Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    O Castelo

    Branco

    Ohran Pamuk

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    Castelo Branco, O

    Honram Pamuk

    Traduo de Raul de S Barbosa

    Editora Record

    Ttulo Original Turco

    BEYAZ KALE

    Esta edio foi produzida a partir da traduo norte-americana

    intitulada The White Castle.

    Copyright 1979 by Can Yayin Lari Ltda.

    Publicado mediante acordo com Karin Schindler, representante

    dos direitos literrios desta obra.

    ISBN: 850103911X

    Editora: RECORDNmero de pginas: 176

    Encadernao: Encadernado

    Edio: 1993

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    Da orelha:

    No ano de 1982, o erudito Faruk Darvinoglu encontrou, em meio

    aos poeirentos papis dos arquivos pblicos de Gebze, um manuscrito

    curioso, o qual, mais tarde, publicaria sob o ttulo de O Enteado do

    Colchoeiro. Nele est o relato de um veneziano annimo do sculo

    XVII que teve seu navio abordado pelos turcos quando fazia a travessia

    de Veneza para Npoles. Depois de escapar do martrio fingindo-se de

    mdico, o prisioneiro foi confiado a Hoja, um cientista excntrico, com

    o qual descobriu possuir inquietante semelhana.

    Assim comea um dos mais belos romances da literatura

    contempornea. O Castelo Branco marca a estria no Brasil de Orhan

    Pamuk, o mais importante romancista turco da atualidade, cujo estilo

    complexo e elegante e o jogo constante de cincia e fantasia fazem

    lembrar o escritor italiano talo Calvino.

    O Castelo Branco uma narrativa sobre a troca de papis. A

    servio de um sulto, Hoja e o ssia se empenham na construo de

    uma gigantesca mquina de guerra cujo alvo uma fortaleza

    inatingvel situada no alto de uma colina. Nas horas que lhes sobram,

    eles contam um ao outro histrias pessoais e falam das culturas de que

    provm, penetrando to profundamente um no outro que em

    determinado ponto da narrativa nem eles mesmos, nem o leitor,

    conseguem mais encontrar o fio de suas identidades perdidas. O final,

    contudo, traz uma surpreendendo reviravolta que contribui ainda mais

    para compor uma atmosfera de sonho.

    Atravs da relao de Hoja com o ssia, Pamuk constri uma

    fabula profunda e bem-humorada sobre as complexas relaes de um

    Oriente devoto e supersticioso e um Ocidente racional, ao mesmo

    tempo em que faz uma meditao a respeito da essncia humana,

    nica e inaltervel, que se encontra adormecida sob os bem tranados

    fios de cultura.

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    Imaginarmos que uma pessoa que nos intriga tem acesso a um

    modo de vida desconhecido e, graas ao seu mistrio, ainda mais

    atraente, acreditarmos que somente atravs do amor daquela pessoa

    comearemos a viver o que isso seno o nascimento de uma

    grande paixo?

    Marcel Proust, da traduo de Y.K.

    Karaosmanoglu

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    Para Nilgun Darvinoglu1

    irm extremosa

    (1961-1980)

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    Prefcio

    Encontrei este manuscrito em 1982 naquele arquivo esquecido

    anexo ao escritrio do governador, em Gebze, que eu costumavarevolver durante uma semana a cada vero. Estava no fundo de uma

    cmoda empoeirada e cheia at a boca de decretos imperiais, ttulos

    de propriedade, registros de processos, impostos. O azul de sonho do

    papel marmorizado da capa, a caligrafia vistosa, brilhando em meio

    quele papelrio desbotado do governo, logo me chamou a ateno.

    Percebi, por uma diferena no talhe das letras, que algum no o

    calgrafo original , como que para acirrar ainda mais meu interesse,acrescentara mais tarde um ttulo folha de rosto do livro: O Enteado

    do Colchoeiro. No havia outros cabealhos. As margens e pginas em

    branco haviam sido decoradas com imagens de pessoas de cabeas

    minsculas, vestindo roupas com muitos botes, todas desenhadas

    com mo de criana. Li o livro imediatamente, com imenso prazer.

    Encantado, mas preguioso demais para transcrever o manuscrito,

    furtei-o daquele amontoado de coisas dspares a que nem o jovemgovernador ousava chamar de arquivo. Aproveitei, para isso, a

    confiana de um encarregado que, por deferncia, me deixara a ss, e

    enfiei o livro na minha pasta num abrir e fechar de olhos.

    De incio, no sabia muito bem o que pretendia fazer com o livro,

    a no ser ler e reler seu texto muitas vezes. Eu ainda no tinha a

    Histria em grande conta, e queria concentrar-me no relato que ali se

    continha por ele mesmo, sem curar do possvel valor cultural,cientfico, antropolgico ou histrico do manuscrito. Sentia-me

    atrado pela pessoa do autor. Desde que meus amigos e eu tnhamos

    sido forados a abandonar a universidade, eu adotara a profisso de

    enciclopedista, que era a de meu av. Foi por isso que me ocorreu

    fazer uma entrada sobre o autor para a seo de histria minha

    responsabilidade em uma enciclopdia de homens famosos.

    A isso devotei todo o tempo que sobrava da enciclopdia e dasminhas libaes. Quando consultei as fontes principais sobre o perodo

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    em causa, logo me dei conta de que alguns acontecimentos da

    narrao tinham pouco a ver com os fatos. Comprovei, por exemplo,

    que em determinado momento, durante os cinco anos em que Koprulu

    serviu como gro-vizir, um grande incndio devastou Istambul, mas

    no havia qualquer referncia a uma epidemia subseqente ao fogo,

    uma epidemia digna desse nome, e muito menos a uma peste

    generalizada como a que o livro descreve. Determinados nomes dos

    vizires daquele perodo estavam escritos com erros, muitos apareciam

    confundidos uns com os outros, e alguns figuravam com nomes

    trocados. Tambm os nomes dos astrlogos imperiais no conferiam

    com aqueles constantes dos registros oficiais do palcio, mas uma vez

    que conclui que essa discrepncia tinha lugar especial na narrao,

    resolvi no perder tempo com o assunto. Por outro lado, nosso

    conhecimento histrico corroborava, em linhas gerais, os eventos

    referidos no livro. Em muitas instncias vi o mesmo realismo nos

    pormenores: o historiador Naima2 descreveu de maneira semelhante a

    execuo do astrlogo imperial Huseyn Efendi e a caa aos coelhos por

    Mehmet IV no palcio Mirahor.3 Ocorreu-me que o autor, que

    claramente gostava de ler e de fantasiar, talvez estivesse familiarizado

    com fontes desse tipo e com muitos outros livros tais como as

    memrias de viajantes europeus ou escravos emancipadose colhera

    a material para o seu relato. Pode ser que tenha lido os dirios de

    viagem de Evliya Chelebi,4 que ele diz conhecer. Imaginando que o

    inverso poderia ser igualmente verdadeiro, como outros exemplos

    mostraro, fiquei procurando referncias ao meu autor, mas as

    pesquisas que fiz nas bibliotecas de Istambul baldaram muitas das

    minhas esperanas. No fui capaz de localizar um nico dos livros

    apresentados a Mehmet IV entre 1652 e 1680, nem na biblioteca do

    palcio Topkapi nem em outras bibliotecas pblicas ou privadas, onde

    pensei que eles pudessem estar desgarrados. Achei uma s pista:

    havia, nessas bibliotecas, outras obras do calgrafo canhoto

    mencionado na narrao. Pus-me em busca delas por algum tempo,

    mas s respostas desalentadoras me vieram ter s mos de parte das

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    universidades italianas que eu havia bombardeado de cartas. Minhas

    andanas por entre as pedras tumulares de Gebze, Jennethisar e

    Uskudar, cata do nome do autor (revelado no corpo da obra, se bem

    que. no no frontispcio), tambm foram malsucedidas. Mas, j a essa

    altura, minha pacincia se esgotara. Decidi abandonar outras possveis

    linhas de investigao e escrevi meu verbete para a enciclopdia com

    base, unicamente, no prprio relato. Como eu temia, o artigo no foi

    aceito, no por carncia de documentao cientfica, mas pelo fato de

    no ser o autor to famoso que justificasse a sua incluso.

    Talvez, por esse motivo, meu fascnio pela histria tenha

    aumentado ainda mais. Pensei at em pedir demisso em protesto,

    mas gostava demais do trabalho e dos colegas para afastar-me.

    Durante algum tempo, contei a histria com paixo a todos que

    encontrava. Era como se eu a tivesse escrito e no, simplesmente,

    descoberto. Para torn-la ainda mais interessante, eu falava do seu

    valor simblico, da sua relevncia fundamental para as realidades do

    nosso tempo; de como, atravs dela, eu viera a compreender melhor o

    mundo contemporneo etc. Quando argumentava assim, os jovens,

    geralmente mais ocupados com absorventes questes como a poltica,

    o ativismo, as relaes entre Leste e Oeste, ou a democracia, ficavam

    de incio intrigados, mas, como os meus companheiros de libaes,

    logo esqueciam minha histria. Um professor das minhas relaes,

    devolvendo o manuscrito que examinara por insistncia minha, disse

    que as velhas casas de madeira das ruas mais recuadas de Istambul

    estavam recheadas de histrias do mesmo tipo. Se as pessoas simples

    que moravam naquelas casas no as tivessem confundido, dada a sua

    antiga escrita otomana, por coros arbicos, e guardado todas em

    lugar de honra, nas prateleiras mais altas dos seus armrios, estariam

    rasgando as histrias pgina por pgina a fim de acender seus foges.

    Resolvi, ento, encorajado por uma certa garota de culos, que

    estava sempre com um cigarro entre os dedos, publicar a histria, que

    eu voltara a ler incessantemente.

    Meus leitores vero que no tive pretenses de estilo ao fazer a

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    transliterao do livro para o turco moderno. Depois de ler umas duas

    linhas do manuscrito, que eu conservava em cima de uma mesa, ia

    para outra mesa, em outro aposento, onde estavam os meus papis, e

    procurava transpor para o idioma de hoje o sentido do que me ficara

    na cabea. No fui eu que escolhi o ttulo do livro, mas a editora que

    assentiu em public-lo. Os leitores, vendo a dedicatria, talvez se

    perguntem se ela tem algum sentido pessoal. Suponho que ver tudo

    em relao com tudo o mais o vcio do nosso tempo. E por ter, eu

    tambm, sucumbido a essa doena que dou a lume esta histria.

    FARUKDARVINOGLUIF5

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    Um

    Velejvamos de Veneza para Npoles quando a esquadra turca

    apareceu. Contvamos com trs navios ao todo, mas a formao dasgaleras, emergindo do nevoeiro, parecia no ter fim. Perdemos o

    sangue-frio. Medo e confuso irromperam no navio, e os remadores, na

    maior parte turcos e sarracenos, comearam a gritar de jbilo. Nosso

    barco virou de proa para a terra, ou seja, para oeste, como os outros

    dois, mas, ao contrrio deles, no conseguimos ganhar velocidade.

    Nosso capito, temendo ser punido se capturado, no se decidia a dar

    a ordem de vergastar os cativos nos remos para forar a voga. Anosdepois, muitas vezes pensei que aquele momento de covardia mudara

    a minha vida.

    Mas, agora, parece-me que a minha vida teria sido mudada se o

    nosso capito no tivesse sido dominado subitamente pelo medo.

    Muitos acreditam que nenhum destino determinado com

    antecedncia, e que todas as histrias pessoais so essencialmente

    uma cadeia de coincidncias. E, no entanto, mesmo os que assimpensam, muitas vezes chegam concluso, quando olham para trs,

    que acontecimentos vistos no passado como produto do acaso eram,

    na realidade, inevitveis. Eu mesmo cheguei a esse momento agora,

    quando me abanco a uma velha mesa para escrever meu livro e

    vislumbro o vulto dos navios turcos surgindo como fantasmas da

    cerrao. Este parece o melhor momento possvel para contar uma

    histria.Nosso capito criou alma nova quando viu que os outros dois

    navios escapavam dos turcos e desapareciam na neblina. Decidiu,

    ento, bater nos remadores, mas era tarde demais. Nem chicotes

    fariam escravos obedecer, uma vez despertados pela paixo da

    liberdade. Cortando a enervante muralha do nevoeiro em faixas

    ondulantes de cor, mais de dez galeras turcas j estavam em cima de

    ns. Agora, finalmente, nosso capito resolveu lutar, procurandosobrepujar, creio eu, no o inimigo, mas a sua prpria covardia e

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    vergonha. Mandou que os escravos fossem aoitados sem d nem

    piedade e que os canhes fossem aprestados, mas a paixo da

    batalha, que to tarde se acendera, logo esmoreceu. Ns nos vimos

    apanhados numa violenta salva pelo flanco o navio, certamente,

    afundaria se no nos entregssemos logo e decidimos iar a

    bandeira da rendio.

    Enquanto espervamos, num mar tranqilo como um espelho,

    que os navios turcos emparelhassem com o nosso, desci at o meu

    camarote para pr minhas coisas em ordem, como se estivesse

    esperando no arquiinimigos que iriam mudar toda a minha vida e sim

    uns poucos amigos de visita. Abrindo minha pequena mala, pus-me a

    mexer nos livros, perdido em pensamentos. Meus olhos se encheram

    de lgrimas quando virei as pginas de um volume pelo qual pagara

    bom dinheiro em Florena. Ouvi gritos, passos correndo para a frente e

    para trs, um grande tumulto l fora. Sabia que, a qualquer momento,

    o livro me seria arrancado das mos, mas no queria pensar nisso e

    sim no que estava escrito em suas pginas. Era como se os pensa-

    mentos, as frases, as equaes do livro contivessem a minha vida

    inteira. A minha vida passada, que eu tanto temia perder. E enquanto

    lia a esmo frases soltas em voz baixa, como se recitasse uma prece,

    desejei desesperadamente gravar o volume todo na memria. Assim,

    quando eles viessem, eu no pensaria neles e no que me fariam sofrer,

    mas recordaria os pontos altos do meu passado, como se rememorasse

    as palavras de um livro que tivesse memorizado com prazer.

    Naquele tempo, eu era uma pessoa diferente da que hoje sou, e

    tinha at um outro nome, e era por ele que me chamavam minha me,

    minha noiva, meus irmos. De vez em quando, continuo vendo em

    sonhos essa pessoa que costumava ser eu, ou que hoje acredito fosse

    mesmo eu, e acordo banhado em suor. Essa pessoa que traz

    memria as cores desbotadas, as formas de sonho daquelas terras que

    nunca existiram, dos animais que nunca viveram, as incrveis armas

    que mais tarde inventamos, ano aps ano, tinha ento 23 anos,

    estudara cincia e arte em Florena e Veneza, e acreditava saber um

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    pouco de astronomia, matemtica, fsica, pintura. Era convencido,

    naturalmente. Tendo devorado a maior parte do que fora criado antes

    do seu tempo, torcia o nariz para aquilo tudo. Estava certo de que faria

    ainda melhor; de que nada se lhe comparava; de que era mais criativo

    e mais inteligente que todos os demais mortais. Em suma, era jovem,

    um jovem comum. Fico desolado ao pensar, quando tenho de inventar

    um passado para mim mesmo, que esse moo que falava com a sua

    bem-amada sobre as prprias paixes, seus planos, sobre o mundo e a

    cincia, que achava perfeitamente natural que a noiva o adorasse, era

    na verdade eu mesmo. Consolo-me com o pensamento de que, um dia,

    algumas pessoas ho de ler pacientemente, at o fim, o que deixei

    escrito aqui e entendero que eu no era o tal rapaz. Talvez, ento,

    esses pacientes leitores venham a pensar, como eu penso agora, que a

    histria do rapaz que perdeu a vida enquanto lia seus preciosos livros

    continuou mais tarde no ponto em que fora interrompida.

    Quando os marinheiros turcos lanaram as suas pranchas e

    vieram a bordo, guardei os livros em meu ba e espreitei a ver o que

    se passava l fora. O pandemnio dominava o barco. Os turcos

    reuniam a todos no convs e tiravam-lhes as roupas. Por um momento

    me passou pela cabea que eu poderia lanar-me ao mar,

    aproveitando a confuso, mas pensei que eles me fuzilariam na gua

    ou me recapturariam, matando-me imediatamente. Fosse como fosse,

    eu no sabia a que distncia estvamos da terra. De incio, ningum

    me incomodou. Os escravos muulmanos, libertados de suas correntes,

    gritavam de alegria, e um grupo deles comeou a vingar-se dos

    homens que costumavam chicote-los. Logo me encontraram no meu

    camarote, entraram, saquearam o que eu tinha. Remexeram as minhas

    malas em busca de ouro e, depois de levarem alguns dos meus livros,

    e todas as minhas roupas, algum me agarrou, quando eu,

    distraidamente, folheava os dois volumes deixados para trs, e me

    conduziu a um dos seus oficiais.

    O capito, um genovs convertido, como depois ficaria sabendo,

    me tratou bem. Perguntou-me que profisso era a minha. Temendo ser

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    posto nos remos, declarei logo que entendia de astronomia e

    navegao noturna, mas isso no causou maior impresso. Inventei,

    ento, que era mdico, contando com o livro de anatomia que me

    tinham deixado. Quando me trouxeram um homem que tivera um

    brao decepado na refrega, disse que no era cirurgio. Isso os

    enfureceu e, quando estavam a ponto de mandar-me para os remos, o

    capito, notando meus livros, perguntou se eu conhecia alguma coisa

    de urina e pulsao. Respondi que sim. Isso me livrou dos remos.

    Consegui, at, conservar alguns dos livros.

    Esse privilgio, porm, me custou caro. Os outros cristos, postos

    em cadeias, me desprezaram imediatamente. Se pudessem, me teriam

    matado no poro onde ramos trancados noite. Mas tinham medo,

    vendo a rapidez com que eu estabelecera relaes com os turcos.

    Nosso covarde capito acabava de morrer no mastro. E, como aviso

    aos demais, deceparam os narizes e as orelhas dos marinheiros que

    haviam aoitado os escravos, em seguida soltaram todos juntos numa

    jangada. Depois que eu tratara de alguns turcos, usando mais o bom

    senso que conhecimentos de anatomia, e seus ferimentos cicatrizaram

    por si mesmos, todo mundo acreditou em mim. At os que, de inveja,

    tinham contado aos turcos que eu no era mdico, mostravam-me

    suas feridas, noite, no poro.

    Entramos em Istambul, com um cerimonial espetacular. Foi dito

    at que o sulto-menino estava observando a festa. Iaram suas

    bandeiras em todos os mastros e, abaixo, as nossas, enquanto

    crucifixos e cones da Virgem Maria jaziam dependurados de cabea

    para baixo; deixaram que vagabundos da cidade subissem a bordo a

    fim de insult-los. Tiros de canho cruzavam o cu. A celebrao, como

    outras muitas que eu veria da terra nos anos seguintes, com um misto

    de tristeza, repugnncia e prazer, durou tanto tempo que muitos

    espectadores desmaiaram ao sol. J era quase noite quando lanamos

    ncora em Kasimpasha. Antes de nos conduzirem ao sulto, fomos

    postos em correntes e fizeram com que nossos soldados vestissem as

    armaduras ao contrrio, a fim de ridiculariz-los; puseram coleiras de

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    ferro no pescoo dos oficiais. Em meio a um grande soar de buzinas e

    trombetas, fomos tirados do navio e levados ao palcio numa espcie

    de ruidoso triunfo. A populao da cidade se alinhara ao longo das

    avenidas e nos olhava com divertimento e curiosidade. O sulto, oculto

    de nossas vistas, escolheu os escravos que queria e mandou separ-los

    dos demais. Ns outros fomos transportados para Gaiata, atravs do

    Corno de Ouro, em caques e metidos na priso de Sadik Pax.

    A priso era um lugar miservel. Centenas de cativos apodreciam

    ali, na imundcie das minsculas e midas celas. Encontrei muita gente

    com quem praticar minha nova profisso e cheguei a curar alguns

    infelizes. Prescrevia medicamentos tambm para carcereiros com

    dores nas costas ou nas pernas. De modo que, tambm no crcere,

    tratavam-me de maneira diferente do resto e me deram uma cela

    melhor, em que batia sol. Vendo a vida que levavam os outros, eu

    procurava corresponder a essa minha situao privilegiada, mas um

    dia eles me acordaram com os demais prisioneiros e me disseram que

    eu tinha de ir trabalhar. Quando protestei, dizendo ser mdico, com

    conhecimentos de cincia, eles se limitaram a rir. Havia muralhas a

    serem construdas em torno do jardim do pax, e precisavam de

    homens. ramos ligados uns aos outros com correntes toda manh,

    antes do sol nascer, e levados para fora da cidade. Ao voltar para a

    priso, noitinha, ainda presos uns aos outros, depois de apanhar

    pedra o dia inteiro, eu refletia que Istambul era, deveras, uma bela

    cidade, mas que nela cumpria ser senhor e no escravo.

    E, todavia, eu no vivia como um escravo comum. As pessoas

    tinham ouvido contar que eu era um doutor, de modo que agora j no

    cuidava apenas dos escravos que apodreciam nas masmorras, mas de

    outros tambm. Tinha de dar uma grande parte dos emolumentos que

    me pagavam aos guardas, que me faziam sair s escondidas. Com o

    dinheiro que conseguia esconder, pagava aulas de turco. Meu

    professor era um sujeito agradvel e mais velho, encarregado dos

    negcios menores do pax. Agradava-lhe ver que eu aprendia

    depressa. Disse que logo me tornaria muulmano. Tinha praticamente

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    de obrig-lo a receber o preo da lio todo dia. Dava-lhe tambm

    dinheiro para que trouxesse comida, pois eu estava decidido a cuidar

    de mim o melhor que pudesse.

    Numa noite nevoenta, um oficial veio ter minha cela, dizendo

    que o pax queria ver-me. Surpreso e excitado, preparei-me

    imediatamente para a entrevista. Pensei que talvez um dos meus

    parentes mais espertos, meu pai ou, possivelmente, meu futuro sogro,

    tivessem enviado uma soma apropriada como resgate. Enquanto

    caminhava pelas ruelas estreitas e tortuosas, naquela nvoa

    fantasmagrica, sentia como se fosse a cada momento encontrar

    minha casa ou dar de cara com os meus entes queridos. Seria como se

    acordasse de um sonho. Talvez tivessem conseguido despachar

    algum que negociasse a minha libertao. Talvez naquela mesma

    noite e naquele mesmo nevoeiro eu fosse posto num barco e mandado

    embora. Quando entrei na manso do pax percebi que no seria to

    fcil escapar. As pessoas ali andavam na ponta dos ps.

    Levaram-me primeiro a um salo comprido, onde esperei at ser

    conduzido a um dos aposentos. Um homenzinho afvel estava

    estendido num pequeno div, debaixo de um cobertor. Havia a seu

    lado um outro homem, esse, porm, alto e forte. A figura jacente era o

    pax, que me chamou para junto dele com um sinal. Fez-me algumas

    perguntas. Eu lhe disse que meus verdadeiros campos de estudo

    haviam sido a astronomia e a matemtica e, em menor escala, a

    engenharia, mas que tinha tambm conhecimentos de medicina e

    havia tratado com xito certo nmero de pacientes. Ele continuou a

    interrogar-me, dizendo que eu devia ser um homem inteligente, pois

    aprendera turco bem depressa. Disse-me depois que tinha um

    problema de sade que nenhum dos outros mdicos fora capaz de

    curar e que, tendo ouvido falar de mim, pensara em pr-me prova.

    Em seguida, comeou a descrever o seu incmodo de tal maneira

    que fui levado a crer que se tratava de uma doena rara, que s

    atacara o pax dentre todos os homens na face da Terra, por terem

    seus inimigos enganado Deus com calnias. Mas o que ele tinha era

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    apenas flego curto. Eu o interroguei longamente, ouvi-lhe a tosse,

    depois fui cozinha e preparei-lhe umas pastilhas verdes, base de

    hortel, com o material que pude encontrar. Fiz ainda um xarope para

    a tosse. Como o pax tinha medo de ser envenenado, engoli uma das

    pastilhas com o xarope, enquanto ele me observava. O pax disse-me

    para deixar a manso secretamente, tomando grande cuidado para

    no ser visto, e regressar priso. O oficial me explicou depois que ele

    no queria provocar o despeito dos outros mdicos. Voltei no dia

    seguinte, escutei de novo a tosse, e dei-lhe o mesmo remdio. O

    homem ficou encantado como uma criana com as pastilhas coloridas

    que eu lhe pus na palma da mo. Quando voltei para a cela, rezei para

    que ele melhorasse. No dia seguinte, soprava o vento do norte. Era

    uma brisa suave e fresca, e pensei que qualquer um melhoraria com

    um tempo daqueles, mesmo contra a vontade. Mas nada ouvi do meu

    paciente.

    Um ms depois, quando fui chamado, de novo no meio da noite,

    o pax estava de p e muito bem-disposto. Tranqilizou-me ver que

    respirava com facilidade quando ralhou com alguns funcionrios. Ele se

    mostrou contente ao ver-me, disse que estava curado, e que eu era um

    bom mdico. Que merc desejava pedir-lhe? Eu sabia que no me

    libertaria intempestivamente nem me mandaria para casa. De modo

    que apenas me queixei da cela e da priso. Expliquei que vegetava ali

    sem qualquer sentido, sob trabalhos forados, quando poderia ser mais

    til se me ocupasse do que sabia: medicina e astronomia. No sei at

    onde ele escutou o que lhe disse. Deu-me uma bolsa cheia de moedas,

    das quais os guardas ficaram com uma boa parte.

    Uma semana mais tarde, um oficial veio ver-me noite. Aps

    fazer-me jurar que no tentaria fugir, livrou-me das minhas cadeias. Eu

    continuaria a trabalhar, mas agora tinha tratamento especial. Trs dias

    mais e o mesmo oficial me trouxe roupas novas. Eu compreendi que

    estava agora sob a proteo do pax.

    Ainda era chamado noite. Visitava muitas manses, ministrava

    drogas a velhos piratas com reumatismo e a jovens soldados com dor

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    de estmago. Dava sangrias nos que tinham coceiras, perdiam a cor

    das faces ou sofriam de enxaquecas. Certa vez, uma semana aps ter

    dado xaropes ao filho gago de um servo, ele sarou e me recitou um

    poema.

    O inverno passou dessa maneira. Quando a primavera chegou,

    ouvi contar que o pax, que no me mandava chamar havia meses,

    andava com sua frota pelo Mediterrneo. Durante os dias quentes do

    vero, pessoas que percebiam meu desespero e frustrao diziam-me

    que no tinha, na verdade, motivos de queixa, uma vez que ganhava

    bom dinheiro como mdico. Um antigo escravo cristo, que se

    convertera ao islamismo muitos anos antes, me aconselhou a no

    fugir. Eles sempre conservavam um escravo que lhes parecia til,

    como estavam fazendo comigo, e jamais lhe davam permisso de

    voltar para o seu pas de origem. Se eu me tornasse muulmano, como

    ele mesmo tinha feito, poderia conseguir a condio de liberto, mas

    nada mais que isso. Imaginando que ele me dizia tudo aquilo para me

    sondar, respondi-lhe que no tinha inteno de escapar. No que me

    faltasse o desejo. Mas no tinha coragem. Os que fugiam, todos eles,

    eram apanhados antes que estivessem muito longe. E, depois que os

    castigavam, era eu quem passava blsamo nas equimoses dos

    desgraados, noite, nas suas celas.

    O outono se aproximava e o pax voltou com a esquadra.

    Saudou o sulto com uma salva, procurou animar a cidade, como havia

    feito no ano anterior, mas era bvio que no haviam tido uma boa

    temporada. Poucos foram os escravos que trouxeram para a priso.

    Soubemos depois que os venezianos haviam incendiado seis navios.

    Ansioso por notcias de casa, esperei uma oportunidade de conversar

    com os escravos, muitos dos quais eram espanhis. Mas eram todos

    uns pobres-diabos, calados, tmidos, ignorantes, que s falavam para

    pedir comida ou ajuda. Apenas um se interessou por mim. Tinha

    perdido um brao, mas disse, otimista, que um dos seus antepassados

    vivera galhardamente apesar do mesmo infortnio e at escrevera um

    romance de cavalaria com a mo remanescente. Acreditava que

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    sobreviveria para fazer a mesma coisa. Anos mais tarde, quando eu

    escrevia histrias para viver, lembrei-me desse homem que sonhava

    com a liberdade para virar escritor. No muito depois, no entanto,

    tivemos um surto de doena contagiosa na priso, uma epidemia

    horrvel que matou mais da metade dos escravos antes de cessar. Dela

    escapei subornando generosamente os guardas.

    Os sobreviventes foram levados para trabalhar em novos

    projetos. A mim me deixaram ficar. noite, os outros me contavam de

    como iam at a ponta do Corno de Ouro, onde eram distribudos para

    diversas tarefas sob a superviso de carpinteiros, pintores, alfaiates.

    Faziam modelos empapier mch: navios, castelos, torres. Mais tarde,

    ficamos sabendo o objetivo daquilo: o filho do pax ia casar com a filha

    do gro-vizir, e ele preparava uma festa suntuosa.

    Certa manh fui chamado manso do pax. Obedeci, pensando

    que sua dificuldade de respirao tivesse voltado. O pax estava

    ocupado e me mandaram esperar em uma antecmara. Depois de

    alguns momentos, outra porta se abriu e algum, cinco ou seis anos

    mais velho do que eu, entrou. Olhei para o seu rosto em choque

    fiquei imediatamente aterrorizado.

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    Dois

    A semelhana entre ns dois era incrvel! Aquele homem que

    entrara era eu... foi o que pensei no primeiro momento. Era como setivessem desejado pregar-me uma pea e me tivessem feito entrar de

    novo por uma porta diretamente fronteira que tinha usado antes e

    dissessem: veja, voc deveria ser este, deveria ter vindo por esta

    porta, gesticulado assim com as mos, e o outro homem sentado na

    sala olharia para voc assim. Quando nossos olhares se cruzaram,

    saudamo-nos. Mas ele no me pareceu surpreso. Ento, decidi que no

    nos parecamos tanto assim um com o outro. Ele usava barba. E euhavia esquecido que rosto possua exatamente. Quando o homem

    sentou-se minha frente, dei-me conta de que fazia um ano que no

    me olhava num espelho.

    Alguns momentos depois a porta por onde eu entrara abriu-se e

    ele foi chamado. Enquanto esperava, pensei que tudo aquilo fora

    criao da minha mente perturbada e no uma farsa cuidadosamente

    elaborada. Pois, quele tempo, eu vivia fantasiando que voltaria paracasa, seria bem recebido por todos, que logo me libertariam, que ainda

    estava adormecido no meu camarote no navio, tudo fora um sonho

    vises consoladoras dessa espcie. Estava a pique de concluir que

    aquele tambm fora um desses devaneios, quase real, ou um sinal de

    que tudo mudaria de sbito e voltaria ao estado primitivo, quando a

    porta se abriu e me mandaram entrar.

    O pax estava de p, um passo atrs do meu ssia. Deixou queeu beijasse a fmbria dos seus trajes e quando inquiriu do meu bem-

    estar tencionava queixar-me das condies da cela e manifestar o

    desejo de ir para casa, mas ele no estava ouvindo. O pax se

    lembrava, aparentemente, de ter ouvido da minha boca que eu

    entendia de cincia, astronomia, engenharia. Saberia alguma coisa

    sobre fogos-de-bengala, esses que se lanam ao cu? Entenderia de

    plvora? Imediatamente respondi que sim, mas logo que meus olhos

    encontraram os do outro homem, suspeitei que os dois me preparavam

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    uma cilada.

    O pax dizia que a festa de casamento que ele planejava no

    teria paralelo, que desejava uma grande queima de fogos de artifcio, e

    que essa teria de ser, tambm, sem igual. Meu ssia, a quem o pax

    chamava simplesmente 'Hoja', isto , 'mestre', organizara no passado,

    para o nascimento do sultozinho, um espetculo semelhante com a

    ajuda de um malts, mas o malts morrera entrementes, e ele mesmo

    sabia pouco sobre tais coisas. O pax pensava que eu poderia ajud-lo

    ns nos complementaramos um ao outro. O pax prometia

    recompensar-nos se o espetculo fosse bonito. Quando, julgando que o

    momento era chegado, eu me atrevi a dizer que o que desejava era ir

    para casa, o pax me perguntou se eu havia estado num bordel desde

    que chegara Turquia. Diante da minha resposta, disse que, se eu no

    tinha desejo de mulher, de que me serviria a liberdade? Estava

    empregando a linguagem grosseira dos guardas e devo ter parecido

    perplexo, pois ele ps-se a rir s gargalhadas. Depois, voltando-se para

    o espectro a que chamava 'Hoja', disse que a responsabilidade era

    dele. Samos.

    De manh, quando fui casa do meu ssia, imaginava no ter

    nada que pudesse ensinar-lhe. Mas, aparentemente, os conhecimentos

    dele no eram maiores que os meus. Ademais, estvamos de pleno

    acordo: o problema todo era conseguir a correta mistura de cnfora.

    Nossa tarefa consistia, ento, em preparar misturas experimentais

    dosadas e pesadas em balana, acend-las noite, na escurido das

    altas muralhas da cidade, em Surdibi, e tirar concluses do que

    observssemos. As crianas assistiam, olhos arregalados, aos nossos

    homens acenderem os foguetes que tnhamos preparado, enquanto

    ficvamos sombra das rvores escuras aguardando, ansiosos, os

    resultados. O mesmo iramos fazer de dia e s claras, anos depois,

    quando testssemos aquela arma inacreditvel. Depois desses

    primeiros ensaios em Surdibi, eu experimentava, por vezes ao luar, por

    vezes numa treva absoluta, registrar nossas observaes num

    pequenino livro de anotaes. Antes de nos despedirmos, noite, eu ia

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    mais uma vez casa de Hoja, que dominava o Corno de Ouro, e

    discutia detalhadamente os resultados obtidos.

    A casa dele era acanhada, opressiva, feia. A entrada ficava numa

    ruela enlameada e sinuosa, por onde corria um fio de gua ptrida

    proveniente de uma fonte que jamais fui capaz de descobrir. Dentro

    quase no havia moblia. E sempre que eu penetrava na casa sentia-

    me oprimido e dominado por estranho sentimento de angstia. Talvez

    este tivesse razes no prprio homem, que, por no querer usar o

    mesmo nome do av, pedia que eu lhe chamasse de 'Hoja'. Ele me

    olhava como se pretendesse algo de mim e no soubesse ainda,

    exatamente, o que fosse. Uma vez que eu no conseguia acostumar-

    me a sentar nos divs baixos que se alinhavam contra as paredes,

    discutia de p os nossos experimentos, muitas vezes andando, agitado,

    de um lado para o outro no aposento. Acho que Hoja gostava disso. Ele

    ficava sentado e podia acompanhar-me com o olhar todo o tempo,

    comprazendo-se nisso, se bem que fosse apenas luz fraca de uma

    nica lmpada.

    Sentindo seus olhos que no me largavam, eu me inquietava

    cada vez mais, pois ele parecia no notar a semelhana entre ns.

    Uma ou duas vezes pensei que ele a percebera, mas fingia que no.

    Era como se brincasse comigo, como se estivesse procedendo a uma

    outra espcie de experincia, de que fosse eu o objeto, coletando

    informaes que eu no podia imaginar quais fossem. Porque ele me

    analisava todo o tempo, naquela poca, como se estivesse aprendendo

    alguma coisa. E, quanto mais aprendia, mais curioso ficava. Parecia, no

    entanto, hesitante em tomar outras medidas para penetrar o sentido

    desse estranho conhecimento. Era essa indeterminao que me

    oprimia, que tornava aquela casa sufocante! verdade que ganhei

    alguma confiana com a hesitao dele, mas isso no me tranqilizou.

    Uma vez, quando discutamos as experincias com os foguetes, e

    outra, quando me perguntou por que eu ainda no me tornara

    muulmano, senti que o que ele pretendia era provocar veladamente

    uma discusso, de modo que no respondi. Ele percebeu meu

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    constrangimento; vi que caa em seu conceito, o que me irritava.

    quele tempo, era s assim, talvez, que nos entendamos: fazendo

    pouco um do outro. Eu me continha, pensando que, se consegussemos

    realizar a exibio de fogos sem contratempos, talvez me dessem

    permisso para partir.

    Uma noite, animado com o sucesso de um foguete que subira at

    uma altura extraordinria, Hoja disse que algum dia seria capaz de

    fabricar um outro to potente que alcanasse a Lua. O nico problema

    era descobrir as propores requeridas de plvora e um invlucro

    capaz de suportar a mistura sem explodir. Observei que a Lua estava

    muito longe, mas ele me interrompeu, dizendo que sabia disso tanto

    quanto eu, mas no era tambm o planeta mais prximo da Terra?

    Quando admiti que ele estava certo, no se acalmou como eu havia

    esperado. Ficou ainda mais agitado, porm nada mais disse.

    Dois dias depois, meia-noite, voltamos ao assunto: como

    poderia eu estar to seguro de que a Lua fosse o planeta mais

    prximo? Talvez estivssemos sendo vtimas de uma iluso de tica.

    Foi ento que lhe falei, pela primeira vez, dos meus estudos de

    astronomia e expliquei-lhe sucintamente os princpios bsicos da

    cosmografia de Ptolomeu. Vi que me escutava com interesse, mas

    relutava em dizer alguma coisa, temendo revelar a sua curiosidade.

    Um pouco mais tarde, quando parei de falar, ele disse ter tambm

    algum conhecimento de Ptolomeu, mas que isso no alterava a sua

    convico de que poderia haver um planeta mais prximo da Terra que

    a Lua. Madrugada adentro, ele j falava do dito planeta como se

    tivesse obtido provas da sua existncia.

    No dia seguinte, ps um manuscrito muito mal traduzido em

    minhas mos. A despeito do meu precrio conhecimento de turco,

    consegui decifr-lo. Acredito que fosse um sumrio de segunda mo do

    Almagesto, extrado no do original, mas de outro sumrio. S os

    nomes arbicos dos planetas me interessavam, e eu no estava com

    disposio para entusiasmar-me com eles quele tempo. Quando Hoja

    viu que eu no ficara impressionado e pusera o livro em cima da mesa,

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    ficou furioso. Pagara sete peas de ouro pelo volume, e era de se

    esperar que eu pusesse a minha suficincia de lado, folheasse a obra e

    a lesse um pouco! Como um aluno bem-mandado, abri o livro outra vez

    e, enquanto lhe virava as folhas, pacientemente, dei com um diagrama

    primitivo. Mostrava os planetas em esferas grosseiramente

    desenhadas com relao Terra. Embora as posies das esferas

    estivessem corretas, o ilustrador no tinha idia das distncias entre

    elas. A essa altura, minha ateno foi despertada por um minsculo

    planeta entre a Lua e a Terra. Examinando-o com mais cuidado, pude

    ver que, pela relativa frescura da tinta, ele fora acrescentado ao

    manuscrito posteriormente. Examinei todo o alfarrbio antes de

    devolv-lo a Hoja. Ele me disse que pretendia encontrar o planeta e

    no parecia estar brincando ao diz-lo. No fiz qualquer comentrio, e

    houve um longo silncio que o deixou to enervado quanto a mim.

    Como no conseguimos fazer outro foguete capaz de ir to alto que a

    conversao se voltasse de novo para a astronomia, o assunto no foi

    reaberto. Nosso pequeno xito permaneceu uma coincidncia cujo

    mistrio no pudemos decifrar.

    Obtivemos, entretanto, excelentes resultados em matria de

    potncia, brilho de luz e chama, e sabamos o segredo do nosso

    sucesso: numa das lojas de herbalistas que Hoja havia escrutinado

    uma a uma, ele descobrira um p cujo nome nem o vendedor conhecia.

    Decidimos que aquele p cor de ocre, que produzia uma iluminao

    soberba, era uma mistura de enxofre e sulfato de cobre. Mais tarde,

    misturamos esse p a todas as substncias que nos ocorreram para

    dar brilho ao efeito, mas no conseguimos mais que um marrom de

    borra de caf e um verde muito plido, difceis de distinguir um do

    outro. Segundo Hoja, mesmo aquilo seria infinitamente melhor que

    tudo o que Istambul j vira.

    Assim foi, com efeito, o nosso espetculo, na segunda noite das

    celebraes. Opinio geral. E isso inclui at os nossos rivais, que

    tramavam contra ns s nossas costas. Eu estava muito nervoso, pois

    nos disseram que o sulto viera assistir ao espetculo, da margem

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    mais remota do Corno de Ouro. Tinha medo de que alguma coisa

    sasse errada e vrios anos escoassem antes que me deixassem voltar

    ao meu pas.

    Quando nos mandaram comear, rezei. Em primeiro lugar, para

    dar boas-vindas aos convidados e anunciar o incio do espetculo

    soltamos os nossos foguetes brancos, que subiram diretamente para o

    cu. Logo em seguida, disparamos a farndola a que Hoja chamava O

    Moinho. Num abrir e fechar de olhos, o cu ficou vermelho, amarelo e

    verde, ribombando com tremendas exploses. Foi ainda mais belo do

    que espervamos. medida que os foguetes subiam, os arcos de fogo

    ganhavam velocidade, girando e regirando e, de chofre, iluminando

    toda a rea em torno como se fosse dia, imobilizando-se, suspensos no

    ar. Por um momento, acreditei estar outra vez em Veneza, com oito

    anos de idade, vendo pela primeira vez uma exibio como aquela, e

    to infeliz ento como agora: que eu no vestia meu novo traje

    vermelho, e sim meu irmo mais velho, que rasgara suas roupas na

    vspera durante uma briga. Os fogos eram to rubros quanto o belo

    casaco cheio de botes que no me deixaram usar naquela noite e que

    jurei jamais vestir, to rubros quanto os botes da roupa, apertada

    demais para meu irmo.

    Soltamos, depois, A Fonte, que eram chamas lanadas pela

    boca de um andaime da altura de cinco homens. Os espectadores que

    estivessem na outra margem teriam uma viso magnfica. Deviam

    estar to excitados quanto ns quando os foguetes comearam a

    pipocar da Fonte. No deixamos que a animao morresse: os

    caques na superfcie do Corno de Ouro entraram em atividade.

    Primeiro, as torres e fortalezas de papier mch vomitaram foguetes

    dos seus torrees medida que deslizavam sobre as guas, pegavam

    fogo e ardiam em chamas o que simbolizava vitrias de anos

    passados. Quando soltaram os barcos do ano em que eu fora

    capturado, diversos outros atacaram o nosso com uma chuva de

    projteis. Assim, revivi o dia em que me tornara escravo. Enquanto as

    embarcaes afundavam em chamas, a multido soltava gritos nas

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    duas margens do canal: Al! Oh, Al! Depois, um a um, soltamos

    nossos drages. Grandes lnguas de fogo saam de suas bocas, narinas

    e ouvidos. Deixamos que lutassem uns com os outros. Segundo os

    nossos planos, nenhum devia sair vencedor no primeiro momento.

    Pintamos o cu de vermelho vivo com mais foguetes lanados da praia.

    Quando comeou a escurecer um pouco, nossos homens, nos caques,

    acionaram os molinetes e outros drages comearam a subir para os

    cus devagarinho. Agora, todos gritavam, tomados de assombro e

    temor. E, quando os drages recomearam a brigar, com estrpido,

    todos os foguetes dos caques foram disparados ao mesmo tempo. As

    mechas que tnhamos posto no corpo daquelas criaturas de papel

    devem ter acendido ao mesmo tempo, porque todo o cenrio,

    exatamente como planejramos, se transformou num inferno de fogo.

    Senti que tnhamos conseguido o efeito desejado quando uma criana

    se ps a gritar e chorar perto de mim. O pai tinha esquecido do menino

    e estava olhando boquiaberto aquele cu conflagrado e terrvel. Agora

    me deixariam ir embora, pensei. Justamente ento, o ser a que eu

    chamava O Demnio entrou na refrega num pequeno caque negro

    invisvel para os espectadores. Tnhamos posto tantos foguetes nele

    que havia o perigo de que os demais caques tambm explodissem,

    com nossos homens dentro, mas tudo funcionou perfeio. Quando

    os drages que combatiam se perderam no cu cuspindo chamas, O

    Demnio e seus foguetes, todos disparados em unssono, riscaram a

    amplido. Bolas de fogo escapavam de todas as partes do corpo do

    boneco, rebentando no ar. Exultei ao pensamento de haver

    conseguido, num timo, aterrorizar toda a cidade de Istambul. Eu

    mesmo estava com medo, porque via que afinal eu tinha desencavado

    coragem para fazer as coisas que desejava na vida. Naquele momento

    parecia carecer de importncia a cidade em que me encontrava. Eu

    queria que aquele demnio permanecesse suspenso l no alto, a noite

    toda, chovendo fogo sobre a multido. Mas, depois de inclinar-se um

    pouco para um lado e para o outro, ele desceu lentamente sobre o

    Corno de Ouro sem fazer mal a ningum, acompanhado por gritos

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    extticos vindos das duas margens. E ainda cuspia fogo do alto da

    cabea quando mergulhou, de p, na gua.

    Na manh seguinte, o pax mandou para Hoja uma bolsa

    recheada de ouro, exatamente como nos contos de fadas. Ele afirmou

    que ficara muito satisfeito com o espetculo, mas achara a vitria do

    Demnio estranhssima.

    Continuamos com os fogos de artifcio por mais dez noites. De

    dia, consertvamos os modelos queimados, planejvamos novas

    atraes, e fazamos vir cativos da priso para encher os foguetes. Um

    deles ficou cego quando dez sacos de plvora lhe explodiram no rosto.

    Concludas as celebraes do casamento, deixei de ver Hoja. Eu

    me sentia melhor longe dos olhos perscrutadores daquela personagem

    singular que me vigiava constantemente. No que minha mente no

    voltasse atrs e se detivesse, com prazer, nos dias estimulantes que

    tnhamos vivido juntos. Quando retornasse, eu haveria de falar daquele

    homem que se parecia tanto comigo e, todavia, jamais se referia ao

    fato. Eu passava os dias na minha cela, sentado, atendendo pacientes

    para matar o tempo. Quando me disseram que o pax me mandara

    chamar, senti um frmito de emoo, uma quase felicidade, e corri a

    v-lo. O pax comeou por louvar-me perfunctoriamente. Todos

    haviam apreciado sobremaneira a exibio de fogos, os hspedes se

    mostraram encantados, eu tinha um grande talento etc. De repente,

    disse que se eu me convertesse ao islamismo ele faria de mim um

    liberto imediatamente. Fiquei chocado e estupefato. Disse que queria

    voltar para Veneza. E em minha insensatez cheguei a gaguejar

    algumas frases sobre minha me, minha noiva. O pax repetiu o que

    dissera como se no me tivesse ouvido. Por algum motivo, pus-me a

    pensar naquele instante, nos garotes preguiosos e inteis que

    conhecera em criana. Desses maus filhos que levantam a mo contra

    os pais. Quando disse que no abandonaria minha f, o pax ficou

    furioso. Voltei para a minha cela.

    Trs dias depois, ele me mandou buscar-me outra vez. Estava

    bem-humorado. Quanto a mim, no chegara a qualquer resoluo,

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    incapaz de decidir se a apostasia ajudaria mesmo na minha fuga. O

    pax me pediu uma definio e disse estar disposto a arranjar

    casamento para mim com uma bela moa. Num sbito impulso de

    coragem, confirmei que no mudaria de religio, e o pax chamou-me

    de idiota. Afinal de contas, no havia ningum a quem eu tivesse de

    prestar contas pelo fato de tornar-me muulmano. Em seguida,

    dissertou por algum tempo sobre os preceitos do Isl. Quando deu por

    terminado o discurso, mandou-me de volta cela.

    Na minha terceira visita, no fui conduzido presena do pax.

    Um camareiro me perguntou o que havia decidido. Talvez eu mudasse

    de idia, mas no porque um subalterno mo tivesse pedido! Respondi

    que ainda no estava preparado para abandonar a religio de meus

    pais. O funcionrio me tomou pelo brao e me levou escada abaixo,

    entregando-me a outra pessoa. Era um homem alto, magro como os

    homens que eu estava acostumado a ver em sonhos. Ele tambm

    pegou-me pelo brao e me conduziu para um canto do jardim, to

    delicadamente como se estivesse ajudando a um invlido. Mas algum

    nos interceptou, um homem por demais real para aparecer num sonho,

    um homem enorme. Os dois, um dos quais levava um machado de

    pequenas propores, detiveram-se ao p de um alto muro e

    amarraram as minhas mos. O pax, disseram, ordenara que eu fosse

    decapitado imediatamente se no renunciasse minha f. Fiquei

    gelado.

    No to depressa, pensei. Os dois me olhavam com piedade. Eu

    no disse nada. Pelo menos, que eles no repitam a pergunta, dizia

    para comigo, mas logo em seguida o fizeram. E, de sbito, minha

    religio se tornou algo pela qual parecia fcil morrer. Senti-me

    importante. Por outro lado, tive pena de mim, como aqueles dois

    homens, que, quanto mais me interrogavam, tornavam mais difcil para

    mim repudiar a minha religio. Quando quis pensar em outra coisa, a

    cena atravs da janela que dava para o jardim, nos fundos da nossa

    casa, veio-me nitidamente memria: pssegos e cerejas numa

    bandeja incrustada de madreprola sobre a mesa. Por detrs desta, um

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    div de palhinha, onde se espalhavam muitas almofadas de penas, do

    mesmo tom da moldura verde da janela; mais alm, um pardal

    empoleirava-se na borda de uma fonte, por entre as oliveiras e

    cerejeiras. Um balano, preso por longas cordas a um galho alto de

    uma nogueira, oscilava suavemente na brisa quase imperceptvel.

    Quando me interrogaram de novo, respondi que no mudaria de

    religio. Eles apontaram um toco, fizeram-me ajoelhar e pr minha

    cabea naquele cepo. Um dos dois homens ergueu o machado. O outro

    disse que, possivelmente, eu j lamentava a minha deciso. Ajudaram-

    me a ficar de p. Eu tinha mais alguns minutos para refletir.

    Deixando-me ento para que reconsiderasse, puseram-se os dois

    a cavar a terra junto ao cepo. Ocorreu-me que talvez me enterrassem

    ali mesmo. Esse pensamento se misturou ao medo da morte. Agora,

    tambm tinha medo de ser enterrado vivo.

    Estava dizendo para mim mesmo que chegaria a uma deciso no

    momento em que terminassem de cavar, quando l vinham eles de

    volta, aps terem aberto apenas uma cova rasa. Pensei ento como

    seria tolo morrer ali. Considerei que poderia tornar-me muulmano,

    mas no tinha tempo para chegar a uma deciso. Se pudesse retornar

    priso, minha amada cela com a qual me habituara, ficaria sentado

    a noite inteira pensando. Talvez tomasse a deciso de abjurar, mas no

    daquele modo, no imediatamente.

    Eles me agarraram repentinamente e me foraram a ajoelhar. E,

    no instante em que iam deitar de novo minha cabea no cepo, fiquei

    surpreso em ver algum que chegava veloz por entre as rvores. Era

    como se voasse. Era eu mesmo, mas com longas barbas, e andava sem

    rudo, no ar. Quis gritar alguma coisa para aquela apario de mim

    mesmo nas rvores, mas no podia falar com a cabea apertada contra

    a madeira. No seria diferente do sono, pensei e me entreguei sorte.

    Esperei. Sentia frio na espinha e na nuca. No queria mais pensar em

    nada, mas o frio no pescoo no deixava. Eles me soergueram,

    resmungando que o pax ficaria furioso. Ao me soltarem as mos, me

    admoestaram: eu era o inimigo jurado de Al e do Profeta. Levaram-

  • 8/2/2019 Orhan Pamuk - O Castelo Branco (Doc) (Rev)

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    me, apesar disso, colina acima, para a manso.

    Depois de permitir que eu beijasse a fmbria dos seus trajes, o

    pax me tratou com bondade. Disse que me amava por no ter

    abandonado minha f para salvar a vida. Porm, momentos depois, j

    esbravejava, com fria, dizendo que eu me obstinava por coisa

    nenhuma. O Isl era uma religio superior ao cristianismo e assim por

    diante. Quanto mais ele falava, mais bravo ia ficando. Resolvera punir-

    me. Comeou a explicar que fizera uma promessa a algum. Entendi

    que prometera poupar-me sofrimentos que, de outro modo, me seriam

    infligidos. Finalmente, compreendi que o homem a quem a promessa

    fora feita, um homem estranho, conforme ele dizia, era Hoja. O pax

    disse, ento, de chofre, que me dera a Hoja de presente. Olhei para ele

    sem expresso. O pax explicou que eu, agora, era escravo de Hoja.

    Ele me tinha dado a Hoja de papel passado; ele detinha, doravante, o

    poder de tornar-me livre ou no; poderia fazer de mim o que quisesse.

    O pax retirou-se da sala.

    Disseram-me que Hoja estava na manso, que esperava por mim

    embaixo. Percebi, ento, que havia sido ele que eu entrevira atravs

    da cortina das rvores, no jardim. Fomos a p para a casa dele. Hoja

    me disse que sempre soubera que eu no renegaria minha f. Mandara

    at preparar um quarto para mim antecipadamente. Perguntou-me se

    eu estava com fome. O medo da morte ainda no me deixara, e eu no

    estava em condies de comer o que quer que fosse. Mesmo assim,

    consegui engolir alguns bocados de po e um pouco do iogurte postos

    minha frente. Hoja me observava mastigar com uma expresso de

    felicidade. Olhava para mim com o prazer de um campons que

    alimenta um belo cavalo que acaba de adquirir no bazar, pensando em

    todo o trabalho que o cavalo executar para ele no futuro. At o tempo

    em que ele me esqueceu, submerso nos detalhes da sua teoria de

    cosmografia e nos desenhos do relgio que pretendia dar de presente

    ao pax, tive muitas ocasies de lembrar-me desse olhar.

    Mais tarde, ele disse que eu haveria de ensinar-lhe tudo. Por isso

    pedira ao pax que lhe fizesse o dom de mim. E s depois consideraria

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    a possibilidade de dar-me a liberdade. Eu levaria meses para descobrir

    o que Hoja desejara dizer com esse tudo: significava a totalidade do

    que eu havia aprendido na escola primria e secundria. Toda a

    astronomia, toda a medicina, toda a engenharia, tudo o que se

    ensinava em meu pas de origem. Era o que se continha nos livros que

    eu tinha em minha cela (e que ele mandou um servo apanhar logo no

    dia seguinte), tudo o que eu vira e ouvira, tudo o que tinha a dizer

    sobre rios, pontes, lagos, cavernas, nuvens, mares, as causas dos

    terremotos e do trovo... Por volta da meia-noite, ele acrescentou que

    o que mais o interessava era o firmamento: estrelas, planetas... O luar

    brilhava para alm da janela aberta, e ele disse que tnhamos, pelo

    menos, de encontrar provas positivas da existncia ou no-existncia

    daquele planeta entre a Lua e a Terra. Mesmo com os olhos

    devastados de um homem que passara um dia inteiro cara a cara com

    a morte, eu no podia deixar de notar a exasperante semelhana entre

    ns dois. E j Hoja, aos poucos, deixava de usar a palavra ensinar:

    amos pesquisar juntos, descobrir juntos, progredir juntos.

    De modo que, como dois estudantes responsveis que preparam

    fielmente suas lies, mesmo quando os adultos no esto em casa

    escutando atravs de uma fresta da porta, como dois irmos

    obedientes, nos sentamos para trabalhar. No comeo, senti-me como o

    solcito irmo mais velho que concordou em repassar suas antigas

    aulas ao preguioso caula para ajud-lo a alcanar a classe. E Hoja se

    portou como um aluno esperto que procura provar que as coisas que o

    irmo mais velho sabe no so um cabedal assim to grande. Segundo

    ele, a diferena entre os seus conhecimentos e os meus no era maior

    que a diferena entre o nmero de volumes trazidos da minha cela (e

    que ele alinhara em uma prateleira) e os livros cujo contedo eu

    memorizara. Com sua inteligncia viva e diligncia fenomenal, em seis

    meses ele adquirira domnio do italiano bsico, que mais tarde

    desenvolveria, e lera todos os meus livros. Quando me fez repetir tudo

    aquilo de que me lembrava, no havia mais nada em que eu lhe fosse

    superior. Ele agia, porm, como se tivesse acesso a uma sabedoria que

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    transcendia o que estava nos livros ele mesmo concordava em que

    muitos deles no tinham valor uma sabedoria mais natural e mais

    profunda que as coisas que podiam ser aprendidas. Ao fim de seis

    meses, j no ramos companheiros que estudavam juntos e

    progrediam juntos. Era ele quem propunha idias originais, e eu

    apenas contribua lembrando-lhe certos detalhes que o ajudassem a

    avanar ou a rever coisas que j sabia.

    Em geral, ele tinha essas idias, muitas das quais j esqueci,

    durante a noite, muito depois de termos comido a refeio sumria que

    improvisvamos como ceia, muito depois de todas as lmpadas da

    vizinhana se apagarem, deixando tudo em torno de ns mergulhado

    em treva e silncio. De manh, ele saa para lecionar na escola

    primria da mesquita, dois distritos mais adiante, e, dois dias por

    semana, ia a um bairro mais distante, onde nunca pus os ps, e

    visitava a sala dos relgios de uma mesquita, onde os tempos de

    orao so calculados.6 O resto do nosso tempo passvamos juntos,

    preparando as idias da noite ou aprofundando-as de dia. quele

    tempo eu ainda tinha esperanas, acreditava que voltaria para casa. E,

    como eu achasse que debater os pormenores das idias dele, que eu

    ouvia com pouco interesse, apenas serviria para adiar meu regresso,

    eu nunca discordava abertamente de Hoja.

    Assim passamos o primeiro ano, metidos at as orelhas em

    astronomia, lutando para descobrir provas da existncia ou no-

    existncia do imaginrio planeta. Mas enquanto trabalhava

    concebendo telescpios para as lentes que mandava vir de Flandres

    com grande despesas, inventava instrumentos e desenhava tabelas,

    Hoja esquecia a questo do pequeno planeta; estava absorvido por

    problema mais profundo: contestaria o sistema de Ptolomeu, disse.

    Mas no brigamos por causa disso. Ele falava e eu ouvia. Ele dizia que

    era estpido imaginar que os planetas estivessem dependurados em

    esferas transparentes. Havia algo mais que os mantinha l, uma fora

    invisvel, de atrao talvez. Sugeriu tambm que a Terra poderia, como

    o Sol, estar girando em torno de algo. Talvez todas as estrelas

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    girassem em torno de algum outro centro celeste de cuja existncia

    no tnhamos notcia. Um dia, pretendendo que suas idias seriam

    muito mais abrangentes que as de Ptolomeu, incluiu um certo nmero

    de novos planetas nas suas observaes para uma cosmografia mais

    vasta que a do egpcio, produzindo teorias para um novo sistema.

    Talvez a Lua girasse em torno da Terra, e a Terra em torno do Sol.

    Talvez o centro de tudo fosse Vnus. Mas logo se cansava dessas

    teorias. Tinha chegado a ponto de dizer que o problema agora no era

    propor novas idias mas fazer as estrelas e seus movimentos

    conhecidos dos homens aqui da Terracomearia essa tarefa de

    esclarecimento com Sadik Pax , quando soube que esse dignitrio

    fora banido para Erzurum. Constava que ele se envolvera numa

    conspirao abortada.

    Durante os anos em que esperamos pelo regresso do pax,

    fizemos pesquisas para um tratado que Hoja pretendia escrever sobre

    as causas das correntes do Bsforo. Passamos meses observando as

    mars, correndo pela crista das penedias que dominavam os estreitos

    num vento que gelava at os ossos, e descendo ao fundo de vales com

    potes que carregvamos para medir a temperatura e o fluxo dos rios

    que desguam nos estreitos.

    Quando estivemos em Gebze, cidade no muito distante de

    Istambul, para onde framos por trs meses, a pedido do pax, a fim

    de tratar de alguns negcios dele, as discrepncias no horrio das

    oraes entre uma mesquita e outra deram a Hoja uma nova idia: ele

    faria um relgio que mostrasse as horas da prece com perfeita

    exatido. Foi ento que lhe ensinei o que era uma mesa. Quando levei

    para casa o exemplar que mandara fazer por um carpinteiro, de acordo

    com minhas especificaes, Hoja no gostou. Aquilo se parecia, disse,

    com um esquife funerrio de quatro pernas, o que era pouco

    auspicioso. Mas, por fim, acostumou-se com a mesa e as cadeiras.

    Declarou at que pensava e escrevia melhor agora com a moblia.

    Tivemos de ir a Istambul para encomendar engrenagens destinadas

    aos relgios de orao. Tinham de ser fundidas em forma elptica,

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    correspondentes ao arco do sol poente. Na viagem de volta, nossa

    mesa, emborcada, com as pernas apontando para as estrelas, veio no

    lombo de uma mula.

    Naqueles primeiros meses de convvio, enquanto ficvamos

    sentados de frente um para o outro, Hoja procurou saber como calcular

    as horas de orao e de jejum em pases do norte, onde havia grande

    variao na durao do dia e da noite e um homem passava anos sem

    ver a face do sol. Outro problema era se haveria ou no na face da

    Terra um lugar onde as pessoas estivessem sempre de frente para

    Meca, fosse qual fosse a direo para que se voltassem. Quanto mais

    percebia que esses problemas me eram indiferentes, mais desdenhoso

    e insolente se tornava. Pensei, na poca, que ele reconhecia minha

    superioridade e diferena e talvez ficasse irritado vendo que eu

    tambm estava cnscio delas. Ele falava tanto de inteligncia quanto

    de cincia. Quando o pax voltasse, ganharia as suas boas graas com

    os planos e teorias de cosmografia que estava desenvolvendo e

    demonstraria ento, com a ajuda de um modelo e do novo relgio. Ele

    contagiaria a todos com a sua curiosidade, com o entusiasmo que ardia

    em seu ntimo, plantaria as sementes de um novo renascimento.

    Estvamos, os dois, em viglia.

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    Trs

    Naquele tempo ele se ocupava em imaginar como fazer um

    mecanismo maior para um relgio, em que fosse necessrio dar a eacertar apenas uma vez por ms, em vez de uma vez por semana.

    Criado esse aparelho, ele pensaria em outro, que s se ajuste uma vez

    por ano. Finalmente, anunciou que a chave do problema estava em

    prover suficiente energia para movimentar a engrenagem do grande

    relgio, que tinha necessariamente de aumentar de tamanha e de peso

    segundo o intervalo entre os ajustes peridicos Foi nesse dia que ele

    ficou sabendo, por seus amigos da sala dos relgios da mesquita, que opax regressara de Erzurun para assumir um cargo mais elevado.

    Hoja foi ter com ele, para felicit-lo, na manh seguinte. O pax o

    distinguiu na massa dos visitantes, mostrou interesse pelas suas

    descobertas e at perguntou por mim. Naquela noite, desmontou e

    reconstruiu o relgio vrias vezes, acrescentando-lhe coisas aqui e ali

    segundo o modelo do universo, nele pintando os planetas com nossos

    pincis. Leu-me depois partes de um discurso que havia redigidopenosamente, e em seguida memorizado. Tinha a inteno de comover

    os ouvintes pela simples fora da elegncia da linguagem e

    ornamentao potica. De madrugada, para acalmar os nervos, ele me

    recitou uma vez mais essa pea de retrica sobre a lgica do

    movimento dos planetas, mas dessa feita o fez de trs para a frente,

    como uma encantaco. Carregando os nossos instrumentos num carro

    que tomara emprestado, Hoja se foi, afinal, para a manso do pax.Fiquei perplexo ao ver como o relgio e seu modelo, os quais

    tinham enchido a casa durante meses, pareciam agora to pequenos

    na retaguarda daquele coche de um s cavalo. Ele voltou muito tarde

    nessa noite.

    Aps descarregar os instrumentos no jardim da manso, e fazer

    com que o pax examinasse aqueles objetos dspares com a

    severidade de um velho pouco dado a faccias, Hoja imediatamente

    recitara o discurso que tinha decorado. Contou-me que o pax,

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    aludindo a mim, dissera o que o sulto iria repetir muitos anos depois:

    Foi ele quem te ensinou todas essas coisas? Essa fora a nica reao

    dele, no primeiro momento! A resposta de Hoja deixou o pax ainda

    mais surpreso: Ele quem?, perguntou, mas logo entendeu que o pax

    se referia a mim. Hoja lhe disse que eu era apenas um tolo muito

    lido. Ao contar-me isso, com perfeita naturalidade, ele no pensava

    em mim, sua mente estava ainda inteiramente voltada para o que

    acontecera na manso. Insistira em que tudo aquilo era descoberta

    sua, mas o pax no acreditara. Parecia procurar uma terceira pessoa

    a quem responsabilizar, pois seu corao no podia admitir que o bem-

    amado Hoja fosse o culpado.

    Foi assim que passaram a falar sobre este escravo em vez de

    falarem das estrelas. Pude ver que no agradara a Hoja discutir o

    assunto. Houvera um silncio, e a ateno do pax se desviara para os

    outros convidados sua volta. Hoja fez uma segunda tentativa para

    trazer baila a astronomia e as suas descobertas. O pax disse,

    intempestivamente, que tinha estado querendo lembrar-se das minhas

    feies, mas que foram as de Hoja que lhe vieram mente. Havia

    outras pessoas mesa, e comeou um debate sobre a hiptese de

    serem as pessoas criadas aos pares. Exemplos hiperblicos foram

    lembrados para ilustrar o tema, gmeos idnticos que as mes no

    conseguiam distinguir um do outro; ssias que ficavam siderados

    vista um do outro, mas tambm, e da por diante, como que por artes

    de magia, impossibilitados de se separarem de novo; bandidos que

    assumiam a identidade dos justos e viviam as vidas deles. Quando

    terminou o jantar e os convidados comearam a despedir-se, o pax

    pediu a Hoja que ficasse.

    Quando ele recomeou a falar, o pax mostrou-se num primeiro

    momento aborrecido ao ter sua boa disposio outra vez perturbada

    por aquela montoeira de informaes descosidas, e que no lhe

    pareciam fazer sentido. Mas, depois, tendo ouvido pela terceira vez o

    discurso memorizado por Hoja, e observado o giro da Terra e das

    estrelas, diante dos seus olhos, ele pareceu haver assimilado alguma

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    coisa. Pelo menos, comeou a escutar atentamente o que Hoja dizia, e

    at a exibir um gro de curiosidade. quela altura, Hoja repetia com

    veemncia que as estrelas no eram como toda gente pensava e que

    era daquela maneira que elas, de fato, se moviam. Muito bem, disse

    o pax quando ele terminou. Eu entendo, isso tambm possvel. Por

    que no seria, afinal de contas? Em resposta, Hoja ficara calado.

    Imaginei que teria havido um longo silncio. Hoja tinha os olhos

    fixos nas trevas, para alm da janela, por cima do Corno de Ouro,

    quando falou. Por que ele se deteve a? Por que no continuou? Se

    aquilo era uma pergunta, eu no tinha resposta para ela, como ele

    tambm no tinha. Imaginei que Hoja teria uma opinio sobre tudo o

    mais que o pax devia ter dito, mas ele no me adiantou nada alm do

    que j havia contado. Era como se ficasse contristado que outras

    pessoas no partilhassem seus sonhos. O pax mais tarde mostrara

    interesse pelo relgio, pedira-lhe que o abrisse, que lhe explicasse a

    funo das rodas dentadas, do mecanismo, do contrapeso. Depois,

    temeroso, e como que estando s portas de um escuro e repulsivo

    buraco de serpente, tocou com o dedo o instrumento, que

    tiquetaqueava de leve, e logo retirou-o. Hoja tinha falado sobre torres

    de relgio, louvando a eficcia da orao coletiva feita por todos os

    fiis exatamente no mesmo e perfeito momento quando, de chofre, o

    pax explodiu. Livre-se dele!, disse. Se quiser, d-lhe veneno ou, se

    preferir, a liberdade. Voc ficar muito mais vontade. Eu devo ter

    olhado para Hoja com temor e esperana por um momento. Mas ele

    disse que no me libertaria antes que eles compreendessem.

    No perguntei o que eles precisavam compreender. Talvez eu

    tivesse a premonio de que Hoja tambm no soubesse o que era.

    Mais tarde, falaram de outros assuntos, o pax de sobrolho carregado,

    a olhar com desprezo os instrumentos que tinha sua frente. Hoja

    permaneceu na manso at altas horas da noite, na esperana de que

    o interesse do pax recrudescesse. Mas, no fundo, sabia que sua

    presena j no era desejada. Por fim, carregou de novo o tlburi.

    Fiquei a imaginar algum que, deitado de costas, numa casa ao longo

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    da escura e silenciosa estrada de volta, no conseguisse conciliar o

    sono, intrigado com o som do gigantesco relgio, tiquetaqueando

    imperturbvel por entre o estrpido das rodas.

    Hoja ficou de p at o alvorecer. Eu quis trocar a vela, que

    morria, mas ele me impediu que o fizesse. Como soubesse que ele

    esperava de mim algum comentrio, disse: O pax entender. Disse

    isso quando estava ainda escuro! Talvez Hoja soubesse to bem

    quanto eu que no acreditava de verdade naquilo. Mas, um momento

    depois, ele retomou a palavra, dizendo que o problema todo era

    decifrar o mistrio daquele minuto em que o pax parara de falar.

    A fim de saber o que acontecera, ele foi ver o pax na primeira

    oportunidade. Foi bem recebido dessa vez. Ele disse haver entendido

    muito bem o que acontecera, ou qual tinha sido a inteno de Hoja, e

    depois de aplacar-lhe as suscetibilidades, ordenou-lhe que trabalhasse

    numa arma. Uma arma que faa do mundo uma priso para os nossos

    inimigos. Isso foi o que ele disse, mas no especificou que espcie de

    arma seria aquela. Se hoje orientasse sua paixo pela cincia nesse

    rumo, ento o pax lhe daria todo o apoio. Naturalmente, ele nada

    adiantou sobre a quantia que tnhamos pretendido obter como verba

    ou dotao. Deu simplesmente a Hoja uma bolsa cheia de moedas de

    prata. Abrimos a bolsa em casa e contamos o dinheiro. Havia

    dezessete moedas estranho nmero! Foi depois de entregar a Hoja

    aquela bolsa que o pax lhe prometeu persuadir o sulto a conceder-

    lhe uma audincia. Explicou que o menino se interessava por essas

    coisas. Nem eu nem Hoja, que se deixava entusiasmar mais

    facilmente, levamos essa promessa muito a srio, mas uma semana

    depois houve novidades. O pax nos apresentaria sim, a mim

    tambm ao sulto, depois da quebra do jejum, ao pr-do-sol.7

    Preparando-se para a entrevista, Hoja revisou o discurso que

    havia preparado para o pax, verificando se ainda o tinha perfeito na

    memria, simplificando-o um pouco, em seguida, para que uma criana

    de nove anos pudesse entender tudo. Mas, por algum motivo, tinha o

    pensamento no pax, no no sulto. Intrigava-o o silncio do pax.

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    Haveria de descobrir o motivo disso algum dia. Que espcie de arma

    seria essa que o pax desejava que eles construssem? Havia pouco

    que eu pudesse dizer. Hoja trabalhava sozinho agora. Enquanto ele se

    trancava no quarto at a meia-noite, eu ficava sentado minha janela,

    olhando para fora sem ver, e at sem pensaram no meu eventual

    regresso Itlia, mas perdido num devaneio sem fim, como uma

    criana louca: era eu e no Hoja que trabalhava naquela mesa, livre

    para ir e vir sempre que o desejasse!

    Ento, uma noite, amontoamos nossos instrumentos num carro e

    fomos juntos ao palcio. Eu j gostava muito, quela altura, de passear

    a p pelas ruas de Istambul. Sentia-me como um homem invisvel,

    passando qual fantasma por entre os gigantescos pltanos, as

    castanheiras e as accias dos jardins. Instalamos os instrumentos, com

    a ajuda de empregados do palcio, no stio que elas nos indicaram no

    segundo ptio. O soberano era um menino doce, com faces de rom e

    estatura proporcional aos seus verdes anos. Mexeu nos instrumentos

    como se fossem outros de seus brinquedos. Estarei pensando agora

    naquele tempo quando eu quis ser seu igual e amigo, ou em outro

    tempo, muito posterior, quinze anos mais tarde, quando de novo nos

    vimos? No sei. Mas senti imediatamente que no podia faltar quele

    garoto. Hoja teve um ataque de nervos vendo o squito do sulto

    espreita, amontoado e curioso. Por fim, conseguiu comear. Tinha

    acrescentado algumas coisas ao texto primitivo. Falou das estrelas

    como se fossem seres vivos, racionais, assemelhando-as a criaturas

    cativantes, misteriosas, proficientes em aritmtica e geometria, que

    giravam em perfeita conformidade aos seus conhecimentos. Foi

    ficando mais veemente medida que percebeu que a criana mordera

    a isca, e levantava a cabea de tempos em tempos para olhar o cu

    com o assombro estampado no rosto. V, senhor, os planetas,

    pendurados nessas esferas translcidas que giram, esto repre-

    sentados ali, no modelo, e aquele Vnus, que gira assim e assado, e

    aquela grande bola mais alm a Lua, que segue um curso diferente.

    Enquanto Hoja fazia com que as estrelas revolvessem devagarinho, o

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    pequenino sino que ele tinha prendido maquete tiniu suavemente, e

    o pequenino sulto, assustado, deu um passo para trs. Depois,

    ganhando coragem, fez um esforo para compreender e se aproximou

    da mquina que tilintava de leve como se fosse uma arca de tesouro.

    Agora, que reno minhas lembranas dispersas, e procuro inventar um

    passado para mim, vejo nesse quadro um retrato da perfeita felicidade,

    tal como o das fbulas que costumava ouvir em criana, exatamente

    como os autores das ilustraes daqueles contos de fadas teriam feito.

    S falta os vistosos telhados de Istambul, com suas cores de

    confeitaria, serem postos dentro dessas esferas de vidro em que neva

    quando a gente as sacode. O menino comeara a fazer perguntas a

    Hoja e procurar respostas para as perguntas.

    Como que as estrelas ficavam no ar? Estavam dependuradas

    em esferas transparentes! E de que eram feitas as esferas? De um

    material invisvel, por isso eram tambm invisveis! E no batiam umas

    contra as outras? No, cada qual tinha sua zona prpria, em camadas,

    como na maquete. Se havia tantas estrelas no firmamento, por que

    no havia um nmero correspondente de esferas? Porque elas estavam

    muito longe, as estrelas! Quo longe! Muito, muito longe! As outras

    estrelas tambm tm sininhos, que tocam quando elas revolvem? No,

    ns pusemos os sinos para marcar cada revoluo completa das

    estrelas! E o trovo, tem alguma coisa a ver com tudo isso? Nenhuma!

    Tem relao com qu, ento? Com a chuva! Vai chover amanh? A

    observao do cu mostra que no. O que o cu revela sobre o leo

    doente do sulto? Que ele vai melhorar, mas que preciso ter

    pacincia. E assim por diante.

    Enquanto opinava sobre a sade do leo, Hoja continuava a olhar

    para o cu, como tinha o hbito de fazer quando dissertava sobre as

    estrelas. Ao voltar para casa, mencionou esse pormenor, dizendo que

    tinha importncia. O principal no era que a criana distinguisse entre

    cincia e sofstica, mas que entendesse determinadas coisas. Ele

    empregava a mesma palavra outra vez, como se eu soubesse o que o

    menino devia entender, mas eu pensava, naquele momento, que no

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    faria a menor diferena se eu me tornasse muulmano ou no. Havia

    exatamente cinco moedas de ouro na bolsa que eles nos deram

    quando deixamos o palcio. Hoja disse que o sulto tinha

    compreendido que havia uma lgica por trs do que acontecia com as

    estrelas. Oh, meu sulto! Mais tarde, muito mais tarde, eu o conheci!

    Eu me admirava que a mesma lua aparecesse na janela da nossa casa.

    Queria tanto ser criana! Hoja, incapaz de parar de falar, se repetia. A

    questo do leo era irrelevante: a criana gostava de animais, s isso.

    No dia seguinte, ele se fechou no quarto e comeou a trabalhar.

    Poucos dias depois, ps de novo o relgio e as estrelas no coche e,

    debaixo do escrutnio de todos aqueles olhos curiosos por trs dos

    muxarabis, ele partiu, dessa vez rumo escola primria. Voltou

    deprimido, noite, mas no tanto que ficasse calado.

    Pensei que as crianas entenderiam, como o sulto entendeu,

    mas eu estava enganado disse.

    Elas tinham ficado apenas assustadas. Quando Hoja lhes fez

    perguntas, depois da sua exposio, uma das crianas respondeu que

    o inferno ficava do outro lado do cu e se ps a chorar.

    Ele passou a semana seguinte proclamando sua f na inteli-

    gncia do soberano. Repassou comigo, momento por momento, o

    tempo que tnhamos permanecido no segundo ptio, pedindo meu

    apoio para as suas interpretaes. A criana era inteligente? Sim. J

    sabia pensar? Sim. J possua suficiente carter para resistir s

    presses dos que o cercavam na corte? Sim! De modo que, muito

    antes que o sulto comeasse a tecer sonhos para ns, como o faria

    em anos subseqentes, ns comeamos a fazer planos para ele. Hoja

    trabalhava tambm no relgio, por essa poca. Penso que ele cogitava,

    tambm, um pouco, da arma, porque disse isso ao pax quando

    chamado por ele. Mas pude ver que desistira do pax.

    Ele, se tornou como os outros disse. J no quer mais

    saber o que no sabe.

    Uma semana depois, o soberano convocou Hoja mais uma vez, e

    ele obedeceu. O sulto lhe pareceu animado. Meu leo est melhor,

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    foi logo dizendo, como voc previu. Depois saram juntos para o

    ptio, acompanhados da comitiva de costume. O menino, mostrando-

    lhe os peixes do tanque, perguntou-lhe o que achava deles. Eram

    vermelhos, respondeu Hoja, segundo me contou.

    No me ocorreu outra coisa.

    Mas, ento, observou uma configurao peculiar nos movimentos

    dos peixes. Era como se estivessem discutindo coreografia entre eles,

    no af de aperfeio-la. Hoja disse que achava os peixes inteligentes. E

    quando um ano achou graa disso, um ano que estava junto a um

    dos eunucos do harm, e que vivia lembrando ao soberano as

    advertncias de sua me, o menino ralhou com ele. Como castigo, no

    permitiu que o ano, que tinha cabelo ruivo, sentasse junto dele

    quando subiu na sua carruagem.

    Eles tinham ido de carruagem ao hipdromo e casa do leo. Os

    lees, leopardos e panteras do sulto, mostrados por ele, um a um, a

    Hoja estavam presos por correntes s colunas de uma antiga igreja. A

    comitiva se deteve diante do leo cujas melhoras Hoja vaticinara. A

    criana apresentou-os solenemente. Em seguida, foram at outro

    animal, que jazia a um canto. Esse no cheirava mal como os demais.

    Era uma leoa e estava prenhe. O menino, de olhos muito brilhantes,

    perguntou: Quantos filhotes vo nascer? Quantos machos e quantas

    fmeas?

    Apanhado de surpresa, Hoja cometeu o que mais tarde

    descreveria como uma asneira. Disse ao sulto que entendia de

    astronomia, mas no era astrlogo. Mas voc sabe mais que o

    astrlogo imperial Huseyn Efndi!, disse a criana. Hoja no

    respondeu, temendo que algum pudesse ouvir e contar tudo a Huseyn

    Efndi. O soberano, impaciente, insistira: ou Hoja no sabia nada e

    observava as estrelas em vo, afinal de contas?

    Em resposta, Hoja se viu obrigado a explicar de imediato coisas

    que s pretendia discutir muito mais tarde com o menino. Respondeu

    que aprendera muito com as estrelas e chegara a concluses muito

    teis com base no que aprendera. Interpretando favoravelmente o

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    silncio do sulto, que escutava de olhos muito abertos, disse que era

    necessrio construir um observatrio para estudar as estrelas. Como o

    que seu antepassado Murad III, av de Ahmed I,8 construra para o

    falecido Takiyuddin Efndi noventa anos atrs e que ficara em runas

    por falta de conservao. Ou coisa mais adiantada que isso: uma Casa

    da Cincia, em que eruditos pudessem observar, no apenas as

    estrelas mas o mundo inteiro, seus rios e oceanos, nuvens e

    montanhas, flores e rvores e, naturalmente, animais, para depois

    discutirem suas observaes descansadamente e fazerem avanos no

    campo do intelecto.

    O sulto escutara a exposio de Hoja sobre o seu projeto, de

    que eu tambm ouvia falar pela primeira vez, como se fosse um belo

    enredo. Quando voltavam para o palcio nas carruagens, o menino

    perguntou uma vez mais: Como a leoa dar luz? O que tem a dizer

    sobre isso? Hoja havia pensado no assunto e, dessa vez, respondeu:

    Haver um nmero igual de machos e de fmeas.

    Em casa, ele me disse que no havia perigo em dizer uma coisa

    daquelas.

    Logo terei aquela criana idiota na palma da minha mo

    disse. Sou muito mais competente que o astrlogo Huseyn Efndi!

    Fiquei chocado ao ouvi-lo referir-se daquela maneira ao

    soberano. Por alguma razo, fiquei at ofendido. Naquele tempo, eu

    me ocupava do servio domstico por puro fastio.

    Mais tarde, ele passou a usar a palavra como se fora uma chave

    mgica, uma gazua capaz de abrir todas as portas. Porque eram uns

    idiotas, no viam as estrelas que se moviam por cima de suas

    cabeas nem refletiam sobre a natureza delas; porque eram idiotas,

    no perguntavam primeiro que utilidade prtica teria o que estavam a

    ponto de aprender; porque eram idiotas, no se interessavam em

    conhecer tudo em profundidade mas apenas pela rama; e por serem

    idiotas eram todos iguais. E assim por diante.

    Embora eu tambm tivesse gostado de criticar as pessoas

    daquele modo, anos antes, quando ainda vivia em meu prprio pas,

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    no disse nada a Hoja. De qualquer maneira, ele estava preocupado

    com os seus idiotas, no comigo. Ao que parece, minha loucura era de

    outra natureza. Certo dia, em que me deixei levar pela indiscrio,

    contei-lhe um sonho que havia tido: ele se fora para Veneza em meu

    lugar, casara com a minha noiva, e durante as festas ningum

    descobrira que ele no era eu. E, durante todo o tempo, eu o

    observava de um canto, vestido de turco. Nem minha me nem minha

    noiva me reconheceram! Viraram-me as costas, apesar das lgrimas

    que verti e que, afinal, me acordaram.

    Por essa poca, ele foi duas vezes manso do pax. Entendo

    que esse dignitrio no estava l muito feliz vendo que Hoja se

    relacionava com o soberano longe do seu olhar vigilante. O pax o

    enchia de perguntas. Pedia notcias minhas. Andara investigando a

    minha vida, mas s muito mais tarde, depois que ele fora banido de

    Istambul, Hoja me contou isso. Temia que eu fosse passar meus dias

    no terror de ser envenenado se o soubesse. Pois, assim mesmo, eu

    sentia que o pax mostrava-se mais curioso em relao a mim do que

    a Hoja. Eu ficava lisonjeado, vendo que minha semelhana fsica com

    Hoja deixava o pax mais perturbado do que a mim. Naquele tempo,

    essa semelhana era como um segredo que Hoja no quisesse

    conhecer e cuja existncia me comunicava uma estranha coragem. s

    vezes, imaginava que unicamente graas a essa semelhana

    inacreditvel eu estava seguro enquanto Hoja vivesse. Talvez, por isso,

    eu tenha contraditado Hoja quando ele disse que o pax tambm era

    um dos tais idiotas; isso o irritou. Ele me espicaou tanto que assumi

    uma desfaatez que no do meu feitio. Queria sentir tanto a sua

    necessidade em relao a mim, quanto a sua vergonha diante de mim.

    Interroguei-o sem trgua sobre o pax, sobre o que ele dizia com

    relao a ns dois, levando Hoja a uma fria cujo motivo, acho, no era

    evidente nem mesmo para ele. Ento ele se punha a repetir

    teimosamente que eles dariam cabo do pax tambm. Logo os

    janzaros tentariam alguma coisa. Ele sentia a presena de

    conspiraes no palcio. Por esse motivo, se ia trabalhar na construo

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    de uma arma, como o pax sugeria, faria isso no para um vizir

    qualquer, que esses vm e vo, mas para o soberano.

    Por algum tempo, imaginei que ele estivesse ocupado exclu-

    sivamente com essa obscura idia de arma; planejando sem nada

    realizar, eu disse comigo mesmo. Pois, se tivesse feito algum

    progresso, estou seguro de que me contaria, mesmo fazendo pouco de

    mim no processo. Mas contaria o que tinha em vista para saber minha

    opinio a respeito. Uma noite, estvamos voltando de uma casa em

    Aksaray, onde costumvamos ouvir msica e deitar com prostitutas,

    como fazamos a cada duas ou trs semanas. Hoja disse que

    tencionava trabalhar at de manh. Depois comeou a perguntar sobre

    mulheres ns jamais tnhamos conversado sobre mulheres antes

    e, de repente, disse:

    Estou pensando...

    No momento em que entramos em nossa casa, porm, ele se

    fechou em seu quarto sem revelar o que tinha em mente. Fiquei

    sozinho com os livros, que agora no tinha vontade sequer de folhear.

    Fiquei pensando nele: que idia ou plano teria, que eu a convencido de

    que no seria capaz de levar a cabo, fechado em seu quarto, sentado

    mesa a qual ainda no se acostumara de todo, olhando as pginas em

    branco sua frente. Sentado infrutiferamente mesa, durante horas,

    envergonhado, furioso...

    Hoja emergiu do quarto muito aps a meia-noite e, como um

    estudante atrapalhado que precisa de ajuda para enfrentar um

    problema menor, que no consegue resolver, chamou-me para que

    entrasse, timidamente.

    Ajude-me pediu, abrupto. Vamos pensar juntos. No

    consigo avanar sozinho.

    Fiquei calado por alguns instantes, imaginando se aquilo alguma

    coisa a ver com mulheres. Quando ele notou meu olhar pasmo, falou

    com seriedade.

    Estou pensando nos idiotas. Por que so to estpidos?

    E, como se soubesse qual seria a minha resposta, acrescentou:

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