Ética e Vegetarianismo

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    Introduo

    1. POR QUE UMA TICA VEGETARIANA?

    Do que se trata?O que se entende por Vegetarianismo?A quem este livreto se dirige?Duas vises de mundo opostasA tica Vegetariana no algo recenteAs razes para comer carneAs razes do VegetarianismoAs formas de ocultao do problema moralOs mecanismos de resistncia ao Vegetarianismo

    2. OS ARGUMENTOS VEGETARIANOS

    Apelo ao Senso ComumMorte DesnecessriaSofrimento DesnecessrioPessoa VirtuosaAtitude de RespeitoDignidadeVulnerabilidadeCuidadoInteressesDeveres - Direitos

    SUMRIO

    pg. 16

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    Carlos Naconecy filsofo e doutor em Filosofia. Foi pesquisador visitante na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Membro do Oxford Centre for Animal Ethics e do corpo editorial do Journal of Animal Ethics. Coordenador do Departamento de tica Animal da Sociedade Vegetariana Brasileira. Dentre outras publicaes, autor do livro tica & Animais.

    SOBRE O AUTOR

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    A REALIDADE DOS ANIMAIS CRIADOS PARA CONSUMOOs fatos sobre a indstria pecuria

    INTRODUO(por Gulherme Carvalho)

    Segundo dados da FAO/ONU (Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao), so criados e abatidos cerca de 70 bilhes de animais terrestres por ano em todo o mundo para a produo de carnes, laticnios e ovos. Estes animais incluem vacas, porcos, ovelhas, cabras, perus, patos, gansos, bfalos, coelhos, cavalos e - sobretudo - frangos.

    O Brasil, um dos maiores produtores de carnes do mundo (perdendo apenas para China e Estados Unidos), responsvel por cerca de 8% deste total, ou 5,5 bilhes de animais por ano. Isso significa que, apenas no Brasil, so abatidos mais de 10 mil animais a cada minuto para produzir carnes, laticnios e ovos.

    Foto: PETA

    A imensa maioria destes animais so criados em sistema industrial de confinamento intensivo. A ideia criar o maior nmero de animais possvel no menor espao possvel. Isso exige a mxima mecanizao das operaes e o total controle do que eles comem e de como vivem. Nestas verdadeiras fbricas, os animais so considerados e tratados como simples peas de uma linha de montagem - a mesma lgica do lucro econmico aplicada a outras fbricas de produo em larga escala.

    Por conta desta lgica, o animal criado na granja industrial impedido no apenas de pastar, mas tambm de mudar de posio, mover seus membros, se deitar e se coar. Porcos e aves so mantidos em recintos fechados durante toda a sua vida. Eles no veem a luz do dia, no respiram ar fresco e so impossibilitados de contato social com outros membros da sua espcie. A criao intensiva sequer leva em conta o fato natural de que cada um desses animais tem pai, me e filhos: eles so separados do seu grupo familiar assim que nascem.

    A estatstica de 70 bilhes de animais por ano, contudo, no considera os incontveis animais aquticos que so capturados e abatidos diariamente pela indstria pesqueira: peixes de todas as espcies, crustceos, moluscos, golfinhos, baleias, tartarugas e outros animais que, propositalmente ou no, terminam mortos nas redes de pesca industrial.

    Foto: Divulgao

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    Independentemente das condies em que so criados ou capturados, todos esses animais terrestres e aquticos so mortos intencional e desnecessariamente - antes de chegarem aos nossos prato. Na rea de matana, ouvem, veem e cheiram a morte que os aguarda, tentando inutilmente escapar.

    Veja abaixo alguns fatos que mostram a realidade em que vivem alguns dos principais animais que esto no prato dos brasileiros.

    No Brasil, a imensa maioria dos frangos criados para produo de carne (mais de 5 bilhes por ano) so criados em granjas industriais. Dentro dos galpes abarrotados com milhares de frangos cada, grandes quantidades de dejetos se acumulam e geram doenas decorrentes de nveis prejudiciais de amnia e outras substncias txicas.

    Hoje em dia, o frango de corte atinge o peso considerado satisfatrio para abate em um tero do tempo do que demorava dcadas atrs: dentro de cerca de 40 dias, o animal (em estgio ainda infantil) j tem um peso de 2kg ou mais e, ento, segue para o abate. Esse crescimento acelerado, possibilitado por uma combinao de seleo gentica e melhoramento de rao e medicamentos, veio acompanhado de uma alta incidncia de doenas, dores, deformidade esqueltica e dificuldade de mobilidade, uma vez que o crescimento do esqueleto no acompanha o ritmo de crescimento do corpo.

    Quando atingem a idade de abate, os frangos so carregados em caminhes, em caixas semelhantes a engradados de bebida, como se fossem qualquer objeto inanimado, e levados ao matadouro aos milhares - sob condies climticas que podem variar de sol escaldante a frio congelante.

    Foto: Divulgao

    Frangos de corte

    Mais do que apenas pescar muitos bilhes de animais aquticos todos os anos, cada vez mais ns tambm criamos esses animais para abate - em sistema de confinamento em tanques ou cercados -, seguindo o mesmo caminho das granjas industriais. Segundo a FAO/ONU, a expectativa de que, em poucos anos, mais de 50% dos peixes consumidos no mundo sejam cultivados em fazendas aquticas, e no capturados no seu ambiente natural.

    Foto: Divulgao

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    As condies de confinamento intensivo so to extremas e estressantes, dentro das gaiolas em bateria e sem possibilidade sequer de esticar as asas, que as galinhas desenvolvem uma tendncia de atacar violentamente umas s outras - e tampouco h possibilidade de fuga na clausura da gaiola. Diante disso, para

    Foto: Compassion Over Killing

    Quanto aos machos de linhagem poedeira, o destino pior. Incapazes de produzir ovos (por serem machos) e incapazes tambm de ganhar peso suficiente para sua criao ser economicamente vivel para a indstria (pois sua gentica no favorece o crescimento corporal), os machos da indstria de ovos so exterminados ou largados para morrer aos poucos, logo aps o seu nascimento.

    evitar canibalismo e perdas financeiras, os criadores cortam o bico de todos os pintinhos recm-nascidos com uma lmina quente ou com laser, sem anestsicos, o que causa dor e sofrimento j no primeiro dia de vida dessas fmeas.

    Foto: Farm SanctuaryFoto: Divulgao

    Foto: Divulgao

    Galinhas poedeiras

    O Brasil mantm em suas granjas aproximadamente 100 milhes de galinhas poedeiras (aquelas usadas para produo de ovos), sendo que mais de 90% delas vivem dentro das chamadas gaiolas em bateria. As gaiolas em bateria so empilhadas, umas em cima das outras, e oferecem para cada galinha poedeira um espao menor do que uma folha de papel A4 para passar sua vida inteira. Diferentemente dos frangos de corte, que so mortos aos 40 dias de idade, as galinhas poedeiras perduram esse sofrimento ao longo de um ano e meio ou dois anos, que o perodo que se decorre at que a produtividade de ovos comece a cair vertiginosamente, de modo que mant-la viva no vale mais pena para a indstria.

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    Porcos de abate e porcas reprodutoras

    Os porcos esto entre os animais mais inteligentes e que mais tm empatia com o ser humano. Podem ser brincalhes e carinhosos como cachorros, tm preferncias e personalidades. Gostam de deitar na gua (ou na lama) para refrescar-se, mas so bastante higinicos no que diz respeito s suas necessidades fisiolgicas: fazem questo de usar para descanso uma rea diferente daquela usada para defecar e urinar.

    Entretanto, muitas vezes os porcos so vistos (e tratados) com negligncia e crueldade. Sujeitos a um crescimento acelerado e a procedimentos mutilatrios dolorosos como o corte de cauda, corte dos dentes e castrao sem anestsicos, os porcos consomem grandes quantidades de antibiticos diariamente para evitar o desenvolvimento de doenas decorrentes da baixa imunidade prpria do confinamento intensivo.

    Foto: Gerson Sobreira

    As porcas reprodutoras so, talvez, as que mais sofrem. Mantidas durante a maior parte do tempo em celas metlicas individuais pouco maiores do que o seu prprio corpo, elas vivem por cerca de 5 anos sofrendo inseminao artificial e sucessivas gestaes. Esgotadas, aps anos de explorao e confinamento intensivo como mquinas de produo de filhotes, as porcas reprodutoras so encaminhadas para matadouros, de onde so transformadas em carne de segunda qualidade ou rao para pets.

    Muitas pessoas ainda acreditam que a produo de leite um procedimento natural e inofensivo, ocorrendo em pequenos rebanhos soltos nos campos. Na realidade da pecuria industrial, entretanto, essa imagem no existe. A maioria das vacas utilizadas para produo de leites, queijos, iogurtes e demais laticnios no Brasil so criadas em confinamento intensivo durante a maior parte do tempo, em pequenas celas e passando algumas horas por dia em mquinas de ordenha industrial.

    Vacas leiteiras

    Foto: Divulgao

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    Criadores e empresas de biotecnologia fizeram, desde os anos 50, uma rigorosa seleo gentica das linhagens de vacas para maximizar a produo de leite, aumentando em cerca de cinco vezes a quantidade de leite produzido por cada vaca entre 1950 e 2012. Isso traz uma srie de complicaes, incluindo inflamaes freqentes e severas nas tetas. As vacas leiteiras, que poderiam chegar a viver mais de 20 anos, no passam de 5 ou 6 anos nesta cruel indstria.

    Para produzir leite continuamente, uma vaca precisa dar luz repetidamente. As vacas so submetidas a inseminao artificial e, uma vez que o seu bezerro nasce, ele separado dela fora (usualmente dentro de aproximadamente 24 horas), ignorando o auge do cuidado maternal daquela vaca e gerando desespero e frustrao extrema. As vacas continuam emitindo sons durante dias, em busca da cria roubada. O filhote deve ser retirado para no consumir parte da produo do leite, que poderia ser comercializado. Na maioria das vezes, os filhotes retirados das mes so abatidos como novilhos ou criados para carne de vitela.

    Foto: Divulgao

    Assista os documentrios:A Carne Fraca, Terrqueos e Peaceable Kingdom: O Despertar

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    POR QUE UMA TICA VEGETARIANA?

    O que comer talvez seja a mais pessoal das nossas decises. O propsito desta publicao fazer voc repensar o modo tradicional de ver os animais como coisas comestveis. O que chamamos de carne nada mais do que um pedao do corpo de um animal morto. E os animais que comemos no so tratados do mesmo modo que tratamos ces e gatos. Esses dois fatos tm graves implicaes morais. Grande parte das pessoas come animais por mero hbito e no por haver pensado em alguma boa justificativa para isso. Para outras, o estmago simplesmente fala mais alto do que a razo.

    Nas pginas seguintes, voc ser apresentado a uma sequncia de diferentes argumentos. Espera-se com isso que voc conclua que o uso de animais como comida, se no for moralmente indefensvel, pelo menos profundamente problemtico sob o enfoque da tica. O que se entende por tica aqui? tica a reflexo filosfica sobre a moralidade, de modo a produzir um guia de orientao da nossa conduta neste planeta. A tica funciona como uma bssola moral. Consequentemente, a tica fixa limites nossa liberdade. Trata-se, no presente caso, de justificar o quanto do nosso desejo por comer carne deve ser restringido em face de um bem maior: a vida dos animais que sero comidos.

    Este livreto surge tendo como pano de fundo um desconforto social cada vez maior quanto ao que fazemos aos animais. Mas, contraditoriamente, nunca se matou tanto e se comeu tanto

    DO QUE SE TRATA

    bois, porcos, galinhas, peixes e outras espcies. Os animais que devoramos tm uma vida curta e miservel. Para qu? Para atender as necessidades humanas? No. Nossas necessidades nutricionais podem ser atendidas pelo reino vegetal. A misria animal gerada para atender os prazeres momentneos do nosso paladar.

    O fato que o processo de transformao dos animais em comida os prejudica terrivelmente. Comer carne implica no mnimo - a morte daquele animal cujo corpo est sobre o prato. O Vegetarianismo denuncia exatamente essa verdade desagradvel, essa realidade incmoda, onde antes havia um hbito impensado: estamos matando e fazendo sofrer infinitamente alm do necessrio. Isso no est certo. E o papel da tica Vegetariana justamente tornar desconfortvel a conscincia moral de quem est envolvido, ativa ou passivamente, com essa indstria da morte.A parcela que produz e consome carne na nossa sociedade controla o discurso dominante a respeito de qualquer tica alimentar. Na prtica, isso implica que os vegetarianos tm o nus de justificar constantemente sua posio. Os que comem carne no precisam fazer isso. O propsito desta publicao justamente auxiliar nesse ponto.

    Por Vegetarianismo entenda-se aqui o da modalidade estrita. Trata-se daquela prtica alimentar que exclui no apenas a carne, mas tambm ovos e laticnios da dieta. As razes disso so as seguintes:

    1. A indstria da carne e a indstria de ovos/laticnios lanam mo das mesmas tcnicas de criao intensiva que tornam a vida dos animais permanentemente miservel.

    O QUE SE ENTENDE POR VEGETARIANISMO

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    2. O consumo de ovos/laticnios acaba promovendo a indstria da carne, na medida em que, quando os animais que fornecem ovos/leite deixam de ser produtivos, eles so mandados aos matadouros, como todos os outros animais.

    3. O consumo de ovos/laticnios est ligado morte prematura de animais: os pintos machos das galinhas poedeiras so imediatamente mortos ao nascerem, as galinhas poedeiras so abatidas quando no colocam mais ovos, os bezerros machos das vacas leiteiras tambm so abatidos assim que nascem e as prprias vacas so mortas quando no fornecem mais leite.

    O Vegetarianismo no visto como um modo de vida a ser adotado por todas as pessoas em todas as circunstncias em todas as partes do mundo. Por qu? Porque estaremos tratando

    A QUEM ESTE LIVRETO SE DIRIGE

    aqui do Vegetarianismo Voluntrio aquele que depende da vontade, escolha e deciso do indivduo. Portanto, o leitor-alvo destas pginas no um esquim, um morador das montanhas, um habitante de uma regio desrtica, nem um indgena da floresta. Todos eles supostamente tm que comer animais para poder sobreviver. Isso pode eventualmente valer tambm para aquelas pessoas que, vivendo em situao de extrema pobreza ou em reas muito pobres do globo, no podem se dar ao luxo de selecionar o alimento que vo comer. Essa condio pode ser temporria (para um nufrago numa ilha) ou permanente (numa regio cujo clima no permite a agricultura). De qualquer maneira, essas categorias no esto includas na defesa de uma tica Vegetariana, j que elas no implicam escolhas voluntrias. No se considera que haja uma obrigao moral em prol do Vegetarianismo nessas circunstncias. A argumentao aqui apresentada se dirige quelas pessoas que vivem em sociedades nas quais o acesso a alternativas nutricionais carne algo relativamente fcil. Supe-se que este seja o seu caso, leitor.

    Para aqueles movidos por razes morais, o Vegetarianismo no visto apenas como mais uma escolha alimentar excntrica dentre outras tantas possveis. O vegetariano no um indivduo que simplesmente prefere no comer carne. Trata-se de um modo de vida, que expressa um modo de pensar, uma viso de mundo.

    Vises de mundo - como a vegetariana - so dadas por um conjunto integrado de crenas morais, valores pessoais e um sentido de propsito de vida. Vises de mundo, sendo perspectivas filosficas, explicam no apenas como as coisas so, mas tambm como elas deveriam ser. O Vegetarianismo apresenta uma proposta de

    DUAS VISES DE MUNDO OPOSTAS

    Foto: Divulgao

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    mundo. E no importa que seja difcil de imaginar, hoje, nossa sociedade abandonando completamente o uso de animais como comida. As diferentes reaes questo vegetariana dependero exatamente da viso de mundo de cada indivduo frente a ela:

    1. Onde a maioria das pessoas v simplesmente carne, o vegetariano v um pedao do corpo inerte de um animal que uma vez j esteve vivo. O comedor de carne sente prazer e pensa no conforto de estar alimentado por um objeto (comestvel). O vegetariano se sente desconfortado pelo que v e pensa no horror que aquele sujeito (animal) deve ter passado at chegar quele prato.

    2. A oposio tambm se d em termos simblicos: para aquele que come carne, parece-lhe que se est comendo vida (j que a carne tida como saudvel e essencial na dieta). Enquanto que, para um vegetariano, parece-lhe que se est comendo morte (j que o que chamado de carne nada mais do que uma parte de um cadver do que outrora j fora uma criatura senciente). O contraste agudo entre essas percepes paradigmticas explica a dificuldade de uma discusso serena a respeito desse assunto.1

    Engana-se quem pensa que a filosofia vegetariana algo recente na histria das ideias. No Ocidente, as razes da tica Vegetariana remontam aos filsofos gregos e romanos da Antiguidade, desde o sculo 6 a.C.. Porfrio escreveu um texto especificamente sobre esse tema, intitulado Da abstinncia da carne dos seres vivos, onde antecipa grande parte dos argumentos que reapareceram no debate contemporneo em tica animal. Plutarco foi o mais eloquente nessa defesa. Ele diz que, em vez perguntarmos por que algumas pessoas se abstm da carne de animais, deveramos

    A TICA VEGETARIANA NO ALGO RECENTE

    1 - MIDGLEY, M. Animals and Why They Matter. Athens: The University of Georgia Press, 1983, p.27.

    perguntar por que algum comeou a com-los: como no repugnou seu paladar quem fez contato com as feridas dos outros e sorveu os sucos e os soros dos ferimentos mortais? (...) Por causa de um pouco de carne, ns privamos [os animais] do sol, da luz, da durao da vida (...). 2

    A transformao de um animal em comida se d sobre duas justificativas bsicas e ambas so questionveis:

    1. Nutrio que a carne proporcionaAs evidncias de que a dieta vegetariana pelo menos to saudvel nutricionalmente e provavelmente at mais do que uma base de carne tm se acumulado nos ltimos anos de acordo com os estudos cientficos (Ref. Livreto SVB). Descartada essa razo nutricional, restaria ento uma s egunda justificativa.

    2. Prazer gastronmico que a carne proporcionaEsse deleite gustativo e satisfao gastronmica devem ser suficientemente fortes para justificar os males causados aos animais que criamos e matamos para comer. Esse no o caso segundo o Vegetarianismo, portanto tal razo no pode ser chamada de tica.

    1. MoralQuando a pessoa decide evitar a carne por acreditar que o ato de com-la eticamente errado. O mundo seria mais justo se os animais no fossem criados e mortos para serem comidos. Nesse

    2 - PLUTARCO. On the Eating of Flesh. In: WALTERS, K.S.; PORTMESS, L. (Eds.). Ethical Vegetarian-ism: from Pythagoras to Peter Singer. Albany: State University o0f New York Press, 1999, p.28.

    AS RAZES PARA COMER CARNE

    AS RAZES DO VEGETARIANISMO

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    caso, no se trata apenas de uma mera preferncia pessoal. Em tica, h uma pretenso de que um princpio moral seja universalmente aplicvel e universalmente comprometedor3 - pelo menos para aquelas pessoas que tm acesso a alternativas nutricionais carne.

    O Vegetarianismo de base moral sustenta que no comer carne deve ser adotado desinteressadamente: algo a ser seguido por cada um independentemente do fato de que isso possa lhe trazer alguma vantagem pessoal, atenda os seus interesses ou alcance os objetivos particulares de algum. Isso se chama agir por uma questo de princpio.

    Pelo que foi dito, a tica Vegetariana tem os seguintes pressupostos:

    a) A dieta vegetariana saudvel e no pe em risco a sade/sobrevivncia daquele que a adota.b) O Vegetarianismo de base moral no depende de consideraes a respeito de sade pessoal/pblica, de impacto ambiental negativo ou de fome mundial.

    2. Mdico-nutricionalQuando a pessoa decide evitar a carne por acreditar que isso melhor para a sade humana.

    3. EcolgicaQuando a pessoa decide evitar a carne em face das consequncias da pecuria em termos de degradao ambiental. O Vegetarianismo seria uma forma de minimizar a prpria contribuio pessoal para esse problema.

    4. SociopolticaQuando a pessoa decide evitar a carne em face das questes de segurana alimentar e de justia social. Haveria uma relao entre o mercado da carne, o uso ineficiente de

    3 - NACONECY, C. tica & Animais: um guia de argumentao filosfica. Porto Alegre: ediPUCRS, 2014.

    recursos alimentares e a fome mundial: mais pessoas estariam alimentadas no planeta se, em vez de fornecer gros aos rebanhos, os fornecssemos diretamente a elas.

    5. ReligiosaQuando se acredita que as razes para evitar a carne se restringem aos membros de um grupo religioso.

    6. EspiritualQuando a pessoa decide evitar a carne tendo em vista no prejudicar sua evoluo espiritual.

    Foto: Divulgao

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    AS FORMAS DE OCULTAO DO PROBLEMA MORAL

    Cabeas, lnguas e coraes so geralmente removidos do animal morto porque essas partes nos lembram que o animal estava vivo antes de virar comida. Do mesmo modo, o que voc compra no supermercado no tem a cara do animal. Voc compra uma carne quadrada e embalada, que nada se assemelha ao animal vivo. Isso, em parte, explica porque a maioria das pessoas se importa com os animais mas os usa como comida. Ns comemos animais apenas porque pagamos outras pessoas para fazer o trabalho sujo de mat-los. Ns no aceitaramos convite para visitar um matadouro. Tampouco gostaramos de morar perto de um deles.

    A ocultao das implicaes ticas do consumo de carne envolve ainda uma terceira estratgia (alm do desmembramento dos corpos dos animais e o deslocamento dos matadouros para longe dos olhos do pblico). Trata-se de adotar uma linguagem eufemstica que dissocia a comida, de um lado, do animal de que ela veio, de outro. Emprega-se uma estratgia de amaciamento semntico, que substitui certos termos por outras palavras eticamente neutras, suavizando assim a realidade nua e crua. Vejamos. Voc nunca vai a um restaurante comer um frango: voc come retalhos e vsceras do cadver de um frango. Voc tampouco prova l um fil-mignon: voc come um msculo amputado das costas de um boi morto. Voc no come frutos do mar: voc come um peixe que foi arrancado da gua, se debatendo em convulses, para morrer lentamente por asfixia sobre o convs de um barco de pesca. Bois, porcos e galinhas no so enviados aos matadouros para morrer, mas, sim, para frigorficos. Alis, l eles no so mortos, mas processados. O propsito dessa terminologia maquiadora da realidade driblar todo o mal-estar moral e o conflito de conscincia que pode vir a brotar na mente dos consumidores. Mas palavras tranquilizadoras no so capazes de mudar a realidade.

    OS MECANISMOS DE RESISTNCIA AO VEGETARIANISMO

    No surpreendente que haja uma forte oposio inicial ideia de se abrir mo de certos prazeres que acompanham as pessoas sete dias por semana. A resistncia de algum argumentao vegetariana pode ser oriunda apenas de uma reflexo pouco cuidadosa. Alguns mostram uma cegueira moral, uma indiferena grosseira com o prximo. Outros so vtimas da apatia. Elas suspeitam que os animais de consumo levam uma vida miservel, mas no tm uma curiosidade

    Foto: Divulgao

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    moral quanto s realidades da produo da carne. Outros simplesmente negam os fatos ou escolhem ignorar o que acontece no mundo, dizendo se voc sabe, no me conte.

    Muitas pessoas at podem reconhecer o valor da tica Vegetariana, mas lhes falta a iniciativa ou o desejo de p-la em prtica nas suas vidas. Isso acontece porque um argumento logicamente irrebatvel no fornece, de imediato, um motivo para agir em prol da vtima. Saber o que moralmente correto uma coisa; ter a disposio para fazer o que correto, outra. A menos que seu interlocutor queira agir moralmente, sinta uma satisfao pessoal em fazer o que certo, ele sempre poder dizer sei que deveria me tornar vegetariano, mas eu no vou fazer isso. De todo modo, os processos tpicos da resistncia pessoal ao Vegetarianismo so os seguintes:

    1. CompartimentalizaoDiz respeito nossa habilidade de separar o intelectual do emocional no que concerne quelas coisas que no queremos comparar ou investigar de perto. Quando no podemos ou no queremos lidar com realidades por demais desagradveis ou ameaadoras. Exemplos:

    a) Algum recusa o convite para visitar um matadouro, mas no relaciona esse fato com sua escolha em comer carne. b) Algum apresentado a cenas filmadas dentro de um matadouro, mas se recusa a ver as cenas at o fim ou decide no pensar nisso, e continua a comer carne.

    2. InconsistnciaQuando pensamento e comportamento esto desalinhados, a ponto de no agirmos de acordo com nossos valores. Ou quando nos recusamos a aplicar certos princpios morais a outras circunstncias semelhantes ou idnticas. Exemplos:

    a) Algum confessa ter grande inquietao moral quanto ao consumo de carne, mas lhe falta a vontade de praticar o Vegetarianismo. b) Algum sente horror pelo fato de chineses comerem ces, mas nenhuma averso ideia de comermos porcos. c) Algum est atento ao destino dos animais de companhia, mas no ao dos animais de criao.

    Foto: Divulgao

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    Foto: Divulgao

    3. RacionalizaoAs pessoas no gostam de admitir que esto erradas - ou melhor, que vm fazendo algo errado ao longo de toda a sua vida. Ao ser acusado de inconsistente, em vez de modificar seu comportamento, comum que algum oferea uma razo para dissolver tal crtica. Ele ir assim racionalizar suas intuies carnvoras mais primitivas, procurando uma explicao aceitvel do ponto de vista moral para seu consumo de carne, cujo motivo verdadeiro ele no percebe (dizendo, por exemplo, no fui eu quem matou o animal que estou comendo). O problema que muito das opinies pessoais esto baseadas em intuies moldadas pela educao moral dada pelos pais durante a infncia. E essas intuies morais podem no ser sacudidas por argumentos ticos irrebatveis. Naquelas pessoas cuja vontade no suficientemente forte para ouvir as razes vegetarianas, a mente ir aonde o estmago for.

    FONTES:Michael Allen Fox. Deep Vegetarianism. Philadelphia: Temple University Press, 1999.Tony Milligan. Beyond Animal Rights: food, pets and ethics. London: Continuum, 2010.

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    OS ARGUMENTOS VEGETARIANOS

    O APELO AO SENSO COMUM

    A tica Vegetariana no precisa provar aquilo no qual voc e a grande maioria das pessoas j acredita. Pode ser mostrado que a imoralidade do comer carne uma mera decorrncia de crenas fortemente intuitivas para o senso comum. A ideia aqui simplificar ao mximo o esforo argumentativo vegetariano analisando trs casos.

    CASO 1

    Voc est caminhando na rua quando v uma pequena tartaruga sair da grama ao lado e comear a atravessar o seu caminho. Voc percebe que, se no alterar sua passada, acabar pisando na tartaruga. Nossa intuio diz que seria moralmente errado esmagar o animal. Suponha agora que, em vez da tartaruga, houvesse uma poro de sujeira na calada. Nossa intuio diz agora que no haveria um problema moral em pisar na sujeira. O caso mostra que h uma diferena moralmente relevante entre animais e coisas (objetos inanimados). H algo na tartaruga que torna moralmente inaceitvel o ato de esmag-la nessa situao (no sendo necessrio, para fins de argumento, definir o que exatamente isso que fornece um status moral ao animal).

    O QUE O CASO DIZ SOBRE O VEGETARIANISMOAs justificativas para comer animais so basicamente (a) manuteno da prpria vida ou sade e (b) o prazer que isso proporciona. Voltemos ao caso. Quanto primeira justificativa: nem a vida nem a sade do caminhante esto em risco. Quanto segunda: alegar que o prazer do ritmo da caminhada ir se perder ao se alterar o passo no justifica a morte do animal. Mesmo que se modifique a passada, o caminhante ainda ir se deleitar com a caminhada. O Vegetarianismo argumenta que, mesmo que se abandone a carne, ainda teremos os prazeres do paladar e da nutrio com os alimentos de origem vegetal.

    CASO 2

    Voc est dirigindo em uma estrada e v uma tartaruga atravessando a via. Se voc desviar do animal, ter que passar por cima de uma planta que est no acostamento. Nossa intuio diz que deveramos desviar da tartaruga, mesmo que, com isso, a planta acabe morta. O caso mostra que, na escolha entre salvar a vida de um animal ou de uma planta, devemos salvar a do animal.Foto: Divulgao

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    O QUE O CASO DIZ SOBRE O VEGETARIANISMO As justificativas para comer animais so basicamente (a) manuteno da prpria vida/sade e (b) o prazer que isso proporciona. Voltemos ao caso. Quanto primeira justificativa: nem a vida nem a sade do motorista esto em risco. Quanto segunda: alegar que o motorista ter mais prazer passando por cima da tartaruga do que da planta no justifica a morte do animal. Obter mais prazer no uma boa razo para se matar animais. Para o Vegetarianismo, o prazer de comer carne no justifica a morte do animal que tem que ser morto para fornec-la.

    CASO 3

    Um cientista planeja realizar um experimento que trar informao importante e percebe que tanto animais como plantas serviro ao seu objetivo. Tal teste implicar na morte daquilo que for usado. Nossa intuio diz que plantas deveriam ser usadas nessa experincia.

    O QUE O CASO DIZ SOBRE O VEGETARIANISMO errado matar animais quando plantas servirem para os mesmos propsitos a saber, a manuteno da vida humana saudvel.

    FONTE:

    Andrew Tardiff. Simplifying the Case for Vegetarianism. Social Theory and Practice, v.22, n.3, 1996.

    O ARGUMENTO DA MORTE DESNECESSRIA

    A indstria da carne est intrinsicamente ligada moralidade do matar, j que, sem a morte intencional de um animal, ele no se torna nossa comida. Os animais que comemos morrem antes mesmo de chegar idade adulta: galinhas, que viveriam naturalmente por cerca de 10 anos, so abatidas em 5-7 semanas. Porcos, em vez de viverem 10-12 anos, so mortos com 6 meses de idade. Bois, que poderiam viver por 15-20 anos, vo para o matadouro aos 18 meses.

    O mal de matar parece to evidente que dispensaria maiores explicaes filosficas. Morrer algo simplesmente ruim para aquele que morre. Cada animal tem sua prpria vida para viver e no cabe a ningum se apropriar dela. Ao morrer, o animal perde tudo o que ele tem. Matar um animal constitui um ato de violncia e isso simplesmente antitico.

    Tambm parece bvio que melhor no causar uma morte se isso puder ser evitado. O argumento da morte desnecessria diz que errado matar um animal sem que haja uma razo suficientemente forte para isso. O Vegetarianismo sustenta que o nosso desejo por carne no uma razo suficiente para matar qualquer animal. Mas o que se entende exatamente por morte desnecessria nesse argumento?

    1. Para determinarmos se uma morte necessria ou no, devemos olhar a razo pela qual ela provocada.

    2. O fim a que se destina a morte dos animais de criao o consumo de sua carne.

    3. Tal consumo de carne desnecessrio j que a sade humana e os prazeres do paladar humano no resultariam ameaados por uma dieta vegetariana.

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    4. Logo, se podemos viver bem sem consumir carne, ento a morte dos animais de criao desnecessria.

    A questo filosfica principal ainda permanece: qual o problema tico em matar um animal? Por que encurtar o seu tempo de vida constitui um erro moral (supondo que a morte desse animal fosse indolor, instantnea e inesperada)? Veremos quatro possveis razes pelas quais matar um animal pode ser considerado um mal. E se cometemos um grave erro ao matar animais para comer, a implicao prtica disso moralmente avassaladora, se levarmos em conta a quantidade astronmica de vidas destrudas pelo homem: estamos falando de uma perda total e irreparvel para aproximadamente os 5 mil animais mortos por segundo no mundo.4

    RAZO 1: inconsistente levar em conta o sofrimento dos animais mas no o fato de que eles so mortos. Para a maioria das pessoas, curiosamente, o ato de chutar um porco seria considerado eticamente censurvel, mas o ato de mat-lo para com-lo, no. No entanto, se o bem-estar de um animal moralmente importante, ento a sua morte tambm . Se devo me preocupar em como um animal est vivendo sua vida, ento tambm devo me preocupar com a ideia de mat-lo.

    RAZO 2: Matar um animal moralmente errado porque ele valoriza sua vida por si mesma.5

    Os animais valorizam a sua prpria vida (mesmo que no sejam conscientes disso como ns somos, tenham uma razo para viv-la ou compreendam que a morte trgica). Um animal tende a defender continuamente sua prpria existncia, sua prpria integridade, resistindo permanentemente a tudo aquilo que pode conduzir sua morte. E mais: um animal no apenas defende sua prpria vida, mas tambm seu bem-estar enquanto vive: ele constantemente est valorando coisas - escolhendo, preferindo, priorizando

    4 - http://www.adaptt.org/killcounter.html, com a observao de que se trata de uma estimativa numrica mnima. 5 - ROLSTON III, H. Environmental Ethics: duties to and values in the natural world. Philadelphia: Tem-ple University Press, 1988. O argumento aplica-se a qualquer ser vivo, no apenas aos animais. nima.

    um estado X a outro estado qualquer Y. Os animais preferem no apenas comer a passar fome, mas escolhem comer certo tipo de alimento em vez de outros. Eles preferem se proteger a ficar desabrigados, um ambiente com certa temperatura a outro. Ao serem capazes de tomar conta de si mesmos, os animais demonstram que so portadores de um valor objetivo, autnomo, que independente da sua importncia de uso/mercado para ns. E valor gera dever. A consequncia moral disso a de que se um animal capaz de valorizar sua prpria vida, ento ns temos uma obrigao moral de tomar essa vida em conta tambm.

    RAZO 3: Matar um animal moralmente errado porque isso lhe rouba oportunidades futuras.6

    Quando matamos um animal, ele perde aquilo que a existncia teria lhe proporcionado de valor. Ele perde as oportunidades que o futuro lhe traria. Ele deixar de viver tudo aquilo que ele aprecia: contato com a sua prole, os relacionamentos sociais com outros animais, as atividades fsicas como correr, nadar, voar e outros tantos prazeres que so caractersticos da sua espcie.

    RAZO 4: Matar um animal moralmente errado porque se trata de uma criatura consciente de si mesma.7

    Quanto questo da conscincia animal, dispomos de trs hipteses: podemos pensar que (1) um animal apenas reage automaticamente a estmulos sensoriais imediatos, (2) ele capaz de uma percepo consciente de objetos ou eventos (conscincia perceptiva), ou ainda (3) o animal est consciente de que ele est pensando ou sentindo de uma determinada maneira (conscincia reflexiva ou autoconscincia). A observao e o bom senso nos dizem que os animais que comemos mostram pelo menos algum grau de autoconscincia. Para comear, h diferentes tipos de autoconscincia:

    6 - RACHELS, J. The End of Life: euthanasia and morality. Oxford: Oxford University Press, 1986.7 - DeGRAZIA, D. Self-awareness in animals. In: LURZ, R.W. (Ed.). The Philosophy of Animal Minds. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

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    Corporal: um animal tem conscincia do prprio corpo como algo diferente do ambiente que o cerca e como algo sujeito ao seu prprio controle, do que seu corpo est fazendo e das sensaes que informam o que est acontecendo com esse corpo (como dores, coceiras, fome, frio, etc.).

    Social: um animal tem conscincia de si mesmo como parte de um grupo social. por isso que, na natureza, ele entende que est subordinado ao macho-alfa do grupo e o que esperado desse papel. isso que faz com que, num lar humano, um animal possa estabelecer relaes sociais com as pessoas. Nossa compreenso desse tipo de conscincia nos permitiu precisamente que os animais fossem domesticados.

    Introspectiva: um animal tem conscincia das suas aes, dos pensamentos e das emoes que as motivam e, principalmente, de que ele mesmo est tendo tais experincias. Basta lembrar algumas situaes corriqueiras para demonstrar isso. Vejamos: um animal no tem apenas a sensao de fome, mas tambm tem conscincia de que ele mesmo tem essa sensao. s por isso que ele nos pede comida. Os animais tambm so capazes de sentir medo - especialmente de eventos dolorosos. Para isso acontecer, necessrio que um animal tenha a conscincia da possibilidade de sentir dor, no no momento presente, mas em um tempo que ainda est por vir. Conclui-se que toda criatura capaz de sentir medo tem alguma ideia de si mesmo como algo que permanece ao longo do tempo em direo ao futuro. Isso significa que esse animal tem algum tipo de autoconscincia.Se um animal consciente do que se passa com seu corpo, de seus estados mentais, das suas relaes com o mundo ao seu redor e com outros animais, ento ele tem conscincia de que um sujeito das suas prprias experincias. Ele ir acumular experincias ao longo de sua vida. Isso significa que a vida de um animal que foi morto no pode ser inteiramente substituda pela vida de um outro animal trazido ao mundo, ainda que seja

    da mesma espcie. Como um animal nunca ser idntico a outro animal, ao mat-lo, haver sempre um dano moral que no poder ser compensado eticamente. Quem convive intimamente ou interage com animais na sua profisso sabe que os animais no so substituveis do mesmo modo que uma boneca de plstico pode ser. At animais da mesma espcie apresentam um estilo de comportamento prprio ou um tipo de personalidade: uma galinha pode ser mais tmida do que outra galinha; um peixe pode ser mais agressivo do que outro peixe. Se o animal que matamos para comer (psicologicamente) nico, ento o mal moral que h no ato de mat-lo provm justamente da destruio dessa conscincia nica, dessa vida nica.

    FONTES:

    DAVID DeGRAZIA. Self-awareness in animals. In: LURZ, R.W. (Ed.). The Philosophy of Animal Minds. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

    HOLMES ROLSTON III. Environmental Ethics: duties to and values in the natural world. Philadelphia: Temple University Press, 1988.

    JAMES RACHELS. The End of Life: euthanasia and morality. Oxford: Oxford University Press, 1986.

    Foto: Divulgao

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    O argumento do sofrimento desnecessrio diz que errado causar sofrimento a um animal sem que haja uma razo suficientemente forte para esse sofrimento - ou seja, se isso no produzir algum bem maior. E o Vegetarianismo alega que o nosso desejo por carne no uma razo suficiente para fazer um animal sofrer. Por sofrimento aqui entenda-se, no sentido amplo, aquelas experincias desagradveis como dor, estresse e medo principalmente, sejam elas intensas ou prolongadas. Toda a criatura que sofre deseja que o sofrimento termine ou, pelo menos, prefere no sentir essa sensao. Eu sei, de modo direto e inegvel, que o sofrimento experimentado pelo animais de criao um mal porque ele tambm seria um mal se eu mesmo tivesse uma experincia semelhante.

    Os fatos resumidos a respeito do sofrimento imposto aos animais que se tornaro nossa comida j foram mencionados antes (ver Introduo). Inmeros filmes de documentrio retratam as suas mazelas durante o confinamento, engorda, marcao, castrao, manejo, transporte e abate. Essa realidade to brutal que comum que as pessoas se sintam motivadas ao Vegetarianismo ao tomarem conhecimento disso tudo. Mesmo aquelas pessoas que se opem ao Vegetarianismo acreditam que o sofrimento animal, por si s, algo mau. Elas, entretanto, talvez acreditem que esse sofrimento necessrio. No . Vejamos:

    1. Para determinarmos se uma experincia de sofrimento necessria ou no, devemos olhar a razo pela qual ela gerada.

    2. O fim a que se destina o sofrimento dos animais de criao o consumo de sua carne.

    3. Tal consumo de carne desnecessrio j que a sade humana

    e os prazeres do paladar humano no resultariam ameaados por uma dieta vegetariana.

    4. Logo, se podemos viver bem sem consumir carne, ento o sofrimento dos animais de criao desnecessrio.

    [Em contraste, um sofrimento necessrio quando ele se destina a promover um bem maior de modo justificado. Um exemplo disso seria o sofrimento provocado por uma amputao cirrgica de uma perna, que se destina a salvar a vida do paciente. Segundo a tica Vegetariana, a satisfao temporria do nosso paladar e do nosso estmago no compensa nem de longe o gigantesco sofrimento dos animais criados para serem comidos].

    FONTE:

    PETER SINGER. Libertao Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

    A tarefa da tica promover um carter virtuoso nas pessoas. Virtude uma disposio interna para sentir e agir inspirada pelo princpio da justia, compaixo, benevolncia ou outro qualquer. A ideia que, ao se tornar vegetariana, uma pessoa traz mais bondade ao mundo. Vejamos dois argumentos desse naipe. O primeiro deles:8

    1. Um mundo com menos sofrimento/mortes desnecessrias , em princpio, melhor do que um mundo com mais sofrimento/mortes desnecessrias.

    2. Uma pessoa boa toma medidas para tornar o mundo um lugar melhor e medidas ainda mais fortes para evitar tornar o mundo um lugar pior.

    O ARGUMENTO DA PESSOA VIRTUOSA

    8 - ENGEL, JR.M. The Immorality of Eating Meat. In: POJMAN, L.P. (Ed.). The Moral Life: an intro-ductory reader in ethics and literature. Oxford: Oxford University Press, 2000. O autor no inclui a ideia de mortes desnecessrias no seu silogismo.

    O ARGUMENTO DO SOFRIMENTO DESNECESSRIO

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    3. Uma pessoa minimamente decente toma medidas para ajudar a reduo da quantidade de sofrimento/mortes desnecessrias no mundo se ela puder fazer isso com um mnimo de esforo pessoal de sua parte.

    4. Voc se considera uma pessoa boa ou, pelo menos, uma pessoa minimamente decente.

    5. Logo, voc deve tomar medidas para ajudar a reduo da quantidade de sofrimento/mortes desnecessrias no mundo se voc puder fazer isso com um mnimo de esforo pessoal de sua parte (no caso, adotando o Vegetarianismo).

    O segundo argumento leva em conta a suposta impotncia de algum, agindo individualmente, em reduzir o sofrimento e a morte dos animais de criao:9

    9 - NOBIS, N. Vegetarianism and Virtue: Does Consequentialism Demand Too Little? Social Theory and Practice, v.28, n.1, 2002.

    O ARGUMENTO DA ATITUDE DE RESPEITO

    1. tica uma questo de atitude. Atitude uma predisposio pessoal a ver o mundo de um determinado modo e reagir s situaes, ideias ou indivduos de acordo com tal.

    2. A forma inapropriada de ver os animais d margem a atitudes desrespeitosas, que, por sua vez, moldam os comportamentos eticamente errados envolvendo eles.

    3. Alm da capacidade de sentir, podemos atribuir duas caractersticas moralmente importantes s criaturas que comemos:

    a) Animais tm a experincia (subjetiva) da sua prpria vida.

    1. Uma pessoa boa no ir querer se envolver com o sistema de sofrimento/morte da indstria da carne isto , no se beneficiar dele nem o sustentar (mesmo simbolicamente) quando:

    a) conhecer fatos relevantes sobre a pecuria e nutrio; eb) tiver boas alternativas carne j facilmente disponveis.

    2. Voc se considera uma pessoa boa.

    3. Logo, voc deve se tornar vegetariano (mesmo que isso no seja suficiente para reduzir ou eliminar os males causados aos animais).

    FONTES:

    MYLAN ENGEL, JR. The Immorality of Eating Meat. In: LOUIS P. POJMAN (Ed.). The Moral Life: an introductory reader in ethics and literature. Oxford: Oxford University Press, 2000.

    NATHAN NOBIS. Vegetarianism and Virtue: Does Consequentialism Demand Too Little? Social Theory and Practice, v.28, n.1, 2002.

    Foto: Divulgao

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    Um animal no como qualquer outro tipo de objeto, inteiramente dependente de influncias externas. Ele age no mundo. Tem um ponto de vista e dirige seu comportamento a partir dele. Tem sua prpria experincia de mundo, formando uma biografia. Um animal um sujeito de uma vida, vida essa que pode ser melhor ou pior, para o prprio animal, a partir desse ponto de vista. Sua vida importa para ele mesmo.b) Animais conduzem (autonomamente) a sua prpria vida.Um animal autnomo no sentido de que ele tem suas preferncias e tambm a habilidade de empreender uma ao com a finalidade de satisfaz-las. No necessrio que ele formule, para si mesmo, alguma razo para isso. Basta que essa ao inicie espontaneamente e seja autodirigida. Essa autonomia faz com que os animais escolham e busquem certas coisas em vez de outras: uma galinha escolhe andar sobre o solo natural em vez de sobre um piso de concreto. Um porco busca uma determinada rea para repousar em vez de outra. Um peixe procura um determinado tipo de comida em vez de outro.

    4. inapropriado ver um animal como algo a ser comido (carne) ou a fornecer comida (ovos/leite) em funo de:

    a) fatos moralmente relevantes sobre eles (sua subjetividade e autonomia);b) fatos relevantes sobre ns (no precisamos de carne para viver e viver bem).

    5. Portanto, quem consome carne revela uma disposio mental desrespeitosa com os animais, um olhar que inconsistente com o tipo de criatura que eles so. De qualquer forma, h que se compatibilizar o respeito pelos animais com o tipo de vida que os seres humanos tm que levar nas suas atuais circunstncias. Imagine algum vivendo sobre o gelo, nas montanhas ou no meio da selva. Se essa pessoa necessita de carne para

    O ARGUMENTO DA DIGNIDADE

    1. O conceito de dignidade est intrinsecamente vinculado ao conceito gmeo de respeito, visto na seo anterior. Dignidade justamente uma qualidade moral que inspira respeito.

    2. do filsofo Kant a famosa distino entre coisas, que podem ser usadas para atender os propsitos de outros, e pessoas, sujeitos dignos, que merecem respeito moral. Meras coisas, diz ele, tem um preo, um valor de troca. Pessoas, por outro lado, tm uma dignidade. Elas no podem ser substitudas por algo equivalente. A dignidade de um indivduo provm do valor que ele tem em si mesmo, no para si prprio, nem para os outros. Isso significa que ele no deve ser nunca tratado apenas como um mero meio para outros fins, mas, em vez disso, como um fim em si mesmo.3. A tica Vegetariana toma emprestada essa distino, com a diferena de que os animais ocupariam a categoria dos fins em si mesmos, como criaturas dignas, merecedoras de respeito em vez de meras coisas que se movem.

    4. Se atribuir dignidade a um indivduo significa consider-lo um fim em si mesmo, essa mesma dignidade violada ou negada

    sobreviver, a atitude apropriada nesse caso seria reconhecer a subjetividade/autonomia de um animal e, ao mesmo tempo, v-lo como algo a ser comido o que no significa mostrar desrespeito com ele. O fato que a grande maioria de ns no se encontra nessa situao.

    FONTES:

    ELIZABETH FOREMAN. Good Eats. Between the Species, v.17, n.1, 2014.

    TOM REGAN. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983.

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    1. Por que achamos que seria horripilante matar uma pessoa para ass-la, mas matar um porco para ass-lo, no? Imagine a

    sempre que o animal reduzido a um simples recurso comestvel. A indstria da carne rouba a dignidade de um animal quando o transforma em um almoo.

    5. A dignidade dos animais pode ser filosoficamente fundada na sua prpria natureza, na medida em que so criaturas com (a) subjetividade/autonomia (ver seo anterior) ou (b) vulnerabilidade (ver prxima seo).

    6. Para o Vegetarianismo, importa notar que a noo de dignidade inclui dignidade pstuma. Por isso, consideramos uma violao dignidade (humana) quando um cadver (humano) mutilado. Nesse caso, trata-se de respeitar a dignidade que a vtima possua enquanto estava viva, antes de morrer. O corpo morto no uma mera coisa: o cadver est no lugar de, representa o prprio indivduo vivo.

    7. Mas, enquanto que comer corpos de pessoas mortas tido como um ato extremo de depravao, comer cadveres de animais perfeitamente aceitvel pela maioria das pessoas. Por entender que animais tambm tm dignidade, a tica Vegetariana evoca justamente o respeito moral pelo que o animal foi no passado e pelo que ele poderia ter sido - se no tivesse sido morto para se tornar comida.

    FONTES

    ANTOON DE BAETS. A Successful Utopia: The Doctrine of Human Dignity. Historein, v.7, 2007.

    TOM REGAN. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983.

    O ARGUMENTO DA VULNERABILIDADE

    existncia de uma fazenda de criao de bebs em um lugar qualquer. Suponha que um grupo seleto de pessoas pagasse secretamente homens doadores de esperma e mulheres com barrigas de aluguel para dar luz a bebs. Esses bebs seriam criados at ganharem um peso suficiente para serem assados e comidos durante uma cerimnia especial. Suponha tambm que esses bebs fossem muito bem tratados at o momento final e que, alm disso, tivessem uma morte tranquila e serena por meio de uma superdosagem de plulas para dormir. certo que ficaramos horrorizados se um caso como esse viesse a pblico. Mas por que trazer vida um desses bebs com a inteno de com-lo seria moralmente inconcebvel, mas fazer nascer um animal para tambm com-lo mais tarde, no? Qual a diferena moral entre os dois casos? Se voc responder que a justificativa simplesmente a espcie da vtima, estaremos diante do chamado especismo - a discriminao preconceituosa baseada na noo de espcie.

    Foto: Divulgao

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    2. Animais e crianas constituem casos paradigmticos de vulnerabilidade e inocncia. A condio em que ambos se encontram muito semelhante em trs aspectos importantes:

    a) Animais como as crianas so indefesos. (Quase) todos eles esto submetidos nossa vontade e ao nosso poder, ainda que no apresentem nenhuma ameaa vida humana. Ns no apenas decidimos traz-los vida, mas tambm decidimos como eles iro viv-la. Esse controle total agrava nossa responsabilidade moral em relao a eles.b) Animais como as crianas no so capazes de articular suas necessidades e usar a fala para nos informar de seus interesses, dando ou no seu consentimento a algo que lhes fazemos. Eles dependem de ns para represent-los. Esse fato, novamente, aumenta a nossa responsabilidade.c) Animais como as crianas no tomam decises morais e, por isso, no podem ser considerados moralmente responsveis por suas aes. Eles so moralmente inocentes e nunca merecem os males que intencionalmente lhes infringimos. Isso torna a justificao moral do que lhes fazemos mais difcil.

    3. Ns, humanos, participamos apenas como mais um tipo de animal no mundo da carne, da corporeidade. Nossa suscetibilidade a sofrer semelhante a dos animais. A condio de sermos mortais, a transitoriedade da nossa vida, tambm partilhada com eles. Essa conscincia da nossa prpria vulnerabilidade carnal faz disparar um sentido de solidariedade corporal com os animais.

    4. A tica Vegetariana denuncia o problema moral de tirar vantagem da fragilidade de um indivduo a fim de atender os interesses de outros indivduos. A vulnerabilidade dos animais (de criao) tratada como uma oportunidade (diettica) para ns. Restringimos a liberdade, violamos a integridade fsica e impedimos o comportamento tpico de uma criatura fisicamente mais vulnervel que ns. Por qu? Porque isso nos vantajoso.

    Aproveitamos dessa fragilidade, de forma intencional e calculada, para obtermos algo. Esse precisamente o cerne dos processos de dominao, opresso e explorao dos seres vulnerveis. O Vegetarianismo, por sua vez, apresenta uma agenda oposta: a da no violncia em relao a outras criaturas.

    FONTES

    ANDREW LINZEY. Why Animal Suffering Matters: philosophy, theology, and practical ethics. Oxford: Oxford University Press, 2009.

    RALPH. R. ACAMPORA. Toward a Properly Post-Humanist Ethos of Somatic Sympathy. In: SMULEWICZ-ZUCKER, G.R. (Ed.). Strangers to Nature: animal lives and human ethics. Lanham: Lexington Books, 2012.

    WILLIAM B. IRVINE. Cannibalism, Vegetarianism, and Narcissism. Between the Species, v.5, n.1, 1989.

    1. Quando um vegetariano assiste algum comendo um peixe durante um almoo, ele no precisa raciocinar a fim de concluir que isso eticamente errado. Ele no precisa filosofar a respeito disso. Ele simplesmente v que isso errado.

    2. Tanto vegetarianos quanto no vegetarianos ficariam extremamente perturbados ao visitar um matadouro. E no levariam seus filhos para fazer essa visita. Nem gostariam de morar do lado de um. Essa resposta emocional inapropriada? Uma mera sentimentalidade de quem incapaz de lidar com a dura realidade da vida? No, segundo a tica do cuidado. O ideal, de acordo com essa concepo, no uma pessoa agir de modo impessoal, objetivo e sem envolvimento emocional com uma questo tica. Ao contrrio, justamente a dimenso emocional da relao humano-animal que deve ser ressaltada.

    3. Em vez dos ideais de justia e de imparcialidade, a noo-chave aqui a de cuidado. Importa o ato de nos responsabilizarmos e

    O ARGUMENTO DO CUIDADO

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    uma ateno s necessidades dos animais no como espcie, um grupo biolgico, mas, sim, como criaturas de carne e osso em cada contexto particular. essa ateno (compassiva/emptica/simptica) que faz uma pessoa desviar o seu carro na estrada a fim de evitar atropelar um animal, sem ter que pensar em uma explicao racional para isso. Essa mesma pessoa ver o terror de um boi em um matadouro como comparvel com o dela mesma em uma situao semelhante.

    4. Note que no se trata de uma tica da compaixo ou da empatia passiva pela vtima, tampouco piedade pelo destino de outrem. Estamos falando de uma construo imaginativa a respeito da realidade de um determinado animal, de modo a suscitar um sentimento proativo apropriado sua condio. H que se mobilizar uma ateno e preocupao suficientes a ponto de tentar encontrar a causa de uma violncia e, tendo encontrado quem ou aquilo que est causando esse mal, contribuir para que isso no acontea mais.

    5. A principal causa da violncia aos animais a indstria da carne. Vegetarianos simplesmente percebem isso e se preocupam com isso. E o que impede que todos ns manifestemos essa compaixo pelos animais destinados a serem comidos? So exatamente certas estratgias de obscurecimento da realidade por parte dessa indstria (ver Introduo). So essas manobras premeditadas que bloqueiam o exerccio das emoes vegetarianas no restante da sociedade.

    FONTE:

    JOSEPHINE DONAVAN, CAROL J. ADAMS. (Eds.). The Feminist Care Tradition in Animal Ethics. New York: Columbia University Press, 2007.

    1. A ideia a seguinte: a) um dado de realidade que as vidas dos animais podem, do ponto de vista deles mesmos, ir melhor ou pior.b) Podemos dizer que do interesse de cada animal que sua vida v melhor do que pior para ele.c) Logo, do interesse de cada animal tudo aquilo que o beneficia.

    2. No necessrio que uma galinha, porco ou peixe se interesse (intelectualmente) em viver e viver bem para que isso seja do seu interesse. A partir da noo de interesses, o Vegetarianismo pode ser defendido por meio de dois princpios morais:

    a) Interesses vitais tm prioridade sobre interesses no vitaisInteresses vitais correspondem s necessidades que devem ser atendidas a fim de que uma criatura tenha uma vida decente ou minimamente gratificante. Isso envolve nutrio, integridade fsica, segurana corporal, sade, repouso, abrigo, etc. Interesses no vitais, por sua vez, dizem respeito quelas condies de vida que no so necessrias para uma vida minimamente boa, mesmo que isso aumente o bem-estar do indivduo, tais como ter

    O ARGUMENTO DOS INTERESSES

    Foto: Divulgao

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    acesso a uma casa maior e a um churrasco.A tica Vegetariana denuncia que o comer carne consiste em um interesse humano que no vital, mas que sacrifica os interesses mais bsicos dos animais que so aprisionados, mutilados, maltratados e mortos, para depois serem comidos.b) O atendimento de necessidades tem prioridade sobre o atendimento de preferncias A autonomia, a liberdade de escolha (alimentar), de poder optar por algo (o que comer) uma capacidade tpica da nossa espcie. Essa possibilidade de fazermos escolhas diz respeito a uma necessidade humana. Mas satisfazer uma determinada escolha em particular (pela carne) no diz respeito ao atendimento de necessidades e, sim, de preferncias, de um mero gosto. A troca de um bife por uma poro de feijo no obstaculiza o exerccio da autonomia humana. Para cada item de carne h substitutos nutricionais e culinrios que podem dar uma satisfao equivalente. Sendo assim, nossas preferncias alimentares (pela carne) devem ceder prioridade s necessidades dos animais que so violadas pela pecuria (manter-se vivo, fisicamente ntegro, com um mnimo de conforto ambiental, em contato com sua prole, etc.).

    FONTES:

    S.F. SAPONTZIS. Morals, Reason, and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987.

    TOM REGAN. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983.

    A defesa de uma tica Vegetariana pode ser articulada atravs das seguintes noes:

    1. DeveresComo indivduos dotados de subjetividade/autonomia (ver seo O Argumento da Atitude de Respeito), os animais valorizam suas prprias vidas, por si mesmas. Isso significa que os animais

    O ARGUMENTO DOS DEVERES - DIREITOS

    so portadores de um valor autnomo, objetivo, intrnseco isto , moral. Logo, temos uma boa razo para impor obrigaes ou deveres sobre aqueles que poderiam desconsiderar tal valor.

    2. DireitosOs animais tm imunidade moral, um trunfo contra o interesse de terceiros em atropelar esse valor. A subjetividade/autonomia animal deve receber a mesma proteo moral bsica que a humana recebe: se as pessoas tm o direito de no serem devoradas, ento os animais tambm tm o direito de no serem comidos.

    3. Inverso do nus da justificaoA ideia de que os animais tm valor moral ou direitos morais implica que cabe queles que querem atentar contra tal valor ou tais direitos justificar o porqu disso em vez daqueles que querem proteg-los. A ideia de que os animais tm valor moral ou direitos morais opera semelhantemente ao caso humano:

    a) No sentido moral e legal, no se deve matar ou aprisionar pessoas, a menos que se deem determinadas condies especficas: em defesa prpria, em atendimento ao interesse da prpria vtima, quando a segurana de outros indivduos ameaada ou quando um procedimento legal declara que a vtima culpada de um delito.b) Ora, animais so igualmente passveis de morte e aprisionamento.c) Logo, no se deve matar ou aprisionar animais a menos que tambm se apliquem essas mesmas condies de exceo.d) Mas o nus da prova a respeito dessas condies cabe a quem alega a sua existncia.

    FONTES:

    J. BAIRD CALLICOTT. The Pragmatic Power and Promise of Theoretical Environmental Ethics: Forging a New Discourse. Environmental Values, v.11, 2002

    RONALD DWORKIN. Rights as Trumps. In: WALDRON, J. (Ed.). Theories of Rights. Oxford: Oxford University Press, 1984.