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    Educacso e Filosofia, 13 (26) 275-280, jul./dez. 1999

    RESENHAS

    CHALMERS, Alan Francis. 0 que e ciencie afinal?; traducao de Raul Fiker.SaoPaulo, Brasiliense, 1997 (da 2"' edicao de Whatis this thing called science?,1982)

    Anselmo Tadeu Ferreira *

    o trabalho de Chalmers apresenta-se com um propos ito didatico-pedaqoqico explicitado no prefacio a t-. edicao: pretende ser um manualintrodutorio, que apresente de modo claro e acessfvel para estudantes de filosofiae ciencias as recentes teorias sobre a natureza da ciencia, dentro do campoque costumamos considerar como filosofia da ciencia.

    Partindo desse proposito, ele divide 0 trabalho em duas partes. Aprimeiraparte ocupa-se de uma apresentacao oidatica dos pontos de vista recentes (aprimeira edicao, que nao difere da segunda quanto a essa primeira parte, e de1974) sobre a ciencia. 0 panorama apresentado nos primeiros capitulos servecomo pano de fundo para a discussao de alguns temas conexos, apresentadosna 2a. parte, quais sejam, a objetividade do conhecimento cientffico, 0 criteriode racionalidade etc. em resposta aos quais 0proprio Chalmers arrisca dar suaopiniao pessoal.o ponto de partida para a exposicao, mais ou menos cronoloqica, euma alegada visao comum da ciencia, segundo a qual as pessoas em geralidentificam a ciencia como conhecimento verdadeiroporque provado segundouma base empirica. Essa grande consideracao pela ciencia se explicaria sobretudopela crenca no rnetodo indutivo que ela emprega com sucesso, isto e, a verdadecientifica deriva diretamente da experirnentacao e da observacao docomportamento da natureza. Dado que as leis e teorias derivem, por inducao,dos fatos observados, podemos utilizar essas leis para explicar e prever novosfenornenos, por deducao.o principio de inducao, que consiste em extrair uma proposicao geral apartir da observacao de um certo nurnero de casos particulares observados emcondicoes variadas suficientemente, e a base dessa visao comum de ciencia,por isso mesmo batizada de indutivismo. Na verdade, 0 indutivismo e uma tentativade formalizar essa visao de senso comum de ciencia. Esse principio sera criticadonos termos do problema da inducao, cuja forrnulacao classica remonta a David Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlandia.

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    Hume; este ja tinha feito ver que, a despeito de sua aplicabilidade pratica, 0princlpio nao se sustenta em bases loqicas, pois uma proposicao geral naopode derivar de proposicoes particulares, por maior que seja 0 nurnero destas.Buscar uma justificativa logica para 0principio foi parte do programa do positivismoloqico, no corneco do seculo, que nao logrou exito, no entanto.

    De especial relevancia para a critica do indutivismo (e tarnbern para seuoposto, 0 falsificacionismo) e a consideracao sobre a dependencia que aobservacao tem com relacao a teoria. 0 abismo existente entre nossas percepcoesdiretas, aquilo que nos chega aos sentidos eo modo como interpretamos essaspercepcoes, 0 modo como vemos 0 mundo, impede que observacoes diretasdos fenornenos nos sejam acessiveis; toda observacao e mediada por uma teoria,por uma linguagem, por uma expectativa fundada em nossa cultura, nossaformacao pessoal. Enfim, tudo 0 que percebemos do mundo exterior pelossentidos depende demais de certos fatores (nossa cultura, formacao, expectativaspessoais) para que acreditemos que os dados se apresentem objetivamenteaos sentidos e objetivamente sejam interpretados. A propria "base empirica" doindutivismo (e da visao comum de ciencia) e seriamente questionada.

    Conforme a crltica ao principio de inducao, vimos que nao importa 0nurnero de observacoes particulares, elas nunca serao capazes de justificaruma conciusao geral. Mas talvez 0 problema possa ser solucionado de umamaneira alternativa, conforme uma particularidade loqica envolvida. Um rnilhaode casos observados em que A tinha a propriedade B nao e suficiente parajustificar a inferencia de que "todoA tem a propriedade B", mas um unico caso,em que se observe algum A que nao tenha a propriedade B suficiente parainferirmos que a proposicao "todo A tem a propriedade B", e falsa. Talparticularidade loqica e explorada ao maximo pelo chamado falsificacionismo econstitui a base da filosofia da ciencia de Karl Popper e de seus disclpulos(dentre os quais 0 proprio Chalmers), apresentada como contraposicao aoindutivismo.

    A explicacao falsificacionista apresenta a ciencia como uma atividadeem que se procura nao verificar teorias, no sentido de provar que elas saoverdadeiras definitivamente (0 que e impossivel), mas sim tentar falsifica-las,isto e , propor testes empiricos que possam eventualmente provar que sao falsas.o criterio de falsificabilidade proposto por Popper e uma marca que distingue 0conhecimento cientifico dos demais; uma proposicao e cientifica se for falsificavel,isto e , seja testavel empiricamente e nesse teste empirico ela possa serconfirmada (mas nao provada) e ai aberta a novos testes, ou entao possa serrefutada pelo resultado negativo do teste. A confirrnacao nunca e definitiva, masa refutacao e . Ao serfalsificada por um teste empirico, a teoria deve ser substituidapor outra melhor, mais resistente aos testes, que explique tudo que a anterior

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    explicava e ainda explique coisas que aquela nao explicava. A ideia de progressona ciencia (que 0 relato indutivista nao leva em consideracao, uma vez que,quando conhecemos algo cientificamente 0 conhecemos de uma vez portodas),e uma ideia central na visao falsificacionista, que chega a pregar que a verdadetalvez seja inacessfvel, cada nova teoria sendo, no entanto, um passo a frenteem sua direcao.

    Cornparacoes hist6ricas, alern da ja alegada dependencia que aobservacao tem com relacao a teoria, apresentam series obstaculos para essavisao falsificacionista. Em primeiro lugar, se nao temos acesso direto aos dadosda experiencia, os quais devem ser mediados por nosso conhecimento (teorias),cultura, etc. como esperar que 0 resultado de uma observacao ou de um testeempfrico falsifiquem conclusivamente uma proposicao geral, uma teoria? Isso eapoiado pelo constatacao do desenvolvimento hist6rico da ciencia. Nao e verdadeque observacoes experimentais, que tenham contrariado alguma teoria, tenhamlevado sempre a substituicao da teoria em questao. 0 exemplo mais ilustrativoeo caso da teo ria copernicana, cujo postulado heliocentrico foi mantido a despeitode numerosas provas ernplricas (segundo 0 conhecimento disponfvel na epoca)o terem falsificado (e ela teve de esperar 70 anos para responder a essasrefutacoes).

    Apesar de ser logicamente mais consistente, 0 falsificacionismo sofrecom essas crfticas, especialmente sua inadequacao hist6rica. Alern disso, umaoutra dificuldade se irnpoe: 0 trabalho cientffico nao pode ser resumido a umaincessante tentativa de falsificar teorias por meio de testes cada vez maisengenhosos. A pratica cientffica possui um sentido positive, e e preciso salientarque parte importante do trabalho cientffico e confirmar teorias e previsoes.

    Como resposta a essas dificuldades e que sao apresentadas duas visoesque, ao inves de considerar as teorias cientfficas como afirrnacoes isoladassobre 0mundo, preferem ve-las como estruturas. Primeiro Thomas Khun e depois,para defender melhor 0 ponto de vista original de Popper, Imre Lakatos,desenvolveram explicacoes em que teorias cientificas sao vistas como complexasestruturas compostas de postulados gerais, suposicoes auxiliares, tecnicas deobservacao, etc. que protegem a teoria de falsificacoes conclusivas. Dado quealguma observacao pareca contradizer uma teoria em voga, os cientistas podemprocurar a causa de anomalia em algum ponto do complexo que forma a teo riae corrigir esse ponto, mantendo a teoria original.

    A visao de Lakatos resume-se em sua metodologia de programas depesquisa. Um programa de pesquisa consiste de um nucleo irrefutavel, tornadoirrefutavel pela decisao metodol6gica dos cientistas. Esse nucleo, que conternos principios gerais da teoria, e protegido por um "cinturao de hip6teses" auxiliares,que podem ser mudadas conforme a criatividade dos cientistas, excetuando-se

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    modificacoes "ad hoc", para proteger 0 nucleo original. Conforme aumente ounao nosso poder explicativo sobre 0 mundo, um programa de pesquisa eprogressista ou degenerescente.

    o relato de Khun e centrado em sua nocao de paradigma. 0 paradigmae um modelo generico que orienta nossas explicacoes sobre 0mundo, orientauma tradicao cientifica normal. Essa atividade cientifica normal enfrenta,eventualmente, anomalias percebidas entre os fenornenos observados e 0paradigma. Se estas anomalias persistem, provocam a crise do paradigma, quesera resolvida apenas com a proposicao de outro paradigma que substitui 0antigo, evento que e chamado de "revolucao cientlfica".

    Na segunda parte do livro, sao apresentados alguns temas tomandocomo pano de fundo a exposicao feita na primeira. Nessa exposicao, aflora aobsessao popperiana pela busca do criterio de racionalidade e dernarcacaocientifica que nos orientem na escolha de teorias.o primeiro desses temas e a oposicao entre relativismo e racionalismo.o racionalismo acredita e busca um criterio universal, racional, parajulgarteoriase a cientificidade de determinados campos de conhecimento. 0 relativismo negaessa possibilidade de um tal criterio. As duas posicoes sao identificadas,respectivamente, com Lakatos e Khun, embora ele ressalte 0 esforco desseultimo para livrar-se do rotulo de relativismo, dada sua crenca no progressocientlfico, eo fracasso do primeiro em estabelecer consistentemente 0 tal entericde racionalidade.

    o debate colocado naqueles termos, entre racionalismo e relativismo,leva a um beco sem salda, 0 que se resolve mudando os termos do debate.Nova distincao e feita, entre individualismo e objetivismo. 0 individualismo euma posicao que considera 0 conhecimento cientifico como um estado deconsciencia psicoloqica, centra-se no individuo que conhece. Estamos no campoda justificacao do conhecimento, caimos facilmente em outra dicotomia, acontraposicao entre 0 racionalismo classico e 0 empirismo classico. A posicaoobjetivista, finalmente abracada por Chalmers, e aquela que considera a cienciacomo um "corpus" de proposicoes independentes do sujeito que conhece,possuindo entao, propriedades objetivas, as teorias teriam, inclusive,consequencias insuspeitas ate por seus formuladores (0 caso ilustrativo e adescoberta das ondas de radio por Hertz, com base na teoria de Maxwell, quesequer sonhava com essa possibilidade).

    A enfase no carater objetivo das teorias cientificas, que de certa formaindependem do sujeito que conhece, nos leva a propria posicao de Chalmerscom relacao ao importante problema da rnudanca de teorias verificadahistoricamente (por exemplo, a substituicao da teoria geocentrica pelahehocentrica). Os relatos de Lakatos e de Khun nao conseguem deixar de ser

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    "relatives", porque incorporam um elemento subjetivo no processo de rnudancade teoria. Tanto a rnanutencao de um nucleo irredutivel no programa de pesquisacomo a consideracao do que e um bam paradigma dependem de um certoconsenso da comunidade. Ora, se for impossivel romper esse consenso, comoa ciencia proqredira? Nao sera nunca a cas a de que alguma teoria seja melhordo que outra, embora ninquern au uma minoria, apenas, preste atencao a ela? Asolucao de Chalmers: se ha, numa sociedade, pessoas (cientistas) capazes dedesenvolver um programa cientifico num certo sentido e se ha, num programa depesquisa, oportunidades objetivas de desenvolvimento naquele sentido (um graude fertilidade que independe dos cientistas), entao essas oportunidades seraoaproveitadas mais cedo au mais tarde.

    Com isso, ele quer dizer que a desenvolvimento da fisica moderna, pelomenos, obedeceu a um criteria racional e possuiu uma objetividade nessesseus mais de duzentos anos de hist6ria em que houve cientistas capazes dedesenvolve-la exatamente nesse sentido. Contudo, nada garante que a situacaocontinue assim, nem a criteria e alga mais que retrospectivo; na situacao atual,a escolha pessoal do cientista entre teorias concorrentes nao e mesmo objetiva.Ele separa a aspecto subjetivo (a decisao do cientista de crer nesta au naquelateoria) do aspecto objetivo (a rnudanca efetiva de uma teoria para outra, parexemplo do geocentrismo para a heliocentrismo).

    Os tres ultirnos capitulos sao como apendices, nao no sentido de seremde men or irnportancia au tratarem de assuntos menores, mas sao reflexoesadicionadas sabre alguns aspectos da exposicao feita, na verdade ja concluida.Tratam de uma apreciacao da posicao radicalmente relativista de Paul Feyerabend,em que este e simpaticamente considerado, mas diplomaticamente rejeitado; enos ultimos dais capitulos, a importante questao do realismo cientifico, opostoao instrumentalismo, e abordada. Chalmers procura mostrar como a posicaode Popper, a ideia de ciencia como aproximacao da verdade, desembocafatalmente numa posicao instrumentalista a despeito de Popper se declarar umrealista, isto e, alquern que ve a ciencia nao como um mero instrumento para"salvar as fen6menos", e sim como uma descricao, ainda que aproximativa, darealidade como tal. Estamos sempre em busca da verdade, e embora naopossamos atingi-Ia totalmente, e certo que a ciencia explica e preve muitascoisas.Por isso, a conclusao final de Chalmers, de que aquela pergunta inicial(0 que e a ciencia afinal?) e enganosa. "A" ciencia nao existe, existem, quandomuito, a fisica, a biologia, a hist6ria, como corpos de proposicoes sabre aquilaque supomos ser a mundo, corpos cuja coerencia interna e seu poder deexpticacao precisam ser avaliados segundo regras pr6prias de cada um deles,sem a possibilidade de intervencao de um metoda unico

    A despeito dessa abdicacao final do criteria de racionalidade e de

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    dernarcacao cientifica, tao caro a escola de Popper, e ineqavel a orientacaopopperiana de toda a exposicao e reflexao ao longo do livro. Parece uma lirnitacaoessa orientacao do trabalho; os fil6sofos de linhas diferentes de Popper nao saocontemplados (Bachelard e apenas citado na mtroducao como um dos que jahaviam refutado, como Popper, 0 empirismo 16gico,enquanto na InglaterraAyerainda 0defendia, 0pr6prio Feyerabend apresentado como uma ovelha desgarradado popperianismo, Wittgenstein, Quine e Marx tem apenas os nomes lembradosna introducao) e Chalmers afirma, ainda, que, embora Popperesteja realmenteenganado sobre varias coisas, ser popperiano e ainda a melhor posicao no campoda filosofia da ciencia.

    Tenha 0 leitor isso em mente, e entao podera aproveitar dessa excelentevisao introdut6ria, didatica, simples dos pontos de vista recentes em filosofia daciencia. Isso podera estirnula-lo a pesquisar as fontes, alias muito bemdocumentadas com bibliografias comentadas a cada capitulo e a aventurar-se ainvestigar por si se a escola popperiana vale 0 quanta a considera Chalmers.

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