s tra tiva mais favor á-vel aos direi tos e interesses indígenas fez com que os lu s o - bra s i l ei ros estabe-l ec i dos em terras da sesmaria paga s s em afora m en to e tive s s em apenas o di -rei to de ven der suas co l h eitas e ben fei tori a s , perm a n ecen do a terra sob ocon trole da Câmara . Seg u n do, Nova Al m eida loc a l i z ava-se em região men o sf é rtil e não estava, ainda, na rota de expansão agrí cola da soci edade local . En-

    tret a n to, ainda como ob s ervou Sa i n t - Hi l a i re , tal con ju n tu ra que favorec i agrandemente os índios de Nova Almeida era absolutamente provisória, pois

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    (. .. ) aqui houve pouca oportu nidade de violar os direitos dos indígen as, porqu ea região não apresenta, por assim dizer, qu a l qu er atra tivo à cobi ça : é menos fér-ti l ,i s o l ad a , vizinha dos bo tocudos; n ela as formi gas causam contí nuos estrago s;por fim, o Rio dos Reis Ma gos po u co oferece em pequ enos rec u rsos de tra n s-

    porte8.

    O progressivo desenvolvimento de Nova Almeida demonstro u ,a l i á s ,quan-to as previsões de Sa i n t - Hi l a i re estavam corret a s . Em 1848, foi ti rado da Câ-mara Municipal de Nova Almeida o ren dim en to dos foros e ainda, no mesmoano,boa parte da população,das terras e das economias da Câmara foram des-tinadas à criação da vi la de Santa Cru z . Em 1852,mais uma ve z, Nova Almei-da foi atingida por medidas políticas que enfraqueciam a municipalidade,poisperdia nova porção do seu território,então cedido à vila da Serra .F i n a l m en te ,perdeu também a auton omia ad m i n i s tra tiva , pois a partir de 1853 passou asu bord i nar-se à vila da Serra . Tal foi o de s tino da anti ga Missão jesu í ti c a , queCezar Augusto Marqu e s ,e s c revendo em 1878,observo u :“ Pa rece que havia ten-ção firme ou capricho em apressar a ruína desta vila” 9.

    A desorganização sociocultural das aldeias indígenas de Reritiba e de No-va Almeida era uma decorrência da expansão da fronteira agr í cola e da inter-venção política dos dirigentes sobre aquelas populações e localidades. No casoe s pec í f i co de Ben even te , as crí ticas de Sa i n t - Hi l a i re diri giam-se simu l t a n e a-

    m en te con tra a Câmara Mu n i c i p a l ,o governo da capitania e o sistema ju d i-c i á ri o,pois todos agiam em detri m en to dos interesses indígen a s . Já no casode Nova Al m ei d a , o natu ralista ex i m iu de qu a l qu er re s pon s a bi l i d ade a Câ-m a ra Mu n i ci p a l , uma vez qu e , na maiori a , s eus mem bros eram índios, que aposse indígena sobre a terra estava pro tegida e que os foros cobrados rever-tiam para o bem da Câmara Mu nicipal . Desse modo, em 1818, as terras indí-genas de Ben even te já eram um obj eto de disputa que envo lvi a , en tre outro ssetores , ín di o s , f azendei ro s, C â ma ra Municipal e governo regiona l, en qu a nto

    em Nova Al m eida as terras estavam sob con trole não propri a m en te dos ín-dios, mas da Câmara Municipal, cuja maioria era indígena.As perdas de territó rio sofridas pelos índios de Benevente e Nova Al m ei-

    da du ra n te o início do século XIX sign i f i c a ra m , em pri m ei ro lu ga r, que seu stítulos de sesmeiros estavam sendo ignorados.O processo de expulsão tornou-se ainda mais complexo nos anos seg uintes, não apenas porque o regime fun-diário sofreu profundas modificações, mas também porque foi intensificado oprocesso de incorporação de novas terras ao sistema produtivo. Em ambos oscasos, o direito indígena sobre as terras foi profundamente ignorado.

    E n tre 1822 e 1850, i n tervalo en tre a su s pensão do Regime de Se s m a ri a se a edição da Lei de Terra , o Brasil de s envo lveu-se sob a ausência de uma le-

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    gislação reg u l adora do processo de apropriação terri torial e, em con s eq ü ê n-ci a , a posse se tornou a forma mais usual de aquisição de terra s . A nova con- ju n tu ra favoreceu o de s envo lvi m en to de gru pos locais que dei x a ram de en-con trar limitações legais ao processo de apropriação territori a l .E s t ava sen do

    p l a n t ada a sem en te que daria ori gem , po s teri orm en te , à classe dos gra n de sproprietários rurais brasileiros.

    A su s pensão do Regime de Se s m a rias não sign i f i cou que os anti gos ses-meiros tivessem perdido os direitos anteriormente ad qui ridos. Nem tampou-co que a concessão de sesmarias tivesse sido revogada em toda e qualquer cir-c u n s t â n c i a . O dec reto imperial n. 102 de 5/5/1824 ex p l i c ava , por exem p l o,que só se podia conceder sesmarias nas margens do rio Doce espírito-sa nten-s e , e não em toda a prov í n cia10. E, de fato,mesmo depois da sus pensão do an-

    ti go regime fundiári o, o governo local con ti nuou o processo de distri bu i ç ã ode sesmarias no vale do rio Doce até o início dos anos 30, pois o obj etivo aser alcançado com tais concessões era ,s eg u n do a visão oficial, facilitar a ocu-pação sub-regional e a “civilização” dos “índios selvagens”.Mas fora de regiõesespecíficas e con s i deradas merecedoras de incentivo especial à colon i z a çã o, oregime de sesmarias foi abolido.

    A LEI DE TERRASDE 1850 E A Q UESTÃO INDÍGENA

    Com a promul gação da Lei de Terras (Lei n. 6 0 1 , de 18/9/1850), a conti-nui d ade de formação de novas posses foi expressamente proibi d a. A partir deen t ã o, todos os intere s s ados em novas terras deveriam ad qu i ri-las de form al ega l , ou seja , por via da com pra . Mas a nova lei e suas reg u l a m entações de1854 igualmente abriram caminho para a legitimação de anti gas posses e ses-m a ri a s , i s to é, a n teri ores a 1850. A legalização terri tor ial foi import a n te so-bretudo para os po s s ei ros de maior porte que transitaram dessa condição pa-

    ra o patamar de uma classe social cujo traço disti n tivo passou a ser a gra n depropri ed ade ru ra l . Pa ra el e s , a nova legislação sign i f i cou obter o recon h ec i-mento jurídico de um status social anteriormente adquirido11.

    De fundamental importância,a nova legislação tentou separar claramen-te os domínios privados dos outros ainda não apropri ado s , que passariam aformar os domínios pertencentes ao poder público. No processo de legitima-ção e revalidação de posses e sesmaria s , optou-se pelo proced i m en to simpli-f i c ado do processo ad m i n i s tra tivo,uma altern a tiva que passava ao largo da jus ti ç a . Como ob servou Lígia Osório Si lva, a magis tra tu ra era uma das insti-

    tuições mais or ga n i z adas do per í odo, e o fato de ter sido de s l oc ada do pro-cesso de reor ganização da nova estrutu ra fundiária é bastante sign i f i c a tivo,

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    pois sugere uma vitória das oligarquias regionais, que não simpatizavam coma centralização administrativa12.

    A partir da nova lei,passaram a existir as terras do domínio privado, quedeveriam ser legi ti m adas ou reva li dad a s , e as terras do domínio públ i co, qu e

    deveriam ser dem a rc ad a s . As terras do domínio públ i co eram com postas pe-las então consi deradas terras devolut as. O termo “devo luto” perdeu, con tu do,o seu senti do inicial. De terras doadas ou apropri adas que , por não terem si-do aprovei t ad a s , eram devolvidas ao sen h or ori gi n al , is to é, ao rei, o concei topassou a designar as terras não apropriadas ou públicas ou, dito de outra for-ma,vagas13. Todavia,a interpretação da letra da lei jamais foi unívoca,e o con-ceito de devoluto gerou especulações de várias ordens.

    Questões como a legitimação de uma sesmaria podiam gerar interpret a-

    ções antagônicas. Por exemp lo, as sesmarias incultas deveriam ser con sidera-das como terra devo luta ou serem legi ti m adas como propri ed ade do anti gos e s m ei ro?As terras indígenas eram devolutas ou, ao con trário, s obre os terri-tó rios ocu pados por eles ainda era válido o “direito ori gi n á ri o”? Longe de de-f in irem um con cei to cl a ro e inequ ívoco para o vocá bulo devo luto, s en adore se deputados cri aram uma lei onde devoluto definiu-se por exclusão. De acor-do com o arti go tercei ro da nova lei ,eram devo lutas as terras nas seg u i n te scondições:

    Pa r á gra fo 1º : As que não se ach a rem aplicadas a algum uso públ i co nac i on a l ,provincial ou municipal.

    Pa r á gra fo 2º: As que não se ach a rem no domínio particular por qu a l qu er tí-tulo legítimo,nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do GovernoGeral Provincial, não incursas em comisso por falta do cumpri m en to das condi-ções de medição, confirmação e cultura.

    Parágrafo 3º: As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessõesdo governo,que apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei.

    Pa r á gra fo 4º

    : As que não se ach a rem oc u p adas por po s s e , que apesar de nãose fundarem em título legal, forem legitimadas por essa lei14.

    Pa ra alguns ju ri s t a s , o espí ri to da lei baseava-se na idéia geral de ga ra n-ti r-se a propri ed ade terri tor ial àqu eles que efetiva m en te cultivavam a terra ,independentemente da posse legal ou não. Sublinhavam, ademais, que a noval egislação corroborava um dos princípios fundamentais do antigo Regime deSes m aria s , cu jas validações das con cessões de terra dependiam de efetiva cul-tu ra e morada habi tu a l . Pa recia óbvi o, port a n to, con s i derar como devo lut a s

    as sesmarias incultas e sem morada habi tu a l .Ma s , de acordo com outro s , aLei de Terra s , em seu arti go tercei ro, excluía da definição de terras devo lut a s

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    a qu elas que se achas s em no domínio particular por qualqu er tí tulo legí tim o.Teori c a m en te , port a n to, mesmos as sesmarias incultas poderiam ser legi ti-m ad a s , já que po s suíam títulos leg í ti m o s .Além disso, não havia no corpo dal ei nada que pudesse su gerir que devo luto tivesse por sign i f i c ado a idéia de

    terrenos inculto s , f i c a n do antes o termo “devo luto” e s t a bel ec i do como “ va-go”15. Apesar da polêmica, segundo Lígia Osório Silva,

    (…) abandon o u - s e, com o tempo, a questão do cultivo como crit é rio de def i n i-ção para as terras devo lut a s . Aos po u co s , terras devo lutas passaram a ser: 1) asque não estavam aplicadas a algum uso público nac i on a l ,e s t adual ou municipal;2) as que não estavam no domínio particular,em virtude de título legítimo16.

    Na Lei de Terras a questão indígena foi con tem p l ada no arti go 12, on dese podia ler que caberia ao governo re s ervar terras devo lutas para a “co l on i-zação dos indígen a s” 1 7. In ex i s ti a , na nova legi s l a ç ã o, qu a l qu er referência aod i rei to ori gi n á rio indígena sobre os terri t ó rios que trad i c i ona l m en te oc u pa-va m ,i s to é, s obre o “ in di gena to”.Mendes Júnior, comen t a ndo a Lei de Terra sde 1850,argumentou, em 1912,que a relação do índio com a terra era de“do-mínio imediato”,“congênito”,isto é,um “direito originário”, reconhecido,aliás,pela legislação portuguesa do per í odo co l on i a l . Pa ra el e , “o i n d i gen a to não éum facto depen den te de legi ti m a ç ã o, ao passo que a o c u pa ç ão , como facto

    posterior, depende de requisitos que a legitimem”18.Pro s s eg u i n do sua argumen t a ç ã o, Men des Júnior su blinhou que a reg u-

    lamentação da Lei de Terras de 1854,Art.24,§1,liberou os indígenas de qual-qu er necessidade de legi ti m a rem suas terras, já que apenas estavam su jei tos àl egi timação “ (…) as posses que se acham em poder de pri m ei ro oc u p a n te ,não ten do outro título senão a sua oc u p a ç ã o”.Pa ra Men des Júnior, essa pas-s a gem da reg u l a m entação da nova lei terri torial recon h ecia a existência depri m ei ro oc u pa n te que tinha título diverso da oc u p a ç ã o, e , como ele mesmo

    e s c reveu : “E qual pode ser essepri m ei ro ocupa n te , com t í tulo disti n to da su a o c u pa ç ão s enão o indígen a , a qu elle que tem por ti tulo o i n d i gen a to , i s to é, apo s se aborígi n e ? ” 1 9 O pr ó prio Men des Júnior recon h eceu , no en t a n to,que ai n terpretação da Lei de Terras por ele re a l i z ad a , a partir da qual ficou reco-n h ec i do o direi to ori gi n á rio dos índios sobre as terras que oc u p ava m , se fe zpela “dedu ç ã o” da pr ó pria lei .A lei , de fato, não men c i onou o indigen a to e,por isso,viabilizava toda sorte de interpretações.

    Ref l exo da imprecisão da nova lei em relação aos direi tos indígenas sãoas opiniões mais recentes dos pesquisadores, que ainda divergem bastante en-

    tre si. José Ma u ro Gagli a rdi ava li o u , por exem p lo,que com a nova lei “(…) oi n d í gena passou da condição de propri et á rio natu ral da terra à condição de

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    expropriado e a depender da benevolência do Estado para ter algo que um dialhe pertenceu” 20. Já na visão de Manuela Carneiro, a questão é mais com plex a ,pois as terras indígenas não poderiam ser con s i deradas como devo lut a s , emfunção do direi to ori gi n á rio dos índios sobre os terri t ó rios que oc u p ava m2 1.

    Entret anto, p ara além da discussão teó rica que ainda hoje vigora sobre o sen-ti do da lei , é importan te, do pon to de vista históri co, con ju gar a ref l exão so-bre o sen ti do da legislação com sua aplicação pr á ti c a , pois é nessa inters e ç ã oque podemos resgatar parte da experiência histórica dos índios do período.

    Pu de s s em ou não ser consideradas devolutas as terras ocupadas pelos ín-dios, o fato é que a Lei de Terras simplificou as relações dos índios com a terrade manei ra rad i c a l . Desse modo, a lei apenas previa a po s s i bi l i d ade de re s er-var terras à “col onização indígena”,om i tindo-se sobre o ch am ado direito ori-

    ginário e sobre as terras indígenas que possuíam títulos legítimos. Na nova lei,o con cei to de “ i n d í gen a s” também estava lon ge de ser cl a ro, mas não re s t a mdúvidas de que por “ indígenas” se compreendia aqueles indivíduos pertencen-tes às chamadas “hordas selvagens”, tal como posteriormente ficou esclarecidona sua reg u l a m en t a ç ã o, graças ao Dec reto n. 1 3 6 8 , de 30 de ja n ei ro de 1854.Seg undo o Art. 72 :“Serão reservadas terras devo lutas para a col onização e al-deamento de indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens.”

    Im port a n te salientar qu e , em relação à questão indígena , a Lei de Terra se seus regul a m en tos corroboravam a perspectiva de uma outra legislação que

    lhe antecedeu e que se voltava particularm ente para a questão da “catequese ec ivili z aç ã o” dos índios (“s elva gen s”): o Regul a m en to das Mis s õe s , de 1845.ALei de Terra s , ao prever terras re s ervadas à co l onização indígen a , e s t ava , n arealid ade , d an do su porte ao Reg ul a men to das Missões que se propunha a ta-refa de criar aldeias e missões para o assentamento dos índios.

    A Lei de Terras era omissa em relação à figura do “ índio civi l i z ado”, i s toé , n ada dizia, em parti c u l a r, s obre os direi tos de indiv í duos ou comu n i d ade sintegradas à ordem social dominante e que não poderiam ser, em hipótese al-

    gum a , ainda con s iderados como partes de tribos indepen den te s . Isso sign i f i-cava que , do ponto de vista lega l, o patrimônio territorial desses índios deve-ria ser legi ti m ado nos mesmos termos propo s tos pela nova lei em relação àsterras po s su i doras de t ítulos leg í ti m o s . Em outras palavra s , ex i s tiam sesma-rias indígenas e terras de aldeias anteri ores a 1850, todas protegidas por títu-los leg í timos qu e, de acordo com a nova lei, deveriam ser reva lidadas e legi ti-mad a s. O caso do Espíri to Santo ilustra essa situ ação.Os índios descendentesdos Tupiniquins / Temiminó s, das antigas missões jesuítica s, tinham sesmariasdemarc adas e con f i rm adas de s de o per í odo co l on i a l , e uma das aldeias mais

    i m port a n tes da prov í n c i a , a Missão Im perial Af fonsino (índios Pu ri s ) , h avi asido criada antes da lei de 1850.

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    A existência das sesmarias e aldeias indígenas representava, con tudo, umem pecilho à expansão da soc i ed ade nac i onal do per í odo. Esta era , pelo me-n os, a opinião de Mach ado Nun es,presi den te da província do Espíri to Sa ntoem 1855:

    Formou-se a po u co no Rio de Ja n ei ro uma companhia com o fim de em preen-der a colonização das terras do Rio Novo pertencen tes aos municípios de Bene-ven te e I t a pem i ri m . Não foi porém feliz nos seus pri m ei ros passos, porque ha-vendo na província abundância de excelentes terras que podem ser medidas semcon testação de po s s ei ros ou sesmei ro s ,e s co l h eu-se de sgra ç ad a m en te as terra sdo Rio Novo, on de boas ou más, existem muitas posses, e até a sesmaria perten-cente aos índios da antiga Reritiba (Benevente hoje)22.

    É bastante com preen s í vel a preocupação esbo ç ada por Machado Nu n es .A Lei de Terras e a reg u l am entação de 1854 foram bastante cl a ras no sen ti dode orientar a co lonização para as ch a m adas terras devolut as. Em outras pala-vra s, deveriam ser evit ados proj etos de co l onização em áreas de posses e ses-m a ri a s . Em tais regiões seria nece s s á ri o, pri m ei ro, re a l i z a r-se o processo delegitimações para,em um segundo momento,o governo começar a demarcaçãodas ch a m adas terras devo lut a s . Só depois de efetivados esses dois proced i-mentos estariam aquelas áreas disponíveis à col onização e à venda, pois o ob-

     j etivo era evitar que a criação de novos assen t a m en tos causasse danos a ter-cei ro s2 3. A recom endação ex pressa nos reg u l a m en tos da lei , de iniciar aco l onização em áreas incon te s t avel m en te devo lut a s ,d i f i c u l t ava o aprovei t a-m en to das terras devo lutas en c ravadas em áreas de povoamento anti go. Is s oporque era não apenas necessário esperar que pri m eiro foss em feitas todas aslegitimações,mas também porque não cabia ao governo dar início ao proces-so de medições e legitimações.

    A re s pon s a bi l i d ade dos pre s i den tes de província era ex i gir dos ju í zes de

    d i rei to, dos ju í zes mu n i c i p a i s , dos del egado s , dos su b del egados e dos ju í ze sde paz informações sobre a existência ou não de posses e sesmarias em su a scomarc as, p assí veis de serem legitimadas. Com tais informações , ainda era darespon sabi lid ade do presidente da província a nomeação de juiz com issioná-rio para cada município em que ex i s ti s s em casos de terras parti c u l a res a se-rem dem a rc adas e legi ti m ad a s . O juiz só entrava em ação, por é m, a partir dorequ eri m en to dos parti c u l a re s . A reg u l a m entação da Lei de Terras imped i a ,port an to,que qu alquer autoridade pública desencadeasse, por conta própria,o processo de legitimação24.

    O mesmo não acontecia em sub-regiões reconhecidamente devolutas, is-to é, que não estivessem en cravadas entre posses ou sesmarias.A dem arcação

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    dessas áreas poderia ser re a l i z ada sem con f l i to com po s s ei ros e sesmei ros e,s eg u n do reg u l a m en to de 1854, dever-se-ia começar a dem a rcação das terra sdevo lutas ju s t a m en te em tais loc a l i d ade s . Daí porque lamen t ava Mach adoNunes a escolha que fizera a companhia col on i zadora . As terras do Rio Novo

    localizavam-se em região de antigo povoamento, com posses e sesmaria indí-gena,enquanto vastas áreas da província eram tidas como devolutas.

    Graças à argumentação de Mach ado Nu n e s , podemos con cluir qu e , doponto de vista pr á ti co,os administradores reconheciam não apenas que mui-tos índios possuíam títulos legítimos de terras,mas também que as áreas ocu-p adas por povos indígenas indepen den tes ou, em termos de époc a , “s elva-gen s”, eram definidas como terras va gas e, port a n to, devo lutas e passíveis des erem de s ti n adas à co l on i z a ç ã o.As mui tas terras devo lutas da província do

    E s p í ri to Sa n to, referidas por Mach ado Nu n e s ,n ada mais eram do que terri-t ó rios que ainda estavam sob o domínio das tri bos indepen den tes de índiosBotocudos e, por isso mesmo, consideradas incontestavelmente “devolutas”.

    Todo o de s envo lvi m en to su b s eq ü en te dos trabalhos de dem a rcação deterras devolutas para a venda ou para a localização de núcleos coloniais se fez,re a l m ente, s egun do a premissa de que os terri t ó rios indígena s , i s to é, dos en-tão cons i derados “selva gen s”, era m, de fato e de direi to, devo luto s .Q u a n to àsterras ocupadas por “ índios civil izados”,pelo menos do ponto de vista de cer-tos ad m in i stradores do per í odo, o fato de esses índios terem recebi do sesma-

    rias constituía obstáculo à ocupação dessas terras por brasileiros ou imigrantes.

    ATOSARBITRÁRIOSE EXPROPRIAÇÃO

    Os di rei tos patr i m oniais de índios incorporados à soc i ed ade bra s i l ei raem expansão foram prof u n d a m en te ign orados e de s re s pei t ados logo após apromul gação da Lei de Terras de 1850. Preva leceu a idéia de que as “ terras de

    í n d i o s”, i s to é, s e s m a rias e terras de aldei a s , que não estive s s em efetiva m en teoc u p adas deveriam ser con s i deradas devo lut a s , retorn a n do ao domínio pú-bl ico.A Decisão n. 92 de 21/10/1850, publicada apenas um mês depois da Leide Terra s , fixou essa orientaç ã o, que foi ri gorosamente seguida até os últimosdias do regime imperi a l . A decisão mandou incorporar aos pr ó prios nac i o-nais as terras de descendentes de índios que estivessem “confundidos na mas-sa da população civi l i z ad a” 2 5. Mas parte das ch a m adas “ terras de índios” foiobj eto de apropriações il ícitas. Também tornou-se comum o afora m en to emterras indígen a s , s eg u n do forma s , a l i á s ,n em sem pre con s ideradas lega i s. Por

    i s s o, ainda se recom en d ava , na mesma dec i s ã o, que apenas se con s i dera s s emdevo lutas as terras que não estive s s em oc u p adas sob qu a l qu er título que fos-

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    se,até que o governo resolvesse sobre a validade ou não daquelas posses e afo-ramentos em terras indígenas.

    De s de a decisão n. 9 2 , o en c a m i n h a m en to po l í ti co e ad m i n i s tra tivo da-do às terras indígenas tornou-se arbitrário e freqü entem en te nocivo aos inte-

    resses e direi tos dos índios e de seus de s cen den te s . O patrimônio terri tor i a li n d í gen a , pro tegi do por tí tulos leg í ti m o s , foi def i n i do por meio de uma no-menclatu ra imprecisa, s endo ora qual i f i cado como “terras indígena s”, ora co-mo “a n ti gas missões e aldei a s”. Em ambos os casos, en tret a n to, i gnora ra m - s eas legislações específicas que deram origem àquelas terras.A partir dessa sim-p l i f i c a ç ã o, a ad m i n i s tração imperial começou a produzir “avi s o s”,“dec reto s”e “l ei s” s obre tais “terras indígen as”, in stitu i n do um poder discricioná rio qu e ,a ri gor, só era válido em relação às terras re s ervadas à co l onização indígen a

    criadas após a lei de 1850.O poder arbitr ário exercido sobre as terras de índios serviu basicamen te

    p ara expulsar os índios que tinham títulos leg í timos de terra s. Depois da de-cisão 92, foram de s a tivadas diversas aldeias em Ser gi pe , Pa ra í b a , Ceará e Per-n a m bu co, s em pre seg u n do a ju s ti f i c a tiva de estarem as aldeias abandon ad a sou sem reais representantes da população indígena.Em Sergipe chegou-se atémesmo a extin g uir-se a Diretoria Geral dos Índios e, p a ra Manuela Carn eiro,tal medida foi uma tenta tiva de dem on s tração do desa p arec i m en to dos indí-

    genas no loc a l2 6

    . A re s o lução oficial sobre o que fazer com as posses e afora-m en tos em terras indígenas finalmen te apareceu em 1860. De acordo com al ei n. 1.114 , de 27 de setem bro de 1860, em seu Art . 1 1 , § 8, o governo fi co uautorizado a

    (…) aforar ou vender, na conformidade da lei n. 601 de 18 de setembro de 1850,os terrenos perten cen tes as anti gas Missões e Al deias dos índios, que estiverema b a n don ad a s , ceden do tod avia a parte que ju l gar su f i c i en te para a cultu ra do sque nelles ainda permanecerem, e os requererem27.

    As arbitrariedades da lei de 1860 eram evidentes. Como poderia uma ter-ra indígena estar abandon ada e ter, ao mesmo tem po, índios viven do nel a ?Pior ainda,com base em qual justificativa legal estava-se interditando aos des-cendentes dos índios que receberam sesmarias ou terras de aldeia o direito del egi ti m a rem as posses herd adas? As decisões oficiais não en f ren t a ram e, m e-nos ainda, não elu c i d a ram tais qu e s t õ e s , mas perm i ti ram a de s a tivação degrande número de aldeia s,viabi li z a ndo a abertura das terras indígenas à ven-

    da e ao afora m en to. Aos rem a n e s cen tes indígenas re s t ava som en te a qu a n ti-d ade de terra que alguma autori d ade local ju l gasse su f i c i en te para el e s . Ma s

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    tais índios tinham que ser identificados como “ índios” para usufruírem o der-radeiro direito de posse e propriedade.

    A nova conjuntura criada pela Lei de Terras, seu regulamento e leis com-plementa res foram particularm ente nocivos ao patrimônio terri torial indíge-

    n a , não apenas porque as decisões oficiais foram arbi tr á rias e con tr á rias aosinteresses indígenas,mas também porque a nova legislação foi incapaz de coi-bir as invasões criminosas que con ti nu a ram a ocorrer ao arrepio da nova le-gi s l a ç ã o. A con ti nu i d ade de formação de posses após a promu l gação da Leide Terras era indiscutivel m en te um ato cri m i n o s o, pois só a com pra de terrapoderia justificar novas propriedades. Mas quando as posses criminosas eramre a l i z adas em terras indígen a s , em vez de serem anu l ad a s , s erviam antes dem o tivo para a ex propriação dos índios, que passavam a estar “con f u n d i do s

    com a massa da população civilizada”.O con t í nuo avanço sobre as terras indígenas preva l eceu e mesmo se in-ten s i f i cou depois da Lei de Terra s ,a m e a ç a n do a já frágil situação das comu-n i d ades ac u l tu radas ou sem i - ac u l tu rad a s . Machado d’Ol ivei ra , depois de terpercorr i do as terras indígenas en tre Ca bo Frio e Porto Seg u ro, ob s ervou ems eu Apo n t a m en to sob re a prov í ncia do Es p í ri to Santo , p u bl i c ado em 1856, qu e“ (...) as invasões da raça bran c a , o esqu ec i m en to vo lu n t ário das leis pro teto-ra s, (...) tu do con tri buirá a de spojá-los [os índios] intei ra m en te de suas pro-pri edade s. ..”28. E s t ava cla ro para os setores mais lúcidos do per í odo que a ex-

    pulsão indígena caminhava a passos largo s, realizada ao contrário de todas asl ei s . Isso estava acon tecen do com as anti gas missões da costa atlânti c a , m a sig ua lm en te nos novos aldeamen tos cri ados no século XIX. O Im perial Affon-s i n o, f u n d ado na década de 1840, e s t ava pra ti c a m en te ex ti n to por volta de1 8 5 8 , devi do às invasões dos fazen dei ro s . Em São Paulo a situação não eramu ito diferente, pois em 1862 foi decretada a extinção de várias aldeias. A re-s o lução oficial n. 2 9 , de 19 de maio de 1862,a utori z ava o pre s i den te da pro-víncia de São Paulo a extinguir aldeamentos,

    (…) distri bu i n do a cada família no pon to, on de já po s sua casa e lavo u ra , bemcomo aos soltei ros maiores de vin te e um annos,que tenham econ omia sep ara-da, terreno sufficien te que não abran ja mais de sessenta e duas mil e quin h en tasbraças qu ad radas e seja em geral de vi n te e duas mil e qu i n h en t a s , que ficarãos en do propried ade desses indiví duos depois de cinco annos de ef fetiva re s idên-cia e cultura (…)29.

    O aviso n. 29 de 19 de maio de 1862, envi ado à província de São Pa u l o,

    foi um den tre os muitos que circ ularam no mesmo período,devotados parti-c u l a rm en te ao en c a m i n h a m en to do processo de liquidação de terras indíge-

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    nas, ora ori gi n adas em antigas concessões de sesmarias ora em terras res erva-das para os mais recentes aldeamentos de índios.Nesse aviso, destaca-se o de-t a l h a m en to sobre o tamanho das posses que deveriam ser dem a rc adas paraos índios rem a n escentes, e sobre o caráter cond i c i onal à efetiva reg ul a ri z a ç ã o

    da situação patri m onial dos índios. A propri ed ade terri torial foi redu z i d a ,desse modo, a pequenos lotes que deveriam ser distribuídos às famílias ou aosfuturos “chefes de famílias”, representados pelos soltei ros, e só seriam efetiva-mente confirmados após cinco anos.

    A distri buição de lotes de dimensões reduzidas era bastante preju d i c i a laos índios. E ram pequenos e invi a bi l i z avam a mobil id ade da agri c u ltu ra tra-di c i on a l, que exigia o periódico descanso do solo, apenas conseguido graças àexistência de terras dispon í veis à ro t a tivi d ade da lavo u ra . Além disso, p a rte

    da agricu ltura indígena era organizada em bases comunitárias e não era,por-tan to, e s tr i t a mente familiar. A imposição de pequ enos lotes familiares desor-ga n i z ava não apenas o sistema de tra b a l h o, mas igualmen te as técnicas uti l i-zadas para a produção.

    A efetiva reg u l a rização da propri ed ade territorial indígena foi con di c io-nada a uma revi s ã o, após cinco anos, e sua validação estava su j eita ao efetivocultivo e moradia no local.Tais condições não tinham precedentes nem o me-n or apoio na nova legislação terri torial promu l gada em 1850, e apenas con-f i rm ava m ,mais uma ve z , as arbi tra ri ed ades pra ti c adas larga m en te con tra os

    índios que po s suíam títulos leg í timos de terra s . Razões que ju s ti f i c a s s em ascondições impostas à regularização da propri ed ade indígena não foram apre-s en t ad a s , em bora pude s s em estar su bjacen tes pelo menos duas ex pect a tiva s :a de que em cinco anos o número de índios no local seri a , s enão inex i s ten te ,cert amente menor; ou que as invasões a terras indígenas iriam continuar,de-ven do o Estado estar prepa rado para agir discri c i on a ri a m en te a fim de solu-cionar o problema.

    Em outras palavra s, o caráter condicional dos lotes reservados aos rem a-

    n es centes indígenas dem on s tra que a ad mi n i s tração imperial parecia acredi-tar ou na ex tinção física dos índios ou qu e , se na mel h or das hipóteses el e ssobrevivess em, seria na condição de trabalhadores sem terra . De fato, a possi-bi l i d ade de os índios manterem o domínio sobre os lotes era mínima, n ã oa penas porque as condições de produção e de trabalho tinham sido repen ti-namente mod i f i c ad a s , mas também porque dificilmen te eles poderiam fazerf ace às invasões que caracteri z avam as regiões ex postas à expansão da fron-teira agrícola.

    As leis e avisos comp lement a res à Lei de Terras de 1850 pra ti c a m ente fe-

    ch a ram todas as altern a tivas à propri ed ade indígen a . As terras perten cen te sàs tri bos indepen den te s , em bora não pude s s em ser con s i deradas devo lut a s ,

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    foram efetivam en te tra t adas como terras do domínio públi co, s ob a alegaç ã ode que estariam “ va ga s”, i s to é, não teriam o domínio ou posse de pe s s oa al-g u m a . Pa ra sanar a incon gruência desse rac i oc í n i o,os legi s l adores se limita-ram a re s ervar parte das terras devo lutas à “co l onização indígen a”.As terra s

    indígenas oriundas de antigas sesmarias ou aldeias sem cultura e moradia efe-tiva foram igualmen te con s i deradas va gas e, por isso, deveriam retornar aodomínio das terras públ i c a s . Muitas aldeias e missões foram su m a ri a m en teextintas, e a última possibilidade ainda existente aos índios remanescentes emsesmarias e terras de aldeia era a de possuírem pequenos lotes de terra.

    Ma s ,p a ra os índios perm a n ecerem na pouca terra que lhes re s t ava seri anece s s á ri o,primeiro, que fossem recon h ec i dos como “ ín dios”. Isso os coloca-va na dependência das autoridades locais que, a f i n a l ,a rbitravam sobre serem

    ou não os índios “ verd adei ros índios”. Que mu i tos índios foram de s de en t ã oconsiderados “não índios” e despojados de suas terras, não restam muitas dú-vi d a s , como atestam os inúmeros casos de de s a tivação de anti gas missões ealdeia s . O aviso n. 29 , de 19 de maio de 1862,que autorizou a extinção de vá-rias aldeias de São Pa u l o, por exem p l o, ju s ti f i cou a medida ju s t a m en te afir-mando que à

    (…) vista das informações of ferecidas pelo Di rector Geral de Índios dessa Pro-

    v í n ci a , convenceu-se o Governo Im perial de que ahi ex is tem mu i tos alde a m en-tos form ados de indiv í du o s , qu e , pela mór parte ,s om en te de Índios tem o no-me (…)30.

    Com a Lei de Terra,mul ti p l i c a ra m-s e , portanto,os “c aboclos” sem terra.Isto é, uma população tida como mestiça, de origem nacional, basta nte pobree dependente dos gra ndes propri etá rios ru ra i s ,mas sem nenhum direito for-mal sobre as terras que oc up ava. Ademais, um novo probl ema foi eri gi do aosm em bros das comu n id ades indígen as: provarem, a con tra go s to da socied aderegi onal on de estavam inseri do s , s erem “ índios de verd ade”, com direi tos le-gais sobre seus assentamentos.

    NOTAS

    1 A pe s quisa da qual se ori ginou este art i go con tou com o apoio do CNPq,uma en ti d adedo governo brasileiro voltada ao desenvolvimento científico e tecnológico.

    2Con ferência dos Povos In d í gen a s . Doc u m en to final. In Proj eto Brasil Outros 500,http://www.brasil-outros 500.org.br/, [26/7/2000].

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    3OLIVEIRA, João Pacheco de.Os Caxixós do Capão do Zazinho: uma comunidade indígena di s t a nte de imagens da primi tividade e do índi o genéri co. Rel a tório enc am i nh ado à FUNAI— Fundação Nac i onal do Índio, em cumpri m en to do con tra to de con su l toria DG E P3 0 / 2 0 00 . Rio de Ja n ei ro : Mu s eu Naci on al / U F R J, 16 de julho de 2001, p a s s i m .S I LVA , Sa n-

    dro José da.“Aju st a ndo quais con dutas? Tem po e espaço en tre os tu p i n i qu i n s” . In Mosa i- co . Vitória,Ano 1, vol. 1, nº1, p. 308.

    4Ap u d . MENDES JÚNIOR,Jo ã o.Os indígenas do Bra z i l , seus di rei to s , i n d ividuais e pol íti - cos .São Paulo: Typ. Hennies Irmãos, 1921, pp.34-35.

    5SAINT-HILAIRE,Auguste.Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce . São Paulo /Belo Horizon-te: EDUSP/Itatiaia, 1974, pp.31-32.

    6 Idem ,p.32.

    7 Idem , p.65.8Idem , pp. 68-69.

    9M A RQU E S, Cezar Au g u s to.Di ci o n ár io históri co, ge o gr áf i co e estatísti co da prov ín cia do Espírito Santo . Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, pp.8-9.

    10Dec reto n. 102 de 5/5/1824. In C U N H A, Ma nu ela Ca rn ei ro da (or g ) . Legislação indige- nista no século XIX. Uma compi lação . São Paulo: EDUSP, 1992, p. 116.

    11S I LVA, L í gia Osóri o. “A ‘questão da terra’ e a formação da soc i ed ade nac i on a l ”. In An a i s 

    do II Co n gre s so Bra s i l ei ro de Hi s t ó r ia Eco n ô m i c a . Ni ter ó i , 13 a 16 de out . de 1996, v. I , pp.35-51, p. 38.

    12Idem , p. 169.

    13Idem , p. 35.

    14Ap u d . S I LVA, L í gia Osóri o. Terras devolutas e lati f ú n d i o . Ca m p i n a s : E d . da Un i c a m p,1996, pp. 156-157.

    15Sobre a discussão ver SILVA Lígia Osório.Op.cit., pp. 157-161.

    16Idem , p. 161.17C f . Legislação em VA SC O NC E L LO S, J. M . P. de . Li vro das terras ou coleção da Lei , Regu- lamentos e ordens . 4 ed.Rio de Janeiro: H. Lammert & C., 1885, p.15.

    18MENDES JÚNIOR, op. cit ., p. 58.

    19Idem , p. 59.

    20Idem , p. 32.

    21CUNH A, Manuela Carn eiro da. Pol ítica indigenista no século XIX. In CUNHA, Ma nu e-

    la Ca rn ei ro da (or g ) .Hi s t ó ria dos índi os no Bra s i l . São Pa u l o : Companhia das Letra s : Se-cretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, pp. 133-154,pp. 141-142.

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    22ESPÍRITO SANTO. Relatório Provincial. 1855, s/p.23SILVA, Lígia Osório.Op. cit., p. 168.24Idem , p.168.

    25CUNHA, Manuela Carneiro da.Legislação.Op. cit .,p.214.26Idem ,p.15.27Lei nº 1.114 de 27/9/1860. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. .Op. cit., p. 257.28D’OLIVEIRA, Machado.“Apon t a m entos sobre a província do Espírito Sa nto”.In Revista do In s ti tu to H i s t ó ri co e Ge o gr áf i co do Bra s i l . Rio de Ja n ei ro, T. X I X ,n .2 2 , pp. 1 6 1 - 3 4 8 , 2ºtr im. 1856, p.256.29Cf. Manuela Carneiro da Cunha, .Op. cit., p. 259.

    30Idem ,p.258.

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    Terras Indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850

    Artigo recebido em 03/2001.Aprovado em 10/2001.