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A Nau DecapitadaManuscrito de Itapemirim

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© 1982 Luiz Guilherme Santos NevesEdição digital de 2013.

Ilustrações e capa: Orlando da Rosa Faria (Lando)

Digitalização: Regina Coeli Faria de Melo

Preparação de textos e revisão: Pedro J. Nunes

Projeto gráfico: Edições Tertúlia

Cultural & Edições TertúliaVitória, ES

[email protected]

Todos os direitos reservados. A reprodução dequalquer parte desta obra, por qualquer meio,sem autorização do autor ou dos editores,constitui violação da Lei de Direitos Autorais- Lei 9.610/98.

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QUEM MELHOR INVENCIONAR,MELHOR INVENCIONADO FICARÁ.

(anônimo)

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dedicatoriandoprimeiramente, a Mestre Guilherme.Depois, a Renato Pachecopela Oferta e o Altare por muitas coisas mais.E também ao Grupo Letra e,nele, a Reinaldo pelo batismo da nau.

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PREFÁCIOJoão Felício dos Santos

"Quem melhor invencionar, melhor invencionado fica-

rá." - Muita razão tem Luiz Guilherme Santos Neves ao ini-ciar sua novela romanceada com aquele brocardo vindo,assim profundo como empírico, da sabedoria dos tempos.

Escritor e professor capixaba, LG tem sua vida literá-ria acompanhada por nós, desde longe, pela afinidade quenos une. Alegria é vê-lo, agora, de volta, a dar quentes va-zões a seu espírito de irrequietos buscares, se debruçandogregariamente sobre episódio tão cômico e patético de seuamado rincão, como teria sido o da aventuresca e engraça-da viagem do sisudo José Joaquim Machado de Oliveirapara tomar posse, afinal, do importante cargo de presiden-te da Província do Espírito Santo. Posse, aliás, sem a suadesaparecida bagagem, principalmente aquele baú bonitoe misterioso, recheado de Rousseau e Voltaire, que pelocarinho e firmeza com que é descrito, imaginamo-lo até pin-tado em gentis verdes-vivos, sem que nem lhe faltassem asinefáveis e folhudas rosas de uso, na época.

Embora o assunto não seja inteiramente novo para

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LG que, com ele, já se preocupou antes, ao comentar asNotas de viagem do próprio Machado de Oliveira, só agoraatinou ele em transformá-lo na realidade leve deste livro.

Evidente que, com a imensa carga telúrica que lhe vaino sangue, na alma e na pena, não se poderia esperar quetambém este seu romance deixasse de girar, todo ele, emtorno das terras espírito-santenses. Assim foi, em 1977,com seu magnífico episódio da insurreição dos escravos davila de São José do Queimado, vazado no "documento cêni-co" Queimados, livro que redundou, primeiro, na almenarapoética; depois, na verdadeira pedra fundamental de umrecente trabalho nosso, o romance Benedita Torreão daSangria Desatada. E, assim, será de supor que em quantosmais escritos aparecerem assinados por LG, havemos deencontrar sempre um Espírito Santo redivivo em amor.

A atração que exerce em nós, que escrevemos, essenosso Brasil mal recém-saído de todas as ignorâncias, masdestinado a desvendar futuros magníficos, inclusive o denossa literatura, ainda mais irmana a amizade que nos alia.Isso, além da veneração ao passado também comum, a co-meçar pela que dedicamos ao velho patriarca Ceciliano Abelde Almeida, fino autor de O desbravamento das selvas doRio Doce (Memórias - Coleção Documentos Brasileiros. Li-vraria José Olympio Editora. Rio, 1959).

Evidente que, como pesquisador, ofereço a palma a

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Luiz Guilherme Santos Neves, cujo conceito de História,para nossa grande satisfação, não difere demais do queesposamos, ainda que muito mais radicalmente a pontode, talvez, exagerarmos.

Coerente com as licenças das mais benevolentes fa-cultadas aos poetas, LG usa uma técnica muito mais sériado que seria um simples recurso literário: faz com que oexercício de contar tantas e tais aventuras seja totalmentetransferido para um fantástico, simplório e necessário ex-comandante de Pedestre, o major Marcelino José de Castroe Silva. Esta é uma técnica de deliciosos sabores, além deabsolutamente garantida em seus êxitos pela espantosavisão de um professor de História mas que, talvez, antes detudo, seja um escritor verdadeiro, de natosprofissionalismos. Não obstante, A NAU DECAPITADA nãopode ser tomada apenas como uma interessante novela cujaação se passa no pitoresco de outros tempos, os ingenua-mente provinciais, apesar das inusitadas e diabólicas per-versidades de um mestre magano, coisa, afinal, da milenarcontingência humana: trata-se de um bem engendrado "ro-teiro-argumento", de autoria de um escritor seguro no lemee que muito bem sabe aonde chegar, dirigindo seu “roteiro-rota”.

Estilo personalíssimo na elegância de dizer ou de mon-tar suas frases e diálogos, LG, criador sutil de

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personagens-emboço, em bom confronto com as ditas his-tóricas, sabe escrever e sabe como se escreve.

Também devemos uma palavra justa à montagem doenredo, dentro das limitações da realidade, com palavrasextraías dos próprios capítulos, em forma de graciosasementas o que, a par de o seu tanto original, evidenciamaneira segura para transportar o leitor à ação e ao exatomomento dá trama. E houve ainda cuidado na seleção da-queles capítulos, seleção, diríamos até, quase de frases ede palavras. Nem mesmo o exagero de uma linguagem ar-caica ou abuso de regionalismos seduziu LG no enxuto deseus períodos: usou-os moderadissimamente quando pornecessidade clamante do texto ou, ainda, quando nosfiníssimos bocados do mais puro humor.

Tipos diversos da NAU DECAPITADA merecem umaúnica classificação: excelentes. Todos. Como excelentes sãoas quatro linhas que justificam o titulo do livro, como sãoas cinco ou seis que descrevem o baile de congo da vila deNova Almeida, e em outros trechos mais em que a astúciade um premeditado laconismo beneficia sobremodo a pre-sença do leitor na ação.

O livro é uma prova de que nenhum pesquisador teriatido maior seriedade embora sem o menor sacrifício à cria-ção literária. Mas, por mais que queiramos transmitir aoleitor o prazer de ir descobrindo, ele mesmo, as preciosida-

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des abundantes na novela, não podemos perder a oportu-nidade de encaminhar sua atenção à linguagem de bruni-dos falares do major-relatar, bem como para o infeliz pro-fessor de Nova Almeida e sua Esmeraldina Especiosa, gen-tia bastarda, manceba e serviçal de jeito maneiro; nem parao maroto Miguel Martinez ou para o terrível mestre SimãoBoncarneiro, o imperdoável surripiador do baú presidenci-al. Bons, por igual, são os tipos mui característicos do de-licado embora suspicaz Querubinho-Novilha e do alferesgaiteiro de Meaípe, o que "criava imensos gados que enchi-am o dia com seus mugidos."

Com a finura com que LG encadeia sua narrativa, as-senta fatalmente em agradar não só a leitores capixabas,como a todos nós, embora de outras províncias, mas quenos interessamos também, primeiro, por uma novela bemsucedida; depois, pela leveza do tema desta fabulosa NAUDECAPITADA que, antes de mais nada, é escrita bem nojeito brasileiro.

Rio, 26 de julho de 1982.João Felício dos Santos

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Havendo em mim uma inclinação natural para adescrição de acontecimentos, sirvo-me dela para expor tudode quanto pitoresco e significante pude coligir nodesempenho de função à qual me vi conduzido porsuperiores desígnios e em virtude da minha condição demilitar e bom cidadão. E, a meu modo e segundo minhasinclinações pessoais, produzi este singelo repositório dereminiscências cuja utilidade e valor lego ao juízo dos queo lerem.

De muita prestança nesta exposição foi-me a fecundamemória com que me prodigalizou a Divina Providênciafavorecendo-me com o recordar frases e expressões ouvidasa meus interlocutores e com o descrever notavelmentegentes e lugares com invejável exuberância de pormenores,como vereis. Valeram-me, por ademais, os ensinamentoshauridos nos estudos que professei no seminário de Marianaos quais ficaram interrompidos por motivo de inesperadamoléstia que me trouxe de volta à Província do EspíritoSanto.

E previno que, por gosto e arrumação, vou antecedercada capítulo desses meus assentamentos com uma fraseque me haja caído no goto por seu sentido e eloquência. Eassim começo.

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I – buenas noches, Major: ha venido a tiempo

Foi com noite cerrada que toquei, naquele ano da graçade 1840, na povoação de Piúma, procedente da vila deItapemirim a chamado do novo Presidente da Província paraque o fosse recolher com tropa de animais convenientementearreados a fim de o conduzir para Vitória onde assumiria ogoverno provincial.

Logo que recebi o recado da boca de mensageiromameluco não atinei com fundamentos nem razões quejustificassem a presença do senhor Presidente na localidadede Piúma.

Sendo eu Major do troço militar acantonado na vila deItapemirim, é por verdadeiro que soubera antecipadamenteque o novo Presidente, Bacharel José Joaquim Machado deOliveira, estava prestes a chegar para substituir aoexonerado Doutor João Lopes da Silva Couto. Também tinhasido informado, por comunicado de meu Regimento, quese tratava de inteligente e mui ilustrada personalidade comanteriores passagens pelos Governos das Províncias do RioGrande do Sul, Pará, Alagoas e Santa Catarina.

Enquanto me apressava no cumprimento da ordemrecebida e já me achava indo com cavalos na direção da

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localidade de Piúma, assaltavam-me pensamentosagourentos de permeio com o justo temor de que tão insigneautoridade se tivesse feito vítima de algum nefandonaufrágio ou coisa parecida. Mas logo espantava tãopregoentas conjecturas por não me terem chegado notíciasnem avisos sobre a ocorrência de acidentes marítimosporventura havidos em recentes dias nas costas daProvíncia.

Foi desse modo, com a mente confusa, procurandoatinar com os reais motivos daquele chamado, que iavencendo no lombo da montaria as cinco léguas de distânciaque comunicam a vila de Piúma à de Itapemirim.

Em minha companhia cavalgava o alferes Anselmo,velho e experiente trilheiro das estradas que vazam as matascosteiras do norte e do sul do rio Itapemirim, empunhandoo archote que designava o caminho a percorrer, atraindo,com seu facho, miríades de pirilampos que respingavamnossas caras.

Ao termos à vila de Piúma, povoação de ordináriopacata, rompia a noite pesada o alarido de vozes e cançõessopradas pelo vento sudeste, oriundas das palhoças sitasna outra parte do rio. Ditas palhoças, erguidas naqueleestuário, serviam de valhacouto para vendilhões etraficantes de escravos, bêbedos e mulheres dissolutas; ovozerio partia dessa chusma, engrossada, naquela noite,

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como ao depois viemos a saber, pela barulhenta presençade um bando de marujos recém desembarcados em terra.

Não foi difícil localizar a casa que alojava o PresidenteOliveira. Consoante supus, estava ele com o velho MiguelMartinez, antigo morador do lugar, natural da Espanha eque se comprazia em albergar todos os viandantes que alipernoitavam.

A casa, uma das poucas cobertas de telha na localidade,deitava fundos para a praia invisível na noite, somentepressentida pelo marulhar das ondas e pelo acre cheiro demaresia.

Quando bati à porta, bradando o habitual “ó de casa”,Martinez assomou à janela, até então trancada, por certopara evitar o enxame de pernilongos que esvoaçavam dolado de fora.

Ao avistar-me, exclamou no seu linguajar quemisturava castelhano com português: “Buenas noches,Major. Ha venido a tiempo. Acérquese luego”.

Escutei-o em seguida dizer para alguém no lado dedentro da casa: “Es venido el major Marcelino a quienvosmecê se queda a esperar”.

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II – desastroso imprevisto de viagem

Sendo-me dado acesso à casa, deparei dentro nela,assentado num banco de pau mal talhado, a pessoa dosenhor Presidente Oliveira.

À luz tremuliente do candeeiro pareceu-me de poucaestatura; trajava fato escuro, trazia pince-nez acavaladono nariz e não escondia no semblante certo aspecto decansaço. Ao dirigir-me a palavra fê-lo de forma calma,dizendo: “Bem-vindo, major. Aguardava apreensivo suachegada. Se já não foi agradável a viagem por mar, commuitíssimos e lamentáveis dissabores, muito menosagradável seria o restar nesta localidade por prazodesnecessário”. Mas tão logo assim falou, pronto ressalvou,homenageando o hospedeiro: “Descontada, naturalmente,a honrosa hospitalidade a mim dispensada pelo senhorMartinez. Contudo, maiores encargos me aguardam nacapital da Província aonde quero ir ter com sua ajuda, Major.E o mais prontamente que pudermos”.

De minha parte declarei-me estar apto a seguir suasordens como manda o regulamento militar. Aprazou-se,então, a partida para o dia seguinte ao depois que fossemtrazidos para terra os pertences que o senhor Presidente

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deixara a bordo do brigue Vinte e Nove de Maio, fundeadona enseada de Piúma.

Dito fundeamento, fruto de desastroso imprevisto deviagem, foi a causa da paragem do senhor Presidentenaquele povoado, conforme relato de que me fez sabedor,acerca do qual chegou a escrever uma memória e que oseguinte é este: o Presidente procedia do Rio de Janeiro deonde largou no dia 17 de setembro a bordo do brigue,naquele ano da graça de 1840. Poderia ter escolhido duasou três embarcações que também estavam de partida paraa Província mas deliberou pelo Vinte e Nove de Maio porcarecer de mais tempo para arrumar a viagem. “Inspiradopelo meu mau fado, major” - não se cansou de repetir.

III – uma formidável desventura

Como sabeis, o mês de setembro prenuncia, ao longoda Província do Espírito Santo, a aproximação do verão: osdias são claros e sobeja o sol; predomina nessa época ovento soprado do Quadrante NE e o mar se presta à boa efiel navegação.

Apesar disso, a viagem do brigue Vinte e Nove de Maiocorreu enfadonha e cheia de percalços, tendo o senhorPresidente atribuído as ocorrências à incúria da tripulação:

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“Uns ignorantes e estúpidos, meu caro Major. Adivinhasseeu e não me teria alçado a bordo dessa maldita escuna. Omestre da embarcação era experiente mas, cercado pelagota, nenhuma voz poderosa tinha sobre a marujada; ocontramestre, de nome Simão, debochado e obeso,atendendo pelo apodo de Boncarneiro (que creio tratar-sede corruptela da palavra Bucaneiro), revelou-se, a todotempo, incompetente e cínico para ocupar a imediatice docomando. Uma desventura, meu caro Major, uma formidáveldesventura!”

O presidente estava nimiamente aborrecido. Depois dereflexionar alguns instantes, prosseguiu: “A meio da viagem,pendurado no mastro grande do barco qual imensochimpanzé, berra o maldito contramestre que já se divisavaterra. Esta notícia tirou-me ao beliche abafado, com aesperança de ver acabar viagem tão monótona. Pois eramfalsas as alvíssaras!

Boncarneiro, não sei se por ignorância ou intencionalperversidade, confundiu, na madrugada nevoenta, a linhadas nuvens com a silhueta das montanhas. Bastou o sol sefirmar no horizonte para se desfazer o equívoco idiota. Eouça, Major: isso foi apenas duas semanas depois de termoszarpado do porto do Rio de Janeiro! Portanto, o pior aindarestava por vir, como verdadeiramente veio.

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Impelida por ventos benfazejos, a embarcação seabeirou da baía de Vitória e, ao amanhecer do dia 4 deoutubro, avistou-se claramente terra da Capitania que nãose pôde desfazer em vapores como a anterior porque afixaram os olhos práticos do mestre da embarcação. Jádefronte ao Monte Moreno, vendo-se a rebentação da baíae, quando todos se aprestavam para a manobra desingradura conveniente, eis que escasseia o vento nessemomento precioso e oportuno. Cumulando os maus fados,uma aragem pouco favorável soprou de bombordo e nosimpeliu de volta ao mar, praguejando do vento, barra, navioe contramestre.

Nessa desdita, desvaneceram-se de vez nossos longesde esperanças de chegar a porto. Foi quando, por desgraçade acréscimo, despencaram convés abaixo ambos osmastaréus com velas e cordoalhas que o estúpidocontramestre, mais apurado em descobrir terras vaporosasdo que em desempenhar seus deveres, deixou afrouxar-se,desdenhando de os reapertar como era de sua obrigação eencargo.

Nesse desmantelamento que nem sequer poupou, comosinal de mau presságio, a cabeça de proa do brigue,decepada e lançada ao mar por um troço do mastaréupartido, bordejamos a costa com decaimento para o Sul.

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Finalmente, ganhamos esta enseada de Piúma, ondefundeamos e ora me encontro, tendo o grato prazer deconhecer vosmecê.”

Havendo o senhor Presidente finalizado com essaspalavras sua exposição, o nosso hospedeiro fez servir aospresentes uma caneca de bom e amargoso café que a todosmuito reconfortou.

Após a ingestão da bebida o Presidente ergueu-se e,cerimoniosamente pedindo licença, recolheu-se ao leito emcômodo que lhe tinha sido destinado, deixando a mim e aoalferes Anselmo entregues à exuberante loquacidade dodono da casa. IV – essas reminiscências eram ditas em alto riso

Não se revelou, todavia, fastidioso o pedaço de noiteem que o velho Martinez nos ocupou a atenção, discorrendosobre os episódios extraordinários de sua atribuladaexistência. E tão pitorescos e incomuns me pareceram etão dignos de nota que não resisto à vontade de vê-losrelatados neste manuscrito, embora de modo mais simplese conciso do que a versão original.

E principio por dizer que Miguel Martinez era umhomem crescido em idade mas de natural alegre, ostentando

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ainda notável vigor físico que punha a serviço de seuvariadíssimo labor pois tanto se dedicava às fainas da pescacomo às penosas tarefas da lavoura.

Mas não faltavam vozes que dele diziam tratar-se decriatura ociosa, recolhido traficante de escravos queaumentara sua bolsa e cobrira de telhas sua casa com osgananciosos lucros do comércio de negros sem diferençado clandestino ou do regular.

Gesticulativo e loquaz, narrava seus numerosíssimoscasos com abundantíssimas palavras e tanto maiordisposição quanto mais ia ingerindo grossos goles decachaça de permeio com suco de limão espremidodiretamente na boca cheia de aguardente. “Es diurético,aquiece el alma e dasapierta el mijo” - dizia, dando estaloscom a língua.

Contou-nos que tinha sido ele o hospedeiro do príncipeaustríaco Maximiliano cujo pernoitou na vila de Piúma noano de 1816 a caminho de Vitória. E se deliciava com oembaraçoso engano que cometera confundindo o príncipecom um mercador inglês.

Filho de açoriano e de mãe andaluza, Miguel nasceuno Poço Real de Espanha onde o pai servia de estribeiro aorei.

Este nascimento coincidiu, em madrugada e dia, como da Infanta Carlota Joaquina, que não era outra senão a

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que depois seria rainha de Portugal pelo contraimento denúpcias com o príncipe D. João. A particularidade dessacoincidência marcou para sempre a vida do espanhol sendocausa e razão de sua vinda para a Província do EspíritoSanto, como ao depois vereis.

Narrou-nos Miguel que nos idos da infância pegou-sede folgas e folias próprias da idade com a princesa CarlotaJoaquina, a qual costumava ir ter às estrebarias do Paçopara cavalgar as animálias que o pai de Martinez arreava.Tão azadas ocasiões terminaram juntando de muito pertoos dois jovens na praticagem de mútuos escondimentosque se gravaram na lembrança do velho Martinez e o faziamgabar-se gorgulhosamente de ter sido o primeiro machoque viu as partes pudendas, e ainda anjas, da princesa.

Essas reminiscências eram ditas em largos risos, porseguro recordando o privilégio dessa sua fortuna antes quelhe viessem os maus dias se mudando tudo no começo detamanha desdita como o tempo se encarregou de mostrar elogo sabereis. V – vim dar a conocer el hijo al padre

Quando Carlota Joaquina consorciou-se com o prínciperegente D. João, a família de Martinez partiu para Portugalno séquito de criados da nubente na forma do costume.

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As circunstâncias que marcaram as ligações de Miguelcom a princesa fizeram dele, então viçoso mancebo, umdos muitos serviçais de quem se socorria Carlota Joaquinapara aplacar seus apetites carnais nos descaminhos deconduta malsã que faz corar os homens de bem e ofende ahistória.

“Mui nobre mister, pero mui caro”, reconheciajudiciosamente nosso hospedeiro rememorando as funestasconsequências cujo veio a padecer desses agasalhosamorosos, e, sobretudo, por causa das rixas com oRamalhão. Este era o conhecido estribeiro da princesa tidoe mantido como um de seus cameiros favoritos e que diziaser o pai do infante D. Miguel, irmão do príncipe D. Pedro,futuro imperador do Brasil. Sem contar outras vozes, maisqualificadas, que davam essa paternidade ao Marquês deMarialva, Dom Pedro de Menezes.

O velho Martinez tinha mui diferente versão de tãocontrovertida quão desonrosa querela: “non fué nem unonem el outro, pero si este siervo que vos sierve como servióa ella. Pues el nino parido non hubo de apelidar-se Miguelcomo el padre?”

E para nossos ouvidos curiosos confessava Martinezhaver entrado nesses conhecimentos através da própriaCarlota Joaquina em melindrosa e peculiar situação porele vivida.

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Pois sucedeu que não se dispondo a satisfazer àprincesa, em dia de ardentes desejos, preferindo doar-seaos mais cobiçados ardores de uma aia louçã que tambémvivia no Paço, tamanha afronta acabou sendo de muitosconhecida, disseminada nos longes e nos pertos e semcircunspecção por aquela mesma que mereceu os regalosdo espanhol. A divulgação desta inconfidência fez explodira ira de Carlota Joaquina que, sabedora disso, tomou-acomo insolência e desmesurado insulto, valendo a Martineza pena de expulsão do Reino.

Desse modo banido, Miguel reentrou nas terras pátriasde Espanha onde assentou praça nos exércitos de CarlosIV. E, tendo naquele tempo estalado a guerra entre as duasnações ibéricas, julgou chegada sua hora de vingança, indoa pelejar os portugueses, movido por dobrado furor, partenascido do sangue espanhol e parte do desejo de desforracontra Carlota Joaquina.

Desgraçadamente, mui pouco durou esse momento devindita. Malgrado a vitoriosa campanha de seuscompatriotas, Miguel Martinez restou abatido na peleja deCampo Maior, tendo sido alvo de grossa carga de chumboque se encravou na parte cheia da coxa. Neste triste estado,roto e ferido, deixou-se apanhar por mãos lusitanas sendonovamente conduzido para Portugal.

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Conhecendo Carlota Joaquina a infortunada sorte doespanhol, dela não se apiedou, antes lhe cravou mais fundoos dedos infortunosos: fê-lo prisioneiro nas enxovias, ondeMartinez purgou suas chagas de guerra e maldisse sua tristedesdita.

E, conforme ele recordava, mal se tinham passadoalgumas semanas desta captura, já estando pensado bompedaço da ferida que se virou em funda cicatriz para o restoda vida, Miguel foi visitado de inopino por sua algoz.

Apresentou-se ela debaixo de grande encapuçamentoe envolta em pardo manto. Aparentava então, comorelembrava Miguel, o ventre prenhe e redondo que expôsdesnudo ao prisioneiro, pronunciando na penumbra damasmorra essas eloquentes palavras que não podiam sernascidas da mentira: “Vim dar a conocer el hijo ao padre. Yse calhar parir varão hei de cuidar que tenga el mismonombre del padre pois há de llamar-se Miguel”.

Depois de assim falar, ali mesmo naquele lugar imundotiveram-se mais uma vez como macho e fêmea, numa“increible fornicacion”, nas palavras do espanhol.

Saciadas suas redondas carnes, a desconcertantecriatura saiu como entrou, encapuçada e cheia,abandonando o prisioneiro na mais cruel das prostrações,sem lhe haver concedido a graça da clemência.

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VI – desatou a boca da alma

Foram mister alguns anos de paciência e espera antesque o perdão chegasse, finalizando tão prolongado cativeiro.

A ordem de soltura apontou com a invasão de Portugalpelas tropas de Napoleão e veio junta com a doembarcamento de Miguel para a Colônia, enfiado a trouxe-mouxe na criadagem de Carlota Joaquina posta, depois, aseu serviço no palácio de Mata Porcos, na cidade do Rio deJaneiro.

Daí em diante não lhe correram os dias nem pioresnem melhores, tanto porque, naquele paço, deparava-setambém o Ramalhão, cameiro fiel da soberana, zeloso dafama de haver gerado nas famélicas entranhas o príncipeD. Miguel, como já se disse antes neste manuscrito.

Mas os negros dedos do destino cosiam e entralhavampara Miguel Martinez novas provações.

Com assaz frequência, o príncipe D. Miguel ia a visitara mãe em Mata Porcos fazendo inevitável o surgimento deciúmes atrozes entre Martinez e Ramalhão, ambosincontíveis nas miúdas atenções ao príncipe, sempre que aeles se dava azo para fugazes desvelos pelos motivos quecada um dos dois tinha, sendo públicos os de Ramalhão eescondidos os de Miguel.

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Seguiram as coisas nesse estado de ódio instalado massem maiores revezes até os derradeiros dias do ano da graçade 1812, quando se descontiveram Ramalhão e Martinezem furibundo alvoroço engrossado de injuriososimpropérios.

No descontrole dessa altercância, para mal maior epior de seus pecados, Miguel Martinez desatou a boca daalma e aproveitando chula canção a qual corria Lisboa, detodos sabida e por todos cantada, publicou, desvairado, oterrível segredo tanto tempo cravado no coração, proferindoessas palavras cheias de ódio:

“Nem de Pedro, nem de JoãoE mui menos do Ramalhão.Pela greta da infielEmprenhei o nino Miguel.”

Como revide desta incontida e tresloucadaimprudência, viu-se Miguel vitimado, no dia seguinte, porbrutal agressão partida de dois mulatos capoeiras que sobreele desabaram, deixando-o derreado no solo como se partidoe moído seu inteiro esqueleto.

Não lhe bastaram, para o recobro das forças, oito longassemanas de padecimentos e salmoura.

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Passados esses mortiços dias, inda trôpego e mal sesustendo no firme das pernas, foi ter à presença doIntendente de Polícia de nome Paulo Fernandes Viana.Movia-o o desejo de apresentar queixa contra o Ramalhão,ao qual Miguel atribuía a urdidura da sova que atrozmenteo abatera.

Revelando pormenores ignorados pelo espanhol, oIntendente de Polícia desfez, sem mais contendas oudisputas, as pretendidas intenções do queixoso, dizendo-lhe que estavam, por trás da vil agressão, o dedo vingativoe o ódio implacável de Carlota Joaquina, ferida cruamentepelos ditos chistosos de Miguel. E, de acréscimo deu-lheainda o providencial aconselhamento para que partisse doRio de Janeiro e se pusesse a salvo de outras e pioresvexações. Como lugar de refúgio indicou as seguras terrasda Capitania como era então conhecido o Espírito Santo.

Como ajutório o Intendente se dispôs a muni-lo de cartade recomendação endereçada ao Governador Alberto Rubimde cujo era amigo e que por certo se desvelaria em o atenderno que fosse necessário para suavizar esse novo tempo deexílio em sua vida.

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VII – nesta vila, encalhou a viver

Dessa forma, na companhia de algumas famíliasespanholas chegadas num bergantim de nome SantoAgostinho Palafox, Miguel Martinez veio ter à Capitania,indo primeiramente se alojar com esses colonos na fazendado branco casado João Felipe Calmon, sita defronte dapovoação de Linhares, na margem sul do Rio Doce.

Segundo informou-nos, tinha a fazenda, denominadaBom Jardim, engenho de açúcar, fábrica de farinha e olariaonde se faziam famosa telha e tijolo, além de férteis lavourasa salvo do estrago das formigas tão encontradiças nasbandas do sul.

Ali Miguel demorou um naco de tempo, encarregadode manter a vigilância contra os insultos dos gentios Cuités,vulgarmente chamados botocudos.

Desses passados dias, guardou o gibão de couro grossoque servia de peitoril e escudo contra as terríveis setas dogentio. O gibão era o mesmo mantido pendurado na salade sua casa, juntamente com a carapaça de umadescomunal tartaruga.

Da fazenda Bom Jardim, contou o espanhol que desceupela costa trilhando a estrada guarnecida com quartéis depedestres, ganhando Vitória.

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Na capital da Capitania muito lhe aproveitaram, juntoao Governador Rubim, as valiosas palavras da carta derecomendação do Intendente Paulo Viana. Recebeu, por talajuda e proteção, o posto de inspetor da recém-constituídacolônia de Santo Agostinho, fundada com casais açorianostrazidos do Rio de Janeiro.

Nasceu daí o aprendizado de Miguel nas artes daplantação da mamona e da criação do bicho da seda atéque “mi ardiente sangre”, como se justificou, envolveu-ocom a mulher de um dos colonos, obrigando ambos aabandonar a colônia numa esbaforida retirada para poremcobro à vida.

Da localidade de Santo Agostinho, arrostando todaespécie de tropeços, o casal bateu em fuga para a fazendade Araçatiba, sita à margem esquerda do rio Jucu. Nela,teve indormido pernoite, depois de errar durante vários diaspor tortuosos caminhos.

No dia seguinte, deixando para trás a portentosafazenda cujos imensos canaviais e casa assobradada segravaram vividamente na memória de Miguel, e viajandonuma instável piroga, o casal desceu as barrentas águasdo rio Jucu até alcançar o estuário no ponto onde fica aestação da Barra.

Nesse local, em montarias ali contratadas, maquinaramambos o plano de seguirem com destino à corte pela estrada

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geral. Na localidade de Piúma, porém, estando grávida amulher, conheceu ela as dores inesperadas da delivrance.Por mal das febres contraídas veio a enfermar comgravidade, perecendo logo depois, lançando sangue pelaspartes com grande cópia.

O espanhol desistiu de continuar a fuga planejada edeliberou se estabelecer para sempre na povoação de Piúma.Nesta vila, encalhou a viver, entrando os anos da velhiceamancebado com mulher forra e parda.

Neste ponto da conversa, tendo demonstrado ao meuhospedeiro o interesse em me recolher, fomos conduzidos,eu e o alferes Anselmo, que pacientemente tinhapermanecido ao meu lado, aos catres reservados para nossopernoite.

Findou, desta maneira, arrematada com as narrativasde Martinez, a noite em que travei conhecimento com apessoa do novo Presidente da Província ao qual o destinome colocou a seu serviço como dito antes e melhor vereisno que se segue narrado. VIII – o brigue enfunava velas

No outro dia saímos da casa do velho Martinez poucoantes das dez horas da manhã. Apesar do sol quente e forte,o vento sudeste atenuava pela metade o calor.

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O senhor Presidente tinha-me requisitado para ir ter àpraia na sua companhia com o propósito de recolher debordo do brigue, fundeado ao largo da enseada, o baú deviagem contendo os seus pertences. Conforme me deuparticipação, havia concertado com o mestre da embarcaçãoaquele horário para esse mister.

Na praia, uma canoa estava sendo empurrada para omar sobre roliços troncos de madeira quando percebemos,com indescritível aturdimento, que o brigue enfunava velase se fazia ao largo.

Olhando para o senhor Presidente pude notar sua lívidaface de mortífero ódio, não logrando ele conter umaexpressão de férreo desgosto: “Filhos de uma égua parida.Mandam-se ao mar e me deixam cá em terra sem bagageme sem fato para a posse no Governo”.

Enquanto assim falava voltou-se para mim, que viaficarem agravadas as desventuras de tão ilustre viajantenaquela desditosa jornada rumo ao governo da Província,proferindo estas palavras peremptórias: “Fique inteirado,Major, que doravante me são de suma importância seuspréstimos militares os quais adjudico em regime deconfiança pessoal, fazendo-o meu ordenança. E lherecomendo dar incansável encalço aos moleques que mesubtraíram o meu trem de viagem.”

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Havendo deliberado com firme determinação sobre meurequisitamento, o senhor Presidente acrescentou, com nãomenos indominada ira: “Com os demônios, que não fiquesem reparação este agravo do qual estou sendo vítima”. Eassim se assentou naquele momento.

Como vim a saber depois, incluíam-se na sua bagagemlivros de estimada leitura, preciosas obras de Rousseau eVoltaire, havidas a peso de ouro. Delas dizia o senhorPresidente:

“Trata-se de clássicos franceses, Major, clássicosfranceses, que me vieram especialmente da Europa e Deussabe a que duras economias.” IX – conhecido antro de vendilhões e marafonas

O lastimável incidente abateu sumamente o Presidenteque para cousa alguma achou ânimo naquele dia, ficandocombinada para a manhã seguinte a partida da povoaçãode Piúma.

Dada essa deliberação pude me valer da parte da tarde,no cumprimento das ordens recebidas, para as primeirasaveriguações que julgava propícias serem feitas no povoadode Piúma, tendo por objeto o brigue Vinte e Nove de Maio esua tripulagem.

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A súbita partida da embarcação, contrariando oacordado entre o mestre do navio e o senhor Presidente,punha-me confusos o espírito e a mente.

Estas reflexões me levaram a pedir o auxílio do alferesAnselmo cujo destaquei para me prestar ajuda, vasculhandoos sítios nos quais andaram os marujos do brigue, oualgures onde houvesse sinais de sua passagem, inquirindoas pessoas com as quais eles privaram e folgaram.

Dei recomendação especial para que o dito alferespercorresse as palhoças da margem esquerda da barra dorio Piúma, conhecido antro de vendilhões e marafonas,obrando com zelo e inteligência para tirar o maior proveitodas perguntas que fizesse; e do que visse e ouvisse meprestasse relato por inteiro.

Obrou o alferes com tal diligência nessa atividade que,ao cair da noite, regalou-me com extenso conteúdo de boasnovas as quais me foram de muita validade para indormidameditação.

Todavia, só os posteriores sucessos, que lereis noseguimento deste relato, puderam trazer luz para odesvendamento completo dos acontecimentos.

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X – as fugentes velas de uma embarcação

A povoação de Piúma comunica com a vila de Beneventena distância de duas léguas que foram vencidas a cavalona manhã do dia seguinte.

Durante esse percurso o senhor Presidente pouco falou,sendo suposto atribuir esse silêncio à sua má disposiçãoem razão dos deploráveis aborrecimentos vividos naquelesúltimos dias. Nas poucas ocasiões em que se dignou medirigir a palavra foi para inquirir das cousas que mais lheferiam a atenção durante nossa jornada.

À medida que nos aproximávamos da vila de Benevente,distinguiam-se, de partes em partes, sítios frutíferos e roçasde boa feitura, eretas umas em terrenos contínuos, e outrasem separado. Neles se praticava a lavoura de subsistênciaapesar dos estragos causados pela formiga saúva deprodigiosa reprodução e daninho trabalho.

Uma plantação de florescente café, ocupando vastaárea, provocou admiração no senhor Presidente. Mas comoeu não lhe soubesse designar o nome do proprietário, meuilustre acompanhante recolheu-se novamente ao maistaciturno emudecimento do qual havia saídomomentaneamente.

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Para entrar na vila de Benevente, procedente do Sul,tem o viandante de transpor em canoa o rio que dá nomeao local por ser desprovido de ponte a qual seria de muitacomodidade dos povos. A vila fica a montante da barra desserio e quando chegamos notava-se apreciável movimento desumacas e canoas.

Nossa permanência foi curta, tendo sido porém osenhor Presidente acolhido de condigna forma pela Câmarae pelas pessoas mais principais do lugar.

No extinto colégio dos jesuítas, construído numaelevação de onde a vista domina o mar, e ao presenteconvertido igreja paroquial, seu estado de ruína causou máimpressão ao senhor Presidente. O pároco aproveitou-sedessa vantagem e requereu os favores do erário públicopara restaurar paredes e tetos. O requerimento foi feitooralmente tendo o senhor Presidente prometido apreciar orequerido tão logo assumisse o governo da Província. Outrorequerimento foi o de lavradores num pedido de socorropara a exterminação dos flagelos das formigas que com suavoracidade esterilizam os terrenos para a boa lavoura.

Mesmo ficando tempo assaz curto nessa vila deBenevente procurei informar-me do brigue Vinte e Nove deMaio.

Deram-me novas, porém de pouca valência, dizendoalguns pescadores ter lobrigado as fugentes velas de uma

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embarcação rumando para o Norte, na manhã do diaanterior. Nada suficiente pude conseguir, além disso. Melhorsorte me esperava na vila de Guarapari, como direi.

XI – imensos gados que enchiam o dia com seus mugi-dos

Bem mais demorada foi a marcha entre a vila deBenevente e a de Guarapari, pela razão da maior distânciados caminhos e pelos infindáveis obstáculos defrontadosnesse trecho consistindo em pequenos riachos, altas riban-ceiras, pedaços arenosos de praia alagados pelo mar, vari-adas colinas e brejos secos e úmidos. A jornada torna-se,portanto, irregular e os homens e animálias vítimas natu-rais da fadiga.

Quando chegamos à estação de Meaípe, lugarejo depescadores voltado para o Sul e banhado por um mar for-temente azul, havia passado o meio-dia.

Apesar da fome e do sol mortificante que caía sobrenossas cabeças fazendo o suor pingar em gotas, não quis osenhor Presidente atalhar a marcha naquele sítio, man-dando que se seguisse em frente; daí deixar-se o povoado àdireita para se subir por uma picada galgando o morro co-berto de vegetação rasteira, sito por detrás da povoação de

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Meaípe, alcançando-se, à distância de meia légua, a casado alferes Pedro João, o gaiteiro.

Essa casa, assentada na colina à beira-mar, permitiadescortinar a mais aprazível vista da região.

O alferes Pedro João era um antigo marinheiro vertidoem lavrador, tendo cultivado uma boa capinada de terra àroda de sua habitação onde plantou a cana e a mandiocaextraindo dessas lavouras excelente aguardente e farinha deboa qualidade. Num grande cercado de muito bom pasto cri-ava imensos gados que enchiam o dia com seus mugidos.

Esse homem laborioso e feliz recebeu-nos amavelmentee com extrema naturalidade. Só me lembro de haver nota-do sinais de inquietação em seu semblante quando o se-nhor Presidente se aproximou de um pitoresco papagaiogritador, empoleirado numa armação de madeira no beiralda casa, debaixo de um telheiro de palha. Tendo o papa-gaio com assaz estridência e nitidez esganiçado o nomeNICO, berrando-o aos quatro ventos, interessou-se o Presi-dente por conhecer a pessoa que por essa graça atendia.Ao que o alferes, não ocultando visível embaraço, explicouque “não era ninguém, mas um antigo boi de estimação,perecido recentissimamente, cujo nome o papagaio apren-deu a falar por ouvir chamar o animal por essa forma”. Onome que a ave assim gritava era, pois, o do boi morto, naexplicação dada.

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O alferes Pedro João deu também informação de terlampejado, no dia anterior, as velas de um brigue navegan-do na direção da vila de Guarapari, segundo foi esse o seuentendimento do alto do posto em que fez esta observaçãoe que era sua casa naquela colina à beira-mar.

Esta notícia me encheu a vontade de logo partir para avila de Guarapari na esperança de alcançar a fugidia em-barcação que à nossa dianteira seguia ou de, pelo menos,encurtar a distância que dela nos separava. Mas tive derefrear tal anelo, ainda que intimamente contrafeito, porhaver o Presidente ordenado o contrário, isto é, o adiamen-to da viagem para o dia seguinte.

Conformei-me então em ver desperdiçar valiosas ho-ras nesse empatamento desnecessário, impedido de avan-çar na perseguição ao brigue e, por ademais, condenado atolerar, com semblante ameno, a tediosa exibição de gaitacom que nos quis alegrar o alferes após a janta.

Consistiu esta, primeiramente, numa tigela de graúdase redondas tanajuras fritas cujas foram polidamente recu-sadas pelo Presidente, explicando: “Tenho por hábito pri-var-me de alimentos estranhos ao meu paladar, prevenin-do os dissabores de incômodos digestivos”.

Foi-nos servida então uma suculenta sopa de tartaru-ga, espécie abundantíssima na região que o senhor Presi-

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dente aceitou de bom grado, dela se repastando com taldisposição que me causou surpresa.

E tão agradavelmente lhe soube ao paladar que meencarregou de pedir a receita à mulher do alferes que sederramou em satisfação em poder atender ao ilustre co-mensal.

Quanto à exibição de gaita que se seguiu ao jantarteve ela o dom apenas de conseguir enfadar-me quase aolimite da indelicadeza e apressar o desejo de ver terminaraquele pernoite inoportuno e retardativo.

XII – dois marinheiros chegados do alto

Logo que brotou o dia, apresentamos as despedidas aoalferes e partimos no rumo da vila de Guarapari.

O alferes esmerou-se em desculpas, imensamentemolestado com a indisposição noturna que acometeu o se-nhor Presidente, forçado a se aliviar várias vezes de umasdores entéricas convulsivas que mui o atormentaram equase o tiveram morto.

Nessas circunstâncias, a noite mal dormida assaz oabateu, tendo ele acordado naquela manhã bastante deca-ído, com olhos pisados e fundos e a tez emaciada. Para seudesconforto, os solavancos da montaria, no percurso para

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a vila de Guarapari, afligiram inda mais sua combalidasaúde, levando-o a praguejar o tempo todo e a maldizer dasorte. “Foi a sopa, Major, a maldita sopa de tartaruga daqual parece que me coube o caldo do casco. Livrei-me dastanajuras mas me ensopei de um mal maior, que me fez emfezes a noite inteira”.

Acudiu-me dizer que o mal maior tinha sido a exibiçãode gaita do alferes, mas calei-me, silenciando o meu pensar.

Na vila de Guarapari, que jaz à margem direita daembocadura do rio de igual nome, achou por bem o senhorPresidente fazer momentânea pousada no colégio paroqui-al construído em elevado sítio do qual se perlustrava toda apovoação com suas ruas regulares e casas bem alinhadas.

Daquele alto, relanceando a barra e o braço de marque dá entrada ao embarcadouro da vila, onde se notavagrande número de canoas de pesca, desenganei-me de todo:do brigue Vinte e Nove de Maio nem proa nem popa, nemmastros nem velas.

Mesmo assim, enquanto o senhor Presidente recobra-va o ânimo e aguardava lhe fosse subministrado um chá deerva doce para panaceia dos seus incômodos, desci à vila,alegando o pretexto de ir ali encontrar alguns parentes.

Fui direto à taberna localizada na boca da rua que dáacesso ao embarcadouro, lugar procurado por pescadorese trapicheiros para se aprovisionarem de aguardente emantimentos. Uma tabuleta de madeira, sustida por argo-

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las azinhavradas, trazia inscrito o seguinte nome, emcaracteres negros: “Taverna AREA BRANCA”.

Naquele reduto de embarcadiços no qual minha pre-sença, em figurino militar, causava geral constrangimento,perguntei ao taverneiro cujo conhecia pessoalmente: “Digalá que novas me dás de estranhos nestas bandas entre hojee a data de anteontem?”

O taverneiro, um pescador que largou a vida do mar parase dar ao comércio, não se fez de rogado: “Vosmecê, meucomandante, até que adivinha pois antontem arribaram aquidois marinheiros chegados do alto. Gente nunca vista nestelugar, sendo unzinho mais novato e o outro, assim assimmais gasto de idade e mais grandalhão. Chegaram num bar-quinho que largaram preso nos ferros do trapiche e carrega-ram charque e farinha, pagando em moeda”.

Como insisti fazendo outras perguntas, ouvi dotaverneiro esta fala esquisita e curiosíssima: “O homem maisvelho pediu um à parte para saber se aqui na vila tinhamestre-escola de bom saber”.

Ocultando a imensidão da surpresa que esta informa-ção me causava, quis ouvir a resposta dada pelo taverneirocujo me informou que disse o verdadeiro, sabido das gen-tes, isto é, que o “único lente que dá as aulas nesta vila é oprofessor Netinho mais chegado à mania de criar galinhapé duro do que pôr tento nas artes do seu ofício”.

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Certo de que era tudo que podia aproveitar da bocadaquele informante, dele me despedi, partindo ao encontrodo senhor Presidente.

Enquanto cavalgava morro acima na direção do colé-gio paroquial, acudiam-me as palavras ouvidas aotaverneiro, impondo-se com estranheza em meu pensar: “... pediu um à parte para saber se na vila tinha mestre-escola de bom saber”.

XIII – resolvi manter em mudo segredo Defronte da igreja, o Presidente já se postava a cavalo

pronto para a partida. Tinha acabado de acolher uma re-presentação da câmara em suplicância do socorro do Go-verno Provincial para formar patrulha capaz de entrar na-quele sertão a dar combate aos negros aquilombados àsmargens do rio Engenho Velho donde acometiam os lavra-dores semeando o desassossego com suas tropelias e es-tragos.

Via-se que o chá de erva doce tinha-lhe trazido asmelhoras pois exibia o semblante ameno e repousado. Aome avistar dirigiu-me estas palavras: “Já lhe tinha deixadorecado, Major, para o caso de possível desencontro”.

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Roguei-lhe desculpas pelo atraso involuntário sem con-tudo nada adiantar das averiguações feitas as quais resolvimanter em mudo segredo até lograr o entendimento do seuexato sentido. Cheguei em cuidar de fazer algum tipo decomentário com o alferes Anselmo que tinha permanecidona igreja paroquial não me acompanhando à Taverna masme contive dizendo para comigo “caluda, boca”, e assimfiquei.

XIV – uma moqueca de papa-terra A partida da vila de Guarapari foi naquela manhã que

era o dia 12 de agosto, depois de se transpor o rio em localapropriado no bojo de grandes e seguras canoas.

Costa acima, a estrada segue o litoral até a barra dorio Jucu na extensão de oito léguas. Há ao longo dessecaminho diferentes lugares que dão a visão cheia do Ocea-no; noutros, a estrada foge para o interior sem contudodistar grandemente do mar, cujo ronco acompanha o vian-dante como um besouro.

Antecedente da estação de Jucu, onde chegamos àscinco horas da tarde, descansamos no local denominadoPonta da Fruta.

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Nessa localidade, habitada por pescadores pobretõesque passam a maior parte do tempo entregues ao ócio, foi-nos servida para o almoço uma moqueca de papa-terra,peixe de cor avermelhada, assaz apetecível e de prodigiosafartura no litoral da Província.

Causou-me conforto ver a fome galga do senhor Presi-dente regalando-se com as largas postas do peixe, servidofervente em panelas de barro e comido com fartas colhera-das de pirão que é farinha de mandioca cozida em bomtempero. Pude notar, desse modo, que ele se restabelecerapor completo dos malefícios produzidos pela sopa de tarta-ruga que tanto estorvo lhe causara.

Diante desta constatação não contive o atrevimentode inquirir: “Com o devido respeito, senhor Presidente, avosmecê não apetece que também seja anotada a receitadesta iguaria?”

Fixando-me por alguns instantes com seus olhos pe-netrantes, respondeu com firmeza: “Acato a sugestão, ma-jor. Proceda, porém, ao registro da receita para substituir aoutra, da sopa de tartaruga, da qual não quero levar nem alembrança”. E tendo procedido à anotação, sou tentado atranscrever aqui, como faço, a receita da moqueca de papa-terra conjuntamente com o inseparável pirão que a acom-panha e tal como me foi ditada pela mulher que a prepa-rou: “escama e limpa o peixe cortando em postas, lavadas

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com limão. Corta coentro, cebolinha verde, cebola e toma-te, mistura e faz uma cama no fundo da panela de barro;ajunta sal, um pouco de urucum e de azeite doce e, emcima desta cama, bota as postas bem arrumadinhas. Dei-xa no fogo e chega mais tempero sem mexer as postas paranão desmanchar, balançando a panela para não pegar nofundo até ferver. Na fervura o peixe vai soltando água e,enquanto ferve na panela, bota mais caldinho do temperoem cima dele com colher de pau até ficar bem cozidinho emacio”.

O pirão de farinha de mandioca é feito também numapanela de barro, adicionando-se a farinha no caldo damoqueca, podendo ser preparado outro caldo com a cabe-ça ou com o rabo do peixe, juntando limão ou sal conformefor de gosto e paladar, servindo-se o pirão fervendo na pa-nela como acompanhamento da moqueca. Peixe e pirãochegam fumegantes à mesa, irradiando calor e predispon-do ao apetite. E só quem provou sabe: o prazer da moquecacomeça pelos olhos.

XV – a visão vaporosa do brigue

O perigo que oferece a passagem da barra do rio Jucucom maré alta, tornando a travessia pouco fiel, aconselhou

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nosso pernoite no local. Assim, somente retomamos a via-gem na manhã do dia seguinte.

Enquanto cavalgávamos no rumo da Capital, assom-brava-nos a imagem longínqua e píncara do Convento deNossa Senhora da Penha que sobressaía erecto na colinaperto do Monte Moreno.

Aproximava-se a metade do dia quando, finalmente,pelo caminho da mata, contornando brejais e a ínvia vege-tação, defrontamos a baía do Espírito Santo, no lugar ditoPedra d’Água, o qual deriva seu nome do formato que essapedra representa que é um grande rochedo escalvado cujaarredondada coroa aflora na linha d’água.

Dessa paragem, atravessando-se a baía, tem-se a ma-jestosa visão da boca da cidade de Vitória, destacando-se amaciça figura do Penedo, de um lado e, do oposto lado, osmuros do vetusto forte de São João; na linha dianteira dosolhos, na outra banda da baía, assoma o portentoso morrode Jucutuquara.

Como Pedra d’Água é estação de chegada obrigatóriados viandantes que provêm do Sul da Província há ali sem-pre barcas para a travessia.

Tendo eu ordenado que o alferes Anselmo nos antece-desse em marcha batida levando aviso da nossa breve che-gada, deparamos, naquele lugar, com uma solene comitivade pessoas as mais principais todas com jeito de gosto e

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agrado, tendo à frente o próprio Presidente Silva Couto,que aguardava seu substituto. Dele nos veio a honra daprimeira fala, dirigida ao Presidente Oliveira: “Apraz-me dar-vos as boas vindas, Excelência. Esperávamos vossa chega-da pela via marítima quando me chegou aviso de que tínheisescolhido o percurso pela Estrada Geral. Como fostes deviagem?”

A resposta do recém-chegado foi peremptória e eu lheconhecia as razões próximas e afastadas: “Um mau fado,Senhor Presidente, um mau fado. Posso considerar-me umverdadeiro náufrago sobrevivente com a roupa do corpo,dando graças ao bom Deus por chegar, enfim, são e salvo”.

Mal ele assim se exprimiu, tive por devaneio, podendoser isso a efeito do dia quente de fortíssimo sol, a visãovaporosa do brigue Vinte e Nove de Maio impelido porenfunadas velas adentrando mansamente a baía diante denossos narizes.

Tão inconveniente quão inoportuna miragem poucodurou no meu sentido, logo se dissipando, felizmente, en-quanto me soava aos ouvidos o restante da frase proferidapelo Presidente Oliveira “... quanto ao baú de viagem hei dereaver ao brigue mais cedo ou mais tarde e não me poupa-rei para que nisso se ponham toda disposição e afinco”.

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XVI – com fivelões dourados e alças laterais

Passarei em silêncio as demonstrações de júbilohavidas na posse e recepção do Presidente no Governo daProvíncia debaixo de muitos vivas e aplausos e outras mui-tas demonstrações de alegria; mencionarei somente seuconsternamento por ter de trajar a mesma roupa usadadurante vários dias na viagem para a Província.

O dia seguinte ao da posse passou-se na publicaçãodas providências de estilo comuns aos inícios de um novogoverno. Nesse mesmo dia, despedi-me do bom alferesAnselmo que retornou para a vila de Itapemirim onde eraaquartelado.

Conforme fora decidido na viagem, o senhor Presiden-teoficiou meu requisitamento para os serviços adjuntos à suapessoa. E continuava firmemente agarrado ao propósito derecuperar o trem de viagem que lhe fora subtraído, recu-sando-se a dá-lo por perdido, não abrindo mão de castigaros culpados dessa condenável ação.

Em virtude dessa teimosia afincada, no maço dos ofí-cios que foram expedidos às diversas autoridades espalha-das nos diferentes longes da Província, informando, noscostumeiros conformes, a posse do novo governante, acres-centou-se um outro sobre o brigue Vinte e Nove de Maio.

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Consoante foi-me incumbida a redação desta corres-pondência, da qual conservei cópia, posso reproduzir o teordas palavras endereçadas ao geral conhecimento de dele-gados e subdelegados, sendo o seguinte: “Havendo o se-nhor Presidente desta Província sido vítima de furto prati-cado em sua bagagem pessoal, consistente num grandebaú de couro com fivelões dourados e alças laterais que sesupõe jazer a bordo do brigue Vinte e Nove de Maio, ve-nho prevenir a essa autoridade policial para que diligencieno sentido de apurar sobre o paradeiro do mencionado bri-gue e paradeiro de sua tripulagem com apuro maior domestre e contramestre. De tudo deve ser dado conhecimentoimediato ao Senhor Delegado de Polícia da Capital ou dire-tamente a esta Presidência sendo de palpitante necessida-de e interesse que as informações tenham caráter sigilosopara não prejudicar as providências que cumprirem seremadotadas. Assinado - Machado d’Oliveira - Presidente daProvincia”.

XVII – importantíssimo e intrigante pormenor

Bastaram alguns dias da expedição desse ofício paraque chegasse às mãos do senhor Presidente providencialresposta subscrita pelo subdelegado da vila de Nova Almeida

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e datada de 25 de outubro de 1840, do conteúdo seguinte:“Ilmo. e Exmo. Senhor: Dou parte a Vossa Excelência queempreendendo diligência nesta povoação, indagando daspessoas do lugar e arredores, pude conhecer que em diaspassados, antes da augusta posse de Vossa Excelência naPresidência desta Província, fundeou ao largo da barra dorio dos Reis Magos, que banha esta vila, o brigue Vinte eNove de Maio; por não me encontrar presente, afastadoem diligências expedidas para defesa e guarnição da povo-ação e das gentes a ela vizinhas, ameaçadas do gentio, comoainda há pouco tempo, à vista das casas, fizeram uma morte,não testemunhei o fundeamento da nau nem presenciei achegada em terra, conforme me foi informado, de algunstripulados de bordo que nessa povoação se entregaram,durante a noite, a toda sorte de estrepolias, de misturacom gentes de baixo calão, fruto do excesso de beberagem.Foi-me também dito que dentre os marujos, um deles,grandalhão e palreiro, buscou saber da casa e da pessoado mestre-escola as quais lhe foram designadas por quempodia dar informação. Não tendo tido nenhum outro escla-recimento sobre o assunto, antes de ordenar o seguimentode qualquer providência, recomendou-me a cautela aguar-dar ordem de V. Exa., como passo a fazer. Deus guardeVossa Excelência: Assinado: Francisco Moura Felisberto -subdelegado de Nova Almeida”.

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A recepção deste ofício provocou, por ordem do Presi-dente, minha pronta partida para a vila de Nova Almeida oque fiz, logo no dia seguinte, rumando a cavalo.

Enquanto cavalgava naquela direção, aguçava minhacuriosidade a menção contida no ofício do subdelegado so-bre o interesse, demonstrado pela gente do brigue, em achara casa do mestre-escola da vila de Nova Almeida. Esta cir-cunstância havia se dado também na vila de Guarapari,conforme antes relatado.

Semelhante coincidência dilatava minha curiosidadee me deixava ansioso por chegar depressa a destino a fimde esclarecer este importantíssimo e intrigante pormenor.

XVIII – Possidônia, o que tens?

A vila de Nova Almeida dista de Vitória sete léguas.Nela moram pescadores e agricultores que vivem em pa-lhoças formando um casario sem grandeza alinhado pertoda praia que é suja e estreita.

Por detrás dessas casas fica o morro onde sobressai oimponente colégio que foi dos extintos jesuítas e é da invo-cação dos Reis Magos o qual antigamente dava o nome aolugar.

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Defronte da vila, escorre o rio de turvas águas cor demate com barra de pouco fundo. O rio admite embarcaçõesde oito palmos de calado, sendo contudo necessário ir umprático dar-lhes entrada por causa dos bancos de areiamovediços que tem na enseada onde se acha um bom an-coradouro bastante abrigado.

Enquanto me aproximava da vila onde o comércio énenhum, crescia nos meus ouvidos o aceso batuque de umbaile de congo. O som nascia de casacas, que são reco-recos com cabeças entalhadas, e de tambores tocados porum magote de gente, reunindo negros e mulatos. Ostocadores ora ficavam parados, ora andavam de um ladopara o outro, sempre juntos, arrastando atrás deles umaporção de pessoas que cabriolavam levantando a poeira dochão. À medida que assim tocavam emitiam seu canto re-petido e monótono que parecia não ter fim.

Com demasiado esforço pude entender, e apenas pelametade, aquele cântico gritado e fanhoso que o vento leva-va e que consistia para mim numa intrigante pergunta:“Possidônia, o que tens?”. Não me foi possível, porém, ati-nar com o restante da frase que se espichava no ar.

O meu advento inesperado em trajes milicianos diantedaquelas ingênuas criaturas fez calar-lhes a cantoria e osilêncio subitamente pesado e respeitoso só era rompidopelo marulhar leve das águas na prainha próxima.

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Disse ao que vinha e prontamente estava na presençado subdelegado, alcunhado Chico Felisberto, indivíduo so-lícito, de cor amarela, trazendo na enorme boca rasgadafortes dentes pregados nela.

Sua pessoa não me conquistou a benevolência. Aquelacriatura subserviente teve o dom de me irritar sem aparenterazão senão sua própria aparência. Confiei-lhe, sem perdade tempo, o propósito de ir ter com o mestre-escola do lugarno que fui atendido pelo subdelegado que me levou à mora-da do professor Antunes, que essa era sua graça.

Não foi difícil chegar ao lugar, embora tivéssemos degalgar primeiramente uma encosta de duro chão argilosoescavado por profundos sulcos causados pelas chuvas.

Dita encosta, bastante íngreme em certos trechos, fi-cava por trás do casario miserável fronteiro à prainha poronde antes eu havia passado e onde o enfadonho batuquedo congo tinha recomeçado.

Ao escutar novamente aquele baticum e cantoria, per-guntei ao subdelegado sobre o preciso significado do queestavam cantando.

Abrindo num sorriso sarcástico sua boca de grandalhosdentes, explicou-me que na véspera da minha chegada umamulher, moradora no lugar, de nome Possidônia, dera pelosumiço de um grande peru que trazia na engorda, tendoem vão procurado a ave de casa em casa, muito selamuriando do seu desaparecimento.

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E depois dessa busca infrutífera, aos que indagavam omotivo de sua consternação, vendo-a pesarosa e triste, aco-tovelada à janela de sua casa na vigília paciente da ave sumi-da, dava como explicação a dó que sentia pela falta do peru.

Foi o quanto bastou para que a banda de congo im-provisasse a toada, interminavelmente repetida, cujo com-pleto significado me escapava e que, no entanto, era o se-guinte: “Possidônia, o que tens? É dó do peru.”

Enquanto me narrava esse episódio, continuávamossubindo a ladeira que servia também de acesso para o ex-tinto convento dos jesuítas, construído numa situação so-branceira, donde era possível, dilatando a vista, divisar omagnífico panorama daquele território.

A casa do mestre-escola era a derradeira das poucasnaquele tabuleiro de morro, “rente a uma lavoura deabacaxizes” no dizer do subdelegado Chico Felisberto.

À medida que dela nos aproximávamos o subdelegadoconfidenciou-me particularidades da vida reclusa do pro-fessor Antunes, devotada aos livros e à leitura.

Tratava-se de pessoa de larga sabença, habituada aler e declamar os poetas latinos com assaz desembaraço,embora seu mister consistisse apenasmente em dar as au-las régias. Como no lugar reinava a mais crassa ignorânciae completa estultice, o professor era tido como criatura ex-travagante e arredia.

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Em sua companhia viveu uma gentia bastarda,manceba e serviçal, de jeito maneiro, e que atendia peloesquisito nome de Esmeraldina Especiosa.

Essa mulher, que depois vim a conhecer, possuía in-críveis olhos verdes e demonstrava grande submissão aoprofessor que contudo a destratava de forma rude, abu-sando da mansidão daquele ser ingênuo e primitivo.

XIX – uma preciosa coleção de autores franceses

O mestre-escola recebeu-nos com circunspecta hospi-talidade. Mandou que entrássemos e nos indicou um com-prido banco de peroba escura onde nos assentamos no cô-modo dianteiro da casa. Na parede fronteira ao banco ha-via abundante quantidade de livros enfiados sobre tábuassobrepostas, apoiadas em tijolos cozidos, formando prate-leiras.

No centro dessa sala apertada e diminuta, uma mesarústica, à qual se assentou o professor: exibia outros tan-tos livros e mui velhos opúsculos. Uma pena de cobre deescrever descansava dentro do tinteiro.

O professor, de natural esguio, tinha feições com ma-çãs proeminentes; embora não tivesse os cabelos grisalhosrepresentava já ser entrado em anos. Suas mãos revela-

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vam o descostume das fainas pesadas malgrado as unhasencardidas e longas.

Como se colocasse à nossa disposição dizendo “soutodo ouvidos”, o subdelegado pigarreou para tomar a pala-vra. Atalhei antes que o fizesse e me antecipei dizendo doobjeto de nossa visita que consistia em conhecer os moti-vos que teriam levado os marinheiros do brigue Vinte eNove de Maio a ir procurá-lo, consoante notícia de todossabida na vila. “Isso deveras sucedeu?” perguntei.

Depois de ouvir minhas palavras o professor respon-deu em tom grave e a resposta dele foi a seguinte: “Efetiva-mente, senhor Major, vieram-me cá à casa dois desses aquem vosmecê mencionou, sem que eu os conhecesse oulhes mandasse aviso; um deles, não passava de neófitogrumete; o outro, todavia, era grandalhão e solerte e deu agraça de Simão. Movia-os o propósito de me alienar umapreciosa coleção de autores franceses que disseram trazerdo Rio de Janeiro. Como eram clássicos do meu gosto, efe-tivei a compra”.

E, apontando-me para as obras de Rousseau e Voltaireque havia por essa forma adquirido, que não eram outrassenão a perdida coleção de clássicos do Presidente Macha-do d’Oliveira, disse: “Preciosidades literárias, meu caroMajor, cujo inexcedível valor ignoro se vosmecê alcança”.

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Infelizmente, para o professor, eu alcançava oinexcedível valor das ditas preciosidades. E foi sobre issoque passei a lhe falar para seu incontido desespero, con-forme podeis prever.

XX – um enérgico desabafo

É assaz embaraçoso exprimir o estado d’alma com queretornei da vila de Nova Almeida para Vitória, fundamentevexado com o que acontecera.

Nutria imensa piedade pelo professor Antunes o qualpor tanto desejar, tanto perdeu ao adquirir obras de máprocedência; e o que foi pior, furtadas à posse da supremaautoridade provincial. Mas não podia sufocar também oforte sentimento de indignação que me acometia ao lem-brar das condições funestas do contrato de compra e ven-da realizado pelo professor: estando com o pagamento dossubsídios literários atrasados de quase um ano e não dis-pondo de fundos suficientes em sua jejuna bolsa para qui-tar o ganancioso preço cobrado por Simão Boncarneiro (quesoube despertar no coração do velho professor a cobiça peloslivros franceses), não hesitou ele em completar a paga coma pessoa de Esmeraldina Especiosa.

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Que negro impulso teria motivado tão imenso desati-no nunca hei de compreender. Seja como for, o castigo veioa cavalo quando lhe dei a saber toda a crua verdade sobreo vero proprietário das obras e sobre o condenável modocomo Simão Boncarneiro delas havia se apoderado.

Derreado debaixo de completo aniquilamento com oque de minha boca ouviu, o mestre-escola não pôde conterum enérgico desabafo: “Corja de larápios! Fui roubado etraído ao mesmo tempo. Desgraçado Rousseau, desgraça-do Voltaire!”

Tão lamentáveis sucessos acenderam em meu espíritoo desejo de voltar para a Capital com a maior brevidade.Contudo, para engrandecer meu desconforto, esse retornoera estorvado pela andadura lenta da animália a reboqueda minha que levava, em dois balaios de fibra de coqueiroindaiá, a malsinada coleção dos livros por mim despojadosao professor. Tal circunstância agravava o estranho e des-cabido sentimento de culpa que inexplicavelmente me in-vadia. “Desgraçado Rousseau, desgraçado Voltaire”, repetias palavras do velho e desalentado professor Antunes.

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XXI – ledo engano

Ao Presidente Oliveira, expus todo o ocorrido em seuspormenores minúsculos e maiúsculos.

Quando finalizei, cheguei a pensar fosse ele capaz deum gesto de extrema magnanimidade em favor do Profes-sor Antunes, presenteando-o com a devolução dos livros.Percebi logo que isso jamais lhe passara pelo espírito.

Após me ouvir em absoluto silêncio limitou-se a dizer:“Muito lamentável, Major. A vida às vezes nos reserva pe-ças abomináveis como sucedeu a esse infeliz mestre-esco-la. A mim mesmo não me ia tirando os meus queridosRousseau e Voltaire?” E, acrescentou, simplesmente: “Pro-videnciarei para que os subsídios atrasados do mestre-es-cola lhe sejam ministrados sem tardança”. Depois, olhan-do-me firmemente nos olhos através do pince nez, insis-tiu, para mal de minhas penas: “A recuperação dos livrosencerra metade do assunto. A captura do baú de viagemhá de encerrar a outra. Continue nas diligências, Major”.

Interiormente acreditava eu que concluída a recupe-ração dos livros nenhuma novidade poderia surgir a mais,porque certamente o brigue Vinte e Nove de Maio já seteria largado bem longe das costas da Província.

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Ledo engano, como vereis. E, em breve, a precipitaçãodos sucessos iria me impor o sacrifício de novas viagensfruto da comissão que me havia imposto o Presidente daProvíncia.

Tanto que, pelas dez horas do dia seguinte ao do meuretorno da vila de Nova Almeida recebi ordens para compa-recer à presença do Presidente.

Quando me apresentei, passou-me ele, sem delongas,um ofício subscrito pelo Delegado da vila de São Mateus doseguinte teor que posso transcrever da cópia em meu po-der: “Ilmo. e Exmo. Senhor. É de minha obrigação e deverparticipar a Vossa Excelência a pousada, nesta vila, domestre comandante do brigue Vinte e Nove de Maio quese encontra recolhido ao leito, em estado de enfermidade,acometido das febres e de outros males que apanhou. Comosua mofina saúde leva a receiar o peior, aguardo instru-ções no respeitante ao enfermo e por motivo dos termos doofício anterior de Vossa Excelência. Sendo quanto se meoferece dizer a este respeito peço a Deus que guarde VossaExcelência. Assinado: Ignácio Loureiro Fraga, Delegado”.

Enquanto lia este documento podia adivinhar o queele me reservava.

Com efeito acabada a leitura, o senhor Presidente ro-gou minha boa compreensão e generosa paciência, demons-trando por eloquentes palavras ser indispensavelmente

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necessária minha ida à vila de São Mateus para a provi-dência de rigorosa inquisição do mestre comandante dobrigue antes que ele sucumbisse acometido pelas mazelasde sua tênue saúde e avançada idade.

”Não é obra para embrutecidos delegados de polícia,meu caro Major. Careço de conhecer toda a verdade e deoperar prontas determinações que só uma pessoa comovosmecê saberá obrar sem precisão de ordens superiores.Cumpre proceder a rigoroso e eficiente inquisitório, Major.E, lembre-se: aja com diligência, que nem tudo os subordi-nados informam aos seus superiores”.

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XXII – nem a si mesmo poupava a traição da mulher

Acedendo às ponderações e rogos do senhor Presiden-te, como era de meu ofício e muita obrigação, aprazei par-tida imediata para a vila de São Mateus.

Em virtude do dilatado percurso a ser vencido por es-trada de chão, arrostando os tropeços dos caminhos e osdemais desconfortos duma viagem a cavalo, preferi a viamarítima, suplicando ao Criador que semelhante escolhanão me reservasse a repetição do episódio vivido pelo Pre-sidente Oliveira na viagem do Rio de Janeiro para Vitória.

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E, tendo-me sido informado que se achava atracadano cais das Colunas a sumaca Estrela do Norte, de pro-priedade do mestre Celestino, com partida aprontada paraa vila de São Mateus, encomendei lugar a bordo onde merecolhi no dia seguinte.

Dita sumaca, mastreada com duas velas de grossospanos, media de proa a popa dez braças de comprido sen-do empregada pelo proprietário para a navegação costeirade diminuta cabotagem entre a Província da Bahia e a doEspírito Santo.

Dispunha ainda de três abafados beliches individuais,sendo um deles o do próprio mestre, estranhamente assinala-do com dois cornos suspensos sobre a portinhola da entrada.

Quando embarquei pude ver que o barco carregavacaixas de açúcar e outras mercadorias. A sua equipagemreduzida era, contudo, mui diligente, consoante pude no-tar durante a viagem, respondendo ao mando experientedo mestre Celestino cujo era um mulato avultado, de cabe-leira e bigodes bastos, com fios que formavam caracóis naspontas por cima dos cantos dos beiços. Com largapraticagem do mar, aprendeu a navegar no barco de pro-priedade de seu avô materno que constituiu família na vilade São Mateus onde findou seus dias.

Mestre Celestino principiou mancebo a pilotagem dosbarcos nos portos e barras dos rios herdando do avô, mes-

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tre de navio de mão perita, a experiência que aproveitou oresto da vida.

De índole jocosa e irreverente, apreciava levar a bordopassageiros que ouvissem pacientemente as histórias quecontava de forma mui agradável.

Tinha se consorciado com moça da sociedade da vilade Mateus mas foi por ela enjeitado, tendo a mulher idoviver na abastança com um fazendeiro do sul da Província,nas proximidades da vila de Benevente, lugar que mestreCelestino costumeiramente evitava na navegação do Estrelado Norte. Como jamais perdoou essa ofensa, mestreCelestino nem a si mesmo poupava a traição da mulher aquem passou a dedicar desprezo profundo e amargo querevelava apontando para os dois cornos na porta do beli-che, dizendo: “um é meu; o outro para quem casar commoça de São Mateus”.

XXIII – o mestre estava esticado no catre, imóvel

Empurrada por ventos prestantes, a sumaca cobriuceleremente o percurso entre Vitória e a vila de São Mateusdurante o qual me aprouve aos olhos a verdejante belezado litoral da Província onde se notabilizam o maciço doMestre Álvaro e a larga embocadura do rio Doce.

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Fica o porto de São Mateus situado à margem esquer-da do rio do mesmo nome que os indígenas chamavam deCricaré. Trata-se de importante caudal que oferece boa esegura navegabilidade, deparando-se ao seu redor precio-sas madeiras dentre as quais compridos jacarandás demuitas grossuras.

O intenso comércio de farinha dava ao porto e ao mer-cado próximo, aspecto de grande atividade, poucas vezesdeparado em outras localidades da Província, exceto naCapital.

Meu primeiro cuidado ao desembarcar foi procurar odelegado da vila com quem fui ter, guardando-me, pelo ca-minho, das hordas de vespas que por ali enxameiam.

O delegado cientificou-me sobre a hospedaria que al-bergava o mestre Ovidino Serapião, comandante do brigueVinte e Nove de Maio, e se prontificou a me conduzir até olocal.

Como tinha interesse em ir só e como até aquela horaavançada da tarde não havia sustido o estômago com refei-ção consistente, preferi, por primeiro, saborear umamoqueca de judeu, peixe mui familiar nas águas do rio SãoMateus e de mui bom paladar.

Desta forma, foi quase à noitinha que me dirigi para orendez-vous com o infeliz mestre que sabia acometido dasfebres e dos eczemas.

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Estava ele hospedado numa pensão assobradada naparte baixa da vila de São Mateus, perto do Porto.

O hospedeiro que me atendeu cobriu-me de atençõesenfadonhas das quais consegui escapar galgando a escadade madeira rangente que levava ao andar superior do pré-dio.

O quarto em que se encontrava o enfermo mais pare-cia um cubículo, e só tinha de comodidade a grande janelaque deitava diretamente para o cais. Como pude ver poste-riormente, ela favorecia a visão de quase todo o porto davila onde chamava a atenção um renque de belas palmei-ras.

O mestre estava esticado no catre, imóvel, respirandocom grande esforço e ruído. A janela entreaberta não dei-xava coar luz suficiente e, como escurecia, a impressão queo ambiente causava era repugnante. Ao pé do catre, umaescarradeira de louça portuguesa encontrava-se todacuspinhada dentro e ao redor.

Recebeu-me o mestre com leve abano de cabeça emresposta à minha saudação. Por certo já tinha sido avisadoda minha chegada e dos meus propósitos.

Declarei meu pesar pelo seu estado de saúde, o quenão pareceu confortá-lo pois falou: “Por ora, ainda não háquem enterrar!” Mesmo assim, disse-lhe ao que vinha epedi que me narrasse o que se passara com o brigue Vinte

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e Nove de Maio e com ele, mestre do navio, desde a partidada vila de Piúma; indaguei também do destino da embar-cação e do trem de viagem do Presidente Oliveira.

XXIV – disse ele com voz de defunto

Sendo do meu maior desvelo procurar narrar tudoquanto alcancem minhas lembranças, o que do mestre ouvireproduzo do jeito como falou com palavras que até hojetrago presas em meus ouvidos: “Senhor Major”, disse elecom voz de defunto, “da aludida bagagem nada posso in-formar por ter perdido das vistas dês quando fui vítima daamotinagem encabeçada pelo desgraçado do SimãoBoncarneiro, inda lá mesmo na enseada de Piúma. Do mais,porém, lhe conto e lhe falo nos conformes do ocorrido quesão do meu conhecimento; mas, premeiro, rogue ao donodesta bodega de hospedaria para trazer o lume pra modeque o peso da escuridão não abafe antes do tempo e dahora o fiapo de vida que Deus está servindo a esse jacarévelho...”

Foi só após o quarto ser iluminado à luz de algumasvelas que o mestre prosseguiu no seu depoimento do se-guinte modo: “O destrambolho da viagem entre a barra deVitória e a vila de Piúma, no repelão do rebordo sofrido pelo

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barco depois de quase dentro da baía da Capital, fez perdera paciência ao senhor Presidente que pôs tenção de seguira chão batido no desrumo de Vitória. Ficou ajustado napalavra de mandar ele pegar a bordo, pela matina do diaseguinte, o seu baú de viagem, trambolho de sua muitaestimação. Malmente o Presidente largou do navio, SimãoBoncarneiro, que outro azo não estava esperando, levan-tou os marinheiros contra meu mando numa amotinagemque me derreou do comando. Conforme sabe o Major, an-dava eu no padecimento dos eczemas o que muito medesensofria o corpo e a vontade. Tamanha desgraça que-brantou o resto sobrante de força na minha pessoa do quevaleu Boncarneiro para fazer do barco o que Satanás ditouem hora ruim: apoderou-se do leme e seduziu a tripulagemgritando a todos que se excluíssem de me prestar obediên-cia que isso seria o melhor que eles podiam fazer”.

O mestre falava por um pavio de voz. Denotava cansa-ço.

Interrompendo sua fala, indicou com inseguro dedo amoringa no parapeito da janela. Pediu-me: “Me dá uma bi-cada de água antes que me vá deste mundo para o outroonde o torto vira direito”.

Servi-lhe a água pedida numa caneca de latão, pousa-da perto da moringa. Depois de beber, prosseguiu: “Naque-la noite, me pondo rendido e incapaz, baixaram os amoti-

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nados à terra, se amulheraram com as prostiputas, come-ram e beberam à tripa forra e só deram de voltar na nas-cente do sol, carregando de rabicho uma vintena de escra-vos que Boncarneiro pegou nas palhoças dos vendilhões,na barra do rio Piúma. Quando o senhor Presidente piscouna praia, nos conformes do combinado, para pegar o seutrem de viagem, Boncarneiro deu ordem de largada e en-trou no mar afora no rumo desta vila de São Mateus. Masnão velejara no direito desse destino. Na vista da vila deGuarapari baixou em terra com um marujo para carrega-mento de provisão pois andava o barco bastantemente ca-recido de sustância de boca; voltaram com carne fresca eboa porção de aguardente. Ao despois, nova paragem foiarrumada na altura da vila de Nova Almeida cuja precisãodesconheço por já estar tomado das febres e amolecido davida. Digo que andaram muitos por lá e no meio de todos odesinfeliz Boncarneiro e empregaram nisso toda a noite emdiversão e folguras. Quando subiram a bordo, com alari-dos de moleques e de sacis, traziam de curropio uma curimãde maneira e jeito de índia amansada e trevessa; com aquelaBoncarneiro safou as vontades das carnes no seguimentoda viagem, provando o direito e o avesso do pecado. Nessedeboche e geral desgovernança, marujos bêbedos e escra-vos judiados de correia e ferros, se veio ter à barra do rioSão Mateus onde foi o barco fundeado. Para mal de minhas

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culpas, as febres davam destremores no corpo e eu delira-va a maior parte do tempo. Ali Simão fez baixar os escravosque vendeu nas fazendas do lugar. Foi uma desova de qua-se dois dias. Esvaziada a carga, Simão, que tinha partescom o Demo, maginou jeito de carregar mais negros paravender na Província da Bahia. Sabedor de que nosmargeados do rio São Mateus, na região do Sapezão, osescravos se ajuntavam nas matas numa tal de cabula paradescarrego de seus padecimentos, Simão fez o plano de irpegar eles na exata hora dos quebrantos. Assim tramando,levantou ferros e singrou com o barco pelas águas do rioSão Mateus até onde ordenava seu mau pensar. Quando anoite caiu, desceram os homens em terra e partiram norastro dos cabuleiros. Do que se passou não sei dar conta;sei o que ouvi dizer na língua dos que voltaram nos arreupiosdos medos, trotando que nem cavalos numa arretiradamaluca por dentro dos matos, cheios de um terror pânico,por serem assaltados dos caboclos cabuleiros, perdendotodos a coragem e Boncarneiro a disposição de apresaraquele povo desensofrido”.

Com um segundo gole d’água posto por mim quasediretamente nos beiços do mestre pôde ele continuar: “Comomeu corpo queimava de febre até o branco da alma,fraqueando minha saúde, não sei contar se todo o narradonão passou de delírio da doença numa confuseira de cabe-

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ça malsã. O crescente das febres valeu a Boncarneiro melargar aqui na vila de São Mateus pondo nos marinheiros omedo de pegar a fervura da moléstia. Na mesma madruga-da em que o barco sumiu rio abaixo fui largado nesta pen-são onde padeço minhas penas derradeiras nos conformesda vontade de Deus. Fui capitão do mar por onde andei;esperava ter o mar por sepultura, mas é aqui que estoumurchando. Eu que vivi, vou morrendo com um resto depaciência. A febre que me entra no corpo pelos pés vai ar-rancar minha alma pela boca. Mas, volto a contar: os mari-nheiros que me carregaram no oco de uma rede, tal qualdefunto, subiram a bordo na companhia de um fradecapucho e religioso mendicante que pediu passagem paraa Província da Bahia o qual inda me fez a caridade de rezaras orações das horas finais...”

O mestre fez uma pausa, cerrando os olhos.Julguei que tivesse finalizado mas logo retornou ele

com estas palavras cujo sentido só muito depois eu iriapenetrar nele, como vereis: “Fizeram do meu barco um cur-ral e a única novilha que se salva é o grumetinho...”

Como mais não dissesse, dando mostras de que nãoiria dizer por ter se calado mudamente, dele me despedi,persuadido de que nunca mais o veria, como deveras acon-teceu em virtude de haver perecido horas depois, só e es-quecido como um mísero jacaré velho.

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XXV – dei atendimento à comissão recebida

Meu retorno para a Capital se deu na mesma sumacaEstrela do Norte.

Durante a viagem recordava e ligava todos os fatos demeu conhecimento sobre o brigue Vinte e Nove de Maiodesde que largou da enseada de Piúma.

Os sucessos contados pelo mestre do barco combina-vam com o resto das informações que eu tinha obtido, dediligência em diligência, desde a povoação de Piúma onde opróprio alferes Anselmo cientificara do carregamento deescravos feito por Boncarneiro, informação que guardei paramim, nada dizendo ao senhor Presidente, como sabeis.

Uma vez na Capital, dei-lhe conhecimento, em relató-rio pormenorizado, do que havia averiguado.

O Presidente ouviu-me com atenção e determinou logoem seguida, sabendo que o brigue Vinte e Nove de Maiohavia seguido para as bandas do Norte, que se oficiasse àsautoridades da Província da Bahia sobre o passado da em-barcação e de sua gente. Demonstrava não haver perdido aesperança de recuperar o trem de viagem, nem perdido avontade de punir exemplarmente Boncarneiro.

Eu, por mim, achava cada vez mais remotas ambas ashipóteses, mas dei atendimento à comissão recebida e não

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só redigi os ofícios como me incumbi de que chegassem abom termo, e com segurança.

XXVI – minha incontível curiosidade

Passaram-se dois meses sem novidade alguma.Parecia que o infausto assunto havia fenecido para

sempre e nele não mais botava tento nem eu nem o senhorPresidente, temerosos de revivermos amargas lembranças.

Antes, porém, de findar aquele ano da graça de 1840,em meados do mês de dezembro, veio-me ter às mãos umamissiva, de cunho particular, endereçada pelo melífluosubdelegado da vila de Nova Almeida.

Por meio dela participava o mencionado subscritante,considerando que a notícia podia ser de alguma valia parameu uso e interesse, que Esmeraldina Especiosa havia re-gressado à companhia do professor Antunes.

Confesso que semelhante nova teve o dom de desper-tar minha incontível curiosidade por conhecer a históriadaquela mulher que seria também parte da história do bri-gue Vinte e Nove de Maio e do seu cínico contramestre.

Valendo-me de ocasião permitida pelos meus afaze-res, parti na direção da vila de Nova Almeida, antes do Na-tal daquele ano. Desta feita, muito mais interessado do que

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o próprio senhor Presidente a quem, aliás, nada revelei so-bre o que me fora escrito pelo subdelegado.

Durante o percurso, refrigerou-me o torpor da viagema cavalo a visão das puxadas de rede na pesca do arrastãopraticado à manjuba-sardinha que corusca em cardumes,nessa época do ano, nas praias compreendidas entre a po-voação de Manguinhos e a vila de Nova Almeida. O arras-tão é feito em lances únicos ou sucessivos, conforme dita-do pela quantidade do peixe que é arrastado para a terrano útero das negras redes deitadas ao mar por meio decanoas e puxadas depois através de fortes cabos de cipó. Opeixe assim matado é, posmente, limpo e salgado pelasmulheres, servindo de alimento para essas míseras popu-lações que remetem para Vitória as sobras das pescariasabundantes.

Quando cheguei à vila de Nova Almeida, foi-me fácilser recebido pelo professor Antunes a cuja casa me dirigipor ser conhecedor do caminho. Pretendia não constrangero mestre-escola não obstante desejar obter sua compreen-são para as perguntas que ansiava fazer a EsmeraldinaEspeciosa.

De início arredio e distante, como era de seu feitio, oprofessor acabou acedendo na conversa almejada, facili-tando-me falar à mulher, conquanto me fez assegurar sigi-lo sobre o que por mim fosse ouvido. Esse sigilo, sempre

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respeitei em vida daquele nobre servidor da civilização e sóagora quebro por já tê-lo falecido. XVII – estou dando as despedidas, curimã

Conforme já sabeis, a mulher tinha o tipo indígenados de sua raça, sobressaindo no rosto redondo, emoldu-rado por cabelos escorridos até os ombros, um belo e incrí-vel par de olhos verdes. De pele trigueira e estatura meã,revelava belas formas sob o vestido simples de algodão.Andava descalça, possuía pernas robustas, parecendo, po-rém, apática de vontade e afeita a fazer apenas o que lhefosse mandado. Não escondia, contudo, certa vivacidadeno olhar, lampejo de desejos encobertos capazes de se sol-tarem em momentos animais.

Foi esta gentiazinha quem me pôs a par da sorte dobrigue Vinte e Nove de Maio em sua derrota pelas águasdo litoral da Província da Bahia.

Contou ela que quando o barco largou da barra do rioSão Mateus, pegou o rumo dos Abrolhos onde estacou emsúbita calmaria. Naquelas paragens ficou a embarcação doisdias, valendo à tripulação, como alimento, o peixe pescadode bordo. Boncarneiro passou a maior parte do tempo bê-bado submetendo a mulher a descomposturas e outras

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vexações. Mesmo assim, era melhor sorte do que servir depasto a toda a marujada.

Quando afinal soprou vento favorável, o barco enfunouvelas e seguiu para a cidade de Salvador onde fundeou aolargo do porto. Era tenção de Boncarneiro se safar de bor-do tão logo chegassem a porto seguro, escapando aos de-satinos cometidos, sem que a mão das autoridades lhe ca-íssem sobre os ombros.

Durante a madrugada o barco ganhou o cais e, no olhocrescente do dia, Boncarneiro e os outros se puseram emterra e tomaram destino ignoto. Para maior segurança, Si-mão se serviu do hábito do frade capucho embarcado navila de São Mateus e dentro dele ganhou o mundo na figurade religioso.

Quanto a Esmeraldina Especiosa, a última vez que ocontramestre com ela falou foi antes do desembarque. Apon-tando para um baú de couro que jazia num dos cantos dobeliche, Boncarneiro disse: “Estou dando as despedidas,curimã. Pegue os trastes dentro desse baú, vende tudo nosmercados da Bahia; vende o baú também e volta pro seupovo ou faz a vida nas ladeiras da Baixa. Larga logo destecasco de embarcação pra mode não engordar carrapato nasenxovias. Das patacas da venda faz a serventia do seu gosto”.

Depois que Boncarneiro se foi, Esmeraldina seguiu-lhe o conselho; de grande utilidade lhe foi o ajutório presta-

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do na Bahia pelo frade capucho para o qual a mulher pe-gou novo hábito no Convento de São Francisco.

Na companhia desse frade se manteve a gentia até con-tratar passagem numa embarcação que fazia a cabotagementre a cidade de Salvador e a Corte com aportagem na cida-de de Vitória, onde Esmeraldina desembarcou depois de trêsdias de viagem, retornando à casa do mestre-escola.

Desse modo, outro não fora senão esse o triste fim dobaú de viagem do Presidente Oliveira: servindo de sustân-cia à barregã do professor Antunes que serviu ainda comsuas carnes ao contramestre Boncarneiro e, com o perdãodo mau pensar, talvez tenha servido ao próprio fradecapucho.

XXVIII – já que cá veio, cá fica

O professor ouviu com impassível silêncio a narrativada mulher, por certo de seu anterior conhecimento. Du-rante a exposição não demonstrou no semblante nenhumsinal de rancor ou mágoa, dando, ao contrário, mostras degrande conformação que depois reconheci tratar-se de sumasabedoria.

Quando Esmeraldina finalizou o discurso, o mestre-escola dirigiu-lhe esta ordem: “Apronta agora, mulher, um

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café preto, de bom paladar, para servir aqui ao nosso hós-pede. E me traga a infusão de mistura com açúcar mascavoe não com farinha de mandioca como é de seu péssimocostume e gosto”.

Enquanto a gentia saía para fazer o café, disse-me oprofessor, num particular de concha de orelha: “Ouça,Major: podia renegar essa índia bastarda não mais a rece-bendo no meu convívio. Mas não estou na idade de cuspirno prato que comi. O que aconteceu, agora já está morto.Não quero chegar ao fim chorando o princípio. Esmeraldina,se totalmente bem não me serve, com as ladinices de suaraça, também mal não me desserve; e, já que cá veio, cáfica. É este o meu pensar, Major”. O que me pareceu umaforma de muita sapiência, esse alto entendimento.

Quanto ao brigue Vinte e Nove de Maio, depois detudo o que tinha ouvido, acreditei que tivesse retornado aoseu legítimo senhor e dono, após abandonado peloestuporado Boncarneiro.

De minha parte nada disse ao Presidente da Provínciasobre o que pensava ter sido o capítulo final da história dobrigue e do furto do baú de viagem.

Assim deliberei para não lhe levar notícia que ia abatê-lo profundamente pelo valor que dava à recuperação dabagagem, surrupiada na atormentada viagem para assu-mir o governo da Província.

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XXIX - prestei-me à farsa

Meus préstimos ao Presidente Oliveira duraram até otérmino do seu período quando, no dia dois de abril de1841, passou em frente o governo da Província. Depois dis-so, conduzi-o até o cais de embarque, no dia seguinte ao deseu afastamento do cargo.

Tínhamos sabido que estava fundeada na baía umaembarcação com largada marcada para a cidade do Rio deJaneiro e o senhor Presidente quis aproveitar a ocasião parapartir sem tardança da Província da qual, consoante des-confio, não guardou boas recordações.

Quando nos aproximávamos do cais das Colunas, já oPresidente fazendo-se acompanhar de sua bagagem enfia-da dentro de um novo baú onde certamente estariam os“queridos Rousseau e Voltaire”, eis que ele estaca repenti-namente e, pondo-me com força as mãos nos ombros, ex-clama, erguendo o dedo: “Veja, Major, com os diabos! Ou-tro não é aquele senão o malfadado Vinte e Nove de Maioque lá está aportado a escarnecer de mim...”

O Presidente desfez a viagem sem titubeios. Preferiuaguardar a passagem de outro navio que não lhe recordas-se tantas decepções e tormentos para lhe servir de condu-ção à Capital do Império. “Qualquer outro, meu caro Ma-

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jor, qualquer outro; uma sumaca serve. Mas seria abusarda Providência Divina entrar numa embarcação que só des-venturas me trouxe. Para cá sim; para lá, não e não! Aquifico e aqui espero outra embarcação”.

Contudo, desconhecendo os sucessos finais que tinhamcercado o seu desaparecido trem de viagem e como desen-gano da vista é furar os olhos, o senhor Presidente fez-mesubir a bordo para perguntar do mestre se lá ainda se de-parava, porventura, o baú de sua propriedade.

E, como minha disposição era a de continuar escon-dendo a verdade, já de mim sabida, prestei-me à farsa.

Depois de uma troca de palavras com o mestre do bar-co, que não era nem sombra do malsinado Boncarneiro, doconvés mesmo acenei negativamente para o Presidente Oli-veira, postado no cais, em ansiosa expectativa, de fatiotanegra, chapéu coco, pince-nez e bengala com punho decastão. Nesse instante, veio-me à lembrança um de seusditos favoritos que tantas vezes lhe ouvi durante seu curtoperíodo de governo: “Nem tudo os subordinados informamaos seus superiores”.

Como o brigue ficasse ainda algumas horas aguardandocompletar carga para içar ferros, combinei com o mestre omeu embarque no lugar do Presidente depois de me asse-gurar que haveria parada na vila de Itapemirim para onderegressei e onde ao presente me deparo.

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E foi aquela a mais aprazível viagem de minha vida,com vento próprio, mar limpo e céu azul.

XXX – com grande embuçamento e falsidade

A bem da imperiosa necessidade de expressão da ver-dade, passo a narrar o conhecimento que travei, a bordodo brigue Vinte e Nove de Maio, com o grumete NicoQuerubinho.

Logo que o vi, retornaram-me à lembrança, num re-lampejo, as derradeiras palavras por mim ouvidas ao mes-tre Ovidino Serapião, no seu catre de morte, na vila de SãoMateus: “a única ovelha que se salva é o grumetinho”.

De fato, calhava o pitoresco nome - Nico Querubinho -à figura que correspondia a essa graça por se tratar demancebo de diminuto porte, cabelos encoscorados e caraoblonga de querubim, nela sobressaindo duas róseas bo-chechas, exprimindo no olhar a mansidão de sua índole.Possuía mãos pequenas e robustas, contudo bem dotadaspara grandes e diminutas tarefas, conforme vim depois adescobrir, sendo esta criatura de muito pouca loquacida-de. Conquistada, porém, sua confiança, tornava-se falastrãoe trejeitoso, dispondo-se a contar as experiências de suaexistência de marujo incipiente. Tinha ainda por hábito

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portar na cabeça um barrete que, de tão usado, o vermelhose fez verde, e que lhe fora dado pelo mestre OvidinoSerapião, como fiquei sabendo.

Foi-me este grumete de notável proveito para o conhe-cimento dos muitos sucessos havidos com o brigue Vinte eNove de Maio e sua tripulagem os quais, de outra forma,restariam para sempre ignorados.

Principiando por Simão Boncarneiro, sua contrataçãocomo contramestre teve lugar na cidade do Rio de Janeiro,pouco antes da embarcação zarpar para o Norte.

Dera-se isso, por ter o contramestre antecedente sidoconsumido por um ramo da febre maldita, provocando asúbita precisão de um substituto.

Como se impunha a substituição, sem alongadas tar-danças, porque era tempo de dar partida ao brigue, não sepôde alvitrar outra escolha senão a do malévolo Boncarneiro,primeiro que apareceu aos olhos do mestre comandanteOvidino Serapião.

Já esta aparição se fez com grande embuçamento efalsidade, dando-se o contratado por pessoa boa e obedien-te, sabendo ocultar, debaixo das pálpebras, as escuras in-tenções de que era possuidor, somente se descobrindo cla-ramente no curso da viagem.

Como sabeis, à medida que foi decorrendo a navega-ção, Boncarneiro foi fazendo valer sua insidiosa presença

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na embarcação, ganhando força e mandança sobre os ma-rinheiros. Para isso, valia-se do temor a todos infundidopor sua carantonha e corpanzil, aproveitando também odecaimento da saúde do mestre Ovidino, cercado pela gotae outras doenças.

O próprio Nico Querubinho, por sua natural docilidade,tornou-se vítima desse pérfido e desalmado contramestre,tendo sido, desgraçadamente, elegido como poço demolestamento e opressão, tanto que Boncarneiro dele pas-sou a abusar das formas mais ignóbeis e indizíveis.

Assim, o que o negro coração do contramestre ditava àsua vontade maligna foi, pouco a pouco, se revelando me-diante sucessivas demonstrações de malas-artes como odesatrelamento dos mastaréus que rebentaram convés abai-xo e outras quejandas vilezas, culminando no motim quelevantou a marinheirada contra o mestre do brigue.

Foi também Boncarneiro quem disseminou entre osmarujos a invencionice de que dentro do baú de viagem doPresidente Oliveira jazia o mapa de precioso tesouro, vistoque o Presidente tinha por costume consultar certa cartamarítima reproduzindo o litoral da Província do EspíritoSanto. Esta circunstância prestou-se para o corrompidocontramestre dar ao mapa outro valor e outro significado,bem diverso do verdadeiro.

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Desse modo, quando o nefando contramestre encabe-çou o motim apoderando-se do mando da embarcação, umde seus primeiros atos foi violar o baú de viagem do Presi-dente Oliveira, dali retirando o mapa tantas vezes consul-tado pelo ilustrado passageiro.

Não encontrando nele o roteiro para o descobrimentodo que imaginara, ainda assim susteve a tripulagem nailusão da falsa promessa de grandiosas riquezas e engran-decimentos em suas pobres fazendas quando dessem como tesouro que no mapa dizia se conter.

Somente a Querubinho, em noite de libertínio e babosabeberagem, Simão abriu sua mentira, enchendo de terrora alma do infeliz grumete com a ameaça de lhe decotar alíngua caso revelasse aquele segredo, tornado daí em dian-te pesado e terrível para tão mofina criatura.

XXXI – botando o negócio debaixo de intimidação

Valendo-me de Nico Querubinho, obtive a informaçãode que o brigue Vinte e Nove de Maio sofreu imprevistacalmaria no litoral da Província do Espírito Santo, bem de-fronte da colina onde fica a casa do alferes Pedro João, ogaiteiro, a meia légua da localidade de Meaípe.

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Estando a embarcação acalmada perto da costa, ouvi-ram os de bordo os longos mugidos dos enormes gadoscriados pelo alferes. Isso fez brotar no espírito malfazejo deSimão, a ideia de irem alguns marujos à terra, entre eles ocontramestre e Querubinho, para se abastecerem de carnede novilha com o que fartariam as tripas enquanto durasseo pasmo do vento.

Concertado esse intento, desceram um escaler e ga-nharam a praia indo até a casa do gaiteiro. Na subida domorro, Simão, tendo se distraído, pisou um verdejante sarçalde vivas urtigas o que lhe causou grande ardência na partebaixa da perna, ficando seu pé bastante sofrido.

Blasfemando pelos cotovelos, Boncarneiro interrom-peu a marcha e pondo à mostra seu vergonhoso pendúculo,urinou sobre a parte afetada para, com esta mijada mezi-nha, fazer sarar a queimação das folhas.

Enquanto o líquido lhe escorria pelos dedos do pé, ven-do estampada admiração na cara de Ouerubinho, excla-mou: “quem o seu estima, mija em cima”, tendo o grumeteaprendido ali mais essa lição.

Chegados na casa do gaiteiro, pediram pouso e, semmeias palavras, disseram ao que iam, revelando gosto einteresse numa novilha saltadeira, botando o negócio de-baixo de intimidação que submeteu o amedrontado alfe-res.

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Foi então sacrificado o tenro animal de noviças arrobascujas partes foram levadas assadas para o brigue.

Essa novilha foi trocada com o alferes por uma magní-fica tartaruga pescada por alguns marujos no caminho paraa praia, os quais entraram n’água e viraram a tartaruga depatas para cima que consiste na forma de se pescar essepeixe, como diziam os antigos.

Consoante supus, foi das carnes brancas da tartarugaque o alferes cozinhou a sopa que serviu ao Presidente Oli-veira quando este se hospedou em sua casa e que tantoincômodo lhe acabou causando.

Ao se retirarem da morada do alferes, Nico Querubinhoquis carregar um grande papagaio ao qual, no pouco tem-po que lá passou, havia industriado a falar seu nome, coisaque a ave passou a fazer o tempo todo. Neste intento foi,porém, impedido pelo alferes que nutria pelo pássaro cor-dial estimação.

Boncarneiro, que descia o morro na direitura da praia,vendo o que se passava, berrou para Querubinho: “Larga olouro, grumete, pra mode não virar galinha ao molho par-do”, o quanto bastou para Nico desistir da ideia e seguirencosta abaixo de vazias mãos.

Em suas costas foi ouvindo o grito seco da ave, lhechamando NICO, do mesmo modo como seria depois ouvi-do pelo Presidente Machado de Oliveira quando se hospe-

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dou na casa do alferes Pedro João, conforme descrito an-tes. Com a diferença que o alferes ludibriou o Presidentedizendo ser aquele nome, gritado pelo papagaio, o apelidode um boi velho e morto, sendo veramente o nome dogrumete.

De sua parte, Boncarneiro havia se apoderado dumbarril de aguardente fabricada pelo alferes a qual fez a suaalegrança durante o resto da viagem e se virou em tormen-to geral dos que provaram dessa aguardente somente osefeitos das desmesuradas embriaguezes do contramestre.

Um desses foi o infeliz Nico Querubinho, pois, naquelamesma noite, tendo Boncarneiro se empanturrado de novi-lha e aguardente e perdido o tino do mundo, violou comseu sujo carnegão o pobre grumete, dele usando como no-vilho vivo.

Nasceu deste abuso abominável, a mais abominávelalcunha dada daí em diante ao violado grumetinho que fi-cou tachado de Nico Novilha.

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XXXII – um espetáculo torpe e contristador

Também me foi dito pelo mesmo informante que naparagem feita na vila de Nova Almeida, após ter se avistadocom o professor Antunes, Boncarneiro não só se

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assenhoreou da gentia Esmeraldina Especiosa, como seapossou, à saída, sub-repticiamente, dum imenso gatoamarelo que dormitava na porta da casa do mestre-escola.

Esse animal foi transformado em objeto a mais da ju-diação de Boncarneiro, porquanto o contramestre contraiuo repulsivo costume, cheio de extrema perversidade, de fa-zer subir do porão ao convés os negros cativos, recolhidosem Piúma com cordas e grilhões, aos quais obrigava, de-baixo de ameaças de açoites e cutelo, a introduzirem o dedono ânus do gato.

Travava-se então uma peleja atroz entre o felino e aque-las desgraçadas criaturas que se viam fundamente arra-nhadas e escalavradas em suas sangrentas carnes enquantoo gato miava desvairadamente e se debatia por todos oslados, de cada pata fazendo duas.

Tamanha malvadeza chegou a proporções tais que umdesses desgraçados negros teve o olho vazado pelas patasdo gato, motivo maior de folgança do contramestre em meioa formidáveis gargalhadas de prazer demente.

Aquele pobre animal, que para se safar de tanta per-versidade acabou se lançando nas águas do mar, era ain-da, por ordem do Boncarneiro, içado pelo rabo no mastromestre da embarcação toda vez que Simão entrava nos ciosdepravados com Esmeraldina Especiosa.

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Como isso geralmente acontecia de noite, sob as résti-as de luz das lamparinas, tinha-se um espetáculo torpe econtristador: o felino miando desesperadamente no alto domastro enquanto Boncarneiro cobria a mulher em plenoconvés, submetendo-a a toda sorte de aberrações diantedos olhos gulosos de cupidez da marujada.

XXXIII – em meio a opróbrios e injúrias

Outro que não ficou infenso às malvadezas do contra-mestre foi o frade mendicante subido a bordo na vila deSão Mateus.

Havendo ele presenciado as perversidades de Simão ecom elas justamente se indignado, foi sucessivas vezes ofen-dido de forma singular e agravosa. Numa das vezes,Boncarneiro lhe despiu a roupeta até os calções e, susten-do-o pela correia que o cingia na cintura, o mandou pôramarrado no mastro com os pés no ar; e, dando-lhe algu-mas pancadas, lhe dizia que declinasse os salmos em altavoz para conforto de todos.

E, como o frade assim por assim suspenso e humilhadonão o quisesse fazer, Boncarneiro o açoutava nas partes ocul-tas por vergonhosas e o largava pendido da correia, restan-do o pobre frade preso no mastro-mor a noite por inteira emlugar do infeliz gato amarelo perecido no Oceano.

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Num espetáculo derradeiro, incontendo sua pérfidasatisfação, dizia Simão, em meio a opróbrios e injúrias,apontando o frade erguido no ar: “à noite, todos os padressão pardos”.

XXXIV – ergueu-se em seus imundos pés

Mas isso foi da metade do caminho, apenas da metadedo caminho para a frente.

Antecedentemente, quando o frade subiu a bordo, ig-norava o gênio maligno de Boncarneiro que fingiu ao religi-oso uma falsa devoção por tê-lo a bordo.

Esse despistamento calou fundo na alma do religioso,colhido e ludibriado em sua boa fé, pensando ter tido afortuna de ingressar na Barca do Paraíso.

Primeiramente, Boncarneiro se fez de devoto e falsa-mente humilde, dizendo ser o Bom Deus quem mandou ofrade para maior recolhimento de todos e consolação de suasalmas tão desarvoradas pelos tropeços da viagem como opróprio brigue. Rogou-lhe, então, que benzesse o navio, fa-zendo andar pelo tabuado do convés uma pequena procis-são de marujos com ares de muito recatamento e pieguice.

Em seguida, suplicou ao frei que abençoasse seu ca-samento com Esmeraldina Especiosa, prática que foi de

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muito gosto e júbilo do sacerdote que tomava a sério o queBoncarneiro levava em puro deboche.

Depois, Simão reuniu os marujos para que ouvissemem concurso a palavra do frade, escutando todos aquela vozcom representado silêncio e sinais de admiração, sobre to-dos demonstrando o contramestre maior assenso e devoção.

No meio da peroração, porém, Boncarneiro ergueu-seem seus imundos pés de viciosos pecados e exclamou: “Ago-ra chega de reza, padre. O casamento está feito, vou meteruma coisa dentro da outra na fornicação do marido e damulher. E com a santa bênção de Deus”.

E dizendo essas palavras malsãs, exibiu roupa afora ede entre as pernas, seu vivo e teso vergalho apontado paraEsmeraldina Especiosa, e já conhecido de Nico Querubinho,revelando ao sacerdote, por esse pecaminoso gesto, todo ogênio pernicioso de que era portador.

Feito o quê, gritou que todos tivessem uma caneca deaguardente e tanto como todos, aquele mesmo frade que senegava a engolir a bebida.

Tomado de ódio possesso, Simão obrigou o religioso,debaixo de ameaças e aos gritos de “bebe, saco de bosta” ainverter a bebida garganta adentro; e o fez com tamanho ebrutal empenho, e tão repetidas vezes, que o franciscano,em breve tempo, desabou o corpanzil borracho no assoalhodo convés e adormeceu em despegado sono.

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Ali ficou imenso tempo. E, como sobreviesse copiosochuvaréu noturno, acordou ele vendo-se encharcado deágua da chuva tanto quanto de aguardente, sendo levadoao beliche com enorme dificuldade.

Foi Nico Querubinho quem se prestou a esse edificantetrabalho, obrando com grande esforço devido ao volume dofrade cujo peso estorvava o transbordo até o catre onde odepositou Querubinho, descalçando as sandálias dos seusenormes pés de redondos dedos.

XXXV – indecentemente descobrindo as coxas

Porque é mister de tudo dar bem e boa conta nesteexpositório, passo a falar do frade embarcado no brigueVinte e Nove de Maio, mui meu conhecido por haver porsemanas e meses antecedentes habitado a Província doEspírito Santo e deambulado missões religiosas na vila deItapemirim que, como sabeis, é o meu lugar de nascimentoe morada.

Esse frade, que atendia pelo nome de Catarino Broa deSanta Maria, era um italiano de avantajada estatura, vindoda Bahia e chegado na Província por volta de 1838 com opropósito de praticar as missões indígenas. Foi logo incum-bido de predicar na vila de Itapemirim e seus arredores.

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Como nessas partes poucos índios havia para assistir,o frade deu-se a outras obrigações, tendo por força delas seenredado em estorvos que acabaram por ser a razão de suasaída da Província alguns dias antes da chegada do Presi-dente Oliveira.

Da minha parte, a primeira vez que botei os olhos nes-se mendicante foi para atender uma sua estranha solicita-ção: em virtude da minha manifesta condição de militar depatente, pediu-me ele que passasse recado e apelo ao en-tão Presidente Provincial para baixar um Bando proibindoàs mulheres índias da vila de Itapemirim de se assentaremnos bancos da igreja, durante a missa, com os pés e pernasestendidas para diante, indecentemente descobrindo ascoxas roliças e cheias. Clamava ainda o frei contra odesrecato dessas índias trazerem uma camisa pouco com-prida, sem outro algum vestido que as orne e alinhe com adevida compostura na forma que praticam todas as maismulheres civilizadas.

Deu-me particular ciência de que ele já tinha por si mes-mo procurado mudar esse mau e feio costume dessas índiasignorantes, castigando as culpadas com a penitência de ajo-elharem sobre grãos de areia. Mas essa prática não fora bas-tante para acabar com o pernicioso mau hábito que ao me-nor descuido logo se repetia, sendo cabível, segundo enten-dia o frade, fixar-se em Bando uma pena pecuniária quecorrigisse esse feio costume com maior exemplo e rigor.

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Queria também frei Catarino, através de requerimentoque eu me dignasse encaminhar, que o mesmo Bando ououtro que baixado fosse, tornasse defesa a ida à missa demulheres no tempo de mênstruo pelo insuportável odor queexalam nesses dias, somente notado quando estão dentrodo recinto da igreja, sendo impossível saber donde provém.

Com muita dificuldade e por instantes palavras, logreiconvencê-lo de tão absurdas quão descabidas pretensões. Masnão o pude demover de continuar recorrendo aos grãos deareia para a punição genuflectória das pobres e distraídasíndias que deixavam entrever o recôndito de suas roliças co-xas esticando-as para a dianteira durante a santa missa. XXXVI – foi o religioso angariando donativos

De outra feita, veio-me o frade à procura para o ato deabrir uma subscrição e assinar-me o primeiro com gordaquantia que, por semelhante gesto, servisse de exemplo parauns e outros do mesmo modo cooperarem na edificação deum templo no sítio denominado Taquara do Alto, perto davila de Itapemirim.

Dei ao religioso uma econômica subscrição por não anegar de todo, como era de meu desejo mas não recomen-dava a boa educação, observando a máxima, ouvida alhu-

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res, segundo a qual “esmoler franciscano não descansaenquanto não enche a batina e a gorda pança”.

Com afincada insistência e manifesta persuasão, con-seguiu o frade outras tantas doações de moradores do lu-gar e até da vila de Benevente. Os que não tinham pecúniaentraram com outros ajutórios, como escravos e outras boascoisas, que foram empregados na construção da igreja.

À porfia de sermões e visitas domiciliares, foi o religio-so angariando donativos e adeptos para o fazimento da igrejade Nossa Senhora da Consolação, louvando com sua pode-rosa voz os muitos que davam colaboração e invectivandocom duras palavras de admoestação os poucos que regate-avam a ajuda requerida.

Um desses, o coronel Bento Santinho Madrigal, ho-mem de nenhumas preces, que destemia a Deus e desaca-tava a Igreja, tendo se obstado em concorrer com seus es-cravos para a construção do templo, foi açoitado pelas con-tundentes palavras do frei Catarino que o comparou a Sa-tanás e o tachou de excomungado e herege.

Este fato muito contrariou o coronel, quando lhe reve-laram o ocorrido, menos pelas palavras de excomunhão eheresia, às quais não dava o mínimo valor pelo seu naturalincréu, mas sobretudo por se ver publicamente comparadoa Satanás do qual o coronel não admitia o calo dos chifres.

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“Esse fradeco linguarudo, com o comparar-me aSantanás (como assim falava o coronel), atribuiu-me cor-nos na testa. Anda bestando ele e esquecendo que quem otouro enfeza, a chifrada despreza” - foram as atrevidas pa-lavras que ouvi direitas do coronel Santinho Madrigalrespeitante ao que estava sucedendo.

E, como era ele homem de índole urtigosa e de dura lín-gua de cinzel, previ, pelo enunciado desta sentença, ostrevoeiros que se armavam sobre a pacatez da vila deItapemirim, na acendida querela entre o coronel e o franciscano,se a eles não se pusesse paradeiro, prestantemente.

XXXVII – comeu fogo a obra assim alevantada

E como isso não ocorreu prestantemente, os trevoeirosacabaram sendo relacionados com o malsinado incêndioque acometeu a igreja de Taquara do Alto cujo verdadeiroprincípio persiste até hoje no ignoto, embora testemunhosde oitiva tenham feito correr o dito de que o fogo ardeu amando do coronel.

O fato é que se achava o templo já bastante encorpa-do, com suas paredes elevadas e acrescentado de portas ejanelas, restando por concluir a torre do sino e a pinturadas paredes, tudo muito cuidado do zelo do frade capucho.

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De um dia para o outro, em meio a uma noite de tem-pestade e coriscos, comeu o fogo a obra assim alevantada,reduzindo tudo ao estado antecedente, sem que soubes-sem as pessoas os começos do fogaréu. Atribuíram uns, auma centelha candente que varou dos céus, sacrificando,pela vontade de Deus, o templo em ereção; ao que contra-punham muitos que, se assim fora, muito seria de admirarque a vontade divina quisesse extinguir sua própria casa oque lhes parecia impossível.

Por isso, publicavam à socapa que aquele mau pedaçoque sobre a igreja se abateu fora obra de mãos malquerentesde cooperarem na construção do templo. E viam todos nes-se insinuado sem assinatura, e dentre todos o frei CatarinoBroa, um atentado tramado e armado pelo coronel SantinhoMadrigal. Mas só à socapa falavam porque nem um tinhacoragem de passar por certidão o dito dessa insinuação,gerada e nascida da suspeita, mas sem certeza alguma.

XXXVIII – onde raia o dia em folias noturnas

Não poucas semanas tinham se passado depois que otemplo ardeu em chamas e labaredas, e frei Catarino Broarecebeu ordem de deixar a Província, retomando para aBahia.

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A viagem se fez numa sumaca até a vila de São Mateusonde acabou embarcado, como já sabeis, no brigue Vinte eNove de Maio.

Muito no particular, guardo a certeza de que a partidado religioso teve relação com a epístola que o coronelSantinho Madrigal dirigiu ao Presidente da Província, pre-decessor de Machado de Oliveira.

Dos termos e tom dessa missiva, apesar de com elesnão concordar, posso dar exato conhecimento porque, sen-do o coronel muitíssimo instruído e suficiente, mas de or-tografia caótica, fui o seu manuscrevente, a rogo do assi-nante. E, tendo conservado o fac simile dela, por simplesmania de assim fazer, posso transcrevê-la com fidelidade.Dizia:

“Exmo. Sr.Anda aqui por estas partes um frade capucho de nome

Catarino Broa de Santa Maria cujo, sob o pretexto de cons-truir uma igreja no sítio denominado Taquara do Alto, vembuscando o socorro da bolsa de néscios fazendeiros e oemprego de escravos na edificação do templo em lugar ermoe perdido nos matos, impróprio para todo concurso doshomens.

Como não me submeti a dar a cooperação pedida, tor-nou-se minha pessoa pasto das ferinas críticas e apodos

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desse frade capucho. Tais dísticos não me amofinariam oespírito se eles não dessem nascimento, como deram, aseguidos atos de vandalismo praticados pelas pessoas cré-dulas no padre contra minha fazenda e contra a criação ecultura nela mantidos.

E havendo por esses dias ardido a igreja em meio aum fogo madrugueiro numa manhã de muita chuva e tro-voada, possivelmente pelo despencamento de um raio so-bre ela, a qual era toscamente constituída, foi-me dito queo frade capucho me atribuíra a autoria do incêndio, detraçãoaleivosa e injusta por desfundada.

Isto, Exmo. Senhor, é ser prelado, isto é ser pai, isto éser pastor?

Pelo sim, pelo não, avisei pessoalmente ao frei Broadas funestas consequências que suas levianas palavraspoderão ocasionar no moral e no pessoal pois não respon-do pelo gênio apoquentado que no explodir me arrepia ospelos da barba.

Rogo, portanto, a V. Exa. fazer uso do poder civil a seualcance para o afastamento desse frade capadócio, exilan-do-o desta vila de Itapemirim para tranquilidade dos po-vos.

Ademais, esse capucho mui pouco virtuoso é dado afornicações, sendo público coabitar com duas concubinasem diferentes casas, onde raia o dia em folias noturnas.

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Numa dessas casas, salta à vista, podendo as pessoasde fora ver balançando no varal pela baixa altura dos mu-ros do pomar, tanto a batina como os calções do frade quan-do postos a secar.

Estas cousas a mim não me escandalizam porque sem-pre enxerguei, debaixo da batina desse capelão femeeiro, ohomem nela pendurado. Mas, considerando representar talcomportamento, grave ofensa ao decoro público, partindode quem parte, é melhor que torne esse sacerdote para acidade de Salvador, a qual abunda em frades amancebados,vivendo em casas próprias sem diferença alguma de secu-lares.

Confiante em que V. Exa. determinará o que for de pro-veito para aliviar esta vila da presença desse sacerdote tãopouco pastor, exceto pastor para gozosas tosquias, assino-me, Respeitoso e Obrigado. Coronel Bento SantinhoMadrigal”.

XXXIX – pondo a arder o seco e o verde

Como homem afeito à verdade e desejando dar nesterelato a fidelíssima versão dos sucessos havidos, não pos-so deixar de transcrever o conteúdo de outra carta, atinenteà pessoa do frei Catarino Broa de Santa Maria.

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Quis a sorte que ela me tocasse às mãos enquantoservia como Major adjudicado ao Presidente Oliveira que arecebeu em lugar do seu antecessor, a quem fora dirigida.Dizia o seguinte:

“Exmo. Sr. Presidente:Sensibilizado pela maneira rigorosa com que V. Exa. tra-

tou o Frei Catarino Broa de Santa Maria ordenando sua saídadessa Província, me foi necessário lançar mão da pena paradar a conhecer a V. Exa. todo o pesar de que sou invadido.

Antes mesmo de principiar a falar, eu suspiro e choroporque as garras da injustiça se abateram sobre esse bome justo religioso, ativo pregador e do melhor procedimento.

A presença de nosso amado irmão era verdadeira luzpara salvação dos que afundavam no atoleiro da perdição edo pecado. Ele, com a intenção e fim de sempre mais emais servir ao Deus Todo Poderoso esteve dando impulso àedificação de um templo em louvor de Nossa Senhora daConsolação, em um sítio ínvio e quase ignoto nessa Provín-cia, com plena cooperação de um numerosíssimo povo.

Com piedosa satisfação, dispuseram-se todos em da-rem a sua importantíssima ajuda, uns com subscrições eoutros com escravos e mais coisas úteis.

No mesmo tempo em que o irmão Frei Catarino Broade Santa Maria assim diligenciava, o Danado Inimigo ins-

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pirou muitos e mal intencionados homens para estorvar edestruir obra tão edificante e conveniente. Não faltaramentão aqueles que, cegos ao muito fruito que o Frei Catarinotinha feito, pintaram-no com as cores mais pretas e feias,denegrindo sua sacerdotal conduta, com palavras ardidasde vinagre e fel.

E o mais deplorável é que, passando da palavra à açãoos que assim tramaram e injuriaram, encostaram fogo aotemplo em construção, pondo a arder o seco e o verde, fa-zendo-o tocha na calada da noite, sacrificando o esforçadotrabalho de sua fundação.

Perdeu-se, assim, no fumego e nas chamas o duro la-bor de muitos meses.

E, diante de semelhante caso, o que faz V.Exa.? Aplicaa Justiça apurando os responsáveis à vista do ocorrido?

Não me consta, Exmo. Senhor, que assim tenha sido.Antes, o que me consta é que V.Exa. apressou providênciaspara ordenar a partida do missionário Frei Catarino Broade Santa Maria, declarando sua presença na Província no-civa à tranquilidade pública.

Muito respeito a V.Exa. não só na qualidade de dignoPresidente dessa Província, mas ainda como homem parti-cular. Porém, movido talvez pelo sopro da intriga, V.Exa. detodo menoscabou o caráter sacerdotal e a pia obra execu-tada pelo humilde servo de Deus, o virtuoso Frei Catarino

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Broa de Santa Maria, ferindo-o injustamente com pena equi-valente ao degredo, sem permissa defesa.

Animado de cabível sentimento de revolta, sinto ter delhe dizer o que nesta carta foi dito. Seria calar a minhaconsciência de religioso e servo do Senhor, se assim não ofizera.

Curvado perante o Padre Eterno, oro e suplico por V.Exa. sempre e sempre em minhas orações. Deus guarde aV.Exa. Frei Damião de Santa Catarina, Guardião do Con-vento de São Francisco. Bahia”.

XL – armou com sua revolta um grande ruído

É certo que seria exagero reduzir a causa da partidado frei Catarino Broa de Santa Maria unicamente aos efei-tos da carta do coronel Santinho Madrigal para o Presiden-te da Província.

Quais fossem as outras razões não repito eu por nãoser comprido. Só digo que outra houve que se ajuntou àsdemais e, sabida ela, não se pode deixar de perceber o pesode sua influência na determinação do Presidente da Pro-víncia de despachar o frade de volta para a Bahia.

E essa razão foi esta: havendo aparecido na vila deItapemirim quatro índios portando papéis falsos e que se

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diziam ser vereadores da Câmara de São João da Barra,Província do Rio de Janeiro, neles e nas palavras que dis-seram encontrou verdade frei Catarino Broa, partindo nasua companhia para a cidade de Vitória com o fito de supli-car o amparo do Presidente da Província.

Levados diante do Sr. Presidente, juntamente com ofrade que requeria essa proteção, viu-se que falsa era aportaria que traziam consigo tanto como se supuseram poreles furtados um maço incompleto de leis de encardidasfolhas e um antigo livro de registro da vila de São João daBarra que também traziam e ficaram na Secretaria do Go-verno.

Foram os índios presos e remetidos para a Corte e,como apesar de descoberta sua falsidade nela não creu ofrade, criticando a ordem de prisão, foi o religioso dura-mente admoestado pelo Presidente Provincial e ordenado aregressar a seus ministeres na vila de Itapemirim.

Ali chegando, contrafeito e ofendido, frei Catarino Broaarmou com sua revolta um grande ruído, de todos ouvidona primeira missa de domingo, condenando a prisão dosíndios aos quais chamou de “míseras e indefesas criatu-ras”, dando-as como “vítimas da injustiça dos homens, tãoflagelante quanto as penas do Inferno”.

Este acontecimento assaz desgostou o Sr. PresidenteProvincial quando lhe levaram o testemunho do ocorrido.

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A pessoa que prestou de informante foi um sujeito corde formiga, nem forte nem fraco, de pés voltados para den-tro e de avançada calvície e esquivos olhos de enguia, exi-bindo negro bigode como se fosse rolo de fumo, conhecidointrigante de caráter escuro que se aprazia em urdirtramoias, obrando com grande satisfação de sua alma en-durecida e miúda.

Esse homem, a quem vim a conhecer muito de pertono desempenho de minhas funções junto ao PresidenteMachado de Oliveira, era deputado à Assembleia Provinci-al e sucedeu que estava transitando pela vila de Itapemirimquando frei Catarino proferiu a prédica em favor dos falsosíndios na missa dominical.

Tendo ouvido ao frade as palavras por ele ditas, emhora de desabafo, o esquivoso deputado guardou-as nosescaninhos das orelhas e as formigou por inteiro ao Presi-dente da Província, requerendo por escrito medidas puniti-vas e abertura de devassa.

Querendo o destino que me caísse sob os olhos esserequerimento, pude enxergar o fundo da desalma dessemesquinho intrigante. Primeiro, por ter colocado na bocado frei Catarino palavras de pesada insolência contra apessoa do Presidente Provincial as quais eram mais falsasque os falsos papéis dos quatro índios ditos vereadores;segundo, por ter atribuído ao sacerdote o mau propósito de

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querer dar socorro aos índios para haver deles a confiançae os levar a trabalhar num sítio que o frade pretendia ad-quirir na vila de Itapemirim onde ia desenvolver roças decana e casa de fabrico de aguardente, já tendo encomenda-do as engenhocas para pô-la em funcionamento.

Tais detrações eram coisas nunca sabidas e jamaisouvidas nesta vila de Itapemirim, soendo ser maravilhosamentira a respeito do sacerdote, brotada unicamente dadoentia e fantasiosa mente daquele embusteiro

Reputam-se, portanto, estes episódios, reunidos aosoutros antes narrados, como sementes da mesma fava, for-mando, grão a grão, as razões da saída do frei CatarinoBroa de Santa Maria da Província do Espírito Santo, pou-cos dias antes de ter o Presidente Machado de Oliveira as-sumido o Governo. XLI – uma cena feia e terrível

Voltemos ao relato do grumete Nico Querubinho sobreos derradeiros navegares do brigue Vinte e Nove de Maioem sua derrota para a cidade de Salvador.

Não soube o grumete precisar se foi no rioJequitinhonha ou no Pardo ou em outra qualquer bocad’água nas partes meridionais da Província da Bahia; o fato

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é que fundeou o brigue, em uma delas, depois de romperpelo rio um quarto de légua adentro, e o bastante para darresguardo à embarcação na passagem da noite que caíapesadamente. E nessa paragem, assim elegida, ficaram evenceram aquele pernoite.

Antes do nascer do sol, no rompimento das primíciasalvorais, foram os de bordo abruptamente despertados porconfuso alarido de vozes que se levantaram da terra, namargem próxima do rio, brotadas de dentro dos cerradosmatos, em local impenetrável ao alcance dos olhos. De mis-tura com o vozerio alevantado, ecoaram alguns seguidosestampidos de arma de fogo, demonstrando a gravidade detão grande tumulto.

O espanto dos marujos casou-se com o de Boncarneiroque não resistiu ao desejo de ir à terra averiguar a origemdaquele imprevisto sobressalto, mas que já havia cessadosubitamente, mergulhando o lugar em suspeitoso silêncio.

Movido desta curiosidade, Simão armou um decididotroço de cinco homens, enfiou ele próprio uma pistola prontano correião que lhe cingia a cintura e atingiram em concur-so e num escaler a margem do rio, arrastando Querubinhopela fralda da camisa que de outra forma não teria ido.

O desembarque se deu num ponto propício que acu-sava indícios de ser antigo ancoradouro, dando imediatoacesso a uma desimpedida picada, aberta no meio dasmatas por onde penetraram.

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Depois de curta caminhada, defrontou-se espaçosaclareira na qual sobressaía modesta casa de fazenda,construída de barro e coberta de telhas, vendo-se ao seuredor algumas plantações de mandioca e uma pequena fá-brica para produção de farinha.

Não foi mister maior esforço para se descobrir a causados tristes e desconcertados gritos ouvidos do brigue: umacena feia e terrível saltou a todos, composta de quatro cor-pos humanos varados por setas, os quais jaziam no alpen-dre da casa, sendo três de negros e outro de um homempardo, quase expirando, e que logo depois morreu num lagode sangue.

Aquele que desta triste forma expirou diante dos olhosapavorados de Querubinho, tinha na mão uma pistola daqual supostamente partiram os tiros disparados contra osíndios que audazmente atacaram a fazenda naquela rubramadrugada.

Alguns dos marinheiros, tocados de indominável in-dignação por aquele revoltante estrago, manifestaram in-tenção de partir com suas armas no encalço dos feros índi-os assassinos. Mas retrogradaram logo em seus apressa-dos passos quando ouviram, dito pela voz de Simão, o se-guinte aviso: “Volta tudo pro barco; e volta logo, sem des-pejar nos índios a valentia da vingança. Essa guerra não épra marujos e a desgraceira desse medonho crime podeacabar caindo nos nossos cangotes”.

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Ouvindo a advertência, aqueles mais afoitos que jápartiam nas pegadas dos verdadeiros culpados, acharamsenso nas palavras do contramestre, e voltaram e se ajun-taram e rumaram todos para o brigue. E na pressa de seafastarem daquele lugar amaldiçoado, abandonaraminsepultos os corpos trespassados pelo gentio.

Pela mesma picada por onde vieram, por elaretornaram.

Logo, porém, na primeira volta desse estreito caminhopulou de repente de dentro do mato, surpreendendo a to-dos, um chinês com as mãos erguidas que pareciaestranhíssimo bicho nunca visto por estar revestido de fa-rinha de mandioca da cabeça aos pés. E, desse modo,recoberto de farelos parecia mais lívido do que já estavalívido de imenso pavor.

Expressando-se em péssimo português, pediu custó-dia, fazendo acompanhar seu petitório de sucessivas cur-vaturas feitas na frente de Simão Boncarneiro, que aquies-ceu em o levar para bordo.

Era esse chinês empregado na fazenda, cujos proprie-tários estavam ausentes, tendo escapado à chacina do gentiocom o se ocultar dentro de um escondido depósito de fari-nha de mandioca donde saiu para rogar a proteção deBoncarneiro.

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Juntou-se, pois, aquela bizarra figura à gente do bri-gue. Ao recebê-lo, proferiu Simão a seguinte sentença: “Nobarco já tem um padre e uma índia e vai também umanovilha (referindo-se a Querubinho); pode caber agora umchina”. E os que ouviram essas sarcásticas palavras e queeram os que tinham visto o terrível insulto do gentio abri-ram-se em rasgados risos, esquecidos de que, pouco antes,tinham deixado ao tempo, por pura covardia e com a des-graça muito pouco sentidos, quatro insepultos defuntos nafazenda assaltada.

XLII – coisa de alto espanto e grande sacrilégio

Com vento maneiro a embarcação se avizinhou nessemesmo dia, tão mal começado, da barra da vila de Ilhéusonde escapou o contramestre Simão Boncarneiro de come-ter condenável desatino, coisa de alto espanto e grandesacrilégio: sendo a quase noite de um sábado e sabendoBoncarneiro da existência de ricas alfaias na igreja de Nos-sa Senhora da Vitória, tramou o plano de a irem saquear.

Reuniu um punhado de homens tendo à frente o ma-rinheiro Canhoto, indivíduo matreiro e de natureza dissi-mulada, vestiu ele próprio a indumentária retirada ao fra-de para, por esse meio, melhor ludibriar a boa gente da vilae ditou ordens de baixar um esquife.

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Quando andavam todos nestes preparatórios derapinagem, aproximou-se do brigue uma embarcação debandeira inglesa, empregada na repressão do tráfico ne-greiro, demonstrando, por sinais, intentos de abordagem.

Antecipando-se a tão inoportuno propósito que seriasua desgraça e perdição, em virtude dos vestígios da cargade escravos que ainda restavam no barco, o astuto contra-mestre fez prontamente içar a bandeira amarela, dando falsoaviso de peste a bordo o quanto bastou para que o navioinglês se pusesse a distância.

Pegados, entretanto, de justo medo por ficar a escunabritânica na espreita do Vinte e Nove de Maio, desistiramos marinheiros, e com eles o próprio contramestre, de iremàs alfaias da igreja; e, tanto que logo raiou a aurora comseus dedos violetas, deram-se velas para a cidade de Sal-vador no refresco da madrugada.

Por esse ardil e matutina fuga, livrou-se o trevosoBoncarneiro de cair em mãos inglesas e de ser arrastadopara a ilha africana de Santa Helena, reduto britânico ondesão postos em julgamento os que traficam com negros es-cravos.

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XLIII – o brigue escapou de menesgueio

Foi essa a segunda vez que o brigue Vinte e Nove deMaio andou perto de ser capturado pela vigilância inglesaque costuma deitar olhos de albatroz no litoral brasileiro,ávidos de fisgarem os solertíssimos e fugidios barcos ne-greiros de bandeira nacional.

A primeira vez aconteceu antes, quando o Vinte e Novede Maio, com sua improvisada carga de escravos apanha-dos na vila de Piúma, navegava nas proximidades do estu-ário do rio Doce, defronte da povoação de Regência Augusta.

Por esperta recomendação de Boncarneiro, levava obrigue apenas um vigia, postado no mastro menor, ao in-vés de um em cada mastro como é comum nos navios quetransportam escravos e que assim procedem para sua me-lhor vigilância e proteção.

“Não sobe dois, sobe um, que os besta do inglês nãovão botar desconfiança num só macaco na vigia” - era comofalava o astucioso contramestre.

Com efeito, na dita barra do rio Doce, ou porque aescuna inglesa, que no local navegava, seguia na esteira deoutra embarcação de maior porte, ou porque o Vinte e Novede Maio mantinha apenas Querubinho no posto da vigia, ofato é que o brigue escapou de menesgueio à abordagem

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britânica. Pôde, portanto, Boncarneiro chegar com sua cargade escravos até o rio São Mateus onde foram todos vendi-dos, conforme sabeis, e foi contado pelo falecido mestreOvidino Serapião.

Vencido esse susto, ocorreu o pitoresco episódio dacaptura do gavião do mar.

Achava-se Querubinho no tope do seu posto de senti-nela quando se aproximou do barco uma grande ave queera um majestoso gavião. Dando sinais de cansaço, voejouem torno das velas e veio pousar quase por sobre a cabeçado grumete.

Num golpe ágil, Querubinho agarrou-o pelos pés sen-do quase atirado ao mar pelo forte bater de suas agitadasasas.

Descido o pássaro ao convés, pôde-se ver que traziapreso no pescoço um mínimo bilhete que acabou ficandoem poder de Querubinho por direito de apresador.

Neste bilhete lia-se o estranhíssimo aviso que dizia:“latitude 20º 30’S; longitude 29º 18’W; ship SouthAmerica”.

Na ocasião, o significado da mensagem ficou perdido.E do gavião capturado, afora o bilhete, restaram somenteas penas e as tripas, por ter servido de excêntrico repastopara Boncarneiro deixando grande saudade no coraçãomenino de Nico Querubinho.

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Tendo o grumete me mostrado a suja e amarfanhadamensagem, por ele guardada no seu barrete verdemelhocomo um pequeno tesouro, interessei-me por identificar acoordenada geográfica nela contida o que fiz consultandouma carta náutica, podendo ver que correspondia à Ilha daTrindade, o que informei a Querubinho.

Não foi possível contudo, passar desta descoberta, reca-indo sobre o episódio do gavião mensageiro impenetrável mis-tério que até hoje aguça a curiosidade de Nico Querubinho. XLIV – chinês no mar, muito azar

Ao chinês escapado à chacina dos índios, por ter apa-recido coberto de farinha, botou Boncarneiro o cognome deBeiju, coisa que se passou do seguinte modo: havendo to-dos conjuntamente deixado o local do hediondo morticínio,embarcaram no escaler e, à força de remos, seguiram parao brigue fundeado no meio do rio.

No curso desse trajeto, voltando Boncarneiro os olhospara o chinês ainda todo sujo de enfarinhada imundície,soltou o contramestre desmedida gargalhada, dizendo emseguida: “Afunda o china na água mode lavar a poeira dafarinha; mas põe tento neste serviço para o beiju não virarpaçoca”. E ali nasceu aquele nome singular.

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Escutando a ordem, dois marujos que viram naquelemandado o azo para fazerem da lavagem do chinês motivode troça e de folia, largaram os remos e, despojando-o apulso das poucas vestes que trajava, lançaram-no ao rioenquanto o mantinham seguro apenas pelo rabicho do ca-belo.

Debatendo-se atabalhoadamente, a pobre criatura gri-tava no seu estropiado linguajar, entre golfões de água:“Chinês no mar, muito azar; chinês no mar, muito azar”. Eassim falava, ou porque tinha esquecido em sua afliçãoque o estavam pondo dentro do rio, ou porque deveras lheentrava a água pela boca com o gosto salobre do mar.

Mas os que isso ouviam tomavam o dito por embuste epor pilhéria, crendo que fosse esperto artifício para inter-romper o banho ordenado por Boncarneiro. E se punham arir mais zombeteiramente ainda do infeliz chinês por essaforma lavado da sua capa de farelos.

Quando foi ele ao final restituído ao escaler, viu-se queera, despido e limpo, mais branco do que parecera antes,recoberto de farinha.

Só depois de findar a divertição dessa lavagem, subi-ram todos a bordo do Vinte e Nove de Maio e soltaramferros aproveitando o propício dos ventos.

Nem sequer se tinha navegado uma curta distância elogo se veio a perceber que era o chinês de natureza indo-

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lente e amolecida, pouco afeito ao labor, empregando-secom grande moleza no cumprimento de suas tarefas, pre-ferindo sempre as leves às pesadas, deixando, mesmo es-sas, incompletas ou mal feitas. Gastava, assim, do seu tem-po a maior parte em dormir e ressonar e tanto bastava re-costar a cabeça em algum encosto e suavemente adorme-cia como se contaminado vivesse de infindável sono.

E, como por dormir tão facilimamente não escolhia diaou noite, constantemente se ocultava nos lugares maissecretos para se entregar a sua ociosidade costumeira, tantoque fora dormindo que se livrara da matança dos índios.

De sorte que, ao cognome de Beiju, foi acrescentado osobrecognome de Preguiça, dado por Querubinho.

Com esse desonroso apelido, viveu e morreu da tristemorte que a Deus lhe aprouve mandar para castigo de suaincurável indolência.

Por não demonstrar prestança para serviços maisgraves, Boncarneiro mandou-o servir de sentinela ao barco.

Já se está a ver o desacordo dessa escolha com aimportância da missão. Mas a astuta intenção docontramestre a todos se revelou nestas palavras: “Na árvoreda vigia, se o Beiju dormir, vira farinha no chão”.

A custa de vários tropeções e alguns bofetes foi entãoo improvisado sentinela levado para o cimo do mastro doqual antes se fez descer, por determinação de Boncarneiro,

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o cesto da vigia a fim de não servir ao chinês de prazerosoninho.

Quis o contramestre por esse estratagema obrigá-lo adominar sua incontrolável sonolência, mantendo-o alertapermanentemente.

Não se passou muito tempo, porém, viu-se e ouviu-seque o industrioso estratagema não ofereceu o resultadodesejado pois chegaram ao convés os fortíssimos e silvadosroncos partidos do chinês.

Mal podendo acreditar no que ouvia, assomou aomastro o próprio Boncarneiro para averiguar de perto tãoincrível feito.

Lá, naquele alto, constatou que o preguiçoso sentinelahavia despido as marinhescas calças e com as pernas delasse atado ao mastro da embarcação, evitando solertementesua queda enquanto pegava de sono profundo.

Fulo de raiva, desceu Boncarneiro trazendo nas mãos ascalças do chinês que ficou em camisas e impossibilitado denovamente se poder amarrar ao mastro como da primeira vez.

“Não é de raça, mas de sono, que esse china tem osolhos espremidos”, desabafou Simão.

Somente se veio a saber que ele havia adormecido denovo quando o seu corpo se estatelou no convés, tendo comessa desastrada queda rompido as veias ocultas, deixandoescapulir pela boca seu morno e lânguido sangue chinês.

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Diante de toda a tripulagem reunida em concurso, foio defunto encomendado a Deus pelo frade capucho e, emseguida, cosido numas tripas de pano de vela, atirado aomar onde mergulhou desta feita sem alardes. Mas paraQuerubinho era como se estivesse gritando o aviso profético:“chinês no mar, muito azar”.

XLV – cresceu uma pesada tempestade

Antes algumas milhas de se avistar a barra doRecôncavo cresceu uma pesada tempestade, comestupendos trovões, fazendo o dia virar noite, parecendoque o céu baixava n’água pelo peso dela.

Enquanto o espesso mar empolava em ondas de grandegrossidão, despencou um fortíssimo chuveiro de cortantespingos, semelhando afiados dentes de ferro mordendo comeles tudo que tocavam.

Ferido pelo primeiro medo e lembrando-se da profeciado chinês, Querubinho principiou a rezar, puxando um corode muitas vozes que diziam:

“Santa Clara, clareai,Santa Bárbara, aliviai...”

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Quando teve fim esse cantochão, levantou-se a voz deEsmeraldina Especiosa, no começo, tenuemente, depoiscrescendo em lamúria:

“Graças a DeusQue já me deiteiSete anjos encontreiTrês nos pés eQuatro na cabeceiraOlhos postos para os CéusPensamento para a Glória.Cuida DeusQuem Deus adora.Minha alma é de Jesus,Jesus queira me salvar.Quem essa oração souberE não ensinar,Na hora da morteSe arrependerá”.

Aos que todos ouvindo isso, repetiram em concurso:

“Minha alma é de Jesus,Jesus queira me salvar...”

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Foi então o frei Catarino chamado a orar e rogar aclemência divina. E, assim chamado, cristãmente acedeue, indiferente à forte chuva e aos formidáveis balanços dobarco sacudido por medonhas vagas, aproveitou a ensanchae verberou seus atemorizados ouvintes com as visõesproféticas de Daniel:

“...e eis que os quatro ventos do Céupelejavam uns contra os outros numgrande mar. E quatro grandes animaisdiferentes uns dos outros subiam doOceano... “

Atentando para essas bíblicas palavras, toda atripulagem se pegou de maior medo e, transida de incontidopavor, buscou o frade numa procissão de desespero paradizer em confissão suas culpas e perdições, em númeroinumerável, por serem todos brutos e faltos de doutrinatendo as almas infeccionadas de pecados.

Dentre os mais, na geral confusão, lançou-se emdianteira um deles, conhecido pela alcunha de Canhoto,por esse apelido indicando suas partes com o Demo, o qual,tocado de medo mortal da morte, se largou a gritar em altasvozes uma multidão de pecados, correndo o frade a tapar-lhe a boca. Como, todavia, não o fizesse a tempo, publicou

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o pecador, sendo de todos ouvido, o imundo pecado dasodomia praticado em Esmeraldina Especiosa nas costasdo contramestre Simão Boncarneiro, disso ignorante atéentão.

Ao ouvir tamanha desafronta, gritada na voz doatormentado pecador, Boncarneiro arremeteu sobre ele,invadido de ódio superior ao próprio medo da tempestade.E, com os olhos despejando setas e pedradas, aplicou-lhe,com o grande pé, violenta pernada nos membros genitaisque o atirou, num urro de dor, totalmente baldado no convéscomo uma torre tombada, silenciando, desse modo, aquelaboca do Inferno.

Em seguida, prostrou-se Boncarneiro de joelhos,enrodilhando-se nas vestes do frade, suplicando perdão desuas culpas pois eram tantas como as folhas e tão dilatadase terríveis que superavam em grandeza às berradas peloinfeliz Canhoto antes de ser emudecido pelo sofrenão docontramestre, sendo esse, até então, o último de seuspecados.

Com extraordinária e santa paciência, deu o fradeconsolo e serenidade àquela gentalha rude e bestial trazendosuas almas ao grêmio da Igreja, mas apenas enquanto duroua tempestade.

Logo que serenaram as ondas e se abrandou o vento,desfizeram-se os propósitos de arrependimento e dor, e

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pouquíssimos chegaram a cumprir as penitências traçadasna hora já passada da aflição, pouco se lhes dando rei ouprelado, lei ou pecado, por serem todos hereges por naturezae por costumes piratas.

Desta forma, chegou essa má gente na cidade deSalvador onde desceram todos em terra defendendo-se pelafuga, e cada um pelo seu lado, dos crimes que têm feito,malditos e amaldiçoados da maldição de Deus TodoPoderoso.

A última visão que Nico Querubinho guardou deBoncarneiro foi quando ele, uma vez mais, despindo ao fradea roupeta, nela se intrometeu, encobertando por esse meiosua crosta de duros pecados, desgarrando-se pelos vaziosnão sabidos do mundo.

XLVI – a embarcação foi submetida à lavagem ebenzimento

Só o padre Catarino Broa de Santa Maria, EsmeraldinaEspeciosa e Nico Querubinho tomaram os rumos da exceção.

Os dois primeiros, logrando abrigo nos conventos deSalvador onde a mulher serviu de lavadeira aos fradesdurante os dias em que se conventuou; Nico Querubinho,reunindo toda a máxima coragem de que foi capaz, procurou

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o armador do brigue Vinte e Nove de Maio e, dando-se porvítima dos acontecimentos, relatou toda a triste e feiaaventura da embarcação nos descaminhos traçados porSimão Boncarneiro.

Diante das autoridades, o grumete teve sua voz tomadapor certidão, sendo por esse gesto de depoimento e nobretestemunho, absolvido de suas culpas que mínimas erampor muito que se somassem.

Ganhou assim o direito de voltar à nova tripulagem dobrigue, como deveras aconteceu.

Na Bahia, foi a embarcação submetida à lavagem ebenzimento com água benta e de cheiro para livração detantos males e más influências.

Logo depois, viu-se reequipada e aprestada para outrascabotagens na mesma rota, razão e causa de sua aportagemna cidade de Vitória, propiciando-me a fortuna de nelaembarcar e de conhecer o grumete Nico Querubinho. Essemesmo que desde o princípio me proveu com a maior boaafeição, demonstrando-me por gestos e palavras, notávelconsideração e apego.

Tão nobre sentimento a mim devotado levou-o a sefingir de enfermo, no que obrou com muita solércia que atodos iludiu, sendo por tal fingimento tão bem representado,desembarcado comigo na vila de Itapemirim e daí recolhidopara tratamento na Casa da Misericórdia de Vitória.

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Nela, contudo, restou o mínimo de tempo para pôr emexecução o plano que caladamente maquinou o qual foi ode desertar do brigue se passando por doente.

E, assim procedendo, evadiu-se da Casa daMisericórdia e veio ter à minha presença nesta vila deItapemirim.

Aqui, suplicou com voz querubinha e cândidas palavrasabrigo e agasalho em minha casa, recebendo de mimpermissão e licença para nela morar por ser isso tambémdo meu gosto e agrado.

Chego desta forma ao termo dessas memórias no justomomento em que o suave Querubinho, ostentando nacabeça o seu inseparável barrete, serve-me cheio de gorjeiose assovios, um saboroso refresco de pitangas por ele mesmocolhidas neste sítio de minha propriedade, onde desfruto apacatez da vila de Itapemirim e onde cuido findar meusdias, servido de tanta afeição, digestivo e feliz. XLVII – o destino reservou-me espantosa surpresa

Já havia eu dado por finalizados esses assentos, queficaram guardados e cobertos pelo pó durante dois anos,quando o destino reservou-me espantosa surpresa fazendoreaparecer uma das criaturas que uniu seu nome ao brigue

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Vinte e Nove de Maio, propriamente o malsinado SimãoBoncarneiro. Por tal motivo reabro essas memórias paraacrescentamento do que a seguir escrevo.

Tendo-me perecido de infausta morte um escravo deminha propriedade afogado no mar, dando caça a um peixe-boi surgido na barra do rio Itapemirim, dirigi-me nacompanhia de Nico Querubinho até a vila de Piúma a fimde adquirir nova peça para substituir aquela que as águasme subtraíram.

Durante o percurso desta vila de Itapemirim até a dePiúma, o meu doce sangue para vespas atraiu-as aosmontões sendo eu acutilado por seus duros ferrões do quesó a muito custo me pude livrar, sobrevindo-me ardentesfebres causadas pelas doloridas picadas produzidas em meucorpo.

Dado esse mau fado, tive de permanecer recolhido aoleito quando cheguei à vila de Piúma.

Impossibilitado de obrar pessoalmente as providênciaspara a compra do escravo, motivo da minha ida àquelapovoação, encarreguei Nico Querubinho de se empregarnesse mister, procurando os locais, naquele lugarejo, ondese faz vulgarmente o comércio de negros.

Nessa desincumbência, Querubinho gastou algumashoras, retornando mais tarde para me dar conta não só dehaver concertado a compra de um escravo ladino de boa

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dentição, como também para me informar ter avistadoSimão Boncarneiro que se deparava na vila com o fito decomerciar escravos nas tendas dos vendilhões.

Esta notícia, trazida quase ao cair da noite, acendeu-me o desejo de me avistar com o famigerado contramestre.Atiçava-me incontida curiosidade quanto à pessoa daquelemarujo como também me dominava um insopitável desejode conhecer pormenores sobre o destino do contramestredepois de haver abandonado, na Bahia, o brigue Vinte eNove de Maio.

Acreditava ainda que pudesse ganhar a sua confiançatornando-o suficientemente loquaz a ponto de obter dele anarrativa de ocorrências que, por certo, seriam dignas decompletar este repositório de lembranças.

Desta maneira, incumbi Nico Querubinho, emboracercando-o de recomendações contra as ardilezas docontramestre, de concertar com ele um encontro para o diaseguinte, quando contava estar recuperado em minha saúdemomentaneamente abalada.

Desobrigou-se Querubinho assaz diligentemente destetrabalho ficando certo o encontro com Simão Boncarneiropara a manhã seguinte, no exato momento em queBoncarneiro ia zarpar na sumaca Boa Viagem na qual haviatocado na enseada de Piúma.

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XLVIII – senti-me como o presidente Machado Oliveira

De fato, despertei no outro dia bastante mitigado dasfebres e decaimento do corpo.

Não havendo localizado Nico Querubinho e nãodesejando retardar o encontro com Boncarneiro, dirigi-me,na hora aprazada, para o trapiche junto da praia, vendo amanhã abrir em dia de muito sol e pouco refresco dos ventos.

Lá chegando, lobriguei facilmente a sumaca BoaViagem, embarcação que sem ser pequena, também nãoera de tamanho desprezível.

A distância de um grito que me separava do barcopermitia-me divisar com clareza as pessoas que dentro deleapareciam. A primeira delas, por mim reconhecida,acenando-me com seu barrete de grumete, foi NicoQuerubinho.

Perto dele, sobressaía a figura descomunal de umacriatura de aspecto maligno, portando negras barbas, nãodeixando dúvida tratar-se de Simão Boncarneiro, por mimlogo identificado naquela que foi a primeira e a última vezque lhe deitei os olhos.

Não posso calar o pasmo do que presenciava,sobremodo quando a sumaca içou velas e principiou a distarmar afora.

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Por um instante, senti-me como o Presidente Machadode Oliveira, sucumbido e derreado naquele mesmo local,alguns anos antes, vendo partir o brigue Vinte e Nove deMaio levando o baú de viagem que lhe pertencia. Só quedesta vez, Simão Boncarneiro surrupiava ao seu legítimodono algo mais precioso que um mero baú e que era NicoQuerubinho.

Diante daquela cena, que me compungia a alma, nãopude conter um grito na direção da sumaca, clamando porQuerubinho, escandindo no ar as silabadas do seu nome.Mas meu brado foi ao vento em vão deitado.

O simples retribuir de novo aceno, com o desbotadobarrete, deu-me aviso e certeza de ter sido ouvido.

Mas foi apenas esse sinal que recebi de Querubinho.Depois de tanto tempo da mais pura afeição colhi pordespedida uma barretada de grumete.

Não escondo que tocado por tamanha desconsideração,não pude conter a fúria e vociferei possesso: “Nico Novilha!”

Entrementes, pensei comigo mesmo: “se não é que lheentrou o demônio pelos miolos adentro só lhe possocondenar asperamente sua surda e endurecida ingratidão”.

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XLIX - vamos ver quem vai sobrar

Enquanto a sumaca ia minguando na lonjura do mar,continuava pegado na praia, sentindo escorrer o suor úmidoaté os pés dentro da areia, sem força de me safar daquelaaflição e tristeza, já padecendo o estrago da saudade econdenado sem socorro a uma dura solidão.

Pareceu-me que permaneci ali postado longo tempo,imóvel e erecto.

Inexplicavelmente, neste momento de íntimodesamparo e mágoa pura, sem quê nem por quê, estorvou-me a mente uma longínqua toada da infância que falavaassim:

“Uma pulga na balançaDeu um salto, foi à França.Os cavalos a saltar,Vamos ver quem vai sobrar ... “

Livrou-me desta vadiação do espírito uma voz de

mulher que me chegou aos ouvidos e feriu minha percepção,dizendo: “Major, não arrepara no que vos digo e não leve amau o meu dito. Mas arreda pé desse chão de areia e cuidada vida mode que Querubinho está de todo perdido. Simão,

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aquele amaldiçoado, carregou com ele no meu lugar e melargou de lado, sem beira nem esteira, nessa perdição demundo, arrenegada que nem tartaruga emborcada”.

A mulher que assim pedira licença para opinar e medirigia essas estranhas, porém, verdadeiras palavras, estavaacocorada no alto da praia junto de uma canoa de pesca,entre dois coqueiros aduncos. Talvez por isso não a tivessenotado quando cheguei em busca de Simão, para quem sótinha atenção.

Reparando melhor, pude ver que perto da mulherjaziam uns trastes enrolados em pano grosso, reunindotalvez todos os seus pertences numa pequena trouxa.

E, num reparo ainda mais acurado, reconheci namulher a figura de Esmeraldina Especiosa, fitando-metristemente com seus incríveis olhos verdes. L – a sorte muda

Vexa-me dizer que, fazendo hoje sete meses queQuerubinho partiu, vivo eu ainda sem a coragem terrívelda renúncia, relutando em aceitar o contragolpe do destino.Fortuna mutatur, a sorte muda.

Em minha companhia, empregando-se nas fainas dacasa e se dando toda de cama e fogão vive hoje EsmeraldinaEspeciosa, por mim recolhida na enseada de Piúma.

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Sua presença, contudo, não é remédio para a grandefalta de Querubinho.

Esta índia tem-me suprido como pode nas minimezasdomésticas, prestando-me à porfia os serviços que lhecabem, faltando-lhe, porém, desvelos maiores o que atribuoà reconhecida incompetência da gente de sua espécie.

Mas digo também, com uma espécie de vergonha, queminha natural inaptidão para o trato com femininascriaturas pode estar contribuindo para o pouco sucesso deEsmeraldina Especiosa.

Na verdade, falece-me, por certo e por seguro, o ânimoestupendo e concupiscente que sobejava em Boncarneirovisto que, segundo me relatou Querubinho, havendo eleafundado nas ostras de variadas mulheres, delas podia dizercom assaz sabedoria e conhecimento: “as fêmeas são tãodiferentes quanto os próprios gozos”.

Apesar disso, devo a Esmeraldina Especiosa osinformes dos sucessos havidos até o seu abandono porSimão Boncarneiro na praia de Piúma.

Disse-me ela que, morrido o professor Antunes, tornou-se virtualmente senhora e dona da casa do falecido por nãohaver ele herdeiros conhecidos.

Nessa casa a foi deparar Simão Boncarneiro na sumacaBoa Viagem, a caminho da vila de Piúma (servindo suavinda de maior dano do que todos os danos oriundos davinda anterior).

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Movia a Simão, segundo ele confessou, o aceso desejode rever a curimã, propondo-lhe seguirem juntos para a Corte.

Relutante, a princípio, deixou-se Esmeraldina seduzirpelas palavras promitentes do contramestre e pelas falsasjuras dele ouvidas.

Esquecendo-se da índole perversa de Boncarneiro, amulher pôs fé e esperança em suas vãs promessas; desfez-se logo da casa e de umas tantas quinquilharias, encaixotouos preciosos livros do falecido, os quais foram levados parao extinto colégio dos jesuítas onde foram postos em custódia;amealhou o pecúlio assim conseguido e se meteu a bordocom Simão.

Duraram essas núpcias sem matrimônio até a enseadade Piúma onde o inesperado surgimento de Querubinhofez mudar os propósitos de Boncarneiro; ali, ele desdenhoua mulher sem dó nem ré, trocando-a pelo grumetinho eespoliando-a ainda de suas magras economias.

Penalizado de sua mísera sorte, ofereci-lhe agasalhoem minha casa, na qual se encontra presentemente.

Sobre ela posso reproduzir as palavras há muito tempoouvidas ao professor Antunes: “Esmeraldina, se bem nãome serve, mal não me desserve. E, já que cá veio, cá fica”.

Através dela nada logrei saber da vida de SimãoBoncarneiro, motivo, como sabeis, que em hora de máinspiração me instigou a querer procurar o contramestre,

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origem e razão da irremediável perda de Querubinho. Masa índia nada me soube dizer visto que Simão também nadalhe dissera nem contara.

Perdurará para sempre esse vazio nessasreminiscências.

Vazio imenso como a falta de Nico Querubinho, novilhotresmalhado e ingrato que, entretanto, não me desenganode crer, retomará um dia a este meu sítio, na boca do rioItapemirim, de cujo cômoro mais alto estico diariamente osolhos para a vastidão verdeazul do mar, tristemente a versumacas...

LI – como plúmbeos e carregados nimbos

Mas não se inquietem os muitos e os vários que meconhecem ou me hão conhecido ou mesmo os que de mimvierem a saber por parte deste manuscrito: se Querubinhonão regressar, como pródigo filho adotivo de minh’alma,juro pelos dobrões de minha farda que saberei congregartodas as forças de que sou capaz para transpor e vencer oestado de solidão em que me encontro.

Não admitirei que por mim repiquem impropriamenteos sinos das lamentações, nem que pairem, como plúmbeose carregados nimbos, censuras sobre minha cabeça e sobre

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meu nome por culpa de nobres sentimentos a que não foraminsensíveis os filósofos gregos.

Minha inicial formação religiosa e moral deu-me o justodiscernimento para distinguir o certo do errado; a carreiramilitar que abracei completou-me com o me ensinar a arteda disciplina à qual me habituei tanto na vida pública comona particular.

E nem poderia ser outra a minha atitude em coerênciacom um passado de relevantes serviços prestados à minhaterra cujo ápice se deu no desempenho da comissão comomajor ordenança do Presidente Machado de Oliveira da qualpude colher os curiosos fatos que achei por bem registrarnestes assentamentos pelos aspectos de interesse que nelesvi.

Por tudo isso, se outra fosse minha conduta diante daadversidade não pouparia a mim mesmo naturaisrecriminações e nem seria eu o ex-comandante de PedestreMarcelino José de Castro Silva.

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APÊNDICE

VIAGEM DE PIÚMAÀ CAPITAL DA PROVÍNCIA

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A nomeação que tive de presidente desta província em 5 deagosto de 1840, impôs-me o dever de partir quanto antes dacorte para o meu destino, como urgiam minhas circunstânciase as recomendações do governo. Duas ou três eram asembarcações da província que se achavam no Rio de Janeiro, etodas elas ofertaram-me transporte; mas preferi a que tinha maisdemora em sair, porque ainda me faltavam arranjos e estadeliberação foi inspirada pelo meu mau fado, porque fixei minhapassagem no brigue “Vinte e Nove de Maio”.

Embarquei e saí do porto do Rio de Janeiro em 17 desetembro com terral fraco, que para a tarde tornou-se quasecalmo, cujo estado durou até ao meio-dia de 18, que veio umaaragem do Sudoeste pondo o navio a caminho. À meia-noitesoprou nordeste fresco que obrigou o navio a seguir rumo de L.

Relato da autoria de José Joaquim Machado de Oliveira, que governouo Espírito Santo de agosto de 1840 a abril de 1841. Fonte histórica quemotivou o romance A Nau Decapitada.

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Este vento aturou rijo até 26, obrigando o navio a navegar maisde 10 graus a rumo de Leste. No dia 27 apareceu rebojo; nestedia e no 28 navegou-se a caminho com Sudoeste. O dia 20passou-se em calmaria; e a 30 ventou N.

Ao clarear deste dia subindo o contramestre ao mastrogrande disse de lá que se avistava terra; e esta notícia muitoagradável fez surdir dos beliches e camarotes a mais de um aquem comprazia tal notícia e a sua ideia associada de não estarmuito remota a ocasião de terminar viagem tão enfadonha,tediosa e cheia de privações, deixando uma embarcação ondesó dominava a ignorância, incúria, negligência e grosseria; mastão lisonjeira esperança em breve desvaneceu-se com o levantardo sol, que dissipou o nevoeiro que cobria o horizonte, e quefigurou ao inexperto e estúpido marinheiro a suspirada terraque a ser real não podia ser senão da capitania. Ainda nãotínhamos bebido todo o amargoso cálice da desventura que nosfez deparar tão negado transporte.

Desde o dia 30 de setembro até 4 de outubro navegou-secom vários ventos do quadrante N., e sempre com proa paraonde se presumia que se demorava a terra: e com efeito aoamanhecer do dia 4 avistou-se claramente terra da capitaniaque não se pôde desfazer em vapores como a anterior, porquefixou-a os olhos da prática. Navegou-se todo o dia, e quando jádefronte ao Moreno, e vendo-se a rebentação da baía, dispunha-se a manobrar para a singradura conveniente, escasseou o vento,e refrescou mais, e por isso tivemos à tarde de virar de bordo

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para o mar, escapando-nos a ocasião depois de a termos quasesegura pelo rabicho.

Apesar do vento “agarrar-se” àquele lado, fez-se toda adiligência para entrar a barra na singradura de terra no dia 5,porém nada favorável se pôde conseguir, e ainda à vista dasterras da barra, posto que o navio tivesse decaído, fomos para omar, praguejando do vento, barra, navio e mestre.

A mesma tentativa repetiu-se no dia 6, e quando algunslonges de esperanças nos suavizavam a ânsia com que nospungia o desejo de entrar, vieram “naturalmente” ao convésambos os mastaréus com velas e a cordoalha respectiva, semque fosse isso a efeito de esforço do vento, que sopravaregularmente. Não podem sentir tanto pesar as almas dopurgatório, que tendo subido ao degrau da fornalha que assinalao complemento do seu penar, e estando já de braços levantadospara facilitar a sua redenção, como nos pinta a cartilha do mestreInácio, chega o anjo libertador e virando a cara desdenhosamenteao passar por elas, vai tratar de outras que tocaram ao grau da5ª essência da pureza expiatória.

Todos os cabos que seguravam os mastaréus estavam lassose bambos, porque o estúpido contramestre mais apurado emdescobrir terras vaporosas, do que desempenhar seus deveres,ignorava que depois de vento fresco, ou antes de escurecerdevem-se alar todos os cabos de segurança, que certamenteafrouxam com o impulso que o vento imprime nas velas. Nesse

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desmantelamento andou-se bordejando com muito decaimentopara Sul até o dia 8, em cuja manhã assentou-se de se arribar aqualquer ponto da costa que nos pudesse abrigar, e depararmeios para reparar tão grave avaria; e como a enseada de Piúmaestava reconhecida, e podíamos tomá-la com o vento que reinava,para aí dirigiu-se o navio, e à uma hora da tarde fundeamosentre as suas ilhas.

A enseada de Piúma é pequena, mas arredondada, comregularidade desde o morro do N., que se ergue na suaextremidade austral, até às ilhas deste nome que marcam o seutermo ao N. Uma zona de areia branca lhe borda toda a margem,e se prende a outra de verdura que guarnece o território aooriente da cordilheira da Serra-geral, cujas formas colossaissombreiam ao longe o horizonte com um extenso cintão de azul-claro. As três ilhas de Piúma quase que se ligam à ponta deterra que termina o semicírculo da enseada; pelo menosescondem a foz do rio deste nome, cujas águas nesse pontorepousam numa bacia espaçosa antes de entrarem em perenemovimento com as do mar. Entre as ilhas mais exteriores oancoradouro é seguro e abrigado dos ventos do hemiciclo do N.,mas quando reinam as brisas do Sul convém-se evitar essasparagens para não correr-se o risco de naufragar ou de dar àcosta.

O rio Piúma tem 8 léguas de curso e traz a sua origem daSerra-geral; tendo-a comum com o Itapemirim, que se envereda

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mais para o Sul. Por ele se navega em canoas até à “Bocaina”,que dista légua e meia da sua foz; e desobstruído o rio de algunsembaraços que tem nesse lugar a sua navegação seria muitomais extensa, e então poder-se-ia aproveitar a abundância dejacarandás e outras madeiras próprias para a marcenaria quese depara no interior do rio.

Ao sul da foz do Piúma há uma pequena povoação de índioscom umas 50 palhoças, e 2 ou 3 casas cobertas de telhahabitadas por vendelhões brancos, que foram para ali depoisque se descobriu que naquela costa podia-se com segurançafazer clandestinamente o desembarque de africanos para seremvendidos como escravos. Nem uma regularidade encontra-sena edificação das casas, que são feitas à vontade e discrição doproprietário. Os índios vivem da pesca e do pequeno cultivo quefazem à roda de suas habitações tanto quanto lhes permite asua natural indolência, e que seja bastante para o seu mesquinhoalimento; e o produto que resulta dalgum serviço que fazemfora desta escala é para o emprego de aguardente. As mulheresvivem na mais dissoluta devassidão, crápula e deboche, e fazema sua maior assistência nas tavernas. Noutro tempo uma pontede madeira atravessava o rio; e atualmente projeta-se nova, cujospegões de pedra já se acham feitos e acima do nível d’água.

No dia 9 desembarquei, e nessa mesma manhã exigi deItapemirim (5 léguas) cavalgaduras para meu transporte àcapital, visto ter resolvido ir por terra. Às 10 horas da noite

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desse dia apresentou-se em Piúma o major Joaquim Marcelinoda Silva Lima com uma tropa de animais arreados para meutransporte. Tinha ajustado com o mestre do brigue de namadrugada do dia 10 mandar buscar a bordo o meu trem deviagem e fato necessário para entrar na capital, porém, quandoa essas horas ia uma canoa para esse fim, a embarcação se fezde vela, e deixou-me como naufragado na praia.

A 11 e pelas 6 horas da manhã montei a cavalo, e em duashoras cheguei a Benevente, que dista duas léguas daquelapovoação. Nesta travessia há o rio Iriri, pequeno e estreito quecorre por uma quebrada do terreno, sobre o qual há uma pequenaponte de madeira. A estrada é boa e atravessa o terreno montuosoe ondulado que compõe a ponta saliente, que é comum àsenseadas de Piúma e Benevente, e cujo lado boreal é banhadopelo rio de Benevente ou Reritiba. Há em toda ela pequenossítios e fazendas rurais onde a agricultura não tem tido grandedesenvolvimento, ou por negligência de amanhar as terras, ouporque a esta tem-se exaurido o poder vegetativo. Havia umaplantação de café que estava no seu belo estado de florescência.

A vila de Benevente é construída no lado esquerdo da fozdo rio que hoje tem este nome, e na falda da vistosa colina queserve de assento ao antigo convento dos jesuítas, habitado pelocélebre pe. Anchieta, e que se acha hoje convertido em igrejaparoquial, apesar de sua antiguidade e estado de ruína. Umalinha de casas pequenas se formula pelas sinuosidades do rio, e

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outras verticais a ela, quem vem da falda da colina, eis aqui oque forma o complexo material da vila, que faz pequeno vulto aquem a vê do alto da ribanceira oposta, de cuja altura tambémse abrange uma parte do rio, e toda a bela enseada de Benevente.O espaço ocupado pela foz do rio não admite ponte, e a suapassagem é feita em canoas, que da vila vão ter a uma laje sobrea qual há um telheiro onde apoiam-se os viajeiros e esperam asua vez de passar.

O rio de Benevente é mais amplo e tem maior curso que oPiúma, dá navegação para 8 léguas em canoa, e a sua origemvem da Serra-geral correndo por um extenso território rico demadeiras finas, e de terras cultiváveis. O ancoradouro é poucoacima de sua foz e em frente da vila, nele somente fundeiampequenas sumacas de 50 a 80 toneladas, porque há uma cordade recifes que toma quase toda a enseada, deixando-lhe apenasum estreito canal de 10 a 12 palmos para a entrada dasembarcações. Esta enseada é espaçosa e apresenta um aspectoagradável e pitoresco com a sua moldura de alvíssima areiaprecintada de arvoredo, que se vai elevando à medida que fogedo mar. O recife de que há pouco se falou conserva em algumrepouso aquela grande bacia, e por ela vagueia uma multidãode canoas que andam na pescaria. Em frente da vila e na margemoposta do rio desemboca um estreito, que dando-se-lhe maisprofundidade pode receber em canoa os viandantes que vêm dosul, e passá-los para o lado oposto, poupando-lhes o tornearem

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o morro adjacente. Aquele município dá 10 eleitores; e a vila ésede do colégio eleitoral de Guarapari e Itapemirim.

Parti de Benevente às 9 horas, e deixando a enseadaatravessou-se a ponta que lhe corre a O., e que se chama pontado Castelhano. Nessa travessia há o rio Parati em que há umaponte bastantemente arruinada, e que vem das terras altasadjacentes. Deste rio a Benevente, ou vila nova, há uma légua.Daí procurou-se de novo a margem do mar, por onde transitou-se por tempo de duas horas, passando-se favoravelmente osBarreiros, ponto este que fica interceptado no preamar, porqueas ribanceiras aí são muito altas, e passagem só se pode fazer abeira-mar.

À uma hora chegou-se a Meaípe, uma pequena povoaçãode pescadores, policiada por um juiz de paz. A povoação estánuma ponta que avança para o mar terminando num espaçosorochedo, rodeado de outros que ficam separados dele por braçosde mar e formam um remanso onde chegam as canoas a abrigodos ventos do norte. Ao Sul da povoação e banhando o pé domorro que serve de base à ponta, corre um pequeno rio, a cujafoz prende um lagoão profundo, sobre o qual houve noutro tempouma ponte. No preamar fica esse ponto intransitável, e por issose faz ali muito urgente uma ponte.

Dali prosseguiu-se a viagem subindo-se o morromencionado a muito custo por causa da sua altura. No seureverso e lado oposto ao da povoação há profundos esconderijos

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por entre grandes penedias aonde entra o mar nas marés vivasformando lagos permanentes, que criam peixe, e servem deabrigo ao pescador fatigado. Desce-se a um terreno quasenivelado com o mar, e que é só interrompido pela alta colinaque serve de assento à casa do alferes Pedro João, aondechegamos às duas horas da tarde. Neste sítio aprazível que distameia légua de Meaípe, e que fica às bordas do mar, avista-se aeste em um imenso horizonte, e a todas as pontas que lhe ficama N. e a S., com os rochedos isolados no meio do Oceano. Oproprietário tendo seguido algum tempo a vida do mar, deu-sefinalmente a lavrador, e tinha no interior terras em que comalguns escravos cultivava cana e mandioca, que “desmanchava”em uma pequena engenhoca.

A colina era a parte mais avançada de uma ramificação demontanhas, que se desprendia da Serra-geral na direção de Este,elevando-se altamente sobre a borda do mar. Tinha ao lado direitoum brejo que compenetrava o interior, e conservava a águapotável; e ao lado esquerdo uma quebrada que dava leito a umalímpida torrente que se embebia no mar. Aí pernoitei, porqueem Guarapari que fica distante meia légua não havia “arrumação”para os animais.

Na manhã do dia 12 parti para Guarapari, onde cheguei às7 horas. Os arredores ao sul da vila são formosos e aprazíveis:há neles várias casas em sítios altos e descortinados queproduzem uma perspectiva agradável. A vila está situada sobre

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a base da ponta que tem o mesmo nome, e que se prolonga pelomar com a extremidade dessa grande cordilheira que se destacada Serra-geral, formando um dos pontos mais salientes e notáveisda costa; e jaz ao lado direito da foz do rio Guarapari. É uma dasmaiores e mais antigas vilas da província, e que ainda éenobrecida por um colégio e igreja construída pelos jesuítas, ehoje transformada em igreja paroquial, posto que se ache emgrande ruína. Tem ruas regulares, e algumas casas de sobradoà moderna. A igreja está, como todas as construções jesuíticas,sobre uma colina que fica sobranceira à vila, e que mais a realçaao longe.

O rio Guarapari procede da Serra-geral já volumoso, eatravés de um território rico de madeiras, e azado para aagricultura. A sua navegação abrange até às faldas da serra.Tem bom ancoradouro, e o canal da barra é maior e maisprofundo do que o de Benevente. Na margem oposta à da vila háalgumas linhas de casas ocupadas por pescadores e por famíliasdos que se empregam na vida do mar.

Às 8 horas saí da vila, e atravessando um terreno ondulosoe coberto de baixo arvoredo, totalmente inculto e desprezado,cheguei a Perocão às 10 horas. Neste sítio entra um braço demar com o apoio de uma ponta que lhe fica ao S., rodeada derochedos escalvados, e que termina a extremidade boreal daenseada de Guarapari. Esse braço recebe algumas torrentes quevêm das alturas circunvizinhas, e ampliando-se assim intercepta

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a passagem nas horas do preamar. Construiu-se aí uma pequenaponte de pedra, que arruinou-se na primeira enchente que houvepor abater-se dos paredões laterais que sustentava um arco, epor isso se achava inutilizada.

Na margem setentrional do rio há uma rua de pequenascasas, que começa da boca da ponte: ali habitam pescadores, egente empregada na vida marítima. Este lugar dista uma léguada vila de Guarapari; e a sua barra dá somente entrada a lanchas,que transportam madeira e mantimentos para aquela vila.

A poucos passos dali corre o rio Una que se lança no mar,derivando-se dos declives boreais da cordilheira de Guarapari quese destaca da Serra-geral, e que mais se aproxima da costa: sobreele há uma pequena ponte de madeira bastantemente arruinada.

A estrada, depois de atravessar um terreno baixo, arenosoe arborizado, lança-se na costa; e por aí caminha-se duas léguasaté à ponta da Fruta, a mais notável naquelas paragens. Destelugar segue ela pelo terreno que fica de permeio entre o mar evárias lagoas, que tem por margem do lado do ocidente umalomba extensa de terras altas sobre que divisam-se algumascasas habitadas por lavradores do distrito, e que, segundo éfama, servem também de coito a desertores e criminosos. Esteterreno prende-se a outro que guarda o mesmo plaino, e quecompreende campestres, matas, brejos, várzeas e um rolo todoareiento, denunciando esterilidade, e pobreza de força vegetativa,por qualidade natural ou por exausto e cansado.

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Às 4 horas da tarde cheguei ao lado meridional da barra dorio Jecu, onde há uma pequena povoação de 20 a 30 casas depescadores, abrigada do mar por um morro alto, que ao longedesigna a foz daquele grande rio e invade o mar a pequenadistância. A povoação é a cargo de um juiz de paz, cuja jurisdiçãoestende-se até a ponta da Fruta e depende do município da vilado Espírito Santo (Vila Velha); e dista 8 léguas de Guarapari.Sendo já tarde, e estando a maré cheia, o que dificultava apassagem em um rio que se espraia na sua foz, aí pernoitei.

O rio Jecu (como já tenho escrito em outra obra) procededa Serra-geral, donde sai já volumoso e arrebatado; e depois deatravessar imenso território com vários rodeios e sinuosidades,desemboca no mar, no lugar que acabamos de descrever; e ogrande volume de suas águas não pode contrastar a força que omar emprega naquele ponto saliente da costa, o que faz comque a barra seja de pouco fundo e dê somente entrada a lanchas,e seja mesmo quase interceptada por uma corda de grandespedras que se prende à sua margem austral.

Por meio de um canal aberto no distrito de Viana, comunica-se este rio com o Marinho, que deságua na margem direita dabaía do Espírito Santo, em frente ao lado ocidental da cidade; eassim formou-se em ilha esse grande território que medeia entreestes dois rios.

Na manhã do dia 13, passado o rio prossegui na viagemtomando o caminho da mata, visto que projetei ir à Pedra d’Água.

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Este caminho é por uma planície, no princípio coberta dearvoredo, e ao depois através de brejos e várzeas descortinadas,que a esse tempo estavam enxutas. Cheguei à Pedra d’Águapelas 10 horas da manhã. Este sítio é formado por uma elevadabaía do Espírito Santo, e no seu flanco esquerdo um esteirocomo um braço da mesma baía.

A origem do seu nome provém de haver na baía, em frenteda colina, uma grande pedra isolada e fora d’água. Este sítiodista meia légua de Vila Velha.

Às 11 horas, chegou àquele lugar o presidente Couto, emeia hora depois desembarquei na capital. - Machado deOliveira.

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