Ciencia, Etica e Sustentabilidade

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  • Cincia, ticae Sustentabilidade

    D E S A F I O S A O N O V O S C U L O

  • Edies UNESCO Brasil

    Conselho EditorialJorge WertheinMaria Dulce de Almeida BorgesClio da Cunha

    Comit para a rea de Cincias e Meio AmbienteCelso Salatino SchenkelBernardo Marcelo BrummerAry Mergulho Filho

    Assistente EditorialLarissa Vieira Leite

    Cincia, tica e sustentabilidade / Marcel Bursztyn (org.). 2. ed So Paulo : Cortez ; Braslia, DF : UNESCO, 2001

    Vrios autores.ISBN 85-249-0783-5

    1. Cincia Aspectos sociais 2. Desenvolvimento sustentvel 3.tica social 4. Tecnologia Aspectos sociais I. Bursztyn, Marcel.

    01-1185 CDD-303.483

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Desenvolvimento sustentvel : Cincia e tica :

    Mudanas sociais : Sociologia 303.483

  • MARCEL BURSZTYN (Org.)

    Argemiro Procpio Filho Arminda E. Marques CamposEduardo Baumgratz Viotti Elimar Pinheiro do NascimentoJenner Barretto Bastos Filho Roberto dos S. Bartholo Jr.

    Cincia, ticae Sustentabilidade

    D E S A F I O S A O N O V O S C U L O

    CDS - UnB

  • CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADEMarcel Bursztyn (org.)

    Capa: Edson FogaaPreparao de originais: Liege MarucciReviso: Maria de Lourdes de AlmeidaComposio: Dany Editora Ltda.Coordenao editorial: Danilo A. Q. Morales

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro,assim como pelas opinies aqui expressas, as quais no so necessariamentecompartilhadas pela UNESCO, nem so de sua responsabilidade.As denominaes empregadas e a apresentao do material no decorrer desta obrano implicam a expresso de qualquer opinio que seja parte da UNESCO no que serefere condio legal de qualquer pas, territrio, cidade ou rea, ou de suasautoridades, ou a delimitao de suas fronteiras ou divisas.

    Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizaoexpressa da UNESCO e da Editora.

    UNESCO 2000

    Direitos para esta edioCORTEZ EDITORARua Bartira, 317 Perdizes05009-000 So Paulo SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-mail: [email protected]

    Impresso no Brasil outubro de 2001

    UNESCOSAS Quadra 5 Bloco H Lote 6Ed. CNPq/IBICT/UNESCO 9 andar70070-914 Braslia-DF BrasilTel.: (55 61) 321-3525Fax: (55 61) 322-4261E-mail: [email protected]

  • SUMRIO

    APRESENTAO .......................................................................... 7

    INTRODUO Cincia, tica e Sustentabilidade:Desafios ao novo sculoMarcel Bursztyn ............................................................................. 9

    CAPTULO 1 O que um Intelectual?Arminda Eugenia Marques Campos e Roberto S. Bartholo Jr. ...... 21

    CAPTULO 2 Solido e Liberdade: Notas sobre acontemporaneidade de Wilhelm von HumboldtRoberto S. Bartholo Jr. .................................................................... 43

    CAPTULO 3 A Cincia Normal e a Educao soTendncias Opostas?Jenner Barretto Bastos Filho ........................................................... 61

    CAPTULO 4 Educao e desenvolvimento nacontemporaneidade: dilema ou desafio?Elimar Pinheiro do Nascimento ...................................................... 95

    CAPTULO 5 Segurana Humana, Educao eSustentabilidadeArgemiro Procpio .......................................................................... 115

  • 6 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    CAPTULO 6 Cincia e Tecnologia para o DesenvolvimentoSustentvel BrasileiroEduardo Baumgratz Viotti ............................................................. 143

    CAPTULO 7 Prudncia e Utopismo: Cincia e Educaopara a SustentabilidadeRoberto S. Bartholo Jr. e Marcel Bursztyn ..................................... 159

    SOBRE OS AUTORES ................................................................... 189

  • APRESENTAO

    O final do sculo XX deixou claro um conjunto de preo-cupaes que devem orientar a conduta intelectual dos ci-entistas. Protagonistas de um formidvel poder de modifi-car nosso mundo, os pesquisadores encarnam agora, maisdo que em qualquer outra poca, um papel que representaao mesmo tempo a esperana da soluo de problemas eimpasses e tambm o risco de que novos problemas e impassessurjam, como decorrncia do prprio avano da cincia.

    A degradao do meio ambiente, que tem sido objetode alarmes h dcadas, , sem dvida, um notvel exemplode seqelas da utilizao de novos conhecimentos sem umaprvia considerao dos efeitos sobre as condies de vidano longo prazo. Os novos progressos no campo da genticachamam a ateno, igualmente, para o imperativo de se es-tabelecer critrios de avaliao das conseqncias do uso deconhecimentos aplicados s tcnicas.

    A responsabilidade da elite cientfica , portanto, umtema inevitvel se quisermos encarar o desenvolvimento deforma sustentvel. E, nesse sentido, h que se introduzir odebate sobre a tica, invocando sua funo reguladora dascondutas cientficas.

    A presente obra rene um conjunto de textos produzi-dos por pesquisadores universitrios preocupados com esteinstigante desafio. Trata-se de estudos que contribuem, sob

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    diversos ngulos, para o aprofundamento do debate, no quala UNESCO se empenha por fora de seu mandato.

    Organizada pelo professor Marcel Bursztyn, do Cen-tro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade deBraslia instituio parceira da UNESCO , a obra tornapblicas as reflexes de uma crescente comunidade de pes-quisadores que levantam crticas e apontam caminhos paraa reviso do papel da Universidade, da Cincia e das Polti-cas Pblicas.

    nosso desejo que o produto desse esforo sirva parafomentar novas reflexes sobre as inter-relaes entre trsingredientes to instigantes: cincia, tica e sustentabilidade.

    Jorge WertheinRepresentante da UNESCO no Brasil

  • INTRODUO

    CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE:desafios ao novo sculo

    Marcel Bursztyn

    No limiar do sculo XXI, diante de um quadro demarcantes desafios a serem enfrentados, de problemas noresolvidos, de obstculos criados pela prpria ao do ho-mem, o papel da cincia posto em evidncia em todos osbalanos e anlises prospectivas. Mesmo no sendo exata-mente o fim de uma era civilizatria ou de um grande cicloeconmico ou tecnolgico, a ocasio virada de sculo, demilnio instiga reflexes sobre as grandes realizaes ependncias do perodo que se encerra.

    Alis, foi assim tambm ao final do sculo XIX. Na-quela poca, os analistas e pensadores vislumbravam umfuturo promissor para a humanidade, tendo em vista oselementos e realizaes que marcavam a realidade quevivenciavam: uma ampliao notvel dos mecanismos deproteo social (polticas pblicas de sade, educao eprevidncia); uma extenso dos direitos civis e de sufr-

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    gio, incorporando parcelas da populao at ento mar-ginalizadas da cidadania; enfim, um perodo de paz e deprosperidade.

    evidente que o balano do final do sculo XX revelauma grande frustrao e acena com uma constrangedorapauta de pendncias a serem encaradas.

    O quadro a seguir esquematiza as vises para o futuronos dois momentos, permitindo uma comparao:

    Fim do sculo XIX Fim do sculo XX

    Expectativa geralpara o futuro

    Otimismo Pessimismo

    Papel da cincia eda tecnologia

    Forte crena nacapacidade deresoluo dos

    problemas

    Desencanto econscincia danecessidade de

    precauo

    Condies de vida Perspectiva debem-estar (welfare)

    Um mal-estar peloagravamento de

    carncias

    Instncia reguladora Crescentemente oEstado

    Crescentemente oMercado

    Relao entre ospovos

    Paz Guerras

    Relaes entregrupos sociais

    Maior igualdade Maior desigualdade

    Economia Forte crescimento Crescimento lento,estagnao

    Progresso Promotor deriqueza

    Causador deimpactos

    ambientais

    Mundo Interdependncia(mercados) e

    complementaridade

    Globalizao eexcluso de regies

    desnecessrias

  • INTRODUO 11

    O pessimismo geral em relao ao futuro guarda estreitarelao com o crescente grau de conscincia de que a busca doprogresso, que se anunciava como vetor da construo de umautopia de bem-estar e felicidade, revelou-se como ameaa.

    Nesse sentido, os recados que o sculo XX deixa para oseguinte, em termos do papel da cincia e da tecnologia,constituem um apelo por mudanas de conduta, resultadode pelo menos cinco categorias de impasses:

    A conscincia das possibilidades reais de que a hu-manidade possa se autodestruir, pelo uso de seusprprios engenhos (bombas, mudanas climticas,degradao das condies ambientais).

    A conscincia da finitude dos recursos naturais (a es-cassez de gua apenas a ponta de um grande iceberg).

    A conscincia de que preciso agir com cautela econsiderar os aspectos ticos da produo de conhe-cimentos cientficos e, sobretudo, do desenvolvimen-to de tecnologias (a sndrome do aprendiz de feiticeiro).

    A conscincia de que mesmo no tendo resolvido anecessria solidariedade entre grupos sociais e po-vos, preciso que se considere tambm o princpioda solidariedade em relao a futuras geraes (a ti-ca da sustentabilidade).

    A conscincia de que, na medida em que nossas so-ciedades vo ficando mais complexas, preciso maisao reguladora, o que normalmente se d pelo po-der pblico; hoje, com a crise do Estado, a regulaodeve se valer de novas regulamentaes e de umacrescente contratualizao entre atores sociais (cdi-gos de conduta, sistemas de certificao).

    Como bem assinalou Ivan Illich, referindo-se ao desen-canto em relao s promessas da Revoluo Verde, a taxade crescimento das frustraes excede muito da produo.1

    1. Citado por Andr Gorz, cologie et politique, Paris, Editions du Seuil, 1978,p. 65.

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    Entretanto, se, por um lado, h fortes elementos queinspiram pessimismo, relevante, por outro lado, assinalaraspectos que podem ser vistos como sinais de que h espa-o para otimismo:

    a bomba demogrfica foi desmontada; o fim da guerra fria reduziu a corrida armamentista; e as crises energtica e de esgotamento de certos re-

    cursos naturais estimulou o desenvolvimento de pro-cessos produtivos menos intensivos e perdulrios nouso de matrias-primas e energia.

    Para entender as lies deixadas pelo sculo XX para oXXI, relevante buscar lies na histria como base para, apartir do conhecimento dos impasses atuais, traar linhasde conduta das atividades de produo de conhecimentoque estejam em sintonia com um horizonte civilizatrio sus-tentvel.

    A tnica de todos os trabalhos que compem a presen-te coletnea a relao entre a cincia, as condicionantesticas de sua produo e uso e o imperativo da conciliaoda busca de melhores condies materiais de subsistnciacom a necessidade de um desenvolvimento que seja susten-tvel. Esse o desafio expresso na Agenda 21, consenso pol-tico formal sobre o que para ser feito e como devemos pro-ceder no novo sculo.

    Na Universidade contempornea, esse desafio tem seconfrontado com um modus operandi que nasceu e foi se de-senvolvendo em conformidade com os paradigmas que mar-caram nossa era industrial: produtivismo, hegemonia da cin-cia sobre a natureza, especializao e disciplinaridade.

    A aproximao da Universidade em relao aos ele-mentos contidos no tema desenvolvimento sustentvel no to recente como a consagrao do conceito, que da se-gunda metade da dcada de 1980.

    Pelo menos desde o ps-Segunda Guerra Mundial, temhavido notveis reflexes sobre os limites ticos que con-

  • INTRODUO 13

    frontam com o desempenho cientfico, apontando para a fra-gilidade e as limitaes da postura estritamente disciplinar.O fsico Jacob Bronowsky, ativo pesquisador do ProjetoManhattan, que produziu a bomba jogada em Hiroshima, protagonista de um questionamento pioneiro e exemplar emrelao responsabilidade dos cientistas quanto ao uso dosconhecimentos que ajudam a gerar. Numa poca em queainda no se ouviam ponderaes dessa natureza, chamoua ateno para o imperativo de se estabelecer limites ticosao desenvolvimento cientfico.

    Nos rebeldes anos 1960, comeam a proliferar alertas,vindos da Universidade, quanto insensatez do modo comoo avassalador avano das cincias vinha se transformandoem tecnologias e processos produtivos ameaadores pere-nidade da vida. Rachel Carson (Silent spring), nas cinciasagrrias, e Garret Hardin (The tragedy of the commons), nabiologia, so expoentes representativos daquele momento.

    J nos anos 1970, a preocupao chega cincia econ-mica, notadamente a partir do relatrio de Denis Meadowsao Clube de Roma (The limits to growth).

    De l para c, a sintonia da Universidade com temasassociados ao meio ambiente e qualidade de vida das fu-turas geraes s tem crescido. Entretanto, a relao do meioacadmico institucionalizado com esse tipo de tema mui-to difcil. A organizao departamentalizada valoriza as es-pecialidades e avessa a vises interdisciplinares. Toda aestrutura de fomento, avaliao, reconhecimento e valida-o de mrito das atividades de desenvolvimento cientficoe tecnolgico no meio acadmico est orientada para os cor-tes das reas do conhecimento e suas respectivas disci-plinas. E, por outro lado, tambm os pesquisadores foramse organizando em torno de associaes corporativas disci-plinares.

    Postular, hoje, a abertura de espaos institucionalizadospara a prtica acadmica interdisciplinar implica resgatar aherana recente de experincias relevantes (no falemos na

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    velha Universidade generalista de outras pocas, que for-mava cientistas com viso de muito mais universalizada).J h uns cinqenta anos, incrustava-se no tecido acadmi-co temas como o Planejamento, que interdisciplinar pordefinio. Depois, veio o Desenvolvimento Regional e o Pla-nejamento Urbano.

    A chegada do tema Meio Ambiente base para oenfrentamento do desafio do Desenvolvimento Sustentvel Universidade se d a partir de contextos departamenta-lizados. Primeiro, foram os departamentos de biologia, dequmica e de engenharia sanitria. Mas, depois, a adeso aotema foi se espalhando pelos campi. O adjetivo ambientalcomea a aparecer acoplado a vrias disciplinas: engenha-ria ambiental, direito ambiental, educao ambiental, socio-logia ambiental, histria ambiental, geologia, qumica..., almde outras verses, como a agroecologia. Na biologia, a eco-logia vai se tornando um campo com grande destaque. Si-nal dos tempos!

    importante, entretanto, contextualizar o momento emque a preocupao ambiental se internaliza na Universida-de, em particular no Brasil. Pelo menos dois aspectos mere-cem, nesse sentido, ser destacados:

    o enraizamento institucional, corporativo e burocr-tico do modelo disciplinar; e

    a avassaladora crise financeira, que compromete a ca-pacidade de surgimento de novos campos e que exa-cerba as disputas corporativas, rejeitando novidades.

    Nesse sentido, ainda que parea paradoxal, a preocupa-o com o desenvolvimento sustentvel cresce em importn-cia, mas no encontra um espao institucional compatvel.

    E, para completar, as estruturas de apoio, fomento eavaliao tambm se mostram pouco permeveis interdisciplinaridade. Operam por meio de cortes rigorosa-mente corporativos e os mais sinceros acenos no sentido dereconhecer a relevncia da interdisciplinaridade tm se re-

  • INTRODUO 15

    sumido a uma arquitetura institucional, no mximomultidisciplinar.

    Diante de impasses como esses, a comunidade cientfi-ca, interessada na prtica interdisciplinar do ensino e dapesquisa voltados ao Meio Ambiente e Desenvolvimento,se depara com o seguinte desafio: fazer com que seja reco-nhecida a relevncia, validar os esforos e legitimar os es-paos de trabalho, no interior do tecido universitrio e fren-te s agncias de apoio, fomento e avaliao.

    Mas como operar esta estratgia, diante das dificulda-des burocrticas, culturais e materiais?

    A resposta a essa questo passa por pelo menos quatrocategorias de considerao:

    preciso deixar claro que os espaos de interdis-ciplinaridade no devem ser vistos como concor-rentes em relao aos departamentos: so comple-mentares.

    H que se romper com preconceitos de cunho espe-cialista: a viso generalista e integradora no umaqualidade menor; um atributo necessrio aoenfrentamento de problemas complexos.

    relevante instituir instrumentos de avaliao e deapoio que sejam flexveis e permeveis s caracters-ticas dos enfoques interdisciplinares.

    fundamental que espaos interdisciplinares sirvamde foco s reflexes de fundo sobre o desenvolvimen-to da cincia e da tecnologia (tais como a transgeniae a biotica). E, aqui, um desafio particular se apre-senta: mesmo tendo sido um avano em termos dedemocratizao do processo decisrio, o julgamen-to dos pares traz, em si, o risco da cumplicidade eda falta de viso crtica; agora, temos de pensar tam-bm no julgamento dos mpares.

    A presente obra foi organizada a fim de servir de sub-sdio reflexo e ao debate sobre os rumos da organizao

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    da produo de conhecimentos cientficos e tecnolgicos,diante dos desafios ticos e operacionais que emergem doimperativo de se buscar um desenvolvimento que seja sus-tentvel em todas as dimenses (econmica, social, polti-co-institucional, cultural, ecolgica, territorial).

    O texto O que um intelectual?, de Arminda EugeniaMarques Campos e Roberto S. Bartholo Jr., destaca que osurgimento da Universidade foi acompanhado pelo desen-volvimento de uma nova concepo sobre a atividade depensar-ensinar, da qual no estava ausente a discusso so-bre os aspectos ticos. A Universidade foi vista, ao menospor parte dos universitrios medievais, como o ambienteadequado para a vivncia de uma tica justificada filosofica-mente, experimentada na comunicao de idias, e para oaperfeioamento pessoal. O objetivo do texto, relembrando, fornecer um tema de reflexo para iniciativas de pensarmodelos de universidade em que o estudo vise no aceitaros fatos como inalterveis e adaptar-se permanentemente afatores externos, mas aprender a aprender, aprender arefletir e a partilhar idias e descobertas.

    O texto Solido e liberdade: Notas sobre a contemporaneidadede Wilhelm von Humboldt, de Roberto S. Bartholo Jr., trata oprojeto de fundao da Universidade de Berlim, em 1809,proposto por Wilhelm von Humboldt, como um caso exem-plar, capaz de trazer ensinamentos para os rumos da Uni-versidade brasileira hoje.

    Wilhelm von Humboldt responde ao desafio de man-ter-se fiel ao iderio iluminista, sem negar o enraizamentonuma identidade cultural nacional subjugada pelo triunfodas tropas napolenicas. A modernidade, impulsionada pelaglobalizao contempornea, coloca desafios anlogos. Oiderio iluminista humboldtiano, de realizar uma formaotica da pessoa pela formao cientfica universitria, ga-nha uma marcante atualidade. Traduzi-lo criativamente parao nosso contexto, em que os poderes da tecnocincia cres-cem numa aparentemente ilimitada espiral cumulativa, tor-na-se um notvel desafio poltico-filosfico, e ignor-lo pode

  • INTRODUO 17

    colocar em risco a prpria sustentabilidade institucional daUniversidade como instrumento de organizao da cultura.

    Jenner Barretto Bastos Filho, em seu trabalho A cincianormal e a educao so tendncias opostas?, parte do conflitoque se estabelece entre a cincia normal que segue o relatokuhniano acerca do desenvolvimento da cincia, de um lado,e, de outro, a educao.

    O cientista normal de Kuhn tem um perfil tal queimplica uma aderncia rgida a um paradigma. Esse fato ne-cessariamente envolve compromissos bsicos, implcita e ex-plicitamente assumidos, que limitam severamente a crtica,principalmente aquela que se constitua numa violao des-ses compromissos assumidos pela comunidade praticantedo paradigma. A educao, e aqui se deseja a educao real-mente genuna e no o mero adestramento nem o simplestreinamento, tem como razo precpua justamente a crtica,o questionamento, a cidadania e a procura de autonomia.

    O argumento desenvolvido no texto o de que a solu-o do conflito passa necessariamente pela questo da au-tonomia, entendida nas suas dimenses epistemolgica, ticae poltica. Para tanto, preciso uma radical reforma, tantodo pensamento quanto das atitudes ticas.

    Em seu texto Educao e desenvolvimento na contempo-raneidade: dilema ou desafio?, Elimar Pinheiro do Nascimentoindaga sobre a natureza das relaes entre educao e de-senvolvimento. Essas relaes, tidas como tradicionais, apre-sentam mudanas no mundo de hoje, obrigando-nos a re-fletir sobre a pertinncia das respostas tradicionais. Defi-nindo-as como de trs naturezas (fator de mobilidade so-cial, fator de desenvolvimento econmico e introjeo dosvalores da nacionalidade), o texto avalia que essas respos-tas se mantm atuais apenas na medida em que se observe acomplementaridade entre elas, sobretudo ao se consideraras transformaes sociais que obrigam a uma reforma radi-cal da escola, sem a qual esta no poder desempenhar seupapel. Para isso, sinaliza com o fato de todos os cenrios

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    mundiais apresentarem o aspecto comum da continuidadedas profundas mudanas tecnolgicas em curso. Em segui-da, defende a idia de que esta reforma possvel, depen-dendo apenas de deciso poltica. Conclui mostrando comoexperincias positivas ocorrem no Brasil, apresentando, comexemplo, o caso de Braslia durante o governo CristovamBuarque.

    Conseqncias de fenmenos como a excluso social ea ausncia da educao como garantia do desenvolvimentosustentvel so analisadas no texto Segurana humana, edu-cao e sustentabilidade, de Argemiro Procpio. As causas dodesordenamento tico e seus reflexos no desrespeito gene-ralizado aos direitos humanos, principalmente por meio dasbrutais desigualdades sociais, da corrupo e da violncia,brotam nesta anlise, que tambm enfoca o submundo dasdrogas ilcitas.

    O texto desvenda razes e conseqncias das enormesdesigualdades no Brasil, apontando os riscos seguranahumana.

    Eduardo Baumgratz Viotti, em seu trabalho Cincia etecnologia para o desenvolvimento sustentvel brasileiro, chamaa ateno para uma perspectiva diferente da relao entresustentabilidade, tica e cincia. Mostra como a difuso de-sigual das capacitaes para produzir e utilizar a cinciacondiciona profundamente a situao das naes. Indica quea busca do desenvolvimento sustentvel em naes de in-dustrializao tardia, como o Brasil, ir requerer um esforoextraordinrio nesses pases, com a realizao de dois pro-cessos simultneos de transformao histrica. Um a su-perao de condies de misria e desigualdade, o que, emgrande medida, j ocorreu em naes industrializadas. Ooutro o redirecionamento do processo de desenvolvimen-to de acordo com a nova tica da sustentabilidade.

    O artigo pode ser interpretado como um alerta para oslimites mais estreitos que as condies estruturais impems naes de industrializao tardia. Os graus de liberdade

  • INTRODUO 19

    existentes para o exerccio da nova tica da sustentabilidadeparecem muito mais estreitos nos casos daquelas naes. Asnaes de industrializao tardia no participam dos mer-cados internacionais com produtos novos (sem concorren-tes) ou com produtos produzidos por tecnologias mais pro-dutivas que as dos concorrentes, como o fazem as naesindustrializadas. Por no terem como recorrer a esse tipo devantagens tecnolgicas, a competitividade de naes, comoo Brasil, acaba sendo, em grande parte, dependente de pro-cessos que comprometem as condies de vida da popula-o (atual e futura) ou que superexploram suas bases de re-cursos naturais.

    Finalmente, o texto Prudncia e utopismo: cincia e educa-o para a sustentabilidade, de autoria de Roberto S. BartholoJr. e Marcel Bursztyn, enfoca o atual impasse ontolgico dodesenvolvimento das cincias, processo estreitamente rela-cionado ao modo de organizao do sistema educacionalvigente.

    Desde os alertas de Malthus de que o crescimento ace-lerado da populao estava em descompasso com a capaci-dade de se alimentar a todos, passando pela formidvel re-voluo produtiva que marcou o mundo desde ento, atchegar aos alertas neomalthusianos de que estaramos amea-ados por uma bomba populacional, muita coisa mudou.

    Mudou nosso modo de ver a natureza, agora transfor-mada em meio de produo; mudou nosso padro deessencialidades materiais; mudou a capacidade destrutivados artefatos blicos; mudou, qualitativa e quantitativa-mente, o ritmo de degradao ambiental; mudou o carterda cincia, que fundamenta os avanos tecnolgicos, o pro-gresso.

    Diante de tais transformaes, e de um aumento not-vel nos riscos que corre a humanidade, o momento atualrecomenda uma reviso dos paradigmas que movem a bus-ca do progresso. A quase inesgotvel capacidade criativados cientistas, mesmo quando direcionada ao desenvolvi-

  • 20 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    mento de conhecimentos voltados ao bem-estar, vem pro-vocando efeitos colaterais (ex: poluio) e levantando dvi-das e preocupaes (ex: manipulaes genticas) que apon-tam para uma necessria prudncia (princpio da precauo).O texto enfoca justamente o imperativo da tica como me-canismo de filtragem dos efeitos deletrios da busca do pro-gresso.

    O papel do tecnlogo aquele que transforma os co-nhecimentos cientficos em usos econmicos crucial. Aidia da precauo, hoje to propalada diante dasimprevisveis aplicaes de modernos avanos na engenha-ria gentica, j era uma preocupao de autores crticos htrs dcadas. Assim, como j advertia Paul Goodman, a for-mao acadmica de um profissional que atue na aplicaode conhecimentos para o desenvolvimento de tecnologiasdeve conter elementos das cincias sociais, do direito, debelas-artes e da medicina, alm das cincias naturais. Se-gundo o autor, cabe aos tecnlogos, e no apenas s agn-cias governamentais reguladoras, preocupar-se com a se-gurana e pensar nas conseqncias remotas, sendo capa-zes de avaliar criticamente os programas que lhes so da-dos a implementar.2

    Utopia? O desenvolvimento sustentvel uma utopiapossvel e sua construo plausvel: porque a crise atualdos paradigmas que movem o progresso industrialista au-toriza a ousadia de se pensar um outro modo de desenvol-vimento humano. A frmula ainda no est elaborada. Comrenovada tica, a cincia pode cumprir um importante pa-pel nesse sentido. Por isso, como adverte Boaventura deSousa Santos, no disparem sobre o utopista!3

    2. Decentralizing Power: Paul Goodmans Social Criticism, obra organizada porTaylor Stoehr, Black Rose Books, Montreal, 1984, p. 88.

    3. Boaventura de Souza Santos, Crtica da razo indolente: contra o desperdciode experincia. So Paulo, Cortez, 2000.

  • CAPTULO 1

    O QUE UM INTELECTUAL?Arminda Eugenia Marques Campos

    Roberto S. Bartholo Jr.

    Um lago evapora e, pouco a pouco, vai se esgotando. Masquando dois lagos esto unidos, eles no secam to facil-mente, pois um alimenta o outro. O mesmo ocorre no campodo conhecimento. O saber deve ser uma fora revigorante evitalizadora. Isso s possvel quando h um intercmbioestimulante com amigos afins, em cuja companhia se possadebater e procurar aplicar as verdades da vida.

    I-Ching: o livro das mutaes, Hexagrama 58 Ale-gria, comentrio imagem

    Apresentao

    As universidades surgidas na Europa do sculo XII fo-ram, em sua organizao e em seus mtodos de ensino, umacriao original dos latinos medievais1. A organizao e os

    1. Usa-se neste texto a expresso cristandade latina para referir-se ao terri-trio europeu medieval em que surgiram as primeiras universidades. Essa expres-so enfatiza a importncia do cristianismo e da herana latina como principais

  • 22 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    contedos de seus currculos, no entanto, foram em boa parteimportados, por meio de tradues para o latim de co-nhecimentos filosficos e cientficos greco-rabes2, com ostemas filosficos aportados pelas tradues influenciando acaracterizao de um novo tipo de homem, que ter, nasuniversidades, o domiclio do exerccio de seu ofciovocacional.3 um evento pleno de conseqncias portado-ras de um futuro. Nosso futuro. O futuro de uma civilizaoque fez da cincia e da tecnologia a condio de possibilida-de de um novo mundo.

    Os primrdios da universidade

    Um trao importante na genealogia de nosso NovoMundo a linhagem das instituies produtoras de co-nhecimento. Para isso, nossa ateno vai ser centrada nagenealogia das nascentes universidades no contexto da Eu-ropa Medieval cristianizada. A partir do sculo VII, aproxi-madamente, as atividades de ensino na cristandade latinamantinham-se, quase que em sua totalidade, sob a aladada Igreja, em particular vinculadas a mosteiros4. A finalida-

    denominadores comuns; recorda a existncia de cristandades no-latinas; evitaa confuso que pode criar o termo Ocidente, uma vez que, durante boa parte doperodo em questo, a parte mais ocidental do continente europeu era territriomuulmano; recorda que Europa era, ento, uma idia ainda em formao.

    2. Conhecimentos com origem na Antigidade grega, discutidos e desen-volvidos por pensadores do mundo islmico e difundidos em rabe. Em termosfilosficos, esses conhecimentos baseavam-se principalmente nas obras deAristteles e seus comentadores. Os pensadores do mundo muulmano maisimportantes para a absoro da filosofia aristotlica entre os latinos foram Farabi,Avicena e Averris.

    3. Para isso, sero utilizados, em particular: Domanski, 1996, De Libera,1991 e Le Goff, 1993.

    4. A reduzida parcela letrada da populao do perodo constitua-se, basica-mente, de clrigos7 monges, em particular, porque a situao do clero secularera ainda mais difcil. O termo clrigo passava a significar ao mesmo tempo ho-mem instrudo e aquele que, pela tonsura, entrou para a Igreja (Paul, 1973: 13);

  • O QUE UM INTELECTUAL? 23

    de do ensino no era mais, como no mundo romano, mantera uniformidade cultural nos diversos pontos do imprio epreparar para a vida pblica, mas dotar a Igreja de membroscapacitados a preservar e compreender as Escrituras e textosdoutrinrios e a participar da administrao eclesistica.

    Cerca de quatro sculos mais tarde, com a revitalizaodas cidades, as escolas monsticas comearam a perder in-fluncia em favor de escolas urbanas, ligadas a igrejas e acatedrais, em geral. Esse tipo de escola no surgiu no sculoXI; j existia, em alguns lugares, h bastante tempo. Nesseperodo, no entanto, elas aumentaram em nmero, tama-nho e importncia e passaram a ter maior continuidade. Esseaumento respondia aguda conscincia da necessidade deum clero secular melhor preparado, capaz de desempenhartarefas mais complexas e com uma compreenso mais pro-funda do prprio cristianismo, assim como ao crescenteengajamento, nos estudos, de pessoas sem interesse na car-reira eclesistica.

    Inicialmente, os professores das escolas episcopais cos-tumavam ser integrantes do captulo da Igreja, mas o cresci-mento do nmero de interessados em aprender, em parti-cular no sculo XII, levou necessidade de delegar parte doensino a pessoas externas ao captulo. Esses professoresagregados ensinavam em dependncias das igrejas ou ca-tedrais e, num momento posterior, puderam manter escolasindependentes, mediante a concesso de uma licena espe-cial, que seria chamada licentia docendi e que, a princpio, stinha valor no territrio em que o outorgante havia at en-to tido monoplio sobre o ensino. Surgiram, assim, vriasescolas sem vnculos diretos com uma igreja ou um captu-lo, a partir da reunio entre professores e alunos interessa-dos em seu ensinamento, os quais eram, freqentemente,responsveis pela remunerao do professor e pelo paga-

    a palavra leigo no deixaria mais de ser sinnimo de ignorante em algum grauou domnio.

  • 24 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    mento do que fosse necessrio, como o aluguel do local ondeocorriam as aulas.

    A prxima transformao no quadro da instruo foi areunio dos participantes no ensino em associaes e a uniodas escolas, que resultariam, no sculo XIII, nas universida-des.5 O estabelecimento dessas associaes decorria no ape-nas do crescimento do nmero de professores e alunos, masprincipalmente da conscincia crescente, entre eles, de queconstituam um grupo particular e partilhavam necessida-des especficas. Decorria do surgimento e fortalecimento, emseu meio, de um esprito de corpo reforado, com freqn-cia, por eventos que despertavam reaes coletivas. Noeram as escolas ou cursos que se reuniam: continuavam con-sistindo na reunio de um professor e seus alunos, com suaprpria forma de conduzir o ensino; continuavam, de certaforma, concorrentes; passavam a integrar uma federao.Eram as pessoas que se agrupavam, de modo similar s queestabeleceram outras associaes tpicas do ambiente urba-no da poca, como as corporaes de ofcios e as confrariasde mercadores. O objetivo era defender seus interesses ereivindicar o que julgavam ser suas prerrogativas, inclusiveno que dizia respeito regulamentao do ensino e ao con-trole de abusos praticados por alunos ou professores.6 Aolongo do sculo XIII, essas corporaes e a organizao doensino foram sendo gradativamente regulamentados, dan-do origem a um novo tipo de instituio.

    5. Na verdade, apenas no sculo XV o termo Universidade seria usado paradesignar o conjunto dos cursos, que era chamado studium, sendo o termouniversitas usado para designar as corporaes de professores e alunos. Umstudium podia ser qualificado como generale. De incio isso queria dizer apenasque era um lugar onde se ministrava um ensino superior, que recebia estudantesde qualquer parte e dispunha de um considervel nmero de professores. Maistarde, passou a designar centros de ensino que concediam licenas vlidas emqualquer lugar. Cf. Rashdall (1936), v. 1, p. 2-24.

    6. Os nomes recebidos por essas associaes realam a similaridade comoutras, tpicas do ambiente urbano: consortium, communitas e finalmenteuniversitas, que aparece apenas em 1221. Todos esses termos so aplicados scorporaes de ofcios, s confrarias religiosas e at mesmo aos habitantes de umquarteiro ou de uma cidade (Paul, 1973: 284.)

  • O QUE UM INTELECTUAL? 25

    As antepassadas das universidades haviam manti-do, com poucas adaptaes, o modelo de educao da Anti-gidade tardia romana, no apenas quanto a mtodos, mastambm quanto a contedo, ainda que inicialmente seusprogramas se restringissem a uma parcela reduzida do con-tedo original. Com o passar do tempo, essa parcela foi sen-do aumentada, nas escolas monsticas e episcopais, com abusca e o intercmbio de textos na prpria rede de bibliote-cas dos mosteiros. Isso levava ampliao e ao aprofunda-mento das disciplinas ensinadas e a algumas tentativas, deincio tmidas, de retomar a modesta cultura filosfica dis-ponvel como fonte de instrumentos de pesquisa e interpre-tao das Escrituras e da doutrina. Criava-se, com isso, umaexpectativa e uma demanda por mais textos.

    A partir do sculo XII, o material disponvel ampliou-se consideravelmente. Intensificou-se a explorao e a difu-so dos recursos disponveis em latim e iniciou-se o movi-mento de traduo de textos, principalmente a partir do ra-be, nas regies sendo tomadas aos muulmanos (PennsulaIbrica e Siclia). Grande parte dos conhecimentos filosfi-cos e cientficos do legado grego havia sido traduzida parao rabe, estudada e desenvolvida por pensadores islmicos.As tradues possibilitaram, assim, o encontro no s commaterial produzido por autores antigos7, mas tambm comos comentrios e desdobramentos produzidos por pensa-dores do mundo islmico.

    A acolhida da filosofia

    Os conhecimentos nos ramos da filosofia, do direi-to, da medicina e de vrias cincias postos em circulao

    7. Na verdade, esse material resultava de uma sucesso de tradues feitasa partir de lnguas de estruturas bem diferentes, o que por vezes, o distanciava,bastante dos textos originais. Essa dificuldade levaria, principalmente no sculoXIII, a iniciativas de traduo para o latim a partir da lngua original, o grego.

  • 26 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    pelos movimentos descritos anteriormente, foram de extre-ma importncia para os integrantes das primeiras universi-dades. Coube a eles a tarefa de absorver esses conhecimen-tos, o que realizaram, por vezes, com avidez e em geral comsatisfao. Houve no apenas uma gradativa introduo denovos elementos nos programas de estudos8: as concepesde cincia e a sistematizao das reas do conhecimentooriundas do aristotelismo foram tomadas como base doscurrculos elaborados pelas universidades.

    O acolhimento e a digesto desse corpo filosfico, comdestaque para o peripatetismo greco-rabe, foram realiza-dos, em graus e perspectivas diferentes, por integrantesdos cursos de artes liberais e de teologia. O primeiro eraum curso preparatrio para os demais (teologia, medicinae direito), e seu programa, que anteriormente abrangera asartes liberais tradicionais do mundo antigo, modificou-se,ao longo do perodo de estabelecimento das universida-des, para enfatizar o estudo da filosofia, tomada, ento,como sinnimo do aristotelismo recm-descoberto. Nocampo da teologia, houve a elaborao das grandes snte-ses teolgicas que caracterizaram o sculo XIII, produzi-das a partir da integrao, da avaliao ou da rejeio deelementos da filosofia peripattica, que foi o grande im-pulso para sua produo.

    Essas transformaes no ocorreram sem divergnciase conflitos, que opuseram por vezes integrantes da faculda-de de artes e da faculdade de teologia ou de uns e outroscom a hierarquia da Igreja. Uma das divergncias mais po-lmicas diria respeito teoria aristotlica sobre a alma, ointelecto e o processo de conhecimento. A interpretao des-sa teoria e de comentrios a ela feitos por Averris9, asso-ciada de parte da tica aristotlica realizada por professo-

    8. No caso dos estudos de medicina, talvez fosse melhor dizer que consti-turam integralmente o programa.

    9. Pensador muulmano do sculo XII, nascido em Crdoba, que, no campoda filosofia, dedicou-se a estudar o pensamento de Aristteles e a explan-lo.

  • O QUE UM INTELECTUAL? 27

    res da faculdade de artes10, levou a concepes bastante con-troversas. Afirmava que o intelecto seria nico e separadodos indivduos, no sendo forma substancial do corpo. Con-siderava, ao mesmo tempo, que o intelecto constituiria a por-o fundamental e melhor do homem. A conseqncia quese podia tirar era a de que o mais nobre do ser humano noestaria ligado ao corpo, mas apenas agiria no indivduo, sen-do nico para toda a espcie humana. Era a chamada dou-trina do monopsiquismo, que negava a existncia de almasimortais individuais, o que ia totalmente contra a antropo-logia crist.11 Essa e outras teorias tidas como vinculadasem excesso, e em detrimento da verdade crist, ao pensa-mento peripattico, sofreram vrias censuras oficiais ao lon-go da segunda metade do sculo XIII.

    Nas esquinas da cidade, novos horizontes da organizao dacultura

    Nas escolas monacais, as tarefas ligadas ao ensino noeram as nicas ocupaes dos monges por elasresponsabilizados. No eram valorizadas por si mesmas nemdefiniam vocaes. Algo similar acontecia com os integran-tes do clero secular que ensinavam nas escolas catedrais.Para eles, tambm o ensino era uma tarefa entre outras.

    A transformao mais notvel ocorreu no sculo XII,nas escolas urbanas que ento surgiam ou se fortaleciam.Nelas o ensino de conhecimentos profanos ganhava um es-pao maior, visando qualificar no apenas o clero, mas tam-bm leigos que desempenhariam funes fora da Igreja. O

    10. A faculdade era o conjunto de escolas de uma mesma disciplina.11. Os artistas que levaram suas interpretaes de Aristteles ao ponto

    de, ao menos aparentemente, divergir de doutrinas crists receberam, dos histo-riadores da filosofia, vrias denominaes: averrostas, aristotlicos heterodo-xos, aristotlicos radicais. Os mais conhecidos entre eles foram Siger de Brabantee Bocio de Dcia.

  • 28 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    prprio aumento da importncia e do mbito do ensino cria-va a necessidade de maior especializao e dedicao. Al-guns de seus professores comearam a se caracterizar espe-cificamente por suas atividades docentes e por sua qualifi-cao em execut-las, e a se profissionalizar, recebendo umaremunerao especfica pelo ensino que proporcionavam.

    A tendncia especializao e profissionalizao cres-ceria nas universidades, corporaes formadas justamentepor pessoas caracterizadas por seus vnculos com o estudo,seja como professores seja como estudantes. A vida intelec-tual tornava-se um ofcio, pelo qual se remunerado, e quetem suas tcnicas, seu aprendizado e sua corporao (Paul,1973: 276). Nelas a maior parte dos professores, ainda quepudessem desempenhar tarefas alm das docentes, defi-niam-se por serem professores e especialistas. Alm disso,boa parte do ensino tinha como finalidade exatamente pre-parar para ensinar. O desempenho de atividades docentesera uma das finalidades do aprendizado alm de ser umdos meios atravs do qual ocorria.

    O reconhecimento da condio de especialistas ficavaexplcito, por exemplo, quando se buscava o conjunto dedoutores ou alguns entre eles, a fim de obter sua opinio tida como fundada, como qualificada sobre um determi-nado assunto. Isso acontecia em relao aos diversos cursosuniversitrios direito cannico ou romano, medicina, ar-tes ou teologia. Nesse ltimo domnio, a transformao foimais notvel, uma vez que o corpo de mestres em teologiapassou a ser reconhecido na Igreja como tendo autoridadepara elaborar doutrina em matria de f, o que deixava deser exclusividade dos conclios. Os universitrios eram re-conhecidos como tendo um valor e uma funo especficospara pelo menos parte da sociedade, em razo de seu co-nhecimento, de sua qualificao.

    As escolas urbanas e suas sucessoras, as escolas uni-versitrias, tinham uma ligao bem maior do que as mo-nsticas com o contexto em que se encontravam e suas ne-cessidades. O nmero de leigos entre os alunos cresceu, prin-

  • O QUE UM INTELECTUAL? 29

    cipalmente nas universidades. O ensino se ampliava, pro-porcionando formao de profissionais que exerceriam fun-es fora da estrutura eclesistica. Mesmo a Igreja passava ater necessidade de maior diversidade de quadros, por terganhado, nesse mesmo perodo, uma estrutura bastante cen-tralizada e complexa, com uma burocracia mais ampla.

    Do clrigo ao intelectual

    Foi em razo dessas ligaes que Le Goff apontou osurgimento da figura do intelectual, como tipo sociolgico,como um dos aspectos do desenvolvimento urbano e dastransformaes econmicas, sociais e polticas ocorridas nascidades florescentes dos sculos XII e XIII. Escolheu o termointelectual, embora ele no fosse utilizado na poca, princi-palmente com o sentido hoje corrente, por no encontrarentre os usados na poca um que melhor conviesse paradiferenci-lo do clrigo e designar os que fazem do pensare do ensinar seu pensamento uma profisso, caracteriza-dos pela aliana entre a reflexo pessoal e sua difuso atra-vs do ensino (Le Goff, 1993:18). Abelardo seria a primeiragrande figura de intelectual nitidamente distinta dos erudi-tos dos meios monsticos.

    A existncia do intelectual teria resultado da diviso detrabalho ocorrida nos ambientes urbanos. Seria mais um dosofcios especializados surgidos nesse perodo de redescobertado homo faber, em que o homem se afirmava como um arte-so que transforma e cria (Le Goff, 1993: 54):

    como um arteso, como um profissional comparvel aosdemais citadinos, que se sente o intelectual urbano do sculoXII. Sua funo o estudo e o ensino das artes liberais. Mas oque uma arte? No uma cincia, uma tcnica. Arte aespecialidade do professor, assim como o tm as suas o car-pinteiro ou o ferreiro. [...] Arte toda atividade racional e justado esprito, aplicada tanto produo de instrumentos mate-riais como intelectuais: uma tcnica inteligente do fazer. [...]Assim o intelectual um arteso [...] (Le Goff, 1993: 57).

  • 30 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    Alm de artfice e produtor de conceitos, o intelectualseria ainda como um comerciante, fazendo circular idiascomo aquele fazia circular mercadorias e sendo por isso re-munerado. As cidades so centros de irradiao na circula-o dos homens, to plenas de idias como de mercadorias,lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comrciointelectual (Le Goff, 1993: 25).

    Alm disso, o intelectual teria conscincia de suas pe-culiaridades e do papel a assumir: jamais, antes da pocacontempornea, esse meio foi to bem delimitado, nem al-canou mais ntida conscincia de si mesmo que na IdadeMdia (Le Goff, 1993: 18). Essa conscincia se daria pelaidentificao com os ofcios, com sua funo de profissionale de citadino. A formao das universidades espontneas associaes de iguais, semelhantes em muitos aspectoss corporaes de ofcios ou s confrarias de mercadores seria um sinal dessa conscincia.

    Jacques Le Goff (1993) v, no entanto, o intelectual ra-pidamente trair a si mesmo, apesar da conscincia de suascaractersticas, por no saber vencer as ambigidades emque se encontrava, por no se comprometer o suficiente coma conscincia que tinha de si mesmo. O intelectual

    [...] que conquistou seu lugar na cidade se mostra entretan-to incapaz, face s alternativas que se abrem diante dele, deescolher as solues do futuro. Dentro de uma srie de crisesque se poderiam denominar de crescimento, e que so ossinais da maturidade, ele no sabe optar pelo rejuvenesci-mento, e se instala nas estruturas sociais e nos hbitos inte-lectuais nos quais submergir (Le Goff, 1993: 60).

    Urbi et orbi

    Comprometer-se adequadamente com as soluesdo futuro seria reforar a identificao com os profissio-nais leigos burgueses (Le Goff, 1993: 64), ultrapassar as

  • O QUE UM INTELECTUAL? 31

    ambigidades de sua situao, da corporao qual per-tenciam. Le Goff (1993) ressalta as contradies da cor-porao universitria. A primeira delas seria seu cartereclesistico: no se encontrou melhor meio de garantir aautonomia da nova associao seno reafirmando sua su-jeio jurisdio eclesistica. Nascidos de um movi-mento que tendia laicidade, eles pertenciam Igreja,mesmo quando procuram institucionalmente sair dela(Le Goff, 1993: 64).

    Embora as escolas tenham se desenvolvido como maisuma instituio nova surgida nas cidades, a Universidadeultrapassou o quadro urbano onde se formou. Acorporao universitria no tinha, como as demais, omonoplio sobre o mercado local. Sua rea a cristanda-de. Ela tinha um carter universal, internacional, por atrairestudantes de vrias partes e, no caso das instituies maisimportantes, conceder uma licena vlida em toda a parte.A defesa dos interesses de seus integrantes levava-a mesmoa se opor s vezes violentamente aos citadinos, tantono plano econmico quanto no jurdico e poltico (Le Goff,1993: 64).

    Outra fonte de contradio seria as formas de subsistn-cia dos universitrios. Nem todos os professores viviam desalrios, pagos por seus alunos ou pelos poderes civis12. Boaparte deles, assim como dos alunos, viviam de benefcios ouprebendas, muitas vezes ligados a funes ou cargos sem ne-nhuma ligao com o ensino. As escolhas ocorriam em fun-o das circunstncias, das possibilidades existentes. Essa si-tuao ia contra a afirmao deliberada do intelectual comoum trabalhador, como um produtor. O afastamento do mun-

    12. Uma soluo que no foi adotada sem problemas. Teve de vencer a ten-dncia, na Igreja, a considerar os ganhos obtidos pelos mestres com o ensinocomo ilcitos. Isso constituiria venda da cincia que, como um dom de Deus,no poderia ser comercializada. De forma anloga ilegitimidade da usura,comercializao do tempo. Podia ainda ser considerada simonia, na medidaem que se considerava o ensino parte do ministrio do clrigo.

  • 32 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    do dos demais trabalhadores, que iria minar as bases da con-dio universitria (Le Goff, 1993: 86), teria sido reforadopela oposio entre trabalho manual e trabalho intelectualmantida pela escolstica. Alm disso, a remunerao por pri-vilgios acentuava o carter eclesistico do ensino.

    Os intelectuais teriam, pela incapacidade de ultrapas-sar essas contradies, reforado a vinculao com a Igrejae o Estado, deixando de se tornar os intelectuais orgni-cos das classes produtoras urbanas surgidas no mesmomovimento que eles.13

    Ao fim dessa evoluo profissional, social e institucional,havia um objetivo: o poder. Os intelectuais medievais noescapam ao esquema gramsciano, na verdade muito genri-co, mas operacional. Em uma sociedade ideologicamente con-trolada muito de perto pela Igreja e politicamente cada vezmais enquadrada por uma dupla burocracia a laica e aeclesistica (...) , os intelectuais da Idade Mdia so, antesde tudo, intelectuais orgnicos, fiis servidores da Igreja edo Estado. As universidades se tornam cada vez mais celei-ros de altos funcionrios (Le Goff, 1993: 9)

    A perfeita felicidade

    A perspectiva sociolgica de considerao do surgi-mento dos intelectuais medievais, de que o livro Os intelec-

    13. Os intelectuais orgnicos seriam os que cada grupo social, nascen-do no terreno originrio de uma funo essencial no mundo da produo eco-nmica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgnico e que lhe da-riam homogeneidade e conscincia da prpria funo, no apenas no campoeconmico, mas tambm no social e poltico. As camadas de intelectuais, cria-das de modo orgnico pelos grupos sociais ao surgir, encontrariam categoriasintelectuais preexistentes, que seriam os intelectuais tradicionais. (Gramsci,1982: 3-5.)

    Falei em inspirao gramsciana porque Le Goff utiliza as concepes deGramsci a respeito dos intelectuais com bastante liberdade, sem se prender rigo-rosamente aos critrios por ele buscados para definir os intelectuais.

  • O QUE UM INTELECTUAL? 33

    tuais na Idade Mdia, de Le Goff, o principal marco, consi-dera esse fenmeno no quadro do fortalecimento das esco-las urbanas e da criao das universidades, em meio s trans-formaes do meio urbano dos sculos XII e XIII. V o apa-recimento dos profissionais do pensamento em suas rela-es com a instituio universitria que se estabelecia e or-ganizava e com a sociedade em que ela se instalou.

    Nossa viso sobre esse fenmeno se enriquecer se ana-lisarmos o nascimento do ideal intelectual, como prope DeLibera em Penser au moyen ge. Sua posio que os inte-lectuais medievais afirmaram eles mesmos sua diferena erepresentaram eles mesmos sua singularidade, essa re-presentao, essa conscincia de si, essa estima, ou melhor,essa auto-avaliao que deve ser, no presente, estudada.Em suma, devemos tentar entender a reivindicao daintelectualidade como tal (De Libera, 1991: 11).

    Desde essa perspectiva, o aparecimento do intelectualmedieval se caracterizaria pelo ressurgimento de um idealtico antigo, concorrente ao cristo. Isso teria ocorrido, emparticular, entre os aristotlicos radicais da faculdade de ar-tes da universidade de Paris, a partir das stima e oitavadcadas do sculo XIII. Foram eles que mais buscaram umaidentidade prpria, que os distinguisse dos modelos ante-riores de professores, qualificando-se como filsofos. Nose quer dizer com isso que tal grupo tenha tido o monoplioda filosofia na universidade medieval. O pensamento filo-sfico no ficou restrito s faculdades de artes. Foi ampla-mente desenvolvido nas faculdades de teologia, no fazen-do sentido falar em oposio razo e f em relao aos con-flitos intra-universitrios do sculo XIII: pode-se falar, nomximo, em modalidades diferentes de exerccio da razo.

    Os artistas heterodoxos parisienses desejaram se dis-tinguir atribuindo-se a si mesmos, explicitamente, uma iden-tidade por meio da exaltao da vida filosfica, como umnovo e diferenciado estilo de vida. Esse movimento, quepodemos denominar aristocratismo intelectualista nasceuda familiaridade com textos filosficos greco-rabes, ao

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    mesmo tempo que reativava certas postulaes, certos de-sejos que eram buscados antes dele [Siger de Brabante], emparticular na poca de Abelardo (De Libera, 1991: 23).

    No livro La philosophie, thorie ou manire de vivre? Lescontroverses de lAntiquit la Renaissance, Domanski destacaa tendncia, entre os artistas heterodoxos parisienses, de seconsiderar a filosofia de maneira no apenas terica, comoinstrumento conceitual, mas tambm como modo de vida.Um componente do aspecto prtico da filosofia seria a tica,concebida no apenas como cincia, mas como tica reali-zada, uma cincia dos costumes no apenas terica, mas tam-bm praticada, encarnada por assim dizer, nos costumesdo filsofo, uma arte de viver exercida por si mesma(Domanski, 1996: 11). O encontro entre a filosofia e o cris-tianismo teria conduzido a um questionamento do aspectoprtico da filosofia, da tica realizada pelos filsofos(Domanski, 1996: 23-29). A cristianizao da filosofia incluiua negao ou reduo de sua vertente prtica, uma vez quese considerava que o modo de viver perfeito era ditado peloprprio cristianismo; a fonte da moral e da tica eram asverdades reveladas do Evangelho, cuja vivncia integral devirtudes dependia da graa divina.

    A tendncia predominante, no sculo XII e na escols-tica do sculo XIII, seria dar filosofia um carter simples-mente terico e cientfico, de forma ainda mais radicalque no incio do cristianismo: o adepto da filosofia no eraseno um leitor e um comentador dos escritos de Aristteles(Domanski, 1996: 49-50). A tendncia predominante era ade considerar que

    [...] o papel de um filsofo se limita a comentar, explicar e,eventualmente, desenvolver a verdade descoberta pela ra-zo natural e contida nos escritos de Aristteles. [...] Desseponto de vista, os problemas ticos situam-se no mesmo pla-no que todos os demais e [...] a filosofia prtica, como filoso-fia, logo, como pesquisa cientfica, no difere de modo al-gum de todos os outros ramos. Uma moralidade ativa, umatica praticada, tudo isso pertence a uma outra ordem(Domanski, 1996: 50-51).

  • O QUE UM INTELECTUAL? 35

    Nesse quadro, a corrente dos artistas heterodoxosparisienses do sculo XIII seria uma das excees ao movi-mento principal14, por atribuir filosofia uma autonomiacompleta, sem consider-la como simples propedutica doutrina crist, estando, portanto, mais inclinada que asoutras correntes a aproveitar esses elementos metafilosficosdo aristotelismo que se relacionavam com a vida filosficacomo moral praticada (Domanski, 1996: 70). Desde essaperspectiva o filsofo, vivendo conforme a natureza huma-na, seria o verdadeiro virtuoso, por ter condies de distin-guir corretamente as virtudes dos vcios. Nele, todas as fun-es e aes inferiores estariam ordenadas funo supre-ma e ao mais elevada: isto , a especulao sobre a ver-dade e sua fruio, em particular a verdade primeira(Domanski, 1996: 72-73).

    O legado peripattico rabe

    O esprito racional de Aristteles, suas concepes so-bre o conhecimento, sobre seus diferentes domnios e mto-dos, foram fundamentais para o surgimento da universida-de e a formulao do novo modelo de professor surgido nosmeios urbanos, para a conscincia das peculiaridades dohomem dedicado de modo expresso transmisso do co-nhecimento e para a valorizao de sua ocupao.15

    Mas devemos considerar que o ideal do filsofo na Ida-de Mdia no teria surgido sem legado dos peripatticos domundo islmico e sua leitura do aristotelismo, integradoraa concepes neoplatnicas. A contribuio dos autores mu-ulmanos foi fundamental para a formulao do ideal de

    14. Outras excees seriam Abelardo, por ter valorizado a tica praticadapelos filsofos pagos, ainda que considerando que apenas a tica crist realiza-da alcanaria a meta proposta pelos prprios filsofos; e Roger Bacon, por terconsiderado a tica filosfica o ramo mais nobre da filosofia, e por uma certavalorizao do exemplo dos filsofos pagos.

    15. Cf. Lohr, 1992: 80-98.

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    vida filosfica defendido pelos artistas parisienses da segun-da metade do sculo XIII. Segundo A. de Libera este idealentrelaou dois motivos desenvolvidos por pensadoresislmicos: a idia de um crescimento progressivo do saber ea de uma ascese intelectual.

    O primeiro motivo j se encontrava presente nos tex-tos de Al-Kindi. Inspirado em Aristteles, mas tambm emprincpios islmicos sobre o conhecimento, propunha a tesede um crescimento do saber, de um progresso, de uma cons-truo gradual do pensamento e da sabedoria, implicandoo concurso de uma multido de homens. O segundo, seriaa idia tico-intelectual do destino do homem (De Libera,1991: 140).

    A viso do universo adotada pelos filsofos rabes16

    definia

    [...] o ato de pensamento como um estado do universo inte-ligvel, como um grau de unidade e de unificao da alma,que podia se intensificar medida que se operavam a conti-nuao, a conjuno da alma humana com a intelignciaseparada que, na cosmologia peripattica, presidia os movi-mentos do mundo sublunar. O progresso, o crescimento dosaber, tinha desde ento um sentido complexo, ao mesmotempo pessoal e transpessoal. O homem era considerado nocomo sujeito pensante, mas como local do pensamento, lu-gar do inteligvel (De Libera, 1991: 141).

    Os latinos medievais teriam aprendido com Al-Kindi eFarabi que

    [...] o pensamento podia ser um progresso cotidiano, umaassimilao progressiva, dito de outra forma, um trabalho e,em ltima anlise, uma santificao. Os pensadores latinosaprendiam assim a considerar o exerccio do pensamentocomo uma ascese, a espiritualizar o ideal aristotlico dasabedoria contemplativa em uma espiritualidade do traba-

    16. Com exceo de Averris.

  • O QUE UM INTELECTUAL? 37

    lho intelectual. Ao aprender dos rabes em geral a existn-cia de uma esperana filosfica [...], eles ascendiam idiade que havia lugar na terra para uma vida bem-aventurada,uma vida do pensamento, antecipando a viso beatfica pro-metida aos eleitos na ptria celeste.17

    Deviam a eles assim a idia de que a atividade dopensamento tambm um crescimento da alma no ser, tesenova que, proporcionando ao trabalho intelectual sua du-pla dimenso de labor e de contemplao, impunha umaredefinio do ideal da sabedoria (De Libera, 1991: 140).E certo que, embora essas influncias fossem adquirir umtom mais radical entre os artistas heterodoxos, estavamtambm presentes entre outros pensadores, como AlbertoMagno18.

    Intelectocratas

    Os aristotlicos heterodoxos da faculdade de artes deParis sofrem censuras universitrias, as de 1277 em par-ticular, devido sua pretenso de reviver um antigo idealtico, prprio aos filsofos, no seio da corporao universi-tria. Agora, a filosofia no era mais considerada abstrata-mente, como v curiosidade parasitando o esprito dos cl-rigos, mas concretamente, como um conjunto articulado dedecises relativas ao mundo, ao lugar que nele ocupava ohomem e tica da extrada (De Libera, 1991: 178). E osvalores que integravam esse ideal tico no se opunham,

    17. De Libera, 1991: 141.A esperana do filsofo uma expresso vinda de Averris, que a tomou

    de Farabi. O que o filsofo desejaria e aguardaria, nesta existncia, seria a uniocom o intelecto agente separado, um xtase natural e csmico. Ver De Libera,1991: 387, nota 42.

    18. A teoria do intelecto adquirido proposta por santo Alberto Magno pos-tulava que o indivduo conquistava, por seu trabalho e esforo, com a ajuda doEsprito Santo, sua prpria essncia, atualizando seu intelecto, dedicando-se auma vida de estudos.

  • 38 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    necessariamente, aos valores cristos, mas de algum modocom eles concorriam por justificarem de modo diverso com-portamentos similares. Havia uma espcie de assimilaode temas da moral crist para o domnio da filosofia, dan-do-lhes outra justificativa, assim como a transposio de te-mas filosficos para terrenos diferentes daquele em que eramtratados em sua origem.

    Assim, por exemplo, ao dar sentido filosfico apolo-gia da castidade, Siger de Brabante argumentou utilizandoum tema aristotlico: o do egosmo virtuoso. O egosta vir-tuoso, sinnimo de filsofo, seria o que se identifica com aparte mais nobre de si mesmo: o intelecto, o pensamento,uma vez que cada homem seu prprio intelecto. Ape-nas ele seria realmente livre e nobre, porque, ao obedecerapenas s determinaes de seu intelecto, obedece a si mes-mo. Associada a essa concepo viria, ento, a defesa deuma nobreza do intelecto, superior nobreza do sangue,concepo que muito deve idia averrosta da elite filos-fica.19 Em meio aos aristotlicos heterodoxos da Universi-dade de Paris, afirma-se um ideal intelectocrata, uma eliteque deve sua dignidade no a privilgio ou condio hie-rrquica, mas a uma superioridade intelectual (Lohr,1992: 91).

    A idia do egosmo virtuoso seria tambm acompanha-da por outro aspecto da tica aristotlica: o da amizade vir-tuosa. Para chegar

    [...] plenitude filosfica da vida individual, o homem deveser absolutamente ele mesmo, isto , como vimos, viver se-gundo o que h de melhor nele: o pensamento. Esseengajamento intelectual a deciso filosfica por excelncia,o ato supremo de virtude. Ora, o homem no pode viver opensamento sem comunicao [...]. Tendo conscincia de suaprpria bondade, o egosta virtuoso tem necessidade de par-ticipar tambm da conscincia que seu amigo tem de sua

    19. Cf. De Libera, 1991: 225-227; Lohr, 1992: 80-98.

  • O QUE UM INTELECTUAL? 39

    prpria existncia. Necessita portanto de viver com ele,de partilhar discusses e pensamentos (De Libera, 1991:239).

    Alm de uma alternativa filosfica ao ideal cristoda castidade, apresentava-se assim tambm uma alternati-va caridade crist.

    A pretenso dos filsofos contemplativos a uma dignidadede vida igual s mais elevadas virtudes da vida monsticaimpunha um problema corporativo aos telogos. [...] A idiade uma corporao de egostas os magistri artium spodia causar embarao hierarquia eclesistica. Era uma con-tradio de termos, mas uma contradio operativa, minan-do concretamente a universidade crist. Ao eliminar a dis-tncia entre mendicantes, seculares e leigos, a reivindicaodos filsofos apresentava um problema novo ao cristia-nismo: o do intelectual em meio cristo (De Libera, 1991: 237).

    A utopia universitria

    Um dos aspectos mais interessantes desse processo foio de que, ao fazer da Universidade o espao em que se po-deria conduzir uma vida orientada para o ideal de atingir acontemplao intelectual, transformavam-na em utopia.Alm disso, aqueles que postulavam a exaltao da vida fi-losfica transpunham para o espao da Universidade lu-gar de exerccio de seu ofcio algo que, para os primeirosformuladores do ideal da contemplao, da sabedoriateortica, da amizade perfeita entre filsofos, s era compa-tvel com o domnio do cio. A vida universitria se confun-de com o cio de Aristteles, pois o estudo um tempopara a virtude egosta e a amizade que ela demanda [...],considerada com os olhos de um aristotlico, a universi-dade medieval antes de tudo um lugar e um lao de con-templao (De Libera, 1991: 240-241).

    Na verdade, segundo essa concepo, a atividade dopensamento, o conhecimento, no deixava de ser um tra-

  • 40 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    balho, mas um trabalho capaz de liberar, diferena da-quele que escravizaria o homem matria, o trabalho ser-vil. A relao entre sabedoria e conhecimento, entre con-templao e trabalho, redefinida, e os intelectuais/fil-sofos so membros de uma sociedade de homens reuni-dos para viver juntos uma moral, um trabalho e um ideal(De Libera, 1997: 8). E a juno do ideal filosfico da feli-cidade intelectual com a tica corporativista transformaessa felicidade em profisso. tendo em vista essa pos-sibilidade que fazem sentido as interrupes de carrei-ra, mediante as quais alguns mestres em artes escolhempermanecer na faculdade de artes, no que seria o estgiopreparatrio para os demais cursos, apesar das dificulda-des materiais decorrentes dessa opo. Vrios desses mes-tres voluntariamente se eternizaram numa situao um estado (status) do qual a pobreza e a ausncia deperspectivas os devia normalmente afastar (De Libera,1991: 12). Chegando a fazer propaganda da fora dessaseduo, eles:

    souberam lhe dar um slogan que expressava o trmino es-perado de uma carreira de professor e o fim desejado de umaascese intelectual: ibi statur, a permaneamos. Alcanadaa filosofia, deve-se manter nela; no h por que ir alm dosabor (sapor) da sabedoria (sapientia) (De Libera, 1991: 147).

    No surpreendente que a retomada de concepesdo pensamento grego no tenha contribudo para apagar adistncia entre trabalho manual e trabalho intelectual. O sur-preendente terem, por outro lado, associado o caminho debusca da beatitude perfeita ao exerccio de uma profisso; acorporao universitria ser vista como o lugar em que sepoderia conduzir uma vida definida por um privilgio re-almente extraordinrio: a possibilidade de abolir institucio-nalmente a distncia que separa o otium do negotium. Comouma estrutura social em que o estudo lazer e a vidapode ser inteiramente dedicada ao prazer da dificuldade(De Libera, 1991: 242).

  • O QUE UM INTELECTUAL? 41

    Os aristotlicos heterodoxos postulam uma concepode nobreza que buscava distingui-la da nobreza tradicio-nal. Tratava-se no de uma nobreza de sangue, mas de umanobreza adquirida por um esforo pessoal: o filsofo seenobrecia por uma superioridade intelectual, em razo daescolha por viver segundo o intelecto e pela virtude a elacorrespondente, pois

    a filosofia se atesta na maneira de viver e de desejar. Aindaque insistindo em falar dos rigores de sua condio, os po-bres mestres e estudantes da universidade de Paris vivemcomo antigos aristocratas e cantam at os prazeres da absti-nncia ou, melhor dizendo, da absteno egosta. Auniversidade uma instituio de pobreza onde se ganha avida com dificuldades, mas nesse lugar de misria que segoza a alegria da emulao e do reconhecimento, o charmeda virtude (De Libera, 1991: 242).

    Tratava-se, em essncia, do ideal de uma aristocraciaintelectualista desinteressada, deixando sua marca indelvelna vida universitria. Ainda que seja evidente que esse idealno impediu uma evoluo no sentido de uma integrao dosprofessores universitrios a classes privilegiadas ou de um com-prometimento do ensino com esses grupos.

    Referncias bibliogrficas

    DE LIBERA, Alain. Penser au moyen ge. Paris, Ed. du Seuil, 1991.______. Os antepassados rabes do renascimento europeu, O Cor-

    reio da Unesco, 25, 4 (abr. 1997), p. 4-9, 1997.DOMANSKI, Juliusz. La philosophie, thorie ou manire de vivre? Les

    controverses de lAntiquit la Renaissance. Fribourg/Paris,ditions Universitaires Fribourg Suisse/ditions du CERF,1996.

    GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. 4. ed.Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1982.

    LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mdia. 3. ed. So Paulo,Brasiliense, 1993.

  • 42 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    LOHR, Charles. The Medieval Interpretation of Aristotle. In:KRETZMANN, N. et al. The Cambridge History of Later Me-dieval Philosophy, 4. ed. Cambridge, Cambridge UniversityPress p. 80-98, 1992.

    PAUL, Jacques. Histoire Intellectuelle de lOccident Mdival. Paris,Armand Colin, 1973.

    RASHDALL, Hastings. The Universities in the Middle Ages (ed.: F.M. Powicke e A. B. Emden). 2. ed. rev. Oxford, OxfordUniversity Press, 3 v., 1936.

  • CAPTULO 2

    SOLIDO E LIBERDADE:notas sobre a contemporaneidade de

    Wilhelm von HumboldtRoberto S. Bartholo Jr.

    para Helmut Schelsky

    A Revoluo Francesa introduziu no panorama hist-rico-cultural do Ocidente a tenso dinmica de umdualismo trgico entre o individualismo radical dos di-reitos humanos e sua institucionalizao na figura burguesado cidado1. E esse contexto incide de modo marcantesobre a questo da Universidade e de seu lugar na organi-zao da cultura.

    Wilhelm von Humboldt foi um pensador quevivenciou, do modo mais tpico, a angstia dessa tenso di-nmica como um verdadeiro dilema existencial. Seu con-

    1. Para um aprofundamento, ver R. Haerdter, Der Mensch und der Staat,prefcio ao livro de W. v. Humboldt, Ideen zu einem Versuch die Grenzen derWirksamkeit des Staats zu bestimmen, Stuttgart, 1978.

  • 44 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    texto histrico-biogrfico foi o da hegemonia do despotis-mo esclarecido em sua ptria, a Prssia, afetada fortemen-te pelo terremoto poltico da Revoluo Francesa.

    Aos 24 anos de idade, em 1792, Wilhelm demitiu-se docargo de funcionrio pblico do governo prussiano. Comisso, visou mais que apenas o afastamento de uma funoque lhe parecia bloquear a criatividade. Colocava, diante desi, a possibilidade de realizar um verdadeiro ajuste de con-tas filosfico com o prprio Estado moderno, cuja emer-gncia se desenhava nos horizontes do Iluminismo euro-peu. E foi isso que ele buscou expressar numa significativaobra, cujo longo e desajeitado ttulo aponta nitidamente anatureza do problema: Idias para uma tentativa de se determi-nar os limites da efetividade do Estado.

    Toda a empatia de Wilhelm von Humboldt para com aRevoluo Francesa ficava obscurecida pelo temor de que oiderio iluminista incorporasse ao otimismo incondicionalde sua crena no progresso uma crena na onipotncia dainstituio estatal. Em outras palavras: ele quer resgatar dohumanismo idealista uma noo de liberdade que no sedeixe sujeitar perverso do terror totalitrio. A liberdadeque Humboldt prega para a pessoa no a liberdade doarbtrio individualista feito um fim em si mesmo. Ela aliberdade como condio de possibilidade para a forma-o da autonomia tica da pessoa. Com isso, fica recolocadaa questo tica no centro da questo poltica. E Humboldtconsegue expor o nervo do dualismo trgico: o risco deque o iderio iluminista se perverta na requisio de umanova forma de sacrifcio ritual da pessoa em novas formasde servido.

    Para Humboldt, as leis do Estado no so, em si mes-mas, expresso da virtude. As prescries do Estado mo-derno introduzem imposies ou hbitos de que as pessoasesperem sempre mais ensinamento alheio, direo alheia,ajuda alheia do que elas prprias concebam caminhos alter-

  • SOLIDO E LIBERDADE 45

    nativos2. Sob o seu Imprio, o Estado passa a se igualar auma multido de ferramentas animadas e inanimadas, e nouma multido de foras ativas e sensveis3. Configura-se,assim, o sacrifcio da autonomia tica da pessoa diante doaparato annimo de controle. Emerge a existncia massifi-cada, a servio da operao eficiente de um dispositivo decontrole e diferenciao funcional. Nesse processo, aburocratizao das estruturas modernas de poder , paraHumboldt, a contrapartida organizacional da mecanizao,impondo seu ritmo s atividades econmicas e polticas.

    Para Wilhelm von Humboldt, a eliminao da forma-o tica da pessoa na modernidade decorreria da perver-so da liberdade pela homogeneizao e uniformizao dassituaes. Para ele, a liberdade de ao esvazia-se de con-tedo existencial, quando se deixa sujeitar a uma pr-moldagem institucional, que elimina a diversidade de situ-aes com as quais as pessoas so confrontadas. Assim, areflexo humboldtiana remete questo da educao cien-tfico-tecnolgica e ao lugar da Universidade na organiza-o da cultura.4 E essa remessa, no contexto poltico-univer-sitrio alemo do incio do sculo XIX, implica a considera-o de quatro tendncias predominantes. Eram elas:

    1. A Universidade tradicional, corporativista, conser-vadora, dissociada de pesquisas emprico-sistem-ticas, centrada na transmisso dogmtica do conhe-cimento por meio de um sistema de ensino esttico,uma espcie de missa do intelecto, que se recusa aincorporar um compromisso com o pragmatismoutilitarista.

    2. O projeto pedaggico iluminista radical, que v naatividade cientfica a fonte geradora de conheci-

    2. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 32.3. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 48.4. Para um aprofundamento, ver H. Schelsky, Einsamkeit und Freiheit. Idee

    und Gestalt der deutschen Universitt und ihrer Reformen, Reinbek bei Hamburg,1963.

  • 46 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    mentos teis, sistematizados em enciclopdias, quecodificam o saber cientfico-emprico tecnologica-mente instrumentalizvel. A Universidade transmu-ta-se em escola cientfico-profissionalizante especia-lizada de nvel superior, expresso maior de um sis-tema estatal integrado de ensino.

    3. O projeto pedaggico iluminista reformista que com-partilha da nfase utilitarista do Iluminismo radicalquanto ao dever-ser da prtica cientfica, mas nov nas universidades apenas peas de museu a se-rem superadas pelo novo sistema estatal integradode ensino. O que se prope a busca de um com-promisso pragmtico, que adapte aos novos impe-rativos uma instituio universitria reformada.

    4. O projeto universitrio humboldtiano exemplificadona fundao da Universidade de Berlim, que deveficar claro, no teve objetivo reformista. O que sevisou foi a criao de algo novo, que se diferencias-se tanto da universidade tradicional, como do pro-jeto utilitarista-iluminista.

    Os planos para a criao da nova Universidade perma-neceram nas gavetas da burocracia estatal prussiana at aderrota da Prssia para os exrcitos napolenicos (1806-1807). Todos os territrios a oeste do Elba caram sob dom-nio de Napoleo, e, com eles, diversas universidades comoas de Duisburg, Paderborn, Erlangen, Erfurt, Mnster,Gttingen e Halle, a principal universidade reformista-iluminista. Nesse novo quadro, em 16 de agosto de 1809,Frederico Guilherme II assina o decreto de fundao da novaUniversidade de Berlim.

    Wilhelm von Humboldt tem papel fundamental nestafundao. Ele vai moldar a idia-diretriz de um novo proje-to universitrio, em conformidade com o humanismo idea-lista de Schiller, Schelling e Fichte, a formao tica da pes-soa atravs de uma cincia que se compreende a si mesma

  • SOLIDO E LIBERDADE 47

    como filosofia. Esta concepo, enraizada no idealismo fi-losfico alemo, busca pensar o contexto global da vida e domundo como um produtivo pensar-se a si mesma da ver-dade em sua generalidade, que se liberta das autoridades efins imediatos do saber, para se constituir numa auto-refle-xo que reconstri a totalidade do mundo como conscinciade princpios5. Esse ideal vincula a atividade cientfica auma correspondncia tica com a vida, de modo que, naspalavras de Fichte, o filsofo possa ser o eticamente virtu-oso.

    Para a perspectiva humboldtiana a autonomia univer-sitria o espao institucional de uma solido e liberda-de, que tambm pressuposto para que se atinja aqueleponto onde pensamento e realidade se encontram e volun-tariamente se transformam6. So uma solido e liberda-de dirigidas polemicamente contra um claro opositor, queno mais a missa do intelecto ministrada nas universi-dades tradicionais, mas sim a escola cientfico-profissiona-lizante especializada, de nvel superior, em que a universi-dade iluminista escolarizada tendia a se constituir.

    O projeto humboldtiano se afirma como espaoinstitucional de uma formao tica da pessoa por uma cin-cia que se compreende a si mesma como filosofia, e se afir-ma polemicamente contra a cegueira auto-reflexiva de umaUniversidade que se escolariza segundo critrios de utili-dade e especializao, fixados pela sociedade civil burgue-sa ou pela burocracia estatal. A palavra tica no entendi-da na perspectiva humboldtiana como a mera expressodogmtica de um cdigo de ao moralizante. Ela sim aexpresso da busca de uma correspondncia normativa davida, a permanente autoconstruo da pessoa, cuja autono-mia espiritual requer a solido e liberdade como metfo-ras da destutelarizao do intelecto, condio de possibi-

    5. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 67.6. Palavras do discurso de W. v. Humboldt na Academia de Cincias de

    Berlim, em janeiro de 1809, citado por H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 9.

  • 48 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    lidade para toda ao apta a ter no mundo, segundo a ex-presso de I. Kant, o material do dever. Agir eticamentefazendo do mundo o material do dever para Humboldt ofim ltimo da formao universitria estruturada parametamorfosear tanto mundo quanto possvel na prpriapessoa [...] pela vinculao de nosso eu com o mundo paraas mais gerais, provocantes e livres relaes7.

    Nesse ponto, interrompo o encadeamento desta expo-sio para uma breve polmica comigo mesmo. Que senti-do pode ter minha insistncia em afirmar a contemporanei-dade desse velho autor prussiano, cujo projeto universit-rio, na Alemanha de hoje, subsiste apenas de modo frag-mentado e impotente? L, a reverncia para com o projetouniversitrio humboldtiano tornou-se um ritual oco e un-nime, no sendo pouco significativo que a extinta Alema-nha comunista tenha mantido, durante toda sua existncia,o nome Wilhelm von Humboldt Universitt para desig-nar a universidade de Berlim Oriental.

    Passemos em revista alguns dos pressupostos bsicosdessa imagem-diretriz ideal, por sculo e meio hegemnicaem meio aos povos germnicos:

    1. A liberdade de ensino e aprendizagem de profes-sores e estudantes. Humboldt vincula, em seu pla-no organizacional, essa liberdade a uma diferenci-ao essencial: entre as escolas superiores e a Uni-versidade. Nas escolas, os docentes l esto para osestudantes. Na Universidade, ambos esto conjunta-mente confrontados com a cincia pura. A liberdadede ambos um privilgio diante de todas exignciaspragmticas da aprendizagem e da formao da pes-soa. Se hoje fssemos aplicar, de modo estrito, os exi-gentes critrios humboldtianos, a imensa maioria das

    7. Ver W. v. Humboldt, Theorie der Bildung des Menschen, in GesammelteSchriften, Academia Prussiana de Cincias, 1903, v. 1, p. 283-284, citado por H.Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 81.

  • SOLIDO E LIBERDADE 49

    universidades no seria mais que centros escolaresde formao profissional cientifizada. Um reconhe-cimento to drstico no deve ofuscar, no entanto, ofato de que, mesmo nas universidades alems dosculo XIX, um enquadramento pleno nos critrioshumboltianos talvez s fosse observado nas facul-dades de filosofia.

    2. A unidade de ensino e pesquisa. No tempo deHumboldt, essa exigncia era de fato uma realida-de. Basta considerarmos que obras decisivas deFichte, Hegel e Schelling foram inicialmente produ-zidas como material de Vorlesungen (aulas expo-sitivas sob a forma de leituras em auditrio). Hojeisto se revela uma impossibilidade, quando nos di-ferentes campos de conhecimento os problemas dapesquisa passam a ter como pr-condio de com-preenso um curso acadmico completo. A frmulahumboldtiana se esvazia de sentido e se reduz questo de se os pesquisadores, alm de pesquisar,tambm no seriam os melhores professores, porterem melhores condies de traduzir pedagogi-camente os resultados das mais novas investigaes.Uma questo que de modo algum se pode respon-der com um simples sim.

    3. A unidade da cincia na filosofia. Este pressupostohumboldtiano j foi destrudo faz tempo pelo pro-gresso das cincias realizado na especializao. Apretenso de sintetizar o conjunto do saber cientfi-co e de reduzi-lo a um denominador comum filos-fico no mais considerada, hoje, um legtimo obje-tivo de pesquisa da cincia moderna. Salvaguardara unidade da cincia, tarefa central no projetohumboldtiano, parece transformar-se em quixotes-ca batalha contra moinhos de vento, agora que a fi-losofia perdeu sua posio-chave no interior dos sa-beres universitrios.

  • 50 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    4. A formao tica da pessoa pelo valor pedaggicoda cincia. Todo o anteriormente exposto solapa, de-cisivamente, as bases do pensamento nuclear da con-cepo de Universidade humboldtiana: Humboldtestava convicto de que uma praxe cientfica em so-lido e liberdade assegurava uma conformaonormativa da vida, por ele designada formao ticada pessoa na cincia. A cincia que hoje ensinamosem nossas universidades no parece corresponder aisso. Atribuir-lhe uma potncia etizante da vidaseria mais que uma enganosa iluso, seria uma ver-dadeira empfia. Mas se hoje a formao cientficano pode ser imediatamente identificvel com umaetizao do carter da pessoa, tampouco devemosdesistir de toda e qualquer tentativa de dar ao vn-culo entre cincia e vida aquela efetividade queHumboldt queria associar idia moral. Hoje, con-frontados com uma cientifizao infinita da praxis,podemos, pelo menos, no abrir mo da tentativade unir os efeitos da cientifizao com as virtudesda cientificidade: modstia, prudncia, objetivida-de, crtica e autocrtica. Isso permanece partevinculante da pedagogia da razo razovel. E jus-tamente razovel por no pretender fazer daobjetivizao do racional a nica razo de ser de todarealidade.

    5. Culturalismo. Idia fundamental para a concepohumboldtiana de universidade que a vida espiri-tual da cincia repousa em si mesma, e que nessaautonomia como cultura deve ser promovida peloEstado. Contra o dirigismo protecionista do Iluminis-mo prussiano, Humboldt afirma a irredutvel liber-dade da pesquisa e da formao da pessoa na cin-cia. Mas essa concepo de uma cincia autnomaperante os poderes estatais, polticos e econmicosno parece conseguir se sustentar. A contempor-nea tecnocincia um decisivo meio poltico de

  • SOLIDO E LIBERDADE 51

    poder, um essencial meio econmico de produo.Ela de tal maneira se imbrica nas estruturas polti-cas e econmicas que se torna ilusrio pretenderisol-la como um fato circunscrito a um supostamen-te autnomo domnio da cultura.

    6. Nacionalismo. Dimenso, hoje silenciada, da con-cepo universitria de Humboldt a idia nacio-nal. A universidade alem dos sculos 19 e 20 no compreensvel sem ser referida ao fundamento po-ltico do nacionalismo. Ela partilhou essa idia atseu amargo fim no nacional-socialismo. Mas o pr-prio nacionalismo universitrio humboldtianodeve ser visto no contexto de um projeto mais doque de uma realidade dada. Humboldt no preten-de com a fundao da Universidade de Berlim omelhor para a Prssia, e sim o melhor para a Ale-manha. Essa Alemanha era, ento, uma coisa po-liticamente ainda no existente. E de certo modovivemos hoje um certo paralelismo entre um idealuniversitrio, que se deslocava dos particularismosdos principados para um Estado nacional, e um novoideal universitrio, que se desloca do Estado nacio-nal para o horizonte planetrio. Por fim, impor-tante apontar que, neste contexto, Humboldt uniu aexigncia de uma ampliao do horizonte social dacincia com a exigncia de liberalidade e de supera-o da tutela poltica das universidades. Em parti-cular, Humboldt criticou a proibio do estudo emuniversidades estrangeiras promulgada pelo rei daPrssia, expressando seu desejo de que fosse for-malmente superada, pois ela colide com a liberali-dade que deve reinar em todas as coisas cientficas8.

    Como reconhecer a importncia desse vulto histricoque, em 1967, completaria 200 anos de nascimento? Ser que

    8. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 94.

  • 52 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    temos de reconhecer a frrea contradio de, por um lado,louvar sua contribuio para o desenvolvimento da cinciae da cultura na Alemanha moderna, e, por outro, dar adeusa Humboldt como condio do progresso da cincia e dacultura em nosso mundo de hoje?

    No essa nossa posio.Mas nos parece, antes de mais nada, necessrio reco-

    nhecer que no nos interessam primordialmente as solueshumboldtianas, em sua contingncia histrica, corporifi-cadas numa forma institucional especfica: um modelo uni-versitrio.

    O que nos interessa o possvel paralelismo histricodas tarefas diante das quais Humboldt se colocou e arriscouuma resposta, e aquelas diante das quais nos colocamos. E,tambm, o reconhecimento de que talvez a imagem-diretrizideal com que ele solucionou os problemas de seu tempo/espao siga sendo um pertinente ponto de apoio para tenta-tivas de discernimento de problemas de nosso tempo/es-pao. Ou, expressos nos termos do idealismo alemo do s-culo XIX: nossa questo saber se somos capazes de reali-zar a idia humboldtiana em novas formas institucionais.

    A situao com que Humboldt se defronta em 1809 uma em que o Estado e a sociedade do Iluminismo se incli-navam inteiramente, em nome do progresso econmico, tc-nico e social, para uma formao profissionalizante, prag-mtica e cientifizada. O movimento em prol de um saberprtico til impulsiona a reforma da Universidade tradicio-nal, transformando-a numa escola superior especial paraformao profissional. Ao utilitarismo iluminista (hoje dir-amos ao funcionalismo cientfico) contrape Humboldt umaprofundamento espiritual apoiado na referncia tico-ideal cincia que cria uma nova Universidade. A imagem-dire-triz dessa Universidade funda-se numa deciso contra a cin-cia pragmtica e a favor da cincia pura. O surpreendente foique, precisamente por meio dessa deciso, a universidadegerou, no sculo XIX, um novo servidor pblico estatal aca-

  • SOLIDO E LIBERDADE 53

    demicamente formado, com um perfil de competncia e umatica profissional at ento desconhecidos.

    Hoje muito mudou. Mas continuamos defrontados comdois desafios: (1) a necessidade de formao profissional parauma camada cada vez mais ampla de empregos cientfico-tcnicos; e (2) o aprofundamento da pesquisa voltada paraaplicaes imediatas segundo critrios industriais de pro-dutividade nos campos da economia, da tcnica e das ativi-dades militares. Diante desses desafios, a teoria contempo-rnea da sociologia do conhecimento, propondo oenquadramento da produo cientfica nos cnones da ra-cionalizao do trabalho, ainda reconhece pelo menos umaquesto de sabor humboldtiano como estrategicamentenevrlgica: a criatividade dos pesquisadores, de certomodo a ltima relquia de um grande projeto e o padroorganizacional com ela congruente.

    No projeto universitrio humboldtiano, professores eestudantes so pessoas em permanente aprimoramento devirtudes, no em simples acumulao quantitativa de co-nhecimentos. O decisivo no o quanto algum sabe/do-mina, mas sim que postura assume na permanente buscadas verdades. No em torno da posse da verdade que auniversidade deve se organizar como uma mera instituioespecializada de ensino, mas em torno da busca de verda-des, como espao institucional de aprendizagem. Aescolarizao da Universidade pretende fazer da liberdadede ensino, e no da liberdade de aprendizagem, o cerne daquesto da autonomia universitria. Mas somente a liber-dade de aprendizagem compatvel com a perspectivahumboldtiana de uma cincia com conscincia, para a qualo estudo no a mera transmisso de saberes estruturados,mas sim um compartilhar de uma forma existencial, um seronde saberes se inserem. E o caminho para se compartilharesse ser o dilogo socrtico.

    Humboldt via a solido e a liberdade como as condi-es de realizao de sua universidade. Isto pode ser tradu-

  • 54 CINCIA, TICA E SUSTENTABILIDADE

    zido como os meios de realizao do que Max Weber cha-mou de a cincia como vocao, ou, mais contemporanea-mente, nas palavras de um mestre que tive a alegria de co-nhecer, Helmut Schelsky: a exigncia de concentrao, de-dicao integral, autodeterminao e responsabilidade nafixao de objetivos e aplicaes da pesquisa universitriapor parte de docentes e pesquisadores.

    Mas ser possvel e legtimo pretendermos hoje a so-lido e liberdade humboldtianas? O entrelaamento dapraxis cientfica com tecnologia, economia, sociedade, Esta-do, militar parece tornar tal pretenso uma impossibilida-de. No entanto eu gostaria de afirmar que essa aparente im-possibilidade no um fato novo. Ela j existia em 1908.Diante desse fato velho, o fato novo foi o projeto uni-versitrio de Humboldt. Assim, fazendo tardio eco aos mu-ros de 1968, podemos dizer: ser razovel (no apenas racio-nal) tentar o impossvel como horizonte da vocao, e serapenas racional resignar-se ao clculo utilitarista das con-seqncias de cursos alternativos de nossas aes.

    Humboldt introduz uma nova relao entre a Univer-sidade (e com isso a cincia) e o Estado. A soluohumboldtiana assegurou a autonomia da cincia dentro doquadro hegemnico do sistema poltico do sculo XIX naPrssia. Hoje sua soluo, fundada na autonomia da cul-tura com respeito ao Estado, revela-se insustentvel. Aautonomia da Universidade contempornea est imersa nocampo de tenses de foras polticas, econmicas e milita-res. No est salvaguardada numa suposta autonomia dacultura. Assegurar a autonomia universitria pressupe,hoje, a autocompreenso da cincia como fora poltica,interlocutora ativa das instituies da sociedade civil, doEstado e da economia. Assim, num eco muito mais tardioainda aos esforos socrticos por salvar a razoabilidade darazo do naufrgio do relativismo sofista, podemos dizer:a cincia verdadeiramente livre o conhecimento do Bemnuma contnua busca amorosa, que se traduz em compro-misso com a vida.

  • SOLIDO E LIBERDADE 55

    Humboldt via a diferenciao da Universidade com res-peito s instituies escolares de ensino como um princ-pio fundamental. Parece que estamos agora diante da mes-ma tarefa. Mas a linha demarcatria deslocou-se para o in-terior da prpria Universidade. O deserto da escolarizaocresce, tomando quase que inteiramente os espaos dos cur-sos de graduao. A solido e liberdade humboldtianasparecem circunscrever-se a alguns espaos minguantes daps-graduao em sentido estrito, dos cursos de mestrado(cada vez menos) e doutorado (poucos