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Como citar este documento: Cunha, Luiz Antônio. Autonomia universitária: teoria e prática. En publicacion: Universidad e investigación científica Vessuri, Hebe CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires. 2006. ISBN: 978-987-1183-62-3 Acceso al texto completo: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/ves suri/Luiz%20A%20Cunha%20.pdf Descriptores Tematicos: Educacion Superior, Universidades, Investigacion, Autonomia Universitaria, Iglesia, Estado, Partidos Politicos, Mercado, America Latina, Brasil ver índice del libro ver texto completo en pdf Autonomia universitária: teoria e prática** Luiz Antônio Cunha* ESTE TEXTO ALMEJA CONTRIBUIR para a reflexão sobre a mais complexa das dimensões de uma instituição complexa, de difícil definição: a autonomia da universidade. Depois de um rápido percurso histórico, vou tentar enfocar essa questão mediante o emprego de conceitos de Pierre Bourdieu, que me autorizam a perguntar se existe um campo propriamente universitário e me levam a sugerir a ampliação da abrangência desse conceito. Em seguida, concentro minha atenção sobre a questão da autonomia universitária no Brasil. AUTONOMIA, ONTEM E HOJE

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Como citar este documento: Cunha, Luiz Antnio

Como citar este documento: Cunha, Luiz Antnio. Autonomia universitria: teoria e prtica. En publicacion: Universidad e investigacin cientfica Vessuri, Hebe CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires. 2006. ISBN: 978-987-1183-62-3Acceso al texto completo: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/vessuri/Luiz%20A%20Cunha%20.pdf

Descriptores Tematicos: Educacion Superior, Universidades, Investigacion, Autonomia Universitaria, Iglesia, Estado, Partidos Politicos, Mercado, America Latina, Brasil

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Autonomia universitria: teoria e prtica**Luiz Antnio Cunha*

ESTE TEXTO ALMEJA CONTRIBUIR para a reflexo sobre a mais complexa das dimenses de uma instituio complexa, de difcil definio: a autonomia da universidade. Depois de um rpido percurso histrico, vou tentar enfocar essa questo mediante o emprego de conceitos de Pierre Bourdieu, que me autorizam a perguntar se existe um campo propriamente universitrio e me levam a sugerir a ampliao da abrangncia desse conceito. Em seguida, concentro minha ateno sobre a questo da autonomia universitria no Brasil.

AUTONOMIA, ONTEM E HOJE

Tratar da universidade focalizar uma instituio antiga, de quase um milnio de idade, que assume diferentes formas e identidades, conforme o sculo que se focalize, de acordo com o pas que se tome. Ela j foi uma comunidade de docentes e estudantes, sem prdios prprios e praticamente desprovida de oramento; tornou-se uma instituio complexa, multi-funcional, com territrio de configurao prpria e oramento que, por vezes, chega a ser superior da cidade onde se localiza. De uma instituio que se dedicava Medicina e aos estudos especulativos (teolgicos e filosficos), veio a ser uma importante geradora de foras produtivas (humanas e materiais), ampliando o leque do conhecimento. Em certos pases, a universidade se confunde com o ensino superior, enquanto, em outros, ela rivaliza com instituies de outro tipo na outorga de diplomas e no desenvolvimento do saber legtimo. No entanto, h um ncleo comum instituio universitria, presente em todos os tempos e em todos os lugares: a luta pela difuso e o desenvolvimento do saber, sem constrangimentos externos, vale dizer, a luta pela autonomia.

Constrangimentos houve e h, mais fortes ou mais fracos, de modo que no exagero dizer que a luta por autonomia diante da Igreja, do Estado, do Partido ou do Mercado, por vezes uma combinao deles um elemento co-essencial universidade.

O ponto de partida para o entendimento da universidade, enquanto instituio, de acordo com Le Goff, que ela produto das cidades, espao no qual surge um novo personagem social, o intelectual, que ocupa na diviso do trabalho as funes de escrever e de ensinar.

IGREJA

As sociedades de mestres e estudantes surgiram na Europa Medieval, por volta do sculo XII, no mbito da Igreja, disputando com ela o privilgio do ensino, num ambiente de progressiva laicizao, de matrias to vitais para essa instituio como a teologia. A universidade pretendia ser senhora do recrutamento de mestres e de estudantes; ter o direito de elaborar e fazer valer os estatutos que regulavam seu funcionamento interno; e escolher os responsveis pela aplicao dos estatutos, assim como os representantes perante outras instituies e o Poder Pblico. Neste sentido, os conflitos entre a universidade nascente e as autoridades eclesisticas, em Paris, so paradigmticos. A universidade pretendia situar-se no mbito da Igreja, para dispor dos privilgios eclesisticos, inclusive de sua justia, que lhes defendia dos burgueses e da polcia do rei. Assim, era conveniente a definio social dos mestres e dos estudantes como clrigos. Por outro lado, para fazer valer sua vocao internacional e escapar da vigilncia prxima das autoridades eclesisticas locais, a universidade buscava a proteo do papa, cujas bulas poderiam lhe garantir o status de corporao autnoma1 .

Entre as autoridades locais da Igreja e o papado, as universidades procuravam um espao para manter e ampliar seu espao de progressiva laicizao. As vicissitudes dessa tenso podem ser bem ilustradas com episdios to distantes no tempo como os de Abelardo e Galileu.

Ao incio do sculo XXI, a autonomia da universidade diante do poder religioso preocupante. Se a secularizao da pesquisa avanou muito, a ao das sociedades religiosas sobre a universidade volta a se fazer sentir, direta e indiretamente. Em termos diretos, a manuteno da ortodoxia religiosa leva, hoje, proibio de temas de pesquisa no s nas cincias humanas e sociais, como, tambm, na tecnologia, do que a gentica e a reproduo humana, especificamente, so exemplos dramticos. Em termos indiretos, a existncia de Estados laicos diminui, atualmente, de modo que eles tendem a agir sobre a universidade, em nome do interesse pblico religiosamente definido.

ESTADO

Verger mostrou que, ao lado das universidades espontneas, que nasceram a partir das escolas catedrais, houve universidades surgidas pela migrao de mestres e de estudantes das primeiras, assim como universidades criadas como tais pelos papas e pelos reis, depois pelos prncipes2 . Nos sculos XIV e XV, a maioria das universidades foram criadas pelos prncipes, em funo da necessidades de formao de quadros para a burocracia dos Estados nacionais, em desenvolvimento. Ademais, a concepo do prncipe como um homem culto, levou a que se criassem universidades como elemento de importante valor simblico, em proveito do governante.

A multiplicao das universidades fez com que o recrutamento de estudantes se tornasse mais local, diminuindo o sentimento de desenraizamento que dava a base subjetiva para a reivindicao da autonomia dos primeiros sculos.

Como mostrou Verger, a convergncia do poder poltico com o poder econmico, ao fim da Idade Mdia, levou ao fim da autonomia que as universidades gozavam. Antes mesmo dos Estados nacionais, as cidades medievais controlaram a autonomia de suas universidades, de modo a evitar os focos de agitao poltica. Para isso, nomearam cidados para supervisionarem os studii e passaram a remunerar os professores. Ao pag-los, quiseram, tambm, escolh-los. Nas suas palavras:

No final do sculo XV, as universidades europias eram portanto bem diferentes do que haviam sido no sculo XIII. s corporaes autnomas, centros de pesquisa e de ensino, freqentemente despedaados por conflitos violentos mas ricas por seu dinamismo e sua vida prpria, haviam sucedido centros de formao profissional a servio dos Estados (Le Goff) e fortemente controlados por eles. Estes, substituindo-se progressivamente Igreja, aceitavam verdadeiros sacrifcios para desenvolver e manter as universidades: no lhes regateavam honras oficiais e davam bons empregos a seus graduados. Mas, em troca, tais universidades deviam funcionar regularmente, apoiar a ao dos governos, formar clrigos, juristas, mdicos competentes, no se tornarem focos de desordem intelectual, social, poltica ou religiosa (Verger, 1990: 138). Le Goff chama a ateno para o fato de que, enquanto as universidades passaram a desempenhar esse novo papel social, de formao da fora de trabalho intelectual, elas deixaram de deter o monoplio da produo intelectual e do ensino superior. Na Florena dos Mdici e at mesmo em Paris (Collge de France), instituies no universitrias elaboraram e difundiram um saber em grande parte novo, dentro de condies elitistas novas.

Ademais, a reduo do carter internacional das universidades, aliada a sua direta manuteno pelo detentor do poder poltico, foi fatal para sua autonomia.

Vale registrar o libelo de Max Weber contra a interveno estatal nas universidades alems do incio do sculo XX, interveno essa que contava uma ativa colaborao interna:

as congregaes, de maneira inteiramente voluntria, funcionam comumente como delegadas em nome da polcia poltica. Isso tudo se d exatamente porque as universidades so mantidas financeiramente pelo Estado e dele recebem privilgios e em que pese o fato de que o Estado regulamenta como lhe apraz o exame dos pretendentes aos cargos dentro dela, e muito embora a formao universitria seja apenas uma dentre as muitas consideradas nas nomeaes para o servio pblico e no representa de modo algum um direito a tal tipo de nomeao (Weber, 1989: 67-68).

Ao incio do sculo XXI, essa imagem parece corresponder, com algumas aproximaes, situao das universidades, com o agravante de que suas despesas aumentam fortemente, razo de sua dependncia diante do Estado, tanto maior quanto mais elas constituem instituies multi-funcionais.

Nas duas ltimas dcadas do sculo XX, o Estado atribuiu-se uma nova funo: a avaliao das universidades, quando no de todo o ensino superior. Seja avaliando a formao dos estudantes, seja avaliando as atividades de produo do conhecimento, mas sempre avaliando o uso dos recursos, o resultado pode ser o aumento ou a reduo dos subsdios, podendo chegar, em certos pases, retirada do credenciamento.

PARTIDO

O potencial poltico das universidades fez com que elas, por vezes, procurassem intervir na vida poltica da comuna, j no sculo XV. Le Goff e Verger, mais uma vez evocados neste texto, exemplificam essa participao com os casos das universidades de Paris e de Praga.

J no sculo XIV, delegados da Universidade de Paris participavam dos Estados Gerais e eram chamados a arbitrar conflitos entre membros da aristocracia e entre estes e o papado. O episdio mais conspcuo de sua atuao poltica foi no apoio condenao de Joana DArc, em quem viam uma feiticeira, que arrastava as almas para a perdio, desinteressados de seu papel poltico na organizao da luta contra a ocupao inglesa3 . Se o nacionalismo no esteve presente nessa atuao da Universidade de Paris, ele predominou na de Praga. Com efeito, a Universidade de Praga foi um dos focos da tomada de conscincia nacional. Enquanto a nao tcheca da universidade se apoiava nas classes populares (camponeses e artesos autctones), a nao alem se apoiava na burguesia urbana, na nobreza e no clero. A predominncia dos alemes dentre os votantes, e, por conseguinte, na direo da universidade, assim sua preferncia nos empregos, propiciou aos mestres e estudantes tchecos a tomada de uma posio nacionalista, que convergiu no protagonismo de Joo Hus, ao fazer uma ligao entre o meio universitrio e os meios populares4 .

A participao poltica de mestres e de estudantes, no sculo XX, fez da universidade mais um espao de expresso de conflitos sociais, do que a Amrica Latina fornece exemplos numerosos e longevos. Mas, no que concerne aos efeitos deletrios para a autonomia, a situao mais diretamente sentida nos pases que caram na ditadura do partido nico. A perda da autonomia, em tal situao dispensa comentrios, pois seus efeitos so demasiadamente conhecidos.

Cumpre, no entanto, chamar a ateno para a atuao dos partidos no interior das universidades, indiretamente, pela mediao dos aparatos sindicais ou para-sindicais de docentes, de estudantes e de funcionrios tcnico-administrativos. Esta uma situao menos conhecida, mas que vale a pena ser objeto de pesquisa especfica. H pases em que existem essa mediao informal, mas aceita como legtima, enquanto que, em outros, ela se d de modo dissimulado.

MERCADO

Na segunda metade do sculo XX, duas situaes novas exerceram sobre as universidades um indito constrangimento. De um lado, o aumento de suas despesas as fizeram demandantes de mais e mais recursos financeiros, que os governos no estavam dispostos a conceder; por vezes, reduziram-nos. A busca de recursos no mbito do mercado de bens e servios passou a ser considerada um mecanismo que expressava a insero das universidades na sociedade, de modo que os governos, ao reduzir as dotaes financeiras (ou a no aumenta-las), empurravam as universidades para aumentar a prestao de servios que obtinham valor no mercado. Assim, o ensino e a pesquisa passaram a ser definidos em funo de sua caracterstica como mercadoria vendvel, quando no eram demandados diretamente pelas empresas interessadas. Claro est que a autonomia universitria perde com isso, pois os interesses empresariais so bem distintos dos acadmicos, como se pode ver no caso do imediatismo na aplicao, da propriedade dos resultados e das clusulas de segredo.

Mas, ao lado dessa dimenso mercadolgica da prestao de servios, uma realidade nova, efeito do processo de globalizao do capital, faz do ensino superior, da universidade, inclusive, um alvo prioritrio, hoje sob disputa no mbito da Organizao Mundial do Comrcio.

Partindo da falsa premissa de que o ensino um servio econmico, como as telecomunicaes, por exemplo, os governos de certos pases esto a exigir da OMC que obrigue a todos a abrirem seus mercados educacionais competio internacional. Para eles, o ensino a habilitao profissional inclusive e principalmente em grau superior deveria ser um servio oferecido por empresas diversas, de pases diversos, de modo que o aluno/consumidor escolha seu provedor como faz com um telefone celular. E mais: a validade dos certificados e dos diplomas, assim como a avaliao e o credenciamento das instituies de ensino, deixaria os limites dos Estados nacionais.

A autonomia, mais do que um mito fundador, permanece como um elemento chave na identidade universitria. Dois documentos recentes marcaram bem essa posio.

A Magna Charta Universitatum5 , editada em setembro de 1988, por ocasio do nono centenrio da Universidade de Bolonha, declarou a autonomia e a correspondente liberdade de pesquisa e de ensino em dois dos quatro princpios enunciados:

A Universidade , no seio das sociedades diversamente organizadas e em virtude das condies geogrficas e do peso da histria, uma instituio autnoma que, de modo crtico, produz e transmite a cultura atravs da pesquisa e do ensino. Para se abrir s necessidades do mundo contemporneo, ela deve ser, no seu esforo de pesquisa e de ensino, independente de qualquer poder poltico, econmico e ideolgico.

E mais:

Sendo a liberdade de pesquisa, de ensino e de formao princpio fundamental da vida das Universidades, os poderes pblicos e as mesmas Universidades, cada qual no seu domnio de competncia, devem garantir e promover o respeito dessa exigncia fundamental. Na recusa da intolerncia e no dilogo permanente, a Universidade um local de encontro privilegiado entre os professores, capazes de transmitirem o saber e os meios de o desenvolver atravs da pesquisa e da inovao, e os estudantes, que tm o direito, a vontade e a capacidade de, com isso, se enriquecerem.

Dez anos depois (setembro de 1998), a Associao Internacional das Universidades props, por ocasio da Conferncia Mundial sobre o Ensino Superior, da UNESCO, a reafirmao dos dois princpios indissociveis de toda a instituio universitria, a liberdade acadmica e a autonomia institucional. Essa distino parece ter sido inspirada em Robert Berdhal, pelo que se pode deduzir do verbete Institutional Autonomy, de autoria de M. Tight, para The Encyclopedia of Higher Education. Berdhal distingue, tambm, a autonomia substantiva (a capacidade de a universidade determinar seus prprios fins e programas) da autonomia processual (a capacidade dela estabelecer os meios para a realizao daquela) (Tight em Clark e Neave, 1992: 1.384, Vol. 2). A razo de ser de ambos os princpios est na obrigao das universidades de transmitirem o saber e de fazer progredir os conhecimentos, herana comum da humanidade.

O princpio da liberdade acadmica foi definido como a liberdade dos membros da comunidade universitria pesquisadores, professores e estudantes de desenvolver suas atividades no mbito de regras ticas e normas internacionais estabelecidas por essa mesma comunidade, sem presso externa. O princpio da autonomia institucional foi definido como o grau necessrio de independncia diante de toda a interveno externa, que a universidade necessita no que diz respeito a sua organizao e sua administrao, a alocao de seus recursos e a obteno de oramentos suplementares, o recrutamento de seu pessoal, a organizao dos estudos e, enfim, a liberdade do ensino e da pesquisa, vale dizer, a liberdade acadmica. Embora a AIU tenha defendido a indissociao de ambos os princpios, h casos em que a autonomia institucional existiu sem a liberdade acadmica, pelo menos para todos os docentes, assim como o contrrio. Estaria na primeira situao a Universidade de Oxford, no incio do sculo XIX; e, no segundo, a Universidade de Berlim, na mesma poca (Tight em Clark e Neave, 1992).

O princpio da liberdade acadmica concerne a cada um dos professores, pesquisadores e estudantes; autonomia, por sua vez, universidade enquanto instituio. Esses direitos, implicam, por sua vez, deveres, que podem ser resumidos na expresso responsabilidade social, que obriga tanto a universidade como cada um de seus membros.

Na proposta da AIU, comentada acima, as universidades a responsabilidade das universidades se expressa pelo dever que cada instituio tem de respeitar sua obrigaes coletivas (o respeito qualidade, tica, eqidade, e tolerncia); de elaborar e manter regras de exigncia, de natureza cientfica e administrativa; de implementar mecanismos de prestao de contas sociedade, de auto-controle e de avaliao pelos pares, assim como de expor sua gesto de modo transparente.

Em diversos pases, a busca da responsabilidade social tem levado a uma perda de parte da autonomia universitria, na dimenso processual. Menciono, a ttulo de exemplo, a forte participao de membros externos nos conselhos administrativo, cientfico e de faculdade nas universidades francesas; e a avaliao, pelo Estado, de todas as instituies de educao superior, no Brasil, inclusive das universidades.

EXISTE UM CAMPO UNIVERSITRIO?

Busquei na obra de Pierre Bourdieu o conceito de campo educacional aqui empregado. Para esse autor, que se inspirou no conceito de mercado, de Max Weber, um campo um espao social complexo, cuja estrutura um estado de relaes de fora entre agentes ou instituies que lhe so prprias. Cada campo , assim, um espao de luta desses agentes e dessas instituies pelo monoplio da violncia simblica legtima no seu interior e pela posse do capital prprio desse campo. nesse sentido que se pode falar do campo religioso, do campo poltico, do campo artstico, do campo educacional. As relaes de fora simblicas que demarcam os limites de cada campo esto baseadas nas relaes de fora material entre grupos e/ou classes sociais, dominantes e dominados, mas de uma maneira tal que as dissimulam e as reforam (Bourdieu, 1983: 89).

Assim definidos, os campos simblicos no podem ser entendidos na tica do estruturalismo (como universo submetido a uma lgica imanente ao conhecimento e comunicao) nem pela tica do marxismo (como instrumento a servio direto da dominao de classe). Com efeito, para Bourdieu, os interesses que esto em disputa, no interior de um campo, so interesses especficos, sobretudo dos profissionais formados em instituies especializadas na reproduo cultural (Pinto, 2000: 80).

Os campos tm diferentes graus de autonomizao, isto , graus com que o capital e as regras de disputa por sua posse esto mais ou menos definidos como prprios, no sendo redutveis s dos demais. A autonomizao dos campos um processo complexo, que pode ser entendido como uma diviso de trabalho, mas sem as conotaes evolucionista e funcionalista que Durkheim lhe deu. Isso, porque esse processo no uma necessidade intrnseca da sociedade como um todo, na direo da harmonia, mas, sim, resulta das lutas em torno de interesses especficos de agentes e de instituies, tendo, sempre, como base, as relaes de fora entre grupos e/ou classes sociais, dominantes e dominados.

A autonomia dos campos tampouco deve ser entendida num sentido absoluto. Esse no foi o atributo que lhes deu Bourdieu ao lhes conceber como inseridos num processo de autonomizao relativa. Ele quis dizer que mesmo os campos mais autonomizados (como o da arte, por exemplo) no esto descolados das relaes de fora entre grupos ou classes sociais, mas, ao contrrio, contribuem para sua reproduo e o fazem to mais efetivamente quanto mais (relativamente) autonomizados estiverem. Assim, o livre jogo da produo e da circulao dos bens simblicos prprios de um campo faz com que o capital retorne s mos de onde saiu. Esse movimento reproduz a estrutura de distribuio do capital cultural entre as classes sociais, ou seja, a estrutura de distribuio dos instrumentos de apropriao dos bens simblicos que uma dada sociedade selecionou como dignos de serem almejados e possudos por todos (Bourdieu, 1974: 297).

A meu ver, a autonomia relativa dos campos no foi suficientemente desenvolvida por Bourdieu no sentido da fonte marxista do termo. A nfase no movimento de reforo das relaes de classe, que esto na base de um campo, deixou na sombra o movimento de dissoluo possvel dessa base, sem o que, alis, seria incompreensvel sua crtica a partir de uma instituio educacional estatal, onde socialmente se localizava o prprio socilogo.

Apesar de sua potencialidade explicativa, o conceito de campo no deve ser idealizado, como se fosse capaz de enquadrar a sociedade toda. A propsito, Angela Xavier de Brito (2002) mostrou, no exame dos autores que se credenciam para suceder Bourdieu na sociologia francesa, que esse conceito no cobre todos os registros sociais da ao. Muitas atividades profissionais e at mesmo a ao social de importantes categorias sociais (como a das mulheres, por exemplo) no so exercidas no mbito de campo algum. Importantes instituies sociais no constituem um campo, como, por exemplo, a famlia. Por outro lado, h atores sociais que freqentam campos diversos, com posies diferentes em cada um deles. Isso deveria servir de alerta para no poucos autores que usam o termo campo como mero sinnimo de rea, de processo e at mesmo de disciplina acadmica, remetendo o leitor a Bourdieu, a guisa de fonte. No meu entender imprprio falar do campo da didtica, do campo da avaliao ou do campo da histria trata-se de uma espcie de difrao metafrica do conceito.

Ser apropriado falar-se do campo universitrio? O prprio Bourdieu no teve dvida a respeito, tanto que tratou dele em Homo Academicus. No entanto, reluto em seguir o formulador do conceito, ao menos na delimitao do permetro desse campo. Ao estudar as universidades e uma grande cole francesas, em obras separadas (esta ltima em Noblesse dtat), Bourdieu fechou bastante o foco do estudo: concentrou-se nas faculdades de letras, cincias, direito e medicina, ao mesmo tempo em que deixou de lado setores importantes do ensino superior na Frana, em especial o setor privado.

Com o objetivo de alargar o foco, data venia do maior socilogo do sculo XX, penso que valeria a pena considerar a hiptese de que as universidades no constituem propriamente um campo. Elas participam de pelo menos quatro campos6 . Vamos a eles.

- Campo educacional

As universidades participam desse campo ao lado (e em concorrncia) com faculdades, institutos e escolas, que no integram universidades. Dependendo dos pases, estas instituies podem outorgar diplomas dotados de valor material e simblico, igual, menor ou maior do que os conferidos pelas universidades. Ademais, h universidades que atuam no ensino secundrio e no tcnico de nvel mdio, um indicador a mais de sua insero no campo educacional.

- Campo profissional

Trata-se do mercado de trabalho, com suas exigncias, com os valores materiais e simblicos atribudos aos diversos diplomas conferidos, com seus processos de elevao de requisitos educacionais, seus rgos de controle corporativo, seus sindicatos. As empresas e esses rgos entram na disputa pela legitimidade da formao e do exerccio profissional, cujo efeito as universidades so compelidas a levar em conta em seus currculos e na definio dos diplomas que outorgam.

- Campo da pesquisa

Embora a universidade desenvolva a pesquisa cientfica, tecnolgica e cultural, chegando a ser essa funo estabelecida como condio de recebimento do status privilegiado, no a nica instituio que a faz. Na engenharia, na agronomia, na sade e at mesmo nas cincias humanas, h institutos no universitrios, pblicos e privados, que competem com as universidades pelo financiamento das agncias pblicas e privadas, assim como valor material e simblico de seus produtos.

- Campo cultural

Artes plsticas, msica, dana, letras clssicas e modernas, lnguas vivas e mortas, comunicao cultural constituem reas de atuao universitria, nas quais bvia a concorrncia encetada com espaos e entidades que lhe so externos e estranhos.

Apesar da aspirao universitria do monoplio do conhecimento, o reconhecimento da dificuldade de realiz-lo plenamente pode ser percebida pela existncia de universidades especializadas, em vrios pases, a exemplo das universidades tecnolgicas e as universidades pedaggicas. H, tambm, quem proponha a classificao das universidades em dois grupos: as universidades de ensino e as universidades de pesquisa, denotando uma dupla polarizao de suas atividades principais.

A hiptese da participao da universidade em quatro campos, simultaneamente, permite entender, de outra forma, a anlise de Clark (1983) sobre a diviso de trabalho interna e a ambigidade dos fins das instituio. Permite entender, tambm, de outra maneira, a oposio que faz Kourganoff (1990), entre a face oculta e obscura da universidade, o ensino, a uma face aparente e luminosa, a pesquisa.

Admitindo-se, provisoriamente, a hiptese acima, pode-se deduzir que a integrao universitria depende de uma negociao complexa, pois so distintos os habitus e os capitais prprios a cada um dos campos de que a universidade participa. A dificuldade nessa negociao resulta na franqueza institucional da universidade, em sua tendncia desagregao, o que pode facilitar a atuao, no seu interior, de agentes do campo poltico-partidrio. Ou, ento, a presena precoce desse campo na conformao da universidade pode dificultar sua integrao institucional.

Paro por aqui, entendendo que o prosseguimento da pesquisa, na direo apontada, pode se beneficiar bastante da perspectiva internacional comparada.

AUTONOMIA UNIVERSITRIA NO BRASIL

No ltimo item deste texto, vou apresentar algumas indicaes sobre a questo da autonomia universitria no Brasil, adiantando que ela adquiriu contornos bem distintos de outros pases latino-americanos, ao menos nos discursos de auto-representao. Em seguida, vou abordar a questo da avaliao, como se apresenta, hoje, no pas.

Uma das peculiaridades da estrutura educacional brasileira a incongruncia entre a instituio universitria e seu atributo exclusivo, a autonomia. No Brasil, encontram-se instituies de ensino superior que tiveram sua autonomia atribuda pelo Estado, mas sem o status universitrio. Em contrapartida, as universidades, no sentido estrito, clamam at hoje pela autonomia que deveria lhes ser essencial.

A primeira vez que o termo autonomia apareceu no cenrio do ensino superior brasileiro foi em 1911, no bojo de um movimento de conteno da expanso das inscries nas faculdades, propiciada pelo ingresso irrestrito dos concluintes das escolas secundrias oficiais e das privadas a elas equiparadas.

Com um ostensivo objetivo contenedor, a Lei Orgnica do Ensino Superior e Fundamental da Repblica declarou as instituies oficiais de ensino secundrio e superior corporaes autnomas, do ponto de vista didtico e administrativo. Ainda que se previssem uma srie de condies de funcionamento para essas instituies, determinava que seus diretores fossem eleitos pelas respectivas congregaes, em votao secreta; que as congregaes teriam competncia para aprovar os programas de ensino; que os diretores elaborassem os oramentos, prevendo o montante do subsdio governamental necessrio. A lei previa, tambm, que as faculdades federais que dispusessem de recursos prprios suficientes para prescindir do subsidio governamental estariam, automaticamente, desobrigadas de toda fiscalizao ou dependncia governamental, mediata ou imediata.

Os efeitos da poltica educacional de conteno foram o oposto do esperado. Se o nmero de estudantes que entraram nas faculdades federais diminuiu, pois tiveram de se submeter a um exame de admisso, multiplicaram-se as faculdades privadas dispostas a oferecer todas as facilidades para atra-los. Como conseqncia, reativamente, a expresso autonomia foi suprimida da legislao, em 1915, perdendo as congregaes das faculdades federais, entre outras atribuies, a de eleger os respectivos diretores.

Foi nesse contexto de autonomizao frustrada e de tentativas de conteno da expanso do nmero de estudantes, que surgiu a primeira universidade brasileira, sobrevivente at nossos dias. Na data significativa de 7 de setembro de 1920, como parte dos preparativos para os festejos do centenrio da independncia nacional, o Presidente da Repblica evocou um dispositivo legal de cinco anos atrs para baixar decreto que criava a Universidade do Rio de Janeiro. Ela resultou da reunio da Escola Politcnica e da Faculdade de Medicina, ambas federais e das mais antigas instituies do pas, com a Faculdade de Direito, produto da fuso e da federalizao de duas faculdades privadas existentes na capital federal. Definia-se, assim, o padro de formao das universidades brasileiras reunio de faculdades isoladas vigente at os nossos dias, servindo tanto para as instituies pblicas como para as privadas. O reitor da Universidade do Rio de Janeiro era, como os diretores de suas unidades constitutivas, nomeado pelo Presidente da Repblica.

Em 1931, seis meses aps a instalao do governo provisrio sado de um movimento revolucionrio, foi baixado, por decreto, o Estatuto das Universidades Brasileiras, desdobramento, no campo da educao superior, da centralizao poltico-administrativa iniciada com a criao do Ministrio da Educao.

O Estatuto estabeleceu os padres de organizao para as instituies de ensino superior em todo o pas, universitrias e no universitrias. Cada universidade seria criada pela reunio de faculdades (pelo menos trs dentre as seguintes: Direito; Medicina; Engenharia; Educao, Cincias e Letras). Cada faculdade seria dirigida por uma congregao, integrada pelos professores catedrticos efetivos, pelos livre-docentes em exerccio de catedrtico e por um representante dos livre-docentes, por eles eleito. O diretor da faculdade era, tambm, escolhido pelo ministro, dentre uma lista de professores catedrticos elaborada pela congregao e pelo conselho universitrio, conjuntamente.

O conselho universitrio contaria, entre seus membros, com o presidente do Diretrio Central dos Estudantes, reconhecendo-se, pela primeira vez, a participao discente na gesto das universidades.

O Estatuto determinou a utilizao de mecanismos de cooptao, que permitiam maior margem de manobra com relao situao imediatamente anterior. O conselho universitrio deveria elaborar uma lista com os nomes de trs professores catedrticos, dentre os quais seria escolhido o reitor. Nas universidades federais, a escolha caberia ao Presidente da Repblica; nas estaduais, ao governador. Nas universidades privadas, a forma de escolha do reitor seria estabelecida internamente. Processo anlogo estava previsto para a esclhoa dos diretores das faculdades integrantes de cada universidade.

As universidades estaduais e privadas, equiparadas s federais, estavam sujeitas fiscalizao do Ministrio da Educao, que poderia cassar seu status, no caso de transgresso das normas existentes ou dos estatutos, depois de ouvido o Conselho Nacional de Educao. A propsito, os estatutos das universidades, como os das faculdades isoladas, teriam que ser aprovados pelo Ministrio da Educao, o que propiciava um controle prvio bastante grande. Nas instituies pblicas, com maior razo, o controle governamental no era menor. Nas universidades federais e estaduais, todas as modificaes fundamentais a respeito da organizao didtica ou administrativa de suas unidades constitutivas s poderiam efetivar-se com a aprovao dos respectivos governos, depois de ouvido o Conselho Nacional de Educao.

Esse controle no era sequer dissimulado. A exposio de motivos do Ministro da Educao ao Presidente da Repblica, que encaminhou o projeto do Estatuto, esclarecia as razes pelas quais se optava pela autonomia relativa das universidades. Dizia que, pelo fato de estar o regime universitrio brasileiro em sua fase nascente, dando seus primeiros passos e fazendo suas primeiras tentativas de adaptao, no seria prudente nem seguro dar autonomia total s universidades. Ao contrrio, com uma autonomia relativa (ou seja, limitada), o Ministrio estaria exercendo uma grande funo educativa sobre o esprito universitrio, que com o tempo viria a adquirir a experincia e o critrio indispensveis para uma autonomia mais ampla, fosse no terreno administrativo, fosse no didtico.

A prtica conduziu, sem dvida, a uma direo oposta. Em vez de ampliar as competncias das universidades, o governo as restringiu. A razo se encontra no controle a que se buscou submeter as universidades, no contexto de radicalizao poltica e ideolgica dos anos 1930.

Durante a Repblica Populista (1945-1964), as universidades se multiplicaram, embora em velocidade menor do que as instituies isoladas de ensino superior, especialmente as privadas. O Governo Federal assumiu forte protagonismo na redefinio organizacional, mediante a reunio, em universidades, de faculdades isoladas (inclusive as que haviam sido estatizadas). Paralelamente, as universidades confessionais nasceram da duplicao desse processo, por iniciativa privada.

Apesar da prevalncia de valores liberais-democrticos no campo poltico-partidrio, na confluncia desse campo com o educacional surgiu uma concepo segundo a qual a democratizao da educao implicaria, justamente, a limitao da autonomia universitria.

Nos primeiros anos da dcada de 60, o protagonismo da Unio Nacional dos Estudantes levou realizao de trs seminrios nacionais sobre a reforma universitria, em 1961, 1962 e 1963. Os primeiros dois seminrios produziram, significativamente, cartas respectivamente da Bahia e do Paran, estados em cujas capitais se realizaram aluso ao texto de Crdoba, embora naquelas a influncia de idias revolucionrias se manifestasse com uma nfase inexistente nesta.

Ns cartas da UNE estavam mescladas as ideologias polticas de maior aceitao na categoria estudantil, principalmente o marxismo e o populismo, predominando uma viso sincrtica. A respeito da autonomia universitria, as idias de alguns intelectuais e dos dirigentes estudantis era a de que ela consistia em obstculo para seu projeto de colocar a universidade a servio do povo. Na Carta de Paran, os estudantes revelaram-se desconfiados diante da idia de autonomia universitria. Temiam que fosse mal utilizada na contratao de professores e funcionrios, no uso dos recursos, na aplicao de penalidades e, inclusive, para aumentar as barreiras que dificultavam o acesso de estudantes de origem popular.

Enquanto reivindicavam a reduo da autonomia universitria diante do Estado, os estudantes pretendiam, tambm, o co-governo, resultado da representao estudantil nos conselhos e nas congregaes, com a proporo de um tero do total de membros7 , e a eleio por voto dos reitores, no mais cabendo ao Presidente da Repblica nome-los. Apesar de intensa movimentao poltica (inclusive a primeira greve nacional de estudantes), no se logrou a representao pretendida, permanecendo as universidades com a competncia para definir, em seus estatutos, o nmero de representantes nos rgos colegiados.

O golpe de Estado de abril de 1964 revelou a vulnerabilidade da universidade interveno estatal numa extenso desconhecida at mesmo na poca da ditadura de Vargas.

Enquanto as instituies privadas de ensino superior recebiam incentivos financeiros de toda a ordem, as universidades pblicas eram alvo de intervenes policiais e militares. Houve universidades que tiveram reitores e diretores de faculdades destitudos, professores compulsoriamente aposentados e estudantes expulsos. A maior parte das entidades estudantis foi fechada, impondo-se novas formas de organizao, bastante mais restritivas. Reitores e diretores passaram a ser pessoalmente responsveis pelo controle poltico e ideolgico dos centros acadmicos e dos estudantes, ameaados com processo penal e demisso. No incio de 1969, o decreto-lei 477 previa a demisso de professores e funcionrios, e a expulso de estudantes, proibindo os primeiros de trabalhar e os ltimos de estudar em qualquer estabelecimento de ensino do pas.

Ao contrrio do que ocorreu nos pases hispano-americanos vitimados pela onda ditatorial dos anos 60 e 70, no Brasil a fora da ditadura foi tambm utilizada para modernizar as universidades pblicas. Dois decretos-leis, um de 1966 e outro, de 1967, levaram essas universidades a reformar seus estatutos, determinando profundas alteraes em suas estruturas. Essas mudanas, e outras delas derivadas foram acompanhadas da distribuio ou a redistribuio dos cargos do magistrio e dos funcionrios por novas unidades, implicando a remoo ou readaptao de seus ocupantes. Como preparao para enfrentar as reaes, aqueles decretos-leis evocaram os atos institucionais do governo militar que suspendiam as garantias legais do carter vitalcio da ctedra, assim como a segurana e a estabilidade dos funcionrios pblicos, ameaando com demisso, aposentadoria e outras punies os que no aceitassem as mudanas ditadas pelo novo regime.

Em novembro de 1968, foi promulgada a lei 5.540, denominada Lei da Reforma Universitria, que estendeu as novas formas de organizao das universidades federais s estaduais, s privadas e aos estabelecimentos isolados. Ainda que essa lei reconhecesse a autonomia didtico-cientfica, disciplinar, administrativa e financeira das universidades, seus dispositivos a limitavam, como tambm o faziam os atos de exceo e as intervenes governamentais.

Segundo a Lei da Reforma Universitria, o mecanismo de cooptao para a escolha de dirigentes, em vigor desde o Estatuto de 1931, foi alterado, com prejuzo para a autonomia das instituies. A elaborao da lista de nomes de candidatos a reitor, para posterior escolha pelo Presidente da Repblica, j no seria atribuio do Conselho Universitrio unicamente, mas, sim, deste em conjunto com outros conselhos da universidade de ensino, pesquisa, extenso, de curadores. Neste havia um representante do Ministrio da Educao e prevaleciam, no conjunto, os membros nomeados pelo prprio reitor. As listas de candidatos a reitor j no teriam trs nomes, mas seis, de modo a aumentar em muito a probabilidade de incluso de pessoas de confiana do regime militar.

Se a dcada de 1970 assistiu, no Brasil, desmobilizao do movimento estudantil, assistiu, tambm, ao nascimento do movimento de professores, que resultou na criao do Sindicato Nacional de Docentes do Ensino Superior-ANDES. Esse movimento docente consolidou-se nas universidades pblicas e teve dificuldades de se desenvolver nas universidades privadas e nas faculdades isoladas. At o momento, o sindicato docente detm sua hegemonia com base nas universidades federais, nas quais a carreira e a remunerao dos docentes so nicos, definidas por legislao prpria. Os funcionrios tcnico-administrativos, por sua vez, criaram uma federao de sindicatos locais, na qual os das universidades federais detm a hegemonia, pela mesma razo.

As vicissitudes da conjuntura poltica do pas, mais do que o contexto propriamente universitrio, levaram os sindicatos de docentes e de funcionrios, assim como a UNE, a darem especial importncia eleio dos dirigentes universitrios pelo voto direto a um aspecto da autonomia processual, portanto.

medida que o ltimo governo militar foi se desintegrando pelo avano das conquistas democrticas, vrias universidades estabeleceram situaes de compromisso entre essas demandas de eleio direta e paritria dos dirigentes e os dispositivos legais que previam a cooptao8 . A demanda de eleio direta dos dirigente universitrios estendeu-se para a mudana na composio dos rgos colegiados das universidades, de modo a faz-la paritria.

Mas, a projeo da composio poltica (para)sindical sobre a gesto das universidades pblicas no se faz sem resistncias. Assim, possvel dizer que h uma luta entre o poder acadmico e o poder sindical, que se manifesta com mais intensidade por ocasio da escolha dos dirigentes, sobretudo dos reitores (Cunha, 2003).

Os poderes em confronto so organizados por lgicas distintas.

O poder acadmico orientado pelo topo. Ele se assenta em coalizes de grupos institucionalizados de interesse especfico, de natureza disciplinar ou profissional, sem sintonia sindical. Ele privilegia a representao dos docentes-pesquisadores de mais elevada qualificao nos rgos colegiados e, em certas universidades de mais elevado padro no ensino e na pesquisa, restringe a ocupao dos cargos diretivos aos que esto no topo da carreira. Essa orientao pelo alto consistente com o mecanismo de julgamento de projetos de pesquisa, no interior da universidade e no mbito dos rgos de fomento, por comits formados por docentes-pesquisadores escolhidos pelos pares, mas dentro de critrios estritos de distino acadmica. O mesmo se d com a composio das bancas de concurso para a admisso de novos docentes-pesquisadores.

J o poder sindical orientado pela base. Pelo menos em seu propsito trabalhista original, o sindicato privilegia o que h de comum a todos os seus membros, isto , o fato de terem igual relao de trabalho com a instituio. Para levar em conta o que h de comum a todos os empregados, o sindicato s pode considerar o que concerne a todos, logo tem de se pautar pelos interesses e pela conscincia possvel dos filiados menos posicionados na estrutura da universidade. A igualdade, em oposio ao mrito, o termo chave em sua plataforma.

Ambas as lgicas tm sido objeto de apodos pejorativos. A organizao do poder acadmico chamada de elitista, enquanto que a lgica do poder sindical, de expresso do baixo clero (no caso dos docentes). Em termos ideal-tpicos, o poder acadmico no conflita com o poder sindical, so apenas diferentes. Mas, quando o poder sindical extravasa sua atuao e entra no mbito dos rgos colegiados das universidades, em disputa por ampliao do exerccio do poder poltico, o conflito inevitvel.

A disputa entre esses dois poderes ser, provavelmente, arbitrada pelo Governo Federal, que dirige a elaborao de um projeto de lei de reforma da educao superior, a que se chama lei da reforma universitria, numa confuso da universidade institucional existente no topo do campo educacional. Ao que parece, a iniciativa governamental no sentido de eliminar o critrio de cooptao na escolha dos dirigentes universitrios e deixar que os critrios de sua eleio sejam definidos no mbito de cada instituio. Essa posio, de aparente respeito autonomia universitria, coincide, exatamente, com a demanda do aparato sindical, pois transfere para o interior de cada universidade as lutas pela hegemonia, fragmentando eventuais resistncias do poder acadmico que, no plano nacional, poderia mobilizar organizaes de peso poltico e profissional.

Portanto, num sentido ou noutro, as decises de peso em matria do controle poltico e ideolgico das universidades pblicas brasileiras esto sendo tomadas fora do mbito universitrio, situao propiciada pelo incipiente desenvolvimento de seu prprio ethos.

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NOTAS

* Professor Titular da Faculdade de Educao e Coordenador do Laboratrio de Estudos das Universidades da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

** Texto preparado para o Primeiro Seminrio de Pesquisa na Regio Latino-Americana e no Caribe, do Foro da UNESCO sobre Educao Superior, Pesquisa e Conhecimento, Porto Alegre (RS), Brasil, 1-3 de setembro de 2004.

1 Le Goff afirma que o sculo XIII foi o sculo das universidades porque foi o sculo das corporaes.

2 Como exemplo das primeiras, cita as universidades de Paris, de Bolonha, de Oxford e de Montpellier; das segundas, as de Cambridge e de Pdua; dentre as ltimas, a de Npoles foi o primeiro caso, em 1224.

3 Foi a Universidade de Paris que conduziu o processo contra Joana DArc e, segundo Le Goff, anunciou sua condenao ao rei da Inglaterra, com evidente satisfao.

4 No que diz respeito universidade, os conflitos levaram os tchecos ao poder da instituio e os alemes a migrarem para fundar a Universidade de Leipzig.

5 Embora elaborada por reitores das universidades europias, a Carta foi subscrita por mais de 400 reitores de universidades de todo o mundo.

6 possvel que, em certos pases, as universidades constituam um campo. Como, em outros, isso no acontece, parece-me que, mesmo nesses pases, valeria a pena considerar as universidades como tambm participantes necessrios dos campos que sero indicados em seguida.

7 Como o conselho universitrio era formado, basicamente, pelos diretores das unidades e de um representante de cada uma das respectivas congregaes, os estudantes pretendiam ter um representante de cada faculdade, escola e instituto. Em conseqncia, o conselho universitrio teria a seguinte composio: dois teros de docentes (um tero formado pelos diretores de unidade e um tero de representantes das congregaes) e um tero, de representantes dos estudantes.

8 Uma frmula bastante utilizada foi a da consulta comunidade universitria, processo pelo qual os colegiados superiores endossam as listas dos nomes dos candidatos mais votados para o cargo de reitor. Docentes, funcionrios e estudantes tm seus votos poderados, de modo que cada uma dessas categorias tenha um tero do total.