Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima

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S I S T E M A P E N A L M Á X I M O.v

C I D A D A N I A M Í N I M A

Códigos da violência naera da globalização

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A553s An dra de, Vera Regina Pereid a deS is tema pena l máx imo x c idad an ia mín ima: cód igos

da violência na era da glo bal iza ção / V era Regin a Pere i-ra de And rade . — Por to Alegre : L iv ra r i a do A dvo gad oEditora , 2003.

187 p.; 14 x 21 cm.ISBN 85-7348-284-2

1 . Di re i to Pena l . 2 . Cr im ina l id ade . 3 . Globa l i zaç ão .4. Violên cia . 5 . Cid ada nia . 6 . Sis t em a penal . I . Tí tu lo .

CDU - 343 .9

índ ices pa ra o ca tá logo s i s t emát ico :Direi to penalC r i m i n a l i d a d eGloba l i zaçãoVioiônciaC i d a d a n i aS i s tema pena l

(Bib l io tecá r ia r esponsáve l : Mar ta Rober to , CRB-10 /652)

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Vera Reg ina Pe re i r a de Andrade

ódigos da v io lênc ia na

era da global ização

li i //

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© Vera Regina Pereira de Andrade, 2003

Arte dn ctifinEneida Cidade

Projeto gráfico e dingrainnçãoLivra r i a do Advogado Edi to ra

RevisãoRosan e Mar ques B orba

Direitos desta edição reservados />orLivra r i a do Adv ogad o Edi to ra L tda .

Rua Riachuelo, 133890010-273 Por to Alegre RS

F o n e / f a x : 0 8 0 0 - 5 1 - 7 5 2 2l i v r a r i a @ d o a d v o g a d o . c o m . b r

w w w. d o a d v o g a d o . c o m . b r

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Em memória de meu Pai,LUIZ CARLOS TORRES ANDRAD E,

grandiosa referência de vida digna e de cidadania.

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Prefácio

Qu and o a professora Ve ra Regina P ereira de An -drade me fez o honroso convite de prefaciar esse livro,informou-me que se tratava de uma coletânea de artigosredigidos em vários momentos de sua ainda tão jovemcarreira. Trata-se, com efeito, de uma nova e atualizadaedição de textos publicados em revistas e livros nosúltimos doze anos.

Qual não foi, porém, a minha surpresa quando aoler os textos da coletânea descobri com satisfação queconstituíam partes de uma obra com profunda unidade.Não é oferecida ao leitor uma simples compilação detrabalhos que as contingências das pesquisas acadêmi-cas, dos convites de participação em publicações e dasinterp elaçõe s da atualid ade política e jurídic a fizeramuma pesquisadora redigir em paralelo a outras ativida-des. O livro é composto de pesquisas, análises e comen-tários desenvolvidos em torno a um tema central.Trata-se da reflexão sobre a cidadania que constitui, ao

mesmo tempo, conceito fundamental do direito moder-no e conjunto de práticas de aplicação do direito queobjetivam consolidar a praxis democrát ica.

Os fundamentos da abordagem da autora sobre acidadania encontram-se no texto Do (pre)conceito liberal aum novo conceito de cidadania: pela mudança do sensocomum sobre a cidadania.Principal objeto de sua aborda-

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plena". Busca-se, aqui, construir um conceito de cidada-nia particularmente exigente. Conceito exigente porquenão se satisfaz com o modelo formalista da cidadaniarepresentativa e l imitada. Neste sentido, afirma-se queuma pessoa somente pode ser considerada efetivamenteincluída no conceito de cidadania se tiver uma participa-ção plena nos processos de discussão e decisão políticasobre qualquer assunto de interesse público.

A professora Vera Regina nos convida a acompa-nhar suas reflexões sobre a relação que se estabelece

entre o conceito amplo de cidadania e o sistema dejustiça penal. Sabemos que nos países capitalistas vemse desenvolvendo, sobretudo após o advento do neoli-beralismo, uma polít ica criminal que podemos denomi-nar de "terrorista", porque implica uma prática de"terrorismo de Estado", tema tão abordado durante asditaduras militares do cone Sul, que infelizmente tor-nou-se de novo atual.

Hoje a política social, o diálogo democrático para asolução de conflitos e a preoc upaç ão co m os verdad eirosproblemas sociais estão sendo substituídos por um dis-curso alarmista sobre a "ameaça da criminalidade". OEstado de bem-estar social e as preocupações democráti-cas cedem lugar ao Estado penal (État-pénitence, na termi-nologia de Loïc Wacquant).

Mesmo naqueles países que nunca passaram pelaexperiência de um Estado de bem-estar social, como é o

caso do Brasil, constatamos a criação de um Estadopenal, muitas vezes atuando no limite entre legalidade eilegalidade. Essa polít ica tem levado à propagação, pormeios formais e informais, de uma cultura do pânico,que permite legitimar como única solução viável para aefetivação da cidadania (seguran ça ), a segrega ção deparcelas cada vez maiores da população e principal

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ser efetivadas se for feita uma reforma radical da legisla-ção penal e da política criminal: eliminar os "privilégios"dos réus e dos presos; aumentar as penas cominadas;criar novos delitos e regimes de execução de penas aolimite do isolamento total do preso; aumentar o rigorjudiciário na fixação da pena; treinar os policiais paraserem implacáveis contra a criminalidade, ou seja, para"lutar" contra aqueles que não são mais percebidoscomo cidadãos brasileiros que (eventualmente) comete-ram infrações, mas como "monstros" , "bandidos" e

"inimigos".1

Nesse âmbito, a proposta atual é declarar oficial-mente uma verdadeira guerra civil contra os pobres edesviantes (inclusive com a participação do exércitobrasileiro ) para garantir os direitos fundamentais. Ado-tando os termos da análise da professora Vera Reginasobre a cidadania, podemos dizer que, para preservar osdireitos de uma parte dos cidadãos, para permitir queeles não tenham mais medo e não permaneçam confina-dos em suas residências e demais redutos privados, asolução é segregar efetivamente e, se possível, definiti-vamente aqueles que impedem o pleno exercício dacidadania dos "bons cidadãos".

O direito penal funciona com a repressão, isto é,impondo a privação de direitos e impedindo a satisfaçãodas necessidades humanas dos castigados. Em outraspalavras, priva uma parte dos cidadãos de seus direitos

de cidadania material e formal para preservar os direi-tos de uma outra parte da sociedade.É evidente que esse esquema de cunho deliberada-

mente bélico (basta ler as declarações dos responsáveis1 Esse contexto nos remete ã triste experiência vivenciada pelo Brasil durantea ditadura militar de 1964, período em que os direitos individuais e políticosde cidadãos considerados como "inimigos" foram sacrificados em prol da

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polít icos brasileiros, inclusive dos supostamente pro-gressistas ) não pode ser admitido no âmbito da cidada-

nia plena, que não fundamenta os direitos de certaspessoas na privação dos direitos dos demais. Isso ficouregistrado nas melhores análises críticas sobre a criaçãode um direito penal terrorista e militarizado, constituin-do, inclusive, principal objeto de estudo do professorAlessandro Baratta.2

Os partidários da repressão penal tentam justificarsua existência alegando a necessidade de combater acriminalidade e de estabelecer uma reação oficial amanifestações de desvios "causados" por fatores biológi-cos, psicológicos ou sociais. Já aqueles que reconhecem apreponderância dos fatores sociais da criminalidadepropõem estratégias voltadas para a melhoria da situa-ção social das classes subalternas e não centradas nocombate dos próprios criminosos.

Temos aqui uma versão "social" da polít ica crimi-nal que propõe substituir a guerra contra os criminosospela guerra contra a pobreza e a exclusão. Apesar deessa última versão ser mais progressista e mais humanaque a do terrorismo penal, ainda permanece refém dasestruturas discursivas do senso comum, pois nega-se aanalisar o problema a partir de uma perspectiva meto-dologicamente válida.

Inserida em uma perspectiva diversa, a professoraVera Regina adota a visão da criminologia crítica. Oleitor terá a oportunidade de aprofundar o estudo dosfundamentos dessa abordagem, indicados no texto Do(pre)conceito positivista a um novo conceito de criminalidade:- Alessandro Baralla. Viejas v nuevas estratégias en la legitimación dei dere-clio penal. Poilcr j control, n. Ó, 1986, p. 77-92; Funções instrumen tais e fun çõessimbólicas do direito penal. Revista brasileira de ciências criminais, n. 5, 1994,p. 5-24; Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal.Fascículos de ciências penaisv 6 n 2 1993 p 44 61; La política criminal y el

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pela mudança do senso comum sobre a criminalidade e osistema penal, que adota a posição fundamental da crimi-

nologia crít ica. Se podemos falar em "causas da crimina-lidade", essas não devem ser buscadas em condutasindividuais ou em problemas sociais, e, sim, na decisãopolít ica das autoridades estatais que consideram comopassíveis de pena determinados acontecimentos (crimi-nalização primária) e aplicam o rótulo de criminoso acertas pessoas (criminalização secundária).

Trata-se, em outras palavras, da tentativa de atri-buir a certas pessoas, que em sua grand e ma ioria perten-cem às classes dominadas e socialmente excluídas, aresponsabilidade por conflitos sociais. A professoraVera Regina adota aqui a visão radicalmente crítica,desconstrut iva dos concei tos "cr ime", "cr iminoso" e"criminalidade". Demonstra, assim, as contradições ine-rentes ao sistema da repressão penal, que não só nãocumpre as suas promessas (garantir a paz social, evitaras lesões de direitos fundamentais), mas reproduz o

círculo da violência e legitima a opressão social.3

Acriminologia crít ica demonstra o autoritarismo dessecírculo vicioso, que é mantido e financiado por Estadossupostamente democráticos.

Os demais quatro textos do volume realizam umabrilhante, e em muitos aspectos inovadora, aplicaçãodas posições da criminologia crítica aos problemas daviolência contra as mulheres, do trânsito e dos conflitosagrários no Brasil. Temas estes tratados hoje parcial-mente pelo direito penal, apesar do evidente fracassodessa opção. O resultado é uma ulterior vitimização dasvítimas no caso da violência contra as mulheres, cujotratamento penal oculta as causas e deixa intactos osefeitos da violência masculina; a despolitização e adescontextualização dos conflitos agrários que contribui

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SumárioApresen tação 19

1 . Do (p re )conce i to pos i t iv i s t a a um novo conce i to de c r im ina -l i d a d e : p e l a m u d a n ç a d o s e n s o c o m u m s o b r e a c r i m i n a l i -dad e e o s is t em a pen al 331.1. Int rod ução 33 1 .2 . O pos i t iv i smo e o pa rad igma e t io lóg ico de Cr imino log ia :

o ( p r e ) c o n cc i t o d e c r i m i n a l i d a d e n o s e n s o c o m u m . . . 3 41.3. O Inbcliing nppronch e o par ad igm a da reaçã o social : u ma

revo lução de pa rad igma em Cr imino log ia e um novoconce i to de c r imin a l idad e e s i s t ema pena l 39

1.4. Do Inbcliing nppronch à c r imino log ia c r í t i ca :

a matu ração do pa ra d igm a 451 .5 . Cont r ibu ição fund amen ta l da Cr im ino log ia da reação

social e cr í t ica: a lógica da sele t ivi dad e com o lógica e s-t ru tu ra l de operac iona l i zação do s i s t ema pena l e suare lação func iona l com dom inaç ão c lass i s t a 49

1 .6 . A descons t rução ep i s t emológ ica do pa rad igma e t io lóg i -co: a t ra ição da Criminologia à matr iz posi t iv is ta deciência 56

1 .7 . Das p romessas às funções l a t en tes e r ea i s da Cr imino lo -gia posi t iv is ta como ciência do controle sociopenal : pela

mudança do senso comum sobre a c r imina l idade e osis tem a penal 59

2 . Do (p re )con ce i to l ibe ra l a um nov o conce i to de c id ada n ia :pe la mu dan ça do sen so com um sob re a c ida dan ia 632.1. Int ro du ção 632 .2 . O (p re )conce i to l ibe ra l de c idadan ia reproduz ido pe la

cu l tu ra ju r íd ica dom inan te no Bras il 65

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2 .5. A re lação c idada n ia -de mocra c ia : da c idadan ia mo ldad ape la democrac ia ( represen ta t iva ) à c idadan ia mo lda nd o

a dem ocracia (possível e sem f im) 783 . S i s t em a pena l e v io lênc ia sexua l co n t ra a mu lhe r : p ro te ção

ou dup l ica ção da v i t imaç ão fem in i na ? 813.1. Int rod ução 81 3 .2 . Cons t rução e p rome ssas do mod erno s i s t em a pena l : a s

g randes l inhas de au to le g i t im ação o f ic ia l 873 .3 . Descons t rução do moderno s i s t ema pena l : da c r i se de

leg i t imidade à e f i cácia ins t rum enta l inversa à p rom et ida 893 .4 . Cont r ibu ição fundamen ta l do mo vim ento e da C r imi no-

logia feminis ta : a lógica da honest idade como uma su-b lóg ica da se le t iv idade ac ionada pa ra a c r imina l i zaçãosexual e sua re lação funcion al co m a do mi na ção sexis ta 92

3 .5 . Cont r ib u ição da exper iênc ia po l í t i co -c r imina l e r e fo r-mista acum ulad a na luta fem inis ta contra a vio lênc ia . 101

3 .6 . Pon tua l i zando o a rgum ento : da e f i các ia inver t ida dosis tem a penal à du pl ic ação da vi t i ma ção fem inin a . . . 102

3.7. Da negat ividade do Direi to Penal à posi t iv idade dosDirei tos 106

3.8. O paraíso não passa pelo s is tema penal : pela mudançado pa rad igm a ju r íd ico imper ia l e masc u l ino 107

4 . S i s t e ma pena l e c idad an ia fem in i na : da mu lhe r com o v í t im aà mu lher como su je i to de con s t ru ção da c ida dan ia 1094.1. Int rod ução 1094.2. Inserção do feminis mo no âm bit o da pol í t ica cr im inal . 1104 .3 . O cond ic ion amen to h i s tó r i co : deso cu l t a ndo a v io lênc ia

e pol i t izand o o espa ço pr iv ado 1124.4. O sent id o do fem inism o 1154.5. Pressupostos s i lenciados sob a dem and a cr imina l izado ra 116

4 .6 . P rob lem at izand o os p ressu pos to s 1174.6.1 . O s igni f icad o da violên cia 1174.6.2 . O s ignif ic ado da pro teçã o pen al 1184 .7 . Da mulher como v í t ima à mulher como su je i to de cons -

t rução da c idad ania 121

5 . S i s t ema pena l e c idad an ia no camp o: a cons t ruçã o soc ia l dosc o n f l i t o s a g r á r io s c o m o c r i m i n a l i d a d e 1 2 5

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5.3. A (des)ordem agrár ia : a es t rutura la t i fundiár ia , os déf i -ces de refor ma agrár ia e agr íco la , os con fl i to s e o M ST 135

5 .4 . A cons t rução soc ia l dos conf l i tos agrá r ios como c r imina-l idad e e a heg em oni a do contro le pena l 1405 .4 .1 A cons t rução soc ia l se le t iva da c r imina l idade agrá r i a :

c r imina l i zação x imp unid ade 1415 .4 .2. Vio lênc ia superes t im ada e va r iáve i s inc lu ídas : o cód i -

go com por tam enta l 1435 .4 .3 . Vio lênc ias sonegadas e va r i áve i s exc lu ídas : os cód igos

ausentes 1465 .5 . At ravessando a geogra f i a do con t ro le pena l rumo ao

terr i tór io da c ida dan ia 147

6 . S i s t e ma pen a l e c ida dan i a no t r âns i to : da p rom essa d e segu-rança à e f i các ia inver t ida do Cód igo de Trâ ns i to b ras i l e i ro 1536.1. Int ro duç ão 1536 .2 . Obje to e ob je t ivo da cod i f i cação : uma p rom essa d e segu-

rança 1566 .3 . Os métodos na caminhada da ba rbár ie à c iv i l i zação : o

b inô mio edu car e pun i r 1586 .3 .1 . C i rcunsc revendo a educação : quem e como se educa

para o t rânsi to ? 1586 .3 .2 . C i rcunsc revendo a pun ição : a h ipe re r imina l i zação do

cot i dia no do t rânsi to 1606 .4 . Educ ar e pun i r : desequ i l íb r io metó d ico 1636.5. A construção legal da violência e suas causas e a hege-

monia do pa rad igma da be l ige rânc ia 1646 .5 .1 . Vio lênc ia supere s t imad a e va r iáve i s inc lu ídas : o C TN

c o m o c ó d i g o c o m p o r t a m e n t a l 1 6 66 .5 .2 .Vio lênc ias sonegadas e va r i áve i s exc lu ídas : os cód igos

ausentes 1676.6. O outro com o parad igma : o fasc ín io a l i en ígen a 1696.7. Défic i t de base nacional e de base c ient í f ica para a pol í -

tica crim ina l 1716.8. Da promessa ao mercado de segurança e à ef icácia in-

ver t ida do Có dig o de Trân si to 1766 .9 . At ravessando o mapa da cod i f i cação rumo ao t e r r i tó r io

da c ida dan ia 179

Bibl iograf ia 181

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Apresentação

Por "sistema penal máximo x c idadania m ínim a"pretendo indicar a bipolaridade que constitui o objetocentral de abordagem nesta obra:1 de um lado, a proble-matização da funcionalidade do sistema penal (da enge-nharia e da cultura punitiva) e da expansão, semprecedentes, que experimenta na era da globalizaçãoneoliberal; de outro, e pari passu, a problem atização dosdéficit do conceito e da dimensão da cidadania, queexperimenta, a contrario sensu, ímpar minimização.

Contrastando a estrutural desigualdade dos espaçosda pena e da cidadania (m axim izados x minimizados) e deseus respectivos potenciais (reguladores x emancipató-rios), a obra se insurge contra a continu ada conv ersão deproblemas sociais de complexa envergadura no códigocrime-pena, quando deveriam ser apreendidos e equa-cionados no espaço da cidadania, e de outros campos doDireito, apontando para a necessidade de reversão deste

processo.1 A qual foi organizada durante a primeira fase de minhas atividades dePós-Doutorado, realizado sob a direção de Eugênio Raúl Zaffaroni (junto àUniversidade de Buenos Aires, no período de abril/2003 a abril/2004) econsiste na revisão e reescritura, sistematizada, de textos que, nos últimosdo2e anos, publiquei esparsamente, na forma de artigos e capítulos de livros.Como o timoneiro que confere, no leme, o sentido do rumo a seguir, aindaque já o lenha mapeado, o esforço de recuar no tempo, ainda que às vezes

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Os dois primeiros capítulos destinam-se, pois, àdelimitação do marco teórico - lugar da fala - abordandoos conceitos de sistema penal (crim inalidade e crimina li-zação) e cidadania no senso comum e para além dosenso comum, postulando, precisamente, a sua ultrapas-sagem. Os quatro capítulos seguintes destinam-se àanálise de problemas específicos, a saber, de gênero(violência contra a mulher), terra (violência agrária) etrânsito (violência no trânsito), à luz daquele marcoteórico.

O conjunto dos textos da obra aponta para umaconstatação fundamental, ainda que não tematizada emseu âmbito. Existe uma representação simbólica profun-da, que acompanha a história da civilização e do contro-le social, e que subjaz a estruturas e organizaçõesculturais do nosso tempo (como belicismo, capitalismo,patriarcalismo, racismo) e através delas se materializa,potencializando, com seu tecido bélico, específicas bipo-laridades: esta represe ntação é o maniqueísnto, uma visãode mundo e de sociedade dividida entre o bem e o mal,e talvez em nenhum outro senso comum, como aquelerelativo à criminalidade e à cidadania, este maniqueís-mo se expresse tão nítida e intensamente; como seexpressa nos problemas específicos aqui tratados, quesão lidos, respectivamente, como luta (separatista) demulheres vitimadas contra homens violentos (quando setrata de luta de gênero), luta dos sem-terra violentos

contra Estado e proprietários vitimados (quando se tratade luta de classe), luta pela segurança no trânsito contracondutores violentos de veículos.

Com efeito, no senso comum, existem os homens debem e os homens maus, sendo os primeiros os artífices dossadios valores e da boa vida que os segundos, emalarmante expansão estariam impedindo de viver A

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A chavo decodificadora deste senso comum radicano livre-arbítrio ou na liberdade de vontade, tão caraaos liberalismos do passado e do presente. Se tudoradica no sujeito, se sua bondade ou maldade sãodeterminantes de sua conduta, as insti tuições, as estru-turas e as relações sociais podem ser imunizadas contratoda culpa. Os etiquetados como criminosos podementão ser duplamente culpabilizados: seja por obstaculi-zarem a construção de sua própria cidadania (eis quenão fazem por merecer, de acordo com a liberdade de

vontade que supostamente detêm, e a moral do traba-lho, que dela se deduz); seja por obstaculizarem aplenitude do exercício da cidadania alheia, encerradaque crescentemente se encontra no cárcere gradeado desua propriedade privada.

E na ciranda do livre-arbítrio, quanto mais se anun-cia o aumento e o alarma da criminalidade, mais seanuncia o aumento da culpabilização punitiva: o merca-

do da culpa e da responsabilidade individual e, portan-to, do Direito e do sistema penal - o espaço da pena - éinesgotável. Uma cidadania assim maniqueistamenteconstruída será perpetuamente seletiva, tão inalcançá-vel para o mundo do mal quanto de questionável con-teúdo para o acessível mundo do bem.

E é justame nte aí , na interação entre os proce ssos deconstrução social da cidadania e da criminalidade pelosistema penal que se constrói e se reproduz, a sua vez, osenso comum da violência, identificada (o polit icamentemanipulada) com violência criminal; ou seja, com acriminalidade visível. Este código hegemônico da vio-lência não casualmente coincide com a descrição dealguns crimes (contra os corpos e o patrimônio) noCódigo Penal com as lições man alescas da Criminolo

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nesta ciranda puni t iva, cr iminoso=violento=mal=pobree/ou excluído.

A mudança de paradigmas operada nas CiênciasSociais e particularmente na Criminologia, dando ori-gem à Criminologia Crítica, têm possibili tado a descons-trução e a ultrapassagem deste senso comum dacriminalidade, da cidadania e da violência, bem comodas pseudo-soluções a que conduzem, alicerçando aabertura de novas visões, novos discursos e novas práti-cas (práxis).

Com efeito, tratados, sob os auspícios do conheci-mento interdisciplinar e particularmente da Criminolo-gia Crítica, adotada aqui como marco teórico vertebral,e da categoria central da ambigüidade (que tem sidorelevada em meus escritos), os processos, simultâneos,de criminalização ou construção social da criminalida-de, pelo sistema p enal, e de cons trução social da cidad a-nia, no espaço público da vida, são vistos, param alémdaquele senso comum maniqueísta, não como intrínse-ca, mas como polit icamente contraditórios.

Enquanto a cidadania é dimensão de luta pelaemancipação humana, em cujo centro radica(m) o(s)su-jeito(s) e sua defesa intransigente (exercício de poderemancipatório), o sistema penal (exercício insti tuciona-lizado de poder punitivo) é dimensão de controle eregulação social, em cujo centro radica a reprodução deestruturas e instituições sociais, e não a proteção dosujeito, ainda que em nome dele fale e se legitime;enquanto a cidadania é dimensão de construção dedireitos e necessidades, o sistema penal é dimensão derestrição e violação de direitos e necess idade s; enq uan toa cidadania é dimensão de luta pela afirmação da igual-dade jurídica e da diferença das subjetividades; o siste-

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São processos contraditórios, então, no sentido cri-minológico crít ico de que a construção (instrumental e

simbólica) da criminalidade pelo sistema penal, incidin-do seletiva e estigmatizantemente sobre a pobreza e aexclusão social, preferencialmente a masculina, repro-duz, impondo-se como obstáculo central, à construçãoda respectiva cidadania. E por construção instrumental esimbólica designa-se, precisam ente, que o sistema pen alsomos, informalmente, todos nós, e que todos nós parti-cipamos da construção, pois ela inclui tanto a criminali-dade instrumentalmente enca rcerad a nos confins daprisão (a sua clientela real) quanto a criminalidadesimbolicamente representada no cárcere de nossa ideolo-gia penal, àquela que associa, de imediato e esterotipa-damente, pobres e negros, com marginais; marginaiscom desempregados e traficantes; sem-terra com vaga-bun dos e violentos, e assim por diante, e que re prod uz osistema penal.

Existe um macrossistema penal formal, compostopelas insti tuições oficiais de controle (Leis-Polícia-Mi-nistério Público-Justiça-Prisão)2 circundado pelas insti-tuições informais de controle (Mídia-Mercado detrabalho-Escola-Família etc.) e nós interagimos cotidia-nameante no processo, seja como operadores formais docontrole ou equivalentes, seja como senso comum ouopinião pública, que desde o cená rio de nossas vidas,sobretudo em frente à televisão (cenário em que a

construção assume a dimensão de espetáculo massivojustamente para radicalizar o medo da criminalidade e aindignação contra o Outro) julga, seleciona, aprisiona emata. E referenda que a resposta penal nunca é suficien-te para o gigante criminalidade. O mercado da culpabi-lização punitiva é inesgotável....

Nesta perspectiva a criminalização não apenas

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nia, corno responsabiliza os mesmos não-cidadãos, quereproduz, pelo infortúnio da criminalidade, vale dizer,

por sua própria criminalização, e por obstaculizar oexercício da boa cidadania: preciosa ciranda legitimado-ra e que vimos radicalizar-se a partir da década de 80 doséculo XX.

O que está a acontecer na atual fase do capitalismoglobalizado - a globalização neoliberal - tod os sab em :desemprego estrutural, radicalização da pobreza e daexclusão social (ademais do aumento da complexidadedos problemas sociais). E é precisamente porque, emparte, os produz, e porque este tem sido o preço daexpansão do capital e do mercado sem fronteiras, quenão pode resolvê-los, sequer enfrentá-los diretamente. Eé justamen te neste vazio de respostas que se deve bus carcompreender o agigantamento da resposta penal, apreferida do poder globalizado e de cuja funcionalidadepassa a depender um igual agigantamento midiático narelegitimação do sistema penal (teórica e empiricamente

deslegitimado). A mídia encarrega-se de encenar, entreo misto do drama e do espetáculo, uma sociedadecomandada pelo banditismo da criminalidade, e deconstruir um imaginário social amedrontado. À mídiaincumbe acender os holofotes, seletivamente, sobre aexpansão da criminalidade e firmar o jargão da necessi-dade de segurança pública como o senso mais comumdo nosso tempo. Como o elo mais compulsivo queunindo Nós contra o Outro (Outsiciers) agiganta por suavez a dimensão do inimigo criminalidade. Este inimigo,tornando cenicamente maior que todos os demais, con-corre para invisibilizar o enredo do poder que subjaz àforça simbólica do maniqueísmo, punitivamente reapro-priado, e concorre para invisibilizar, em definitivo, quequem se expande não é, propriamente, a criminalidade

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Com efeito, uma das características mais marcantesda globalização neoliberal é precisamente a de que

radicaliza os potenciais bélicos do maniqueísmo e tendoa seu favor o braço armado do Estado (o sistema penal)e das Nações, a tecnologia e o senso comum midiático,agiganta e banaliza tanto a guerra quanto a criminaliza-ção, que assumem absoluta prioridade sobre outrasformas, menos violentas, de controle social.

Desta forma, a globalização,3 impondo-se comonova etapa de dominação planetária, impõe um controlepenal que se orienta, simbolicamente, na dire ção de todosos problemas e instrunientalmente, na direção dos "ex-cluídos" dos benefícios da economia globalizada, tendoimpacto decisivo sobre a expansão quantitativa e quali-tativa do atual sistema penal, modelo que se globaliza,também, sobretudo sob a influência da matriz norte-americana (Movimento de Lei e Ordem e Polít ica deTolerância Zero)."1

Fortalecendo o discurso e as técnicas da guerra

contra o crime e da segurança pública5

( l impeza doespaço público e devolução das ruas aos cidadãos), ocontrole penal globalizado radicaliza a função simbólicado Direito Penal através de uma hiperinflação legislati-va, ou seja, a promessa e a ilusão de resolução dos maisdiversos problemas sociais através do penal, ao tempoem que redescobre, ao lado dos tradicionais, os novos"inimigos" (o mal) contra os quais deve guerrear (terro-ristas, traficantes, sem-teto, sem-terra, etc.) não poupan-do, ainda que simbolicamente, a própria burguesianacional (sonegadores, depredadores ambientais, cor-ruptos, condutores de veículos, etc.) , que se toma tam-bém vulnerável face ao poder globalizado do capital .3 A respeito, ver ZAFFARONI, 1997, e BAUMAN, 1999.

Movimento de Lei e Ordem é o nome, adequado na sua inadequação, que,d P lí i C i i i l i d i i

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A seletividade subsiste, como lógica estrutural defuncionamento do sistema penal, mas extrapola a sele-

ção de classe, de gênero e étnica, para alcançar a seleçãopenal e/ou extermínio daqueles que "não tem um lugarno mundo" ou que foram absorvidos pelo mercadoinformal e ilegal de trabalho, competitivo com o merca-do oficial

A expansão punitiva - maximização do espaço dapena - é apresentanda em espetacular orquestraçãojurídica, polít ica e midiática, com o mesmo absolutismocom que a globalização neoliberal se apresenta, a saber,como caminho único, seja como pretensa solução para ocombate à maximização da criminalidade e obtenção desegurança; seja como solução para uma infinidade deproblemas complexos e heteregêneos entre si - comomeio ambiente e violência contra a mulher, violência nocampo e no trânsito, lavagem de dinheiro e tráfico dedrogas, corrupção e assédio sexual - de tal modo que sepode propriamente falar de um fundamentalismo puniti-

vo, por analogia a outros de nosso tempo como oreligioso, o econômico e polít ico. E este fundamentalis-mo agudiza, por sua vez, os déficit de construção dacidadania que estão na base, no mais das vezes, daque-les problemas, dos quais, como referi, abordo três.

A perplexidade radica em que, em virtude mesmode um processo de relegitimação midiática sem prece-dentes, o Estado criminalizador - visível por exemplonos problemas agrário e de trânsito - é socialmentesustentado não apenas por setores polit icamente conser-vadores (Movimento de Lei e Ordem), mas por setoresprogressistas (como movimentos de mulheres e feminis-tas), uma vez que todos parecem crescentemente seduzi-dos pelas promessas i lusionistas de combate à violênciae proteção de direitos ofertada no crescente mercado do

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viduais e coletivos, em nível local, nacional ou global -deste processo bipolar de sobrestimação do espaço da

pena e subestimação do espa ço da cidad ania, é o próprioEstado na caricatura de Estado mínimo (neoliberal).Ora, se o Direito e o sistema penal estatais estão setornando máximos, como máximos também estão a sertornar, o Direito e os sistemas Administrativo e Tributá-rio, é porque o Estado mínimo é uma falácia. De fato, oEstado e o Direito só estão a se tornar mínimos nocampo social (Direito do Trabalho, Previdenciário), queé precisamente o campo vital , o campo mais nobre paraa construção da cidadania, do qual se retiram com amesma selvageria que colonizam e se expandem pelocampo per.al (administrativo, tributário), de modo que acaricatura do Estado mínimo equivale a sistema penalmáximo x cidadania mínima, para alguns.

Ao Estado neoliberal mínimo no campo social e dacidadania, passa a corresponder um Estado máximo,onipresente e espetacular, no campo penal. Os déficit de

dívida social e cidadania são ampla e verticalmentecompensados com excessos de criminalização; os déficitde terra, moradias, estradas, ruas, empregos, escolas,creches e hospitais, com a multiplicação de prisões, ainstrumentalidade da Constituição, das Leis e direitossociais, pelo simbolismo da Lei penal, a potencializaçãoda cidadania pela vulnerabilidade à criminalização.

As imp licações para a cida dan ia - e a dem ocra cia -são significativas. Quanto mais se expande e legitimapublicamente o sistema penal, chegando ao ponto, mui-tas vezes, do extermínio socialmente legitimado, maisobstáculos à construção da cidadania e mais riscos paraa gestão dialogai e democrática do poder, eis que obinômio exclusão-criminalização, que faz dos pobres edos excluídos socialmente os selecionados penalmente

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Estamos perante autêntica "indústria do controledo cr ime",6 que, realizando a passagem do "Estado

providência" ao " Estado penitência",7

cimenta as basesde um "genocídio em marcha", de um "genocídio emato".8

Ora, é preciso dizer não a este "genocídio emmarcha". É preciso insistir em que os códigos da violên-cia - no plural - são precisamente os códigos silenciadospelo catálogo penal e que a violência visivel é apenas asintomatologia das violências invisíveis. É preciso in-verter o senso comum para visibilizar, por ordem, aviolência do poder, das estruturas, das instituições e ahumana ao final, e somente no contexto do enredoglobal. Os códigos da violência têm que ser urgente evitalmente submetidos a outras lupas e holofotes quenão os da tecnologia midiática, cujo flash não ultrapassaa cena da dor - sangue e lágrimas - para radiografar osbraços que se armam muito aquém do humano.

E assim que esta obra aponta, reiteradamente, para

a necessidade de reverter a estrutural desigualdade dosespaços impostos pelo caminho único, para atuar (nacontramão ?) num proce sso de ma xim ização dos espa-ços da cidadania e de minimização da criminalização edo sistema penal. Nesta esteira, a construção social dacidadania deve funcionar como antítese democrático-emancipatória à construção social auto ritário-regu lado-ra da criminalidade; a maximização dos potencias vitaise democráticos da cidadania deve operar, processual-mente, no sentido da minimização dos potenciais geno-cidas da criminalização; no sentido da ultrapassagem ousuperação da cultura e da engenharia punitiva e da dore das mortes - da violência - que têm arrastado consigo,superação que é, a um só tempo, estrutural e ideológica,teórica e prática e, neste sentido, passa pela mudança de

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apenas na Ciência e na Academia, mas no senso comume na práxis do controle social informal e formal (opera-

dores do sistema penal).Estamos diante de uma luta de dupla via, queenvolve a socialização de um contradiscurso ideológicoao Movimento de Lei e Ordem, tanto através da mídia edemais mecanismos de controle social informal (desdeos desenhos animados e os brinquedos bélicos quereproduzem a lógica "mocinho x bandido" até a Escola eparticularmente as Escolas de Direito (formadoras dosenso comum jurídico); quanto através do controle pe-nal formal, implicando, aqui, a radical primazia doDireito Constitucional sobre o Direito Penal, da Consti-tuição e seus potenciais simbólicos para a efetivaçãoda(s) cidadania(s) sobre o Código Penal, da constitucio-nalização sobre a criminalização, como procuro mostrarnos problemas singulares aqui tratados.

A perspectiva é, portanto, a de expandir os espaçosde luta pela cidadania também por dentro das potencia-lidades do próprio Direito, procurando fortalecer oespaço do Direito Constitucional, sobretudo, sobre oDireito e o sistema penal Trata-se, portanto, de deslocaro leme da rota punitiva e de ressaltar a importância daconstrução de um espaço público polit izado pela via dopróprio Direito recoberto e sustentado, obviamente,pelo plano das Declarações internacionais de direitoshumanos, e conduzente a uma construção positiva dacidadania.Imperioso, pois, desde uma perspectiva transfor-madora, que a mudança paradigmática ocorrida nasCiências Sociais e particularmente na Criminologia alçeo plan o da rua (espaç o pú blico) e da tra nsfo rm açã oideológica do senso comum da criminalidade do siste-

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Certamente que, sob nova lupa, aquele senso co-mum remete a novos interrogantes e diferentes dese-nhos, conforme se trate da mulher, dos sem-terra ou dotrânsito. Por que pena (Código Penal), e não prevençãoà violência doméstica (Constituição da República Fede-rativa do Brasil) ou mediação familiar? Por que pena, enão função social da propriedade e reforma agrária eagrícola? (Constituição da República Federativa do Bra-sil) Por que multa e pena, e não educação para otrânsito? Por que piorizar o medo em detrimento dapedagogia???

O desafio da cidadania está, ininterruptamente,posto, para a academia e a rua, a teoria e a práxis, oconhecimento e a ação, dialeticamente. Há muito o queconstruir nesta direção, desde que se rompa com o sensocomum dominante, e este é o desafio democrático quehoje se impõe, sobretudo, aos que têm o poder dacriminalização stricto sensu; pois têm, igualmente, opoder de reencontrar o território da cidadania, o único

capaz de confrontar a geografia genocida do penal,porque autêntico território da construção da dignidadehumana; o território onde as lutas das mulheres, domovimento dos trabalhadores rurais brasileiros e notrânsito se inscrevem.

Ao finalizar esta apresentação, quero deixar regis-trados os meus agradecimentos à Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC), pelo precioso tempo de licen-ciamento para estudos; ao Conselho Nacional de Desen-volvimento Cient í f ico e Tecnológico (CNPq), peladecisiva importância do patrocínio às pesquisas cujosresultados aqui se consubstanciam, mas, sobretudo, peladecisiva importância para a sobrevivência e dignidadedo pesquisador brasileiro; a todas as pessoas e demaisInstituições que concorreram para a concretização de

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extensão temporal coberta por esta publicação. Meusagradecimentos, enfim, a Eugénio Raul Zaffaroni, queem meio às sucessivas responsabilidades de sua exube-rante biografia de jurista e homem público, acolheu-medesde a primeira carta de intenções para o Pós-Doutora-do, com receptividade e despojamento ímpares.

Buenos Aires, julho de 2003

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1. Do pre)conceito positivista a um novoconceito de criminalidade: pela

mudança do senso comum sobrea criminalidade e o sistema penah

1.1. Introdução

Neste artigo abordo, numa perspectiva sincrônicaantes que diacrônica (histórica), a mudança do paradig-

ma etiológico para o paradigma da reação social que aCriminologia experimentou desde a década de sessentado século passado, situando a desconstrução epistemo-lógica que o novo paradigma operou em relação aotradicional e a perm anência deste no senso com um , paraalém desta desconstrução, pela sua importante funcio-nalidade (não declarada) como ciência do controle so-ciopenal e, nesse sentido, mantenedora do status quosocial. Abordar tal mudança paradigmática implica,antes de mais nada, abordar a mudança, nuclearmentehavida em seu âmbito, no conceito de criminalidade eque conduziu a uma nova visão do sistema penal. Defato, como procuro demonstrar, o conceito corrente decriminalidade no senso comum, tributário de uma preten-sa racionalização "científica" pela Criminologia positivis-

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ta (desenvolvida com base no paradigma etiológico),não encontra, depois da desconstrução con tra ele efetuada

pela Criminologia desenvolvida com base no paradigmada reação social, nenhuma base teórica e empírica desustentação. Mas permanece hegemônico, no senso co-mum (e particularmente no senso comum jurídico dosoperadores do sistema penal) porque confere sustenta-ção ideológica ao modelo positivista de "combate àcriminalidade" através do sistema, que chega ao séculoXXI, por motivos evidentemente polít icos e não científi-cos, mais fortalecido do que nunca. Dessa forma, amudança de paradigma na ciência não tem ultrapassadoo espaço acadêmico para alçar o espaço público da rua(em sentido lato) e provocar a necessária transformaçãocultural no senso comum sobre a criminalidade e osistema penal; necessária, evidentemente, não do pontode vista da manutenção, mas da superação do atualmodelo de controle punitivo em que o sistema penal seinsere. Muitas razões justificam, penso, a atenção aquidedicada ao tema. Mas ao invés de explicitá-las - o queensejaria basicamente um outro artigo - deixo que oleitor extraia suas próprias conclusões.

1.2. O positivismo e o paradigma etiológico deCrim inolog ia: o (pre)concei to de cr im inal id a-de no senso comum

A Antropologia criminal de C. Lombroso e, a se-guir, a Sociologia Criminal de Ferri,2 const i tuem duasmatrizes fundamentais na conformação do chamadoparadigma etiológico de Criminologia, o qual se encon-2 O "L'Uom o delinqüente" de LOMB ROSO (publicado em 1876), a "SociologiaCriminale" de FERRI (publicada cm 1891) e a "Criminologia - studio sul

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tra associado à tentativa de conferir à disciplina oestatuto de uma ciência segundo os pressupostos episte-

mológicos do positivismo3

e ao fenômeno, mais amplo,de cientificização do controle social, na Europa de finaisdo século XIX.

Na base deste paradigma, a Criminologia (por issomesmo positivista) é definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade; ou seja, que tendo porobjeto a criminalidade concebida como um fenômenonatural, causalmente determinado, assume a tarefa deexplicar as suas causas segundo o método científico ouexperimental e o auxílio das estatísticas criminais ofi-ciais e de prever os remédios para combatê-la. Elaindaga, fundamentalmente, o que o homem (criminoso)faz e por cue o faz.

O pressuposto, pois, de que parte a Criminologiapositivista é que a criminalidade é um meio natural decomportamentos e indivíduos que os distinguem detodos os outros comportamentos e de todos os outros

indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade onto-lógica, preconstituída ao Direito Penal (crimes "natu-rais") que, com exceção dos chamados crimes"artificiais",'1 não faz mais do que reconhecê-la e positi-vá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar aciência destas a serviço do seu combate em defesa dasociedade.

A primeira e célebre resposta sobre as causas docrime foi dada pelo médico italiano Lombroso, quesustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causado crime é identificada no próprio criminoso. Partindodo determinismo biológico (anatômico-fisiológico) epsíquico do crime e valendo-se do método de investiga-3 Sobre a caracterização do positivismo, ver ANDRADE, 1997a, e TAYLOR,

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ção e análise próprio das ciências naturais (observação eexperimentação), procurou comprovar sua hipótese

através da confrontação de grupos não-criminosos comcriminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretu -do do sul da Itália, pesquisa na qual contou com oauxílio de Ferri , quem sugeriu, inclusive, a denomina-ção "criminoso nato". Procurou desta forma individuali-zar nos criminosos e doentes apenados anomaliassobretudo anatômicas e fisiológicas5 v is tas como cons-tantes naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipoantropológico delinqüente, uma espécie à parte do gê-

nero humano, predestinada, por seu tipo, a cometercrimes.Sobre a base dessas investigações, buscou primeira-

mente no atavismo uma explicação para a estruturacorporal e a criminalidade nata. Por regressão atávica, ocriminoso nato se identifica com o selvagem. Posterior-mente, diante das críticas suscitadas, reviu sua tese,acrescentando corno causas da criminalidade a epilepsiae, a seguir, a loucura moral. Atavismo, epilepsia eloucura moral constituem o que Vonnacke denominoude "tríptico lombrosiano".6

Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana numaperspectiva sociológica, Ferri admitiu, por sua vez, umatríplice série de causas ligadas à etiologia do crime:individuais (orgânicas e psíquicas), f ísicas (ambientetelúrico) e sociais (ambiente social) e, com elas, amplioua originária t ipificação lombrosiana da criminalidade.

Assim Ferri (1931, p. 44, 45, 49 e 80) sustentava queo crime não é decorrência do livre arbítrio, mas oresultado previsível determinado por esta tríplice or-dem de fatores que conformam a personalidade de umaminoria de indivíduos como "socialmente perigosa".Seria fundamental, pois, "ver o crime no criminoso" por-

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que ele é, sobretudo, sintoma revelador da personalida-de mais ou menos perigosa (anti-social) de seu autor,

para a qual se deve dirigir uma adequada "defesa so-cial".Daí a tese fundam ental d e que ser crimino so consti-

tui uma propriedade da pessoa que a distingue porcompleto dos indivíduos normais. Ele apresenta estig-mas determinantes da criminalidade.

Estabelece-se desta forma uma divisão aparente-mente "científica" entre o (sub)mundo da criminalida-de, equiparada à marginalidade e composta por uma"minoria" de sujeitos potencialmente perigosos e anor-mais (o "mal"), e o mundo, decente, da normalidade,representado pela maioria na sociedade (o "bem").

A violência é, dessa forma, identificada com aviolência individual (de uma minoria) a qual se encon-tra, por sua vez, no centro do conceito dogmático decrime, imunizando a relação entre a criminalidade e aviolência institucional e estrutural.

E é esse potencial de periculosidade social que ospositivistas identificaram com anormalidade e situaramno coração do Direito Penal,7 que justifica a pena comomeio de defesa social e seus fins socialmente úteis: aprevenção especial positiva (recuperação do criminosomediante a execução penal) assentada na ideologia dotratamento que impõe, por sua vez, o princípio daindividualização da pena como meio hábil para a elabo-ração de juízos de prognose no ato de sentenciar.8

Logo, trata-se de defender a sociedade desses seresperigosos que se apartam ou que aprese ntam a poten -

7 Foi GAROFALO, 1983, quem, projetando as concepções antropológicas esociológicas do positivismo para o Direito Penal, formulou o conceito de

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Foi assim que a introdução do labelling approach,devido sobretudo à influência de correntes de origemfenomenológica (como o interacionismo simbólico e aetnometodologia) na sociologia do desvio e do controlesocial e de outros desenvolvimentos da reflexão históri-ca e sociológica sobre o fenômeno criminal e o Direitopenal determinaram, no seio da Criminologia contem-porânea, a constituição de um paradigma alternativorelativamente ao paradigma etiológico: o paradigma da"reação social" (social raction approach) do "co ntr ole" ouda "definição". (Baratta, 1983, p. 147 e 1991, p. 225)

Modelado pelo interacionismo simbólico1 1 e a etno-metodologia12 como esquema explicativo da condutahumana (o construtivismo social), o labelling parte dosconceitos de "conduta desviada" e "reação social", comotermos reciprocamente interdependentes, para formular11 Direção da Psicologia Social e da Sociolinguística inspirada em CharlesCOOLEY e George H. MEAD.Do interacionismo desenvolvido por MEAD, cuja tese central pode ser resu-mida em que a sociedade é interação e que a dinâmica das instituições sociais

somente pode ser analisada em termos de processos de interação entre seusmembros, se derivaram diversas escolas dentre as quais a "Escola de Chica-go" à que pertencem LEMERT e BECKER, a escola dramatúrgica de GOFF-MAN e a Etnometodologia.O interacionismo simbólico representa uma certa superação da antinomiarígida das concepções antropológicas e sociológicas do comportamento hu-mano, ao evidenciar que não 6 possível considerar a sociedade - assim comoa natureza humana - como dados estanques ou estruturas imutáveis. A so-ciedade, ou seja, a realidade social, é constituída por uma infinidade deinterações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificaçãoconfere um significado que se afasta das situações concretas e continua aestender-se através da linguagem. O comportamento do homem é assiminseparável da "interação social", e sua interpretação não pode prescindirdesta mediação simbólica. ALVAREZ G, 1990, p. 19; DIAS e ANDRADE,1984,p. 344-5.12 Direção inspirada na sociologia fenomenológica de Alfred SHUTZ. Segun-do a etnometodologia, também, a sociedade não é uma realidade que se possaconhecer objetivamente, mas o produto de uma "construção social" obtidamediante um processo de definição e de tipificação por parte dos indivíduose grupos diversos.

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sua tese central: a de que o desvio e a criminalidade nãosão uma qualidade intrínseca da conduta ou uma enti-dade ontológica preconstituída à reação social e penal,mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinadossujeitos através de complexos processos de interaçãosocial, isto é, de processos formais e informais de defini-ção e seleção.

Uma conduta não é criminal "em si" (qualidadenegativa ou nocividade inerente) nem seu autor umcriminoso por concretos traços de sua personalidade ouinfluências de seu meio ambiente. A criminalidade serevela, principalmente, como um status atribuído a de-terminados indivíduos mediante um duplo processo: a"definição" legal de crime, que atribui à conduta ocaráter criminal, e a "seleção" que etiqueta e estigmatizaum autor como criminoso entre todos aqueles que prati-cam tais condutas.

Conseqüentemente, não é possível estudar a crimi-nalidade independentemente desses processos. Por isso,

mais apropriado que falar da criminalidade (e do crimi-noso) é falar da criminalização (e do criminalizado), eesta é uma das várias maneiras de construir a realidadesocial. (Baratta, 1982a, p. 35; Pablos de Molina, 1988, p.581-583; Hassemer, 1984, p. 81-2; Hulsman, 1986, p.127-8; Alvarez, 1990, p. 15-6 e 21)

Esta tese, da qual prov ém su a própria den om inação("etiquetamento", "rotulação"), se encontra definitiva-mente formulada na obra de Becker (1971, p. 19) nosseguintes termos: "os grupos sociais criam o desvio aofazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicarditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-lasde marginais (estranhos). Desde esse ponto de vista, odesvio não é uma qualidade do ato cometido pelapessoa senão uma conseqüência da aplicação que os

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Numa segunda aproximação, a criminalidade serevela como o processo de interação entre ação e reaçãosocial de modo "que um ato dado seja desviante ou nãodepende em parte da natureza do ato (ou seja, sequebranta ou não alguma regra), e em parte do queoutras pessoas fazem a respeito." (Becker, 1971, p. 13)

Ainda no dizer de Becker (1971, p. 14), "devemosreconhecer que não podemos saber se um certo ato vaiser catalogado como desviante até que seja dada aresposta dos demais. O desvio não é uma qualidadepresente na conduta mesma, senão que surge da intera-ção entre a pessoa que comete o ato e aqueles quereagem perante o mesmo."

Ao afirmar que a criminalidade não tem naturezaontológica, mas social e definitorial e acentuar o papelconstitutivo do controle social13 na sua construção seleti-va, o Inbelling desloca o interesse cognoscitivo e a investi-gação das "causas" do crime e, pois, da pessoa do autor eseu meio e mesmo do fato-crime, para a reação social daconduta desviada, em especial para o sistema penal.

Como objeto dessa abordagem, o sistema penal nãose reduz ao complexo estático das normas penais, mas éconcebido como um processo articulado e dinâmico de1 3 Por reação ou controle social designa-se pois, em sentido lato, as formascom que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institu-cionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes,problemáticas, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e,nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) o próprio desvio ea criminalidade como uma forma específica dele. Daí a distinção entre con-

trole social informal ou difuso e controle social formal ou institucionalizado.O primeiro é o controle exercido por instâncias que não têm uma comp etênciaespecífica para agir e são exemplos típicos dele: a Família, a Escola, a Mídia,a Religião, a Moral, etc. O segundo é precisamente o controle institucionali-zado no sistema penal (Constituição - Leis Penais, Processuais Penais e Pe-nitenciárias - Polícia-Ministério Público-Justiça-sistema penitenciário -Ciências criminais e ideologia) e por ele exercido, com atribuição normativaespecífica. Daí a denominação de sistema de controle penal, espécie do gê-

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criminalização ao qual concorrem todas as agências docontrole social formal, desde o Legislador (criminaliza-ção primária), passando pela Polícia, o Ministério Públi-co e a Justiça (criminalização secundária) até o sistemapenitenciário e os mecanismos do controle social infor-mal (família, escola, mercado de trabalho, mídia). Emdecorrência, pois, de sua rejeição ao determinismo e aosmodelos estáticos de comportamento, o labelling conduziuao reconhecimento de que, do ponto de vista do processode criminalização seletiva, a investigação das agênciasformais de controle não pode considerá-las como agên-

cias isoladas umas das outras, auto-suficientes e auto-re-guladas, mas requer, no mais alto grau, um approachintegrado que permita apreender o funcionamento dosistema como um todo. (Dias e Andrade, 1984, p. 373-4)

Nesse sentido, não apenas a criminalização secun-dária insere-se no contimium da criminalizaç ão primá ria,mas o processo de criminalização seletiva acionado pelosistema penal se integra na mecânica do controle socialglobal da conduta desviada de tal modo que para com-preender seus efeitos é necessário apreendê-lo como umsubsistema encravado dentro de um sistema de controlee de seleção de maior amplitude. Sendo uma espécie, pois,do gênero controle social, o sistema penal não realiza oprocesso de criminalização e estigmatização à margem ouinclusive contra os processos gerais de etiquetamentoque têm lugar no seio do controle social informal, comoa família e a escola (por exemplo, o fi lho estigmatizado

como "ovelha negra" pela família, o aluno como "difícil"pelo professor etc.) e o mercado de trabalho, entreoutros. (Hassemer, 1984, p. 82; Conde, 1985, p. 37)

E dessa perspectiva relativizado fica tanto o lugardo Direito e da Justiça Penal no controle social formalquanto o lugar deste em relação ao controle social

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"quem é definido como desviante?" "por que determi-nados indivíduos são definidos como tais?", "em quecondições um indivíduo pode se tornar objeto de umadefinição?", "que efeito decorre desta definição sobre oindivíduo?", "quem define quem?" e, enfim, com base emque leis sociais se distribui e concentra o poder de defini-ção? (Baratta, 1991, p. 87; Dias e Andrade, 1984, p. 43)

Daí o desenvolvimento de três níveis explicativosdo labelling approach, cuja ordem lógica procede aquiinverter:

a) um nível orientado para a investigação do impacto

da atribuição do status de criminoso na identidade dodesviante (é o que se define como "desvio secundário");1 4

b) um nível orientado para a investigação do processode atribuição do status de cr iminoso ("cr im inal izaçãosecundária" ou processo de seleção);1 5 c) um nível orien-tado para a investigação do processo de definição daconduta desviada (criminalização primária)1 6 que con-duz, por sua vez, ao problema da distribuição do poder

14 Este nível prevalece entre os autores que se ocuparam particularmente ciaidentidade e das carreiras desviadas, como Howard Becker, Edwin M. Schure Edwin M.Lemert a quem se deve o conceito de "desvio secundário" (3) queteorizado pela primeira vez em seu "Social Pathology" em 1951, foi por eleretomado e aprofundado em "Human Deviance. social problenis and socialcontrol" (1972), tendo se convertido num dos tópicos centrais do labelling.Relacionando-se com um mais vasto pensamento penalógico e criminológicocrítico sobre os fins da pena, este nível de investigação põe em ev idência quea intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade,ao invés de exercer um efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam,na maior parte dos casos, uma consolidação de uma verdadeira e própriacarreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do tratamentopenal e sobre o problema não resolvido da reincidência. De modo que seusresultados sobre o "desvio secundário" e sobre as carreiras criminosas repre-sentam a negação da concepção reeducativa da pena e da ideologia do trata-mento. BARATTA, 1991, p. 89 e 116.1 5 Tal é o processo de aplicação das normas penais pela Polícia e pela Justiça,que corresponde ao importante momento da atribuição da etiqueta de des-viante (etiquetamento ou rotulação).

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social desta definição, isto é, para o estudo de quemdetém, em maior ou menor medida, esse poder na so-ciedade. E tal é o nível que conecta o labelling com asteorias do conflito. (Baratta, 1991, p. 87; Pablos de Moli-na, 1988, p. 588, 592-3)

A investigação se desloca, em suma, dos controla-dos para os controladores e, remetendo a uma dimensãopolítica, para o poder de controlar, pois ao chamar aatenção para a importância do processo interativo (dedefinição e seleção) para a construção e a compreensãoda realidade social da criminalidad e, o labelling demons-

trou também como as diferenças nas relações de poderinfluenciam esta construção. (Hulsman, 1986, p. 127.)Assenta, pois, na recusa do monismo cultural e domodelo do consenso como teoria explicativa da gênesedas normas penais e da sociedade, que constituía umpressuposto fundamental da Criminologia positivista.17

Manifesta é, pois, a ruptura epistemológica e meto-dológica operada com a Criminologia tradicional, tradu-zida no abandono do paradigma etiológico-determinista(sobretudo na perspectiva biopsicológica individual) ena substituição de um modelo estático e descontínuo deabordagem por um modelo dinâmico e contínuo que oconduz a reclamar a redefinição do próprio objeto crimi-nológico.18

1.4. Do labelling approach à Cri min olog ia cr í t ica:a maturação do paradigma

Opera por esse caminho como se auto-atribuemseus representantes e a l i teratura em geral subscreve,um verdadeiro salto qualitativo - uma "revolução" deparadigma no sentido kuhneano - consubstanciado na

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na investigação das condições da criminalização o qual,tendo posteriores desenvolvimentos pelas teorias doconflito e dando origem à Criminologia Radical norte-americana e à Nova Criminologia inglesa e européia seuponto culminante de maturação na Criminologia Crítica.(Kuhn, 1975; Baratta, 1991, p. 167 e 1982a, p. 40-41;Bergalli, in Bergalli e Bustos Ramirez, 1983, p. 146-7;Alvarez, 1990, p. 15-6 e 31; Munoz Gonzalez, 1989; Hasse-me r, 1984, p. 84; Larrauri, 1991, p. 1; Pav arini, 19 88, p. 12 7)

Sob a denominação de Criminologia crít ica1 9 desig-na-se, assim, em sentido lato, um estágio avançado de

1 9 No âmbito da Criminologia crítica podem assim ser situados, entre outros:a) na Alemanha, especialmente vinculados à recepção do labelting approach,trabalho que está na base de fundação da Criminologia Crítica: AlessandroBARATTA, Fritz SACK, Linda SMAUS, Karl SCHUMANN, Stefan QUEN-SEL, Sebastian SCHERER, F.WERKENTIN, J.FEEST e, em geral, todos oscriminólogos agrupados em torno à organização Arbeitskreiss jun ger Krimino-logen (A.J.K) e o respectivo órgão, a revista Kriminotogishes Journal, ambasfundadas em 1969; b) no chamado "Grupo europeu" (Escandinávia, Itália):Massimo PAVARINI, Dario MELOSSI, Mario SIMONDI, Tamar PITCH, Tul-lio SPPILLI, Thomas MATHIESEN, Stanley COHEN; c) no Grupo austríaco:H. Steiner e Pilgram (Kriminalsoziologische Bibliographie); d) a Escola de Bolo-

nha de Direito Penal e Criminologia, que originariamente destinada à inves-tigação de um modelo integrado sobre a questão criminal entre Direito Penale Criminologia, prossegue numa direção mais criminológica. Nela avultamos nomes de F. BR1COLA A. BARATTA, D. MELOSSI, M. PAVARINI, M.SIMONDI e a publicação (desde 1975) da revista La questione criminale-.Rivistadi ricerca e dibatito su devianza e controle sociale, posteriormente renomeadapara Rivista Dei Dellitli e delle pene.Na América Latina surge, em 1974, em Maracaibo, o Grupo latino-americanode Criminologia Comparada, coordenado pelo Instituto de Criminologia daUniversidade de Zulia e pelo Centro de Criminologia da Universidade deMontreal (Canadá) então dirigidos, respectivamente, por Denis SZABO eLola. ANYAR DE CASTRO - cujo órgão de divulgação científica foi a RevistaCapítulo criminológico - e com o qual originariam ente interagiram diversoscriminólogos da região e do exterior, como Alessandro BARATTA - queparticipou da própria fundação do grupo - Roberto BERGALLI, Raul ZAF-FARONI, Wanda CAPELLER, Rosa DEL OLMO, entre outros, os quais têmum peso decisivo tanto para o desenvolvimento da Criminologia crítica emAmérica-Latina quanto para o desenvolvimento de uma Criminologia críticalatino-americana, que segue seu desenvolvimento, também no Brasil, comexpressiva representação adadêmica e institucional. A respeito, ver BATIS-TA 1998

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macrossociológica alça as relações de poder e p roprieda-de em que se estrutura conflit ivamente a sociedadecapitalista.

Nesta perspectiva, se a util ização do paradigma dareação social é uma condição necessária, não é condiçãosuficiente para qualificar com o crítica uma Crim inologia(Baratta, 1991, p. 225) pois:

"Mesmo na sua estrutura mais elementar, o novoparadigma implica uma análise dos processos de defini-ção e de reação social, que se estende à distribuição dopoder de definição e da reação numa sociedade, àdesigual distribuição desse poder e aos conflitos deinteresses que estão na origem desses processos." (Ba-ratta, 1983, p.147)

Assim, "Quando, ao lado da 'dimensão da definição'esta 'dimensão do poder ' é suficientemente realizada naconstrução de uma teoria, estamos em presença do maispequeno denominador comu m de todo esse pe nsamen toque podemos alinhar sob a denominação de Criminologiacrítica. (Baratta, 1983, p. 147)

A Criminologia crít ica recupera, portanto, a análisedas condições objetivas, estruturais e funcionais queoriginam, na sociedade capitalista, os fenômenos dedesvio, interpretando-os separadamente, conforme setratem de condutas das classes subalternas ou condutasdas classes dominantes (a chamada criminalidade decolarinho branco, dos detentores do poder econômico e

político, a criminalidade organizada etc.)Nesta perspectiva, "O prog resso na análise do siste-ma penal como sistema de direito desigual está consti-tuído pelo trânsito da descrição da fenomenologia dadesigualdade à interpretação dela, isto é, ao aprofunda-

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fase atual deste desenvolvimento em determinadasáreas ou sociedades nacionais)." (Baratta, 1991, p. 171)

E isto significa que a realidade social "está consti-tuída pelas relações de produção, de propriedade epoder e pela moral dominante". E legitimá-la significareproduzir ideologicamente estas relações e a moraldominante. (Baratta, 1986, p. 90)

De modo que em um nível mais alto de abstração osistema penal se apresenta "(. . .) como um subsistemafuncional da produção material e ideológica (legitima-ção) do sistema social global, isto é, das relações depoder e de propriedade existentes, mais que comoinstrumento de tutela de interesses e direitos particula-res dos indivíduos." (Baratta, 1987, p. 625)

Em definitivo, pois, é quando o enfoque macrosso-ciológico se desloca do comportamento desviante para osmecanismos de controle social dele, em especial para oprocesso de criminalização, que o momento crítico atingesua maturação na Criminologia e ela tende a transformar-se de uma teoria da criminalidade em uma teoria críticae sociológica do sistema penal. De modo que, deixandode lado possíveis diferenciações no seu interior, ela seocupa hoje em dia, fundamentalmente, da análise dossistemas penais vigentes. (Baratta, 1991, p. 167)

1 .5 . Cont r ibu ição fundam enta l da Cr im inologiada reação social e crítica: a lógica da seletivida-de como lógica estrutural de operacionalizaçãodo sistem a penal e sua relação func iona l comdominação classis ta

Detemo-nos, pois, porque fundamental, numa dasmaiores contribuições da Criminologia da reação social

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Esta seletividade do sistema penal (maioria crimi-nal, especialmente das classes altas, regularmente impu-ne - minoria pobre regularmente criminalizada) sedeve, fundamentalmente, a duas variáveis estruturais.

Em primeiro lugar, à incapacidade estrutural de osistema penal operacionalizar, através das agências po-licial e jud icial, toda a pro gra ma ção da Lei pen al, dada amagnitude da sua abrangência, pois está integralmentededicado "a administrar uma reduzidíssima porcenta-gem das infrações, seguramente inferior a 10%." (Baratta,1993, p. 49) Por outro lado, se o sistema penal concreti-

zasse o poder criminalizante programado "provocariauma catástrofe social". Se lodos os furtos, todos osadultérios, todos os abortos, todas as defraudações,todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões,todas as ameaças, todas as contravenções penais etc.fossem concretamente criminalizados, praticamente nãohaveria habitante que não fosse criminalizado. E dianteda absurda suposição - absolutamente indesejável - decriminalizar reiteradamente toda a população, torna-seóbvio que o sistema penal está estruturalmente montadopara que a legalidade processual não opere em toda suaextensão. (Zaffaroni, 1991, p. 26-7) O que significa quenão adianta inflacionar o input do sistema, através dacriação de novas leis porque há um limite estrutural aonível do out pui.

Deste ponto de vista, a impunidade, e não a crimi-nalização, é a regra no funcionamento do sistema penal

(Hulsman, 1986, p. 127, e 1993, p. 65; Baratta, 1991, p.103, e 1993, p. 49; Hassemer e Conde, 1989, p. 47).Em segundo lugar, a seletividade cio sistema penal

se deve à especificidade da infração e das conotaçõessociais dos autores, pois impunidade e criminalizaçãosão orientados pela seleção desigual de pessoas de

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Se a conduta criminal é majoritária e ubíqua, e aclientela do sistema penal é composta, "regularmente",em todos os lugares do mundo, por pessoas pertencen-

tes aos mais baixos estratos sociais, a "minoria criminal"a que se refere a explicação etiológica da Criminologiatradicional (e a ideologia da defesa social conecta a ela)é o resultado de um processo de criminalizaç ão altame n-te seletivo e desigual de "pessoas" dentro da populaçãototal, às quais se qualifica como criminosos, e não, comopretende o discurso dogmático oficial , de uma incrimi-nação igualitária de condutas qualificadas como tais. Osistema penal se dirige quase sempre contra certaspessoas, mais que contra certas condutas legalmentedefinidas como crime e acende suas luzes sobre o seupassado para julgar no futuro o fato-crime presente,priorizando a especulação de "quem" em detrimento do"que". De modo que a gravidade da conduta criminalnão é, por si só, condição suficiente deste processo, poisos grupos poderosos na sociedade possuem a capacida-de de impor ao sistema u ma qu ase que total imp un idad e

das próprias condutas criminosas. (Zaffaroni, 1987, p. 22e 32; Baratta, 1982, p. 35, 1991, p. 172, e 1993, p. 49).Enquanto a intervenção do sistema geralmente subesti-ma e imuniza as condutas às quais se relacionam com aprodução dos mais altos, embora mais difusos danossociais (delitos econômicos, ecológicos, ações da crimi-nalidade organizada, graves desvios dos órgãos esta-tais) superestima infrações de relativamente menordanosidade social, embora de maior visibilidade, comodelitos contra o patrimônio, especialmente os que têmcomo autor indivíduos pertencentes aos estratos sociaismais débeis e marginalizados. (Baratta, 1991, p. 61)

Isto significa, enfim, que imp unid ade e criminaliza-ção, em vez de serem condicionadas pelas variáveis que

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cionadas por variáveis latentes e não legalmente reconhe-cidas que reenviam à "pessoa" do autor (e da vítima).

Assim, a regularidade a que obedece a distribuição

seletiva da criminalidade tem sido atribuída às leis deum código social (second code, basic rules)23 latente inte-grado por mecanismos de seleção dentre os quais tem sedestacado a importância central dos "esteriótipos"2 4 deautores e vítimas além de "teorias de todos os dias"(teorias do senso comum) dos quais são portadores osagentes do controle social formal e informal (a opiniãopública) além de processos derivados da estrutura orga-nizacional e comunicativa do sistema penal. E semdúvida um mecanismo fundamental dessa distribuiçãodesigual da criminalidade são os estereótipos de autorese vítimas que, tecidos por variáveis geralmente associa-das aos pobres (baixo status social, cor, etc.), torna-osmais vulneráveis à criminalização: é "o mesmo estereó-tipo epidemiológico do crime que aponta a um delin-qüente a celas da prisão e poupa a outro os seus custos."(Dias e Andrade, 1984, p. 552)

Os conceitos de second code e basic rules conectamprecisamente a seleção operada pelo controle penalformal com o controle social informal, mostrando comoos mecanismos seletivos presentes na sociedade coloni-zam e condicionam a seletividade decisória dos agentesdo sistema penal num processo interativo de poderentre controladores e controlados (público), perante oqual a assepsia da Dogmática Penal para exorcizá-los

assumem toda extensão do seu artificialismo,25 pois,reconduzido ao controle social global, o sistema penalaparece como fil tro último e uma fase avançada de um2 3 Conceitos que na seqüência, respectivamente, de McNaugliton-Smith eCicourel designam a totalidade do complexo de regras e mecanismos regu-ladores latentes e não oficiais que determinam efetivamente e aplicação da

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mecanismos de criminalização tomados em particular eem seu conjunto podem ser condensados em três propo-sições que constituem a negação radical do "m ito doDireito Penal como direito igualitário" que está na baseda ideologia da defesa social.

Tais são: a) O Direito Penal não defende todos esomente os bens essenciais nos quais todos os cidadãosestão igualmente interessados e quanto castiga as ofen-sas aos bens essenciais, o faz com intensidade desigual ede modo parcial ("fragmentário"); b) a Lei Penal não éigual para todos. O status de criminal é desigualmente

distribuído entre os indivíduos; c) O grau efetivo detutela e de distribuição do status de crimino so éindependente da danosidade social das ações e da gravi-dade das infrações à lei, pois estas não constituem asprincipais variáveis da reação criminalizadora e de suaintensidade.

Considera assim que "a variável principal da distri-buição desigual do status de del inqüente parece indubi-tavelmente ser, à luz das investigações recentes, aposição ocupada pelo autor potencial na escala social."(Baratta, 1982, p. 43, nota 30)

Enfim, o aprofundamento da relação entre Direi-to/sistema penal e desigualdade conduz, em certo senti-do, a inverter os termos em que esta relação aparece nasuperfície do fenômeno descrito. Não apenas as normaspenais se criam e se aplicam seletivamente, e o desigualtratamento de situações e de sujeitos igu ais, no processo

social de definição da "criminalidade", responde a umalógica de relações assimétricas de distribuição do podere dos recursos na sociedade (estrutura vertical), mas oDireito e o sistema penal exercem, também, uma funçãoativa de conservação e reprodução das relações sociaisde desigualdade São também uma parte integrante do

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criminalidade como fenômeno social, mas apenas en-quanto definida normativamente. Na própria delimita-ção de seu objeto já se realiza, pois, uma subordinaçãoda Criminologia ao Direito Penal. E ao identificar oscriminosos com os autores das condutas legalmentedefinidas como tais e, mais do que isso, com os sujeitosetiquetados pelo sistema como criminosos, identificapopulação criminal com a clientela do sistema penal.Neste nível, sua dependência metodológica estende-seda normatividade ao resultado da própria operacionali-dade, altamente seletiva, do sistema p enal. Seu laborató-rio de experimentação que, coerentemente com ointeresse originário na investigação da criminalidadecomo fenômeno, deveria ser a sociedade, converte-se, naprática, nas prisões e manicômios. (Platt, 1980; Zaffaro-ni, 1991, p. 44; Dias e Andrade, 1984, p. 66; Pavarini,1988, p. 53-4; Pablos de Molina, 1988, p. 583).

Assim, o criminólogo positivista não conheceránunca o "fen ôm en o" cia prostitu ição, do tráfico dedrogas, do crime org anizado , etc. , pode nd o conh e-cer algumas mulheres, traficantes e mafiosos, por exem-plo, que foram selecionados pelo sistema. E isto valeindependentemente para todas as formas de criminali-dade.

Pelo que se chega "a uma conclusão verdadeira-mente paradoxal: o positivismo criminológico que haviase dirigido para a busca de um fundamento natural,ontológico, da criminalidade, contra toda sua boa inten-

ção é a demonstração inequívoca do contrário; ou seja,de que a criminalidade é um fenômeno normativo.Certamente impossível de ser conhecid o desde um pon-to de vista fenomenológico." (Pavarini, 1988, p. 54)

Suas teorias etiológicas somente podem concluir,pois por causas indissociável e exclusivamente ligadas

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ção, que aparece como o fundamento da diversidade. Ésobre os baixos estratos sociais, portanto, que recai oestigma da periculosidade e da maior tendência paradelinqüir.É precisamente essa situação de dependência naqual a Criminologia positivista se encontra na própriadefinição de seu objeto de investigação e as aporias daíresultantes, que dão lugar ao profundo questionamentode seu status científico levando a concluir que "a suapretensão de proporcionar uma teoria das causas dacriminalidade não tem justificação do ponto de vista

epistemológico". (Baratta, 1982a, p. 29, e 1983, p. 146)E isto porque uma investigação causal-naturalistanão é aplicável a objetos definidos por normas, conven-ções ou avaliações sociais ou institucionais, já que fazê-lo acarreta uma "coisificação" dos resultados destasdefinições normativas que aparecem como "coisas" queexistem independentemente delas . A "cr iminal idade",os "criminosos" são, sem dúvida, objetos deste t ipo. Esão impensáveis sem a intervenção da reação social epenal. (Baratta, 1983, p. 146)

Em síntese, pois, a aporia desta Criminologia con-siste em que ela se declara como uma ciência causal-ex-plicativa da criminalidade, exclui a reação social de seuobjeto (centrando-se na ação criminal) quando é delainteiramente dependente; ao mesmo tempo em que seapóia, aprioristicamente, numa noção ontológica da cri-minalidade. Assim, ao invés de investigar, fenomenica-

mente, o objeto criminalidade, este aparece já dado pelaclientela das prisões e dos manicômios que constituientão a matéria-prima para a elaboração de suas teoriascriminológicas, com base nas estatísticas oficiais.

A coisificação da criminalidade produzida peloparadigma etiológico comporta então como reverso da

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paradigma deveria ser indiferente para a existência doseu objeto de investigação, porque de existência ontoló-gica.

Chego, assim, a um ponto fundamental. A partirdessa desconstrução epistemológica, fica claro como aCriminologia positivista, mesmo nas suas versões maisatualizadas (através da aproximação "multifatorial"),não opera como uma instância científica "sobre" a crimi-nalidade, mas como uma instância interna e funcionalao sistema penal, desempenhando uma função imediatae diretamente auxiliar, relativamente a ele e à polít icacriminal oficial.27

Nesse sentido, não apenas coloca seu próprio saber(causal e tecnológico) a serviço dos objetivo s declarad osdo sistema, mas produz (e reproduz) o próprio discursointerno que os declara, avalizando, do ponto de vista daciência, uma imagem do sistema que é dominada poresses objetivos. A sua contribuição para a racionalizaçãodo sistema é, sobretudo, uma contribuição legitimadora

(autolegitimação oficial). (Baratta, 1983, p. 152)Verifica-se, dessa forma, uma autêntica traição cri-minológica aos pressupostos epistemológicos do positi-vismo científico.

1.7. Das promessas às funções latentes e reais daCriminologia positivista como ciência do con-trole sociopenal : pela mudança do senso co-mum so bre a cr im inal id ade e o s is tema penal

Não se trata, pois, de "explicar" causalmente acriminalidade, mas de instrumentalizar e justificar, legi-timando-a a seleção da criminalidade e a estigmatiza-

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sistema é, precisamente, a de construí-la ou geri-laseletivamente.

Com seu proceder, a Criminologia positivista con-tribui para mistificar os mecanismos de seleção e estig-matização ao mesmo tempo em que lhes confere umajustificação ontológica de base científica (uma base demarginalização científica aos estratos inferiores). Con-tribui, igualmente, para a produção e reprodução deuma imagem estereotipada e preco nceituo sa da crimina -lidade e do criminoso vinculada aos baixos estratossociais - que condiciona, por sua vez, a seletividade do

sistema penal - num círculo de representações extraor-dinariamente fechado que goza - repita-se - de umasecular vigência no senso comum em geral e nos opera-dores do sistema penal em particular.

Ao definir-se, pois, como ciência causal-explicativaa Criminologia positivista oculta o que na verdadesempre foi: uma "ciência do controle social" (Anyar deCastro, 1987, p. 22-32) que nasce como um ramo especí-fico da ciência positivista para instrumentalizá-lo elegitimá-lo.28

Tal contributo legitimador é destacado por Pavari-ni (1988, p. 49-54) ao assinalar que "foi precisamentepela aportação determinante do positivismo criminoló-gico que o sistema repressivo se legitimou como defesasocial. O conceito de defesa social tem subjacente umaideologia cuja função é justificar e racio nal izar o sistem ade controle social em geral e o repressivo em particular.

( , . .)A defesa social é portanto uma ideologia extrema-mente sedutora, enquanto é capaz de enriquecer osistema repressivo (vigente) com os atributos da neces-sidade, da legitimidade e da cientificidade."

Conseqüentemente, a sobrevivência secular dessaCriminologia e suas representações da criminalidade

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2. Do pre)conceito liberal a um novoconceito de cidadania:pela mudança do senso comumsobre a cidadania1

2.1. Introdução

Há uma década e meia realizei uma pesquisa sobrecidadania, situando-a como uma dimensão e um interro-gante de importância decisiva para a reconstrução de-

mocrática da sociedade e do Estado brasileiro.2

1 Este texto foi publicado, com algumas alterações internas, sob o títuloCidadania e democracia: repensando as condições de possibilidade da demo-cracia no Brasil a partir da cidadania. Revista Jurídica da UNOESC., n. 1,Chapecó, 1991-2; sob o título Reconstrução do conceito de cidadania. Cida-dania e iVlunicipalismo. Anais da 1' Conferência Estadual dos Advogados doPará. Santarém, OAB Seção do Pará, 1997; sob o título A reconstrução doconceito liberal de cidadania: da cidadania moldada pela democracia à cida-dania moldando a democracia. In OLIVEIRA JR. José Alcebíades (Org.). Opoder das metáforas. Homenagem aos 35 anos de docência de Luis AlbertoWarat. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1998. Foi também publi-cado sob o título Cidadania, direitos humanos e democracia: reconstruindoo conceito liberal de cidadania. In: PEREIRA E SILVA. Reinaldo. (Org.).Direitos Humanos como educão para a justiça. São Paulo, LTR, 1998.2 Tal pesquisa consiste na Dissertação de Mestrado que defendi junto aoCurso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-rina, no ano de 1987, sob o título "O discurso da cidadania: das limitações dojurídico às potencialidades do político" e publicada posteriormente sob otítulo "Cidadania: do direito aos direitos humanos " (São Paulo, Acadêmica,

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O tempo que então transcorreu se encarregou defortalecer os resultados desta pesquisa, pois talvez ne-nhum outro tema como cidadania tenha se con solida do,

na teoria e na praxis, na academia e na rua, no discursooficial e nos discursos oficiosos do cotidiano, com tama-nha força. Se uma tal perm anência p arece ser du plam en-te sintomática dos défices reais de cidadania e dopotencial emancipatório que a sua dimensão adquiriu,parecem também restar deficitários os esforços relativosà sua conceituação. É que a cidadania parece ter adqui-rindo a importância discursiva que outrora ocuparam,por exemplo, os direitos humanos e a democracia: todos- de todos os matizes ideológicos e intelectuais - falam arespeito e todos são seus defensores. Mas poucos apro-fundam a discussão sobre o que é e a própria relaçãocidadania-direitos humanos-democracia. Sem a preten-são, em absoluto, de superar o déficit enunciado, noslimites estreitos deste texto, penso ser, pelo exposto,oportuno enfrentá-lo. E o faço retomando a pesquisareferida, de forma revisionista.

É que nela trato de demonstrar, precisamente, aexistência de um conceito liberal de cidadania, forte-mente consolidado na cultura jurídica brasileira, quenecessita ser superado face a suas limitações para darconta das exigências que a cidadania implica nas socie-dades em geral e na brasileira em particular. E apontan-do os l imites analít icos e democráticos deste conceito,bem como suas funções polít icas conservadoras, deli-neio as condições de possibilidade para a formação deum novo conceito na cultura brasileira, a partir de suamaterialidade social. E ao fazê-lo enfatizo que a cidada-nia moderna, sendo uma dimensão polít ica ambígua,apresenta, simultaneamente, potenciais polít icos conser-vadores e transformadores dependendo do uso (ou

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dado momento histórico. No marco de seus potenciaistransformadores destaco, particularmente, seus poten-ciais democráticos, ou seja, a importância da práxis dacidadania para a construção democrática no Brasil paraalém da democracia representativa, situando as exigên-cias de uma cidadania assim projetada.

Nesta perspectiva reproduzo aqui, em suas l inhasessenciais, este movimento desconstrutor do velho con-ceito, reconstrutor de um novo conceito de modo queminha reflexão - e é isto que me proponho a fazer -seguirá três passos, nos quais estão também inscritosseus objetivos.

Primeiramente, delimitarei o conceito l iberal decidadania reproduzido pela cultura jurídica dominanteno Brasill,3 apontando suas l imitações, isto é, descons-truindo-o desde os seus próprios pressupostos. A se-guir, delimitarei as bases para a reconstrução doconceito de cidadania para além do liberalismo, ou seja,projetarei um conceito ampliado de cidadania, salien-tando sua relação com os direitos humanos, suas poten-cialidades polít icas democráticas para, enfim, ancorar otema da cidadania no tema da democracia e da relaçãoentre ambas, especialmente na sociedade brasileira. Eneste deslocamento conceituai procurarei demonstrarcomo há uma inversão de perspectiva na relação cidada-nia-democracia. É importante ainda referir que emborase trate de uma abordagem teórica e conceituai procura-rei, na medida do possível, apontar o fundamento histó-rico desta conceitualização.

2.2. O (pre)conceito liberal de cidadania reproduzi-do pela cultura jurídica dominante no Brasil

O conceito liberal de cidadania se institucionaliza

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referi-lo é recortar o conceito m odern o de cida dan ia queencontra seu marco mais emblemático ou simbólico -pela repercussão universal que alcançou - na Declaração

Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791.A cultura jurídica dominante no Brasil é herdeirade duas grandes matrizes (alienígenas) das quais derivasuas condições de produção e possibilidade: do positi-vismo normativista, em nível epistemológico, e do libe-ralismo, em nível polít ico-ideológico, donde resulta suacaracterização como uma cultura jurídica positivista deinspiração liberal.

Desta forma, o conceito de cidadania, que é umelemento constitutivo de tal cultura, é tributário de suasmatrizes e, em especial, do liberalismo, raz ão pela qu al éconcebida (tal como nesta matriz) com o direito à repre-sentação polít ica e o cidadão definido como indivíduonacional titular de direitos eleitorais (votar e ser votado)e do direito de exercer cargos públicos."1 Tal conceitovincula-se, por sua vez, a um modelo específico dedemocracia, fazendo com que a cidadania seja dela

dependente e inexista fora do seu interior. Trata-se dademocracia representativa ou indireta, originada damesma matriz l iberal. O conceito moderno de cidadaniaaparece, assim, umbilicalmente l igado ao conceito dedemocracia e por ele moldado.

Na realidade, portanto, estamos diante de um con-ceito dominante não apenas na cultura jurídica, mas noimaginário social e político (que, por sua vez, ela tam-bém co-constitui) , que pode ser t ido como paradigmáti-co na modernidade ocidental exercendo, inclusive, umafunção pedagógica na medida em que este mesmo con-ceito é que nos ensinou a nos emocionar diante desímbolos nacionais evocativos de um forte patriostismocom o o hino, a bandeira ou o escud o nacion ais. Estam os,

i di d i d

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te parece ser, contudo, o da ultrapassagem e mudançadeste senso comum, não apenas no âmbito da Ciência(particularmente das Ciências sociais e humanas), mas

na dimensão capilar da Rua, pois parece cada vez maissocializada a percep ção de que cidadania evoca, antesque as noções de nacional idade/direi tos pol í t icos/ele-gebilidade, a noção (igualitária) de direitos ou de direitoa ter direitos. Importante ressaltar, contudo, que a cultu-ra jurídica brasileira continua reproduzindo o conceitoliberal de cidadania, através de seus Manuais, mesmoapós a Constituição Federal de 1988, a qual dedica àcidadania um topos diferenciado em relação à tradiçãodas Constituições brasileiras, iniciando por situá-lacomo um dos fundamentos do "Estado Democrático deDireito" em que se constitui a República Federativa doBrasil (art. le, II).5

2.3. A desconstrução do conceito l iberal de cida-dania a partir de seus pressupostos: l imitesdo conceito como limites da matriz l iberal

Tendo delim itado o conceito l iberal de cida dania ,procurarei demostrar como seus l imites derivam delimitações enraizadas nos próprios pressup ostos l iberaisbásicos que o condicionam, os quais passo a abordar. Epara fazê-lo, tom o por referente a já m enc iona da Dec la-ração Francesa dos Direitos "do Homem e do Cidadão"que a partir de sua expressiva denominação vai consoli-dar a dicotomia, que até hoje não parece ter sido supera-da, entre os direitos do homem e os do cidadão.

Marx, a propósito da questão judaica, vai interro-gar esta dicotomia, indagando quem é o homem distintodo cidadão Em sentido complementar indaga se aqui

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Nos limites deste interrogante, é necessário perce-ber, antes de mais nada, que a separação ho m em /cid a-dão tem por pressuposto outra dicotomia estrutural doliberalismo, que é a separação Estado/sociedade civil(arcabouço institucional e discursivo do Estado de Di-reito capitalista) segundo a qual o Estado é identificadocom o espaço público, ou seja, com o lugar do poder e dapolítica, e a sociedade civil identificada com o espaçoprivado da vida, a saber, com o lugar da economia oudas relações econômicas (mercado) e domésticas.

Partindo desta dicotomia, o l iberalismo sustenta

unia postura antiestatal e antipolítica (retomada hojesob o neoliberalismo) que o condu z não ape nas a postu lara atuação mínima do Estado (o Estado reduzido aomínimo necessário), mas também a subestimar a exis-tência do poder e da política na sociedade civil. Destaforma produz uma drástica redução do escopo do polít i-co, que tem sua contrapartida na defesa da ampliaçãodas fronteiras do mercado, desaconselhando a açãosocial e política com base na suposição de que apenas aação econômica privada conduz ao bem-estar social (amão invisível do mercado, de Adam Smith).

Ao mesmo tempo, o l iberalismo tem por pressupos-to a valorização do indivíduo como categoria abstrata,atomizada, isto é, com autonomia referida a si, e não àclasse, grupo ou movimento social a que pertença,sendo concebido à margem das condições de existênciae produção em que se insere.

E devido justamente a estes pressupostos que aopção dem ocrática l iberal vai ser pela dem ocrac ia repre-sentativa ou indireta (que se reduz à democratização doEstado ou a uma forma de regime político), e não pelademocracia participativa, direta ou outra, que abrange-ria a democratização da sociedade civil E é por isto

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i

(Governo/Parlamento) . Ident i f icada a democracia comuma forma de regime polít ico, a democracia é reduzidaà democracia polít ico-estatal ou à democratização do

Estado. E identificada a cidadania com a representaçãopolít ica, é ela reduzida a um epifenônieno da democra-cia representativa.

O Estado detém, desta forma, o monopólio dopoder, da política e da democracia e a cidadania aparececomo instrumento para a materialização deste tripé. Poraí se percebe que a cidadania, liberal não é uma dimen-são que possua um fim em si mesma - como a emancipa-ção humana -, mas que ela foi moldada a partir dasexigências insti tucionais do modelo liberal de sociedadee de Estado possuindo, em primeira instância, um valorinstrumental. Mais especificamente, foi moldada deacordo com as exigências do modelo de democraciarepresentativa, sendo, por um lado, dele dependente, e,por outro lado, elemento indispensável ao seu regularfuncionamento.

A cultura jurídica dominante no Brasil , ao reprodu-zir tal concepção, e a ela permanecer aprisionada, pro-duz conseqüências práticas tangíveis, funcionandocomo um obstáculo à percepção e tematização amplia-das do fenômeno da cidadania no âmbito do Direito - edas Escolas de Direito - o que só se explica por umapostura polít ica conservadora.

2.4. A reconstrução do conceito de cidadania paraalém do l iberal ism o: quatro d esloca me ntosfundamenta is

O que parece fundamental, então, sem subestimar avalidade e a importância dos "direitos polít icos" é

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olhada a democracia da perspectiva participativa, subs-tantiva e pluralista.

Com efeito, assim como a democracia é moderna-mente identificada com a democracia representativa, acidadania igualmente o é com as noções de nacionalida-de e elegibilidade e com o gesto mítico e simbólico daprática eleitoral. O cidadão é o protótipo do eleitor. Eassim como a construção democrática requer a ultrapas-sagem da democracia representativa, a construção dacidadania requer a ultrapassagem do cidadão-eleitor e,mais do que isto, a própria construção democrática para

alem da democracia liberal requer a construção dacidadania para além do liberalismo.Penso, neste sentido, que os pressupostos l iberais

apontados (visão limitada do poder, do político e dademocracia e visão individualista do homem e da socie-dade) constituem o obstáculo liberal com o qual se deveromper de modo a produzir uma ruptura epistemológi-ca com a forma tradicional de conceber a cidadania, para

apreendê-la como o fenômeno muito mais amplo ecomplexo que é, a partir de sua materialidade social.Por sua vez, a apreensão deste dado fenomênico

também é complexa porque depende de um esforçotransdisciplinar que, obviamente, não pretendo esgotar.O que segue é, pois, um exercício exploratório que,reindagando pelo significado do moderno conceito decidadania, busca, na esteira deixada pelo conceito libe-ral, rediscutir suas condições de prod uçã o e possibili-dade.

Pois bem, qual momento podemos ter por referenteao reconstruir o moderno conceito de cidadania? Qualseu momento fundacional?

A meu ver este referencial é igualmente simboli

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sem-terra, dos sem-teto e tantas outras, as quais encon-tram o sentido de suas reivindicações determinado pelaforma concreta de desigualdade, sujeição e discrimina-

ção a que estão submetidos certos indivíduos enquantoassociação, e não apenas individualmente. Com efeito, oque essas diferentes formas de luta revelam é queclasses, grupos e movimentos sociais tornam-se, cadavez mais, os protagonistas da ação social e política, eque as necessidades e os conflitos extrapolam umadimensão individual ou interindividual para alcançaruma dimensão interclassista e intergrupal. O processo aque assistimos é, assim, o da coletivização dos conflitos.Paralelamente, pois, à luta pela construção individual,desenvolve-se a luta por construções coletivas da cida-dania, cuja conciliação inscreve-se no seu horizonte depossibilidades.

Desta forma, faz-se necessário pensar a cidadaniade indivíduos histórica e socialmente situados. E situa-dos em categorias, classes, grupos, movimentos sociais,e não de indivíduos atomizados, com autonomia referi-

da a si, como no liberalismo, pois é desse locus que seengendram as identidades, as diferenças e os conflitos ese criam as condições para a em ergên cia do(s) sentido(s)das cidadania. Em uma palavra, é fundamental a per-cepção do pluralismo na base da cidadania, pois suasformas de expressão são múltiplas e heterogêneas.

Assim, o horizonte de possibilidades da cidadaniana contemporaneidade é extremamente complexo e , aoextrapolar os limites da cidadania liberal e seus pressu-postos fundantes, revela o profundo descompasso destacom as exigências históricas naquela implicadas. Expli-citando tal descompasso, é possível sustentar que: 1B)enquanto o conceito l iberal de cidadania tem por pres-suposto um conceito limitado do poder da política e da

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cracia, na sociedade civil; 2g) enquanto o conceito l iberaide cidadania tem por pressuposto um conceito indivi-dualista da sociedade, que somente vislumbra uma

cidadania individual e conflitos interindivid uais, a pe r-cepção aqui delineada busca apreendê-la, também,como construção coletiva que, expressando a coletiviza-ção dos conflitos, tem por protagonistas centrais catego-rias, classes, grupos e movimentos sociais, e não apenasindivíduos atomizados; 3°) enfim, e correlativamente,para além da representação polít ica, postulada pelamatriz liberal como conteúdo da cidadania - no bojo deum modelo específico de democracia - a cidadania, talcomo aqui concebida, aponta para a participaçãopolít ica e o conjunto dos direitos humanos em sentidoamplo.

Nesta perspectiva, situaria três indicações e deslo-camentos que constituem a meu ver uma base, necessa-riamente histórica, para a reconstrução deste conceitoparadigmático de cidadania. Reconstrução que signifi-ca, na perspectiva enunciada, dinamizar, historicizar epluralizar o conceito, am pliando seus l imites.Em primeiro lugar, o deslocamento da apreensãoda cidadania como categoria estática, de conteúdo defi-nitivo, para sua apreensão como processo histórico edimensão polít ica de conteúdo mutável, mobilizadopela participação política.

É que, apreendida a partir de sua materialidadesocial, a cidadania não pode ser concebida como catego-ria monolít ica, de significado cristalizado, cujo conteú-do tenha de ser preenchido de uma vez e para sempre(tal como no liberalismo), pois se trata de uma dimensãoem movimento que assume, historicamente, diferentesformas de expressão e conteúdo, e cujo processo tem sedesenvolvido nas sociedades centrais e periféricas com

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tão de forma, mas de conteúdo que carrega a forma doque se trata aqui é de operar a metamorfose da categoriaestática e cristalizada da cidadania em uma noção passí-

vel de conhecimento somente por via do conteúdo, daprática, do processo."Este deslocamento implica dinamizar e historicizar

o conceito, que se revela na práxis.Em segundo lugar, o deslocamento da cidadania

como dimensão que engloba unicamente os direitospolít icos para dimensão que engloba o conjunto dosdireitos (e deveres) humanos, insti tuídos e insti tuintes;da cidadania reduzida à repre sentaçã o ou nela esgota da,à cidadania centrada na participação como sua alavancamobilizadora, o que envolve uma conscientização popu-lar a respeito de sua importância ou, em outras palavras,uma pedagogia da cidadania.

Com este deslocamento, busco romper com a dico-tomia homem-cidadão, tal como tematizada pelo libera-lismo, através de uma unificação de temáticas quepermita pensar os direitos (e deveres) humanos como

núcleo da dimensão da cidadania e o problema de sua(ir)realização como problema relativo à construção dacidadania, numa perspectiva polít ica em sentido amplo.E no mesmo movimento busco relativizar os direitospolít icos e a representação que aparecem, aqui, comoespécie do gênero participação, como microcosmos domacrocosmos participativo. Tal nível implica, por suavez, o deslocamento da univocidade à pluralidade desentido da cidadania.

Em terceiro lugar, o deslocamento da construçãoda cidadania individual (que remete à realização dedireitos em condições de igualdade) às construçõescoletivas e plurais de classes, grupos e movimentossociais (que reenviam à realização das diferenças e o

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criativa das diferenças, pois "... a base da cidadaniaassentada no contrato social entre supostos iguais nãomais se sustenta. Resgatar a autonomia e a pluralidade

na distribuição dos direitos e dev eres é uma necessid adeimposta pela modernidade contemporânea." (Spink,1994, p.13)

Com efeito, revisitando a fundação do modernoconcei to de cidadania, emblematizado na DeclaraçãoFrancesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, v imos comofoi construído mediante um pacto excludente, eis que setratava da cidadania do homem (masculina), jovem,branco e proprietário (Baratta, 1995). A expulsão damulher, da criança, do adolescente e do idoso, assimcomo dos não-brancos e não-proprietários, aparececomo fundadora do próprio conceito. E é esta exclusãomesma do pacto social fundador da cidadania queengendrará o processo de luta pela construção da cida-dania dos excluídos, e está na base dos movimentossociais feminista, anti-racista, dos menores, adolescen-tes e idosos, etc.

Com base nos deslocamentos propostos, é possívelchegar a uma aproximação conceituai da cidadaniacomo sendo a dimensão de part ic ipação/ inclusão na eresponsabilidade pela vida social e política (espaçopúblico local, regional, nacional, global, . . .) , e através daqual a reivindicação, o exercício e a prote ção d e d ireitos,deveres e necessidades se exterioriza enquanto processohistórico de luta pela emancipação humana, ambigüa-

mente tensionado pela regulação social.Tematizar a construção de uma nova cidadaniaimplica, nessa esteira, tematizar uma vasta complexida-de que inclui temas e problemas estruturais e tranver-sais, antigos e recorrentes, novos e inéditos, de grande

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2.5. A relação cidadania-democracia: da cidadaniamoldada pela democracia (representativa) àcidadania mo ldand o a dem ocracia (possível e

sem fim)Seja como for, é a visualização dos potenciais polí-

t icos democráticos da cidadania (concebida sob umnovo prisma) que conduz a salientar sua importânciapara a construção democrática, especialmente no Brasilcontemporâneo. Por isto, o quarto e último deslocamen-to proposto - através de uma projeção e dentro doslimites dos argumentos até aqui desenvolvidos - é o dacidadania moldada pela democracia (representativa) àcidadania moldando a democracia (possível e sem fim);da cidadania instituída pela democracia à cidadaniainstituinte da democracia: esta é a inversão de perspecti-va a que aludi introdutoriamente.

Assim, diversamente do modelo liberal, no qual acidadania existe como epifenômeno da democracia repre-sentativa, sendo moldada de acordo com suas exigên-

cias e não existindo fora dela, na sociedade brasileiraesta diretriz necessita ser invertida, e a cidadania pensa-da como dimensão fundante ou insti tuinte da democra-cia possível, para além do liberalismo. Trata-se, pois, depensar as condições de possibilidade da democracia noBrasil a partir das exigências que as diferentes lutas pelacidadania expressam e demandam.

E se a construção (plural) da cidadania não é oúnico desafio e a única problemática implicada na cons-trução democrática ela é, sem dúvida, um desafio e umaproblemática central, cujos desdobramentos são decisi-vos para responder ao interrogante sobre qual democra-cia é possível em dado momento histórico. Desta forma,o conteúdo da democracia e de suas instituições deve

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face de sua ambigüidade constitutiva, produzir-se ahegemonia de seus potenciais reguladores sobres seuspotenciais emancipatórios. O desafio da cidadania está,

ininterruptamente, posto, para a teoria e a práxis, oconhecimento e a ação, a academia e a rua, conjunta-mente.

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Imporia, por conseguinte, situar o lugar da fala, ajustificativa e a importância da abordagem enunciada, oargumento que, no marco desta abordagem priorizo

sustentar, e o instrumental teórico e empírico no qualme apoio para fazê-lo.Pode-se constatar que o movimento feminista se

debate, de longa data, em torno de duas vias mestras eum dilema básico: devemos buscar a igualdade oudevemos marcar, precisamente, a diferença em relaçãoao "masculino"? Seja como for, tanto na busca da igual

dade ou da diferença, ambas ancoradas na luta pelaemancipação feminina, o movimento não fala uma sóvoz tendo se mostrado dividido, em diversos lugares domundo, na sua opção em recorrer ou não ao sistemapenal para proteger as mulheres.3 Grosso modo, emtorno dos anos 60, o movimento de mulheres concorrecom o movimento da chamada Criminologia crít ica paraa tendência à minimização do sistema penal e especial-mente para a descriminalização das ofensas contra amoral sexual como o adultério, a sedução, a casa de

prostituição, etc. , considerando o sistema penal comoexpressão da sociedade de classes existente. Mas umaconvergência de fatores foi contribuindo, entre os anos70 e 80, para que durante o processo de liberação sexualse demarcasse no interior do movimento uma novaatitude e direção. Um deles, muito importante, foi aaparição de instituições feministas de apoio, pois acriação de Centros de acolhida para mulheres maltrata-das (criadas na Holanda em 1974) e de Delegacias deMulheres (criadas no Brasil em 1984) para receber quei-xas específicas de violência de gênero foi demonstrandoque os maus-tratos e a violência sexual contra as mulhe-res (assédios, estupros e abusos em geral) ocorriammuito mais freqüentemente do que se pensava (Beijer-

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E tais denúncias, ao ir revelando uma enormemargem da vitimação sexual feminina que permaneciaoculta (incluindo a dos maridos, pais, padrastos, chefesetc) conduziram a uma demanda pelo que denominopublicização-penalização do privado.

Explico-me. Isto significa que determinados proble-mas até pouco definidos como privados, como a violênciasexual no lar (doméstica) e no trabalho se converteram,mediante campanhas mobilizadas pelas mulheres, emproblemas públicos e alguns deles se converteram eestão se convertendo em problemas penais (crimes),mediante forte demanda (neo)criminalizadora.

A exemplo, a reforma penal espanhola de 1989pretendeu responder algumas das pretensões das mu-lheres neste sentido, incluindo como novidades, noCódigo Penal, os crimes de "violência doméstica" (art .425) e "inadimplemento de pensões" pelo ex-marido(art. 487). Pretendeu também a neutralização sexista decrimes tipicamente de gênero, como o estupro'1 (substi-tuindo a antiga redação "el que vaciera con una mujer"pela atual formulação neutra "comete violación el quetuviere acceso carnal con otra persona...", que possibilitaque a mulher seja autora, e o hom em , vítima do crime. Areforma penal canadense seguiu na mesma direção.(Larrauri, 1994a, p. 12, e 1994b, p. 95-6)

E a justificativa para esta (neo)criminalização, sob osigno da qual se realizaram, na década de 80, taisreformas penais, é a chamada "função simbólica" doDireito Penal. Os movimentos que a sustentam argúemnão estar especialmente interessados no castigo, mas,fundamentalmente, na util ização simbólica do DireitoPenal como meio declaratório de que os referidos pro-blemas são tão importantes quanto os dos homens epública ou socialmente intoleráveis. Ou seja, o que se

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meiro lugar, a discussão e a conscientização públicasacerca do caráter nocivo delas e, a seguir, a mudança dapercepção pública a respeito. Nesta esteira, o maridoque não paga a pensão alimentícia para sua ex-mulherou o chefe que assedia sexualmente a empregada pas-sam a ser vistos como criminosos. Concorda-se ainda,no universo desta argumentação feminista, que é possí-vel encontrar outros meios declaratórios mas, seguemarguindo, não se compreende porque precisamente asmulheres têm que renunciar ao meio declaratório porexcelência - o Direito Penal. E enquanto exista, é umaarena adicional onde elas devem enfrentar a batalhaexigindo reconhecimento e proteção do mesmo e forçan-do-o a adotar um tratamento não-discriminatório nemdesvalorizador da mulher.

Desta forma, o movimento feminista (europeu enorte-americano) foi que mais elaborou a necessidade deutilizar o Direito Penal de forma simbólica, a função maiscitada na década de oitenta, significando que o DireitoPenal deveria cumprir a função positiva de plasmar osvalores da nova moral feminista (Larrauri, 1991, p. 219).Particularmente no Brasil contemporâneo e porocasião da atual reforma da parte especial do CódigoPenal brasileiro de 1940 em curso, assistimos a umproceso de dupla via: ao mesmo tempo em que sediscute a descriminalização e despenalização de condu-tas tipificadas como crim es (adultério, sedu ção p or inex-periência, casa de prostituição, aborto, etc.) discute-se a

criminalização de condutas até então não criminalizadas(como violência doméstica e assédio sexual), agrava-mento de penas (como no caso de assassinato de mulhe-res) e, enfim, a redefinição de crimes sexuais como oestupro, objetivando a sua neutralização sexista. E seg-

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Mas no Brasil , quando a mesma reforma se realizauma década após e em outra conjuntura, a justificativaneocriminalizadora parece recair, diferentemente dasreformas espanholas e canadense, p. ex., na funçãoretribucionista: trata-se de punir ou castigar os homens.De qualquer modo, acredita-se também obter, comoefeito, uma mudança de consciência e ati tude masculi-nas relativamente à violência contra a mulher.

Permanece portanto difusa a resposta sobre o senti-do da proteção penal (o que buscam as mulheres com acriminalização de condutas como o assédio sexual? Oque esperam do sistema penal?) e, particularmente, sobque justificativa convivem a tendência para a minimiza-ção e desregulação penal e a tendência para a expansãoe neo-regulação penal associadas à neutralização dedelitos de gênero? Em função de que lógica se descrimi-naliza o adultério e se criminaliza o assédio, por exem-plo?

Mas há também segmentos do movimento feminis-ta que, como já referi , sustentam a necessidade dequestionar o recurso ao sistema penal, assim como aimportância de buscar meios alternativos mais sintoni-zados com os objetivos feministas dos quais o sistemapenal está bastante alheio.

Subscrevendo esta segunda postura, o argumentofundamental que pretendo sustentar aqui é, pois, oseguinte. O sistema da justiça penal, salvo situaçõescontingentes e excepcionais, não apenas é um meioineficaz para a proteção das mulheres contra a violênciasexual como também duplica (respondendo ao interro-gante formulado no tí tulo) a violência exercida contraela e divide as mulheres, sendo uma estratégia exclu-dente que afeta a própria unidade do movimento. Con-seqüentemente, nenhuma das referidas vias da

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desenvolvê-lo numa perspectiva sincrônica, pontuali-zando algumas teses que, acumuladas pelo conhecim en-to criminológico e historiográfico sobre o modernosistema penal,6 podem ser consideradas irreversíveis ealguns resultados, também já acumulados, da experiên-cia histórica e comparada do movimento feminista nocampo político-criminal e da reforma penal.

Para fundamentar, nestes termos, o argumentoenunciado, abordarei na seqüência três pontos funda-mentais: 1) o funcionamento genérico do sistema penalnas sociedades capitalistas; 2) e, em especial, relativa-mente aos crimes sexuais, tomando o estupro como

exemplo paradigmático, bem como 3) a avaliação quevem sendo feita sobre os resultados das referidas refor-mas no campo da moral sexual.

3 .2. Construção e promessas do moderno s is temapenal : as grandes l inhas de auto-legi t imaçãooficial

Fundamental, pois, iniciar revisitando quais são aspromessas básicas do moderno sistema penal, os seusdéficit de realização e a sua crise de legitimidade.

Podemos identificar duas grandes l inhas de "auto-legitimação" do moderno sistema penal, porque cons-truídas pelo próprio saber penal oficial7 ao longo daconstrução deste sistema nos séculos XVIII e XIX: atradicional legitimação pela legalidade e a legitimaçãopela utilidade.

Pela via da legalidade (centrada no subsistema da"Justiça"), o sistema penal se apresenta à sociedade6 Refiro-me à Criminologia desenvolvida no marco do paradigma da reaçãosocial, desde o labelling npproacli ou teorias do etiquetnmento até a Crimino-logia crítica e feminista cuja caracterização e resultados sob re o sistema penal

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como um exercício racionalmente programado do poderpunitivo prometendo se exercer nos estritos limites daLegalidade, da culpabilidade, da humanidade e, espe-cialmente, da igualdade jurídica; ou seja, dos princípiosdo Estado de Direito e do Direito Penal e ProcessualPenal l iberais construídos desde o Iluminismo para agarantia dos acusados.

Mas, uma vez que a racionalidade do Direito mo-derno não se fundamenta unicamente sobre seus caracte-res formais, mas requer sobretudo a instrumentalidadedo conteúdo com respeito a fins socialmente úteis (Ba-ratta, 1986, p. 82) a legalidade, representando um limitenegativo e formal do poder de punir, não esgota seudiscurso legitimador. Por isto mesmo o saber oficial,além de atribuir ao Direito Penal a função de "proteçãode bens jurídicos" universais, que interessam igualmen-te a todos os cidadãos, trata de atribuir também à penafunções socialmente úteis, consubstanciadas na duplafinalidade de retribuição (equivalente) e de prevenção(geral e especial) do crime.

z ' O sistema penal, constituído pelos apare lhos poli-cial, judicial ministerial, e prisional aparece como umsistema operacionalizado nos limites da lei, que protegebens jurídicos gerais e combate a criminalidade (o

/ "mau") em defesa da sociedade (o "bem") através daprevenção geral (intimidação dos infratores potenciaispela ameaça da pena cominada em abstrato na leipenal), e especial (ressocialização dos condenados pela

execução penal), garantindo também a aplicação iguali-t á r i a da lei penal aos infratores.- Através deste duplo eixo vim os constitu ir-se, pois,

uma ideologia extremamente sedutora (l iberal e dadefesa social) e com um fortíssimo apelo legitimador

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técnicos veio substituir o carrasco oficial do "AntigoRegime". (Focault , 1987)

Por isto mesmo esta ideologia legitimadora se man-tém constante até nossos dias e consubstancia o queBaratta (1978, p. 9-10) denomina o "mito do Direito Penaligualitário" que se expressa, então, em duas proposições:

a) O Direito Penal protege igualmente a todos oscidadãos das ofensas aos bens essenciais, em relação aosquais todos os cidadãos têm igual interesse; b) A lei penalé igual para todos, isto é, os autores de comportamentosanti-sociais e os violadores de normas penalmente sancio-nadas têm "chances" de converter-se em sujeitos do pro-

cesso de criminalização, com as mesmas conseqüências.

3.3. Desconstrução do moderno s is tema penal : dacrise de legi t imidade à ef icácia instrumentalinversa à prometida

Ao demonstrar, sobre bases teórica e empiricamen-te fundamentadas, a estrutura, a operacionalidade e asfunções do sistema penal na modernidade capitalista, asCiências Sociais contemporâneas têm promovido umaverdadeira radiografia interna, mostrando que há nãoapenas um profundo déficit histórico de cumprimentodas promessas oficialmente declaradas pelo seu discur-so oficial (do qual resulta sua grave crise de legitimidade)como o cumprimento de funções inversas às declaradas.As Ciências Sociais contemporâneas evidenciam que há,

para alem das intervenções confingêntês , um^tógicéT"êstrutürãFde operacionaflzãção do._sis. tema penal, co-—mtnTTas sociedades capitalistas centrais e p e r i f é r i c a s

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A incapacidade/ inversão prevent iva consis te , asua vez, em que as funções reais da pena e do sistemapenal não apenas têm descumprido mas sido opostas às

funções instrumentais e socialm ente ú teis d eclaradaspelo discurso oficial. A pretensão de que a pena possacumprir uma função instrumental de efetivo controle (eredução) da criminalidade e de defesa social na qual sebaseiam as teorias da pena, deve, através de pesquisasempíricas nas quais a reincidência é uma constante,considerar-se corno promessas falsificadas ou, na me-lhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveisempjricaiiiênte^Iiaratta, 1991, p. 49, e 1993,. p. 51)

Em geral está demonstrado, neste sentido, que aintervenção penal estigmatizante (como a prisão), aoinvés de reduzir a criminalidade, ressocializando o con-denado, produz efeitos contrários a uma tal ressocializa-ção, isto é, a consolidação de verdadeiras carreirascriminosas cunhadas pelo conceito de "desvio secundá-rio". A pena não previne, nem a prisão ressocializa. Ocárcere, em vez de um método ressocializador, é umfator criminógeno e de reincidência. (Baratta, 1993, p.50-1; Zaffaroni , '1989j^33; Hulsman, 1923*JX-Z2)_—

ut sentido mais profundo, contudo, a crít icaindica que a prisão não pode "reduzir" precisamenteporque sua função real é "fabricar" a criminalidade econdicionar a reincidência. Daí se explica o fracasso daspermanentes reformas ressocializadoras. As funçõesreais da prisão aparecem, assim, em uma dupla repro-dução: reprodução da criminalidade (recortando formasde criminalidade das classes dominadas e excluindo acriminalidade das classes dominantes) e reprodução dasrelações sociais de dominação. (Foucault , 1987; Cirinod S t 1981 56)

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196) ou controle seletivo da criminalidade. (Criminolo-gia da reação social e crítica).

A inca pac idad e/inv ersão resolutória do sistema

penal remete, enfim, para o lugar da vítima no sistemapenal. É que desde os séculos XII e XIII a vítima foiexcluída como sujeito atuante do processo penal e subs-ti tuída por um representante do soberano ou do Estado,com um prejuízo estrutural e irreversível para ela, eisque excluída da gestão do conflito que lhe interessadiretamente. E seja por esta expropriação estatal dodireito de a vítima co-participar no processo penal: sejaporque a violência institucional é "consubstancial a todosistema de controle social" (Munoz Conde, 1985, p.16)ou "intrínseca à ação de controle social" (Cirino, 1981, p.123) o sistema da justiça penal não pode ser considera-do, diferentemente de outras como a justiça civil , comoum modelo de "solução de conflitos" gerando, ao revés,mais problemas e conflitos do que aqueles que se pro-põe a resolver com a agravante dos seus altos custossociais. (Hulsinan, 1993, p. 91; Zaffaroni, 1989, p. 437;

1991, p. 197, 203-204 e 212-3, e Baratta, 1988, p. 6659).

3.4. Contribuição fundamental do movimento e daCrim inologia feminista: a lógica da honestid a-de como uma sublógica da selet ividade acio-nada para a criminalização sexual e sua relaçãofuncional com a dominação sexista

A irrupção do movimento feminista e a entrada emcena de mulheres no mundo de homens criminólogoscontribuiu, em primeiro lugar, para ampliar o objeto deestudo da Criminologia crítica. A tese da seletividade

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Penal um instrumento essencialmente masculino? Asuspeita, vocalizada por Mackinnon (1983, p. 644), foiprecisamente a de que "O Direito vê e trata as mulherescomo os homens vêem e tratam as mulheres."

A incorporação da perspectiva de gênero traduziu-se, assim, numa contribuição simultaneamente científicae polít ica. Científica porque contribui com a Criminolo-gia crít ica para maximizar a compreensão até entãoobtida do funcionamento do sistema penal e social.13

Política porque desvelou que sob o aparente tecnicismoe neutralidade com a qual se formulam e aplicam asnormas e os conceitos jurídicos subjaz uma visão domi-nantemente masculina. (Larrauri , 1994a, p. IX)

Talvez uma das maiores contribuições neste senti-do se situe no campo da criminalização sexual e narevelação do que denom ino, por sua vez, de uma "lógicada honest idade" como uma "sublógica" acionada pelosistema penal para a criminalização das condutas se-xuais.

Como já mencionei, ao revelar uma enorme mar-

gem oculta da violência contra as mulheres, especial-men te nas relações de parente sco e autor idade , a criaçãode Centros e Delegacias de mulheres foi decisiva na suademanda neocriminalizadora. Mas foi também - acres-cento agora - como fonte empírica de novas pesquisas eestudos, especialmente do estupro (que tomo aqui comoreferente) que corroboram três teses fundamentais daCriminologia acima enunciadas.

Em primeiro lugar, que os crimes sexuais são con-dutas majoritárias e ubíquas, e não de uma minoriaanormal. Em segundo lugar e correlativamente, que aviolência sexual não é voltada, prioritariamente, para asatisfação do prazer sexual, o que retira a culpa, insis-

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estupros ocorre dentro de um contexto de violênciafísica em vez de paixão sexual ou como meio para asatisfação sexual, pois, prosseguem, "constatamos queou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez deser principalmente uma expressão de desejo sexual,constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressarquestões de poder e ira. O estupro, então, é um atopseudo-sexual, um padrão de comportamento sexualque se ocupa muito mais com status, agressão, controle edomínio do que com o prazer sexual ou a satisfaçãosexual. Ele é comportamento sexual a serviços de neces-sidades não sexuais."

Embora, contudo, já cientificamente desfeita a mi-tologia que circunda o estupro, continua-se reproduzin-do o estereótipo do estuprador como um anormal e,numa preconcei tuação mascul ina, cont inua-se acen-tuando o encontro sexual e o coito vaginal antes que aviolência. Quanto à sua autoria o estupro é, pois, umaconduta majoritária e ubíqua mas desigualmente distri-buída, de acordo, sobretudo, com estereótipos de estu-pradores que operam ao nível do controle social formal(Lei, Dogmática, Polícia, Justiça) e informal (opiniãopública).14 É mais fácil etiquetar com o estu pro a con dutacometida por um estranho na rua, que a realizada pelochefe ou pelo marido, cuja possibilidade está, em algu-mas legislações, explicitamente excluída.1 5 (Steiner,1989, p.18)

O que nos conduz ao terceiro aspecto mencionado,a saber, o de que o sistema penal acende suas luzes,prioritariamente, sobre as pessoas envolvidas: o autor e,

A exemplo, no Código Penal brasileiro o estupro, que é um crime hediondo,é definido no art. 213 como "Co nstranger mulher à conjunçã o carnal m edianteviolência ou grave ameaça". A interpretação dogmática e jurisprudencialdominante, é a de que a conjunção carnal abrange, unicamente, o coito vagi-

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especialmente, a vítima mulher e sua reputação sexual,em detrimento da violência do fato-crime.

Por isto mesmo a referência à Vitimologia e àpessoa da vítima relacionadamente à pessoa do autor,que não se dá com a mesma intensidade em todos osprocessos de criminalização, encontra nos crimes se-xuais o lugar por excelência de sua utilização. É o quevimos, explicitamente declarado, na Exposição de Moti-vos do Código Penal Brasileiro de 1940, ao justificar aexpressão "comportamento da vítima" introduzida noartigo 59 do Código Penal Brasileiro pela reforma penalde 1984: "Fez-se referência expressa ao comportamentoda vítima erigida, muitas vezes, em fator criminógeno,por constituir-se em provocação ou estímulo à condutacriminosa, como, entre outras modalidades, o poucorecato da vítima nos crimes contra os costumes."

Mas diversos estudos demonstram, também, que sequalquer mulher pode ser vítima da violência sexual, adistribuição desta vitimação pelo sistema penal é seleti-va; que a vitimação, assim como a criminalidade, tam-

bém é uma possibilidade majoritária mas desigualmentedistribuída de acordo com estereótipos de vítimas, pois,com efeito, "a intervenção estereotipada do sistemapenal age tanto sobre a 'vít ima' , como sobre o 'delin-qüente' . Todos são tratados da mesma maneira." (Huls-man, 1993, p. 83)

Há, assim, uma lógica específica acionada para acriminalização das condutas sexuais - a que denomino"lógica da honestidade" - que pode ser vista como umasublógica da seletividade na medida em que consistenão apenas na seleção estereotipada de autores mastambém na seleção estereotipada das vítimas, relacio-nalmen te. E esta é assentada, nu clear me nte, na rep uta-

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rentemente vago.16 Trata-se, pois, da vitimação seletivadas mulheres obedecendo à proteção seletiva do bemjurídico moral sexual: só a moral das "mulheres hones-tas", maiores ou menores de idade, é protegida.

Seletividade que não se reduz, por outro lado, àcriminalização secundária, pois pode ser empiricamentecomprovada ao longo do processo de criminalizaçãodesde a criminalização primária (definições legais dostipos penais ou discurso da Lei) até os diferentes níveisda criminalização secundária (inquérito policial , proces-so penal ou discurso das sentenças e acórdãos) e amediação do discurso dogmático entre ambas.

Assini no tí tulo "Do s crimes contra os costu m es" doCódigo Penal brasileiro, diversos t ipos penais requeremque a vítima seja "mulher honesta", como posse sexualmediante fraude (art . 214), atentado ao pudor mediantefraude (art. 215), sedução (art. 216), rapto consensual(art . 220), pré-selecionando a vitimação, já que estãoexcluídas, a priori, as mulheres desonestas e, em espe-cial, as prostitutas.

E muito embora a definição legal do estupro (art.213) prescinda desta exigência, a lógica da honestidadeé tão sedimentada que "os julgamentos de estupro, naprática, operam, sub-repticianiente, uma separação entremulheres 'honestas ' e mulheres 'não honestas ' . Somenteas primeiras podem ser consideradas vítimas de estupro,apesar do texto legal." (Ardaillon, Debert, 1987, p. 35)

Desta forma, o julgamento de um crime sexual -inclusive e especialmente o estupro - não é uma arenaonde se procede ao reconhecimento de uma violência eviolação contra a l iberdade sexual feminina nem tam-pouco onde se julga um h om em pe lo seu ato. Trata-se deuma arena onde se julgam simultaneamente, confronta-d f tí i l ã d f d

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autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vidapregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a suainteira "reputação sexual" que é - ao lado do statusfamiliar - uma variável tão dec isiva para o reco nh eci-mento da vitimação sexual feminina quanto a variávelstatus social o é para a criminalização masculina.1 7

O que ocorre, pois, é que no cam po da moral sexu alo sistema penal promove, talvez mais do que em qual-quer outro, uma inversão de papéis e do ônus da prova.A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamentode uma conduta definida como crime - a ação, regrageral, é de iniciativa privada - acaba por ver-se elaprópria "julgada" (pela visão masculina da lei, da polí-cia e da Justiça) incumbindo-lhe provar que é umavítima real, e não simulada.

Tem sido reiteradamente posto de relevo como asdemandas femininas são submetidas a um intensa "her-menêutica da suspeita",1 8 do constrangimento e da hu-milhação ao longo do inquérito policial e do processopenal que vasculha a moralidade da vítima (para ver se

é ou não uma vítima apropriada), sua resistência (paraver se é ou não uma vítima inocente), reticente a conde-nar somente pelo exclusivo testemunho da mulher (dú-vidas acerca da sua credibilidade)1 9

Em suma, as mulheres estereot ipadas como "deso-nestas" do ponto de vista da moral sexual, em especial1 7 A respeito, ver a pesquisa de ARDAILLON, DEBERT, 1987, especialmentea sentença citada às páginas 24 que ilustra, exemplarmente, o estereótipo doestuprador x vítima honesta.1 8

A expressão é citada em GARL.AND, 1987, embora para outro contexto.1 9 Decisões reiteradas dos tribunais brasileiros neste sentido (como RT327/100,533/376 498/292 e 387/301) podem ser i lustradas pelas ementas queseguem: "Tratando-se de mulher leviana, cumpre apreciar com redobradoscuidados a prova da violência moral". "Tratando-se de vítima honesta, e debons costumes, suas declarações tem relevante valor. Se a vítima é leviana, a

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as prostitutas, não apen as não são cons iderad as vítimas,mas podem ser convertidas, com o auxílio das tesesvitimológicas mais conservadoras, de vítimas em acusa-das ou rés num nível crescente de argumentação queinclui elas terem "consentido", "gostado" ou "tido pra-zer", "provocado", forjado o estupro ou "estuprado" opretenso estuprador. Especialmente se o autor não corres-ponder ao estereótipo de estuprador, pois correspondê-lo é condição fundamental para a condenação.2 0

Nesta perspectiva, o second code policial e judicialnão difere, uma vez mais, do senso comum social. Osistema penal distribui a vitimação sexual feminina com

o mesmo critério que a sociedade distribui a honra e areputação feminina: a conduta sexual (Larrauri , 1994b,p.102)

E isto significa que "a vida sexual da mulher jogaum papel fundamental na forma de ser enjuizada econsiderada tanto na vida cotidiana como pelos Tribu-nais de Justiça e instituições cuja atribuição é propiciaruma correta aplicação da lei.21

Num plano mais profundo, pois, chega-se a umaimportante conclusão sobre o objeto jurídico protegidoatravés da sublógica da honestidade.

A proteção é da moral sexual dominante, e não daliberdade sexual feminina que, por isso mesmo, é per-vertida (a mulher que diz "não" quer dizer "talvez"; aque diz "talvez" quer dizer "sim".. .) , pois o sistemapenal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexua-lidade feminina e o domínio do próprio corpo. Se assim2 0 A pesquisa de ARDAILLON, DEBERT, 1987, p. 23, constata que a referidapersistência da visão do estuprador como um anormal "explica em grandeparte a má vontade dos investigadores e delegados de Polícia, que tendem aver as denúncias de estupro como uma fantasia de mulheres históricas evingativas, quando o acusado não se enquadra no modelo de um ser "anor-mal"

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o fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguaisperante a lei, e o assento seria antes no fato-crime e naviolência do que na conjunção carnal. Não é à toa queocorre o inverso. A sexualidade feminina referida ao

coito vaginal diz respeito à reprodução. E a funçãoreprodutora (dentro do casamento) se encontra protegi-da sob a forma da sexualidade honesta. De modo queprotegendo-a, mediante a proteção seletiva da mulherhonesta, (que é a mulher comprometida com o casamen-to, a constituição da família e a reprodução legítima) seprotege, latentemente, a unidade familiar e, indireta-mente, a unidade sucessória (o direito de família esucessões) que, em última instância, mantém a unidadeda classe burguesa no capitalismo.

3.5. Contr ibuição da experiência pol í t ico-cr iminale reformista acum ulada na luta fe min is tacontra a violência

Finalmente, estudos realizados depois da introdu-ção de reformas na legislação relativa aos crimes sexuaismostram efeitos bastante desalentadores para a mulher.

As reformas introduzidas no sentido de neutralizaro crime de estupro, enfatizando a "violência", revelam-se de discutível avanço desde o ponto de vista feminista.A respeito, assinala LOS (1990 e 1992, p. 20) em suaavaliação sobre a reforma canadense neste sentido que amesma foi vista como um atentado por muitas feminis-tas, já que o Direito Penal, ao seguir a lógica jurídica daigualdade e partir de um gênero neutro, produziu umadupla descontextualização.

Ao emit i r a mensagem de que "qualquer" um poderealizar o estupro obscurece qu e é um crim e caracteristi-

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estruturas sociais existirá para explicar o fato "parado-xal" de que mulheres não estupram, e que a violênciasexual, o assédio, o medo, formam parte do controlecotidiano ao qual "elas" se vêem submetidas. Adicional-

mente, o gênero neutro oculta que o que é ou nãoestupro segue-se construindo desde um ponto de vistamasculino, pois sua definição implica a "penetração doórgão masculino" excluída qualquer outra relação se-xual e só quando há uma vagina se entende cometido ocrime.

Também o efeito simbólico das mudanças legaisaparece questionável. De acordo ainda com LOS, areforma não tem tido demasiada publicidade, razão pelaqual se este era um meio de elevar consciências, estaspermaneceram praticamente inalteradas. Em segundolugar, tem sido tratada como uma questão altamenteemocional, pelo que a reação dos homens tem se fortale-cido, apresentando-se como falsos acusados por mulhe-res histéricas e desejosas. Ademais a intervenção doDireito Penal tem reafirmado a visão de que o estupro éum comportamento individual excepcional, devido a

personalidades "enfermas", ignorando a violência se-xual comum nas personal idades "norm ais" . Finalmente,tem produzido uma sensação de vitória, com a conse-qüente desmobilização dos grupos feministas.

3.6. Pontual izando o argumento: da ef icácia inver-tida do sistem a penal à du plic ação da vitim a-ção feminina

Diante do exposto, a crítica ao sistema penal admitedois níveis.

Num sentido fraco, o sistema penal é ineficaz para

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do conflito ou muito menos para a transformação dasrelações de gênero. Nesta crítica se sintetizam o quedenomino de incapacidades preventiva e resolutória dosistema penal. Incapacidade de prevenção da violência

sexual da qual o estupro, sendo o exemplo mais para-digmático, representa uma crise de grandes proporções.E incapacidade resolutória porque embora o sistemapenal confira à vítima, via de regra, nos crimes sexuais,a titularidade da ação penal (art. 225 do Código PenalBrasileiro), todo o processo expropria dela o direito doco-participar na gestão do conflito. E, portanto, decompreendê-lo ou resolvê-lo.

Num sentido forte, o sistema penal duplica a viti-mação feminina porque além de vitimadas pela violên-cia sexual as mulheres o são pela violência institucionalque reproduz a violência estrutural das relações sociaispatriarcais e de opressão sexista, sendo submetidas ajulgamento e divididas. A passagem da vítima mulherao longo do controle social formal acionado pelo siste-ma penal implica, nesta perspectiva, vivencial- toda umacultura da discriminação, da humilhação e da estereoti-

pia, pois, e este aspecto é fundamental, não há umaruptura entre relações familiares (Pai, padastro, mari-do), trabalhistas ou profissionais (chefe) e relações so-ciais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processosde comunicação social) que violentam e discriminam amulher e o sistema penal que a protege contra estedomínio e opressão, mas um contimium e uma interaç ãoentre o controle social informal exercido pelos primeirose o controle formal exercido pelo segundo.Num sentidoforte, pois, o sistema penal expressa e reproduz, doponto de vista da moral sexual, a grande linha divisóriae discriminatória entre as mulheres t idas por honestas(cidadãs de primeira categoria), que merecem respeito e

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as primeiras poderão obter do sistema penal o reconhe-cimento de sua capacidade de vitimização.

O sistema penal não pode, pois, ser um referencialde coesão e unidade para as mulheres porque atua, ao

contrário, como um fator de dispersão e uma estratégiaseletiva na medida em que as divide, recriando asdesigualdades e preconceitos sociais. E não pode ser umaliado no fortalecimento da autonomia feminina porqueprioriza o fortalecimento da unidade familiar e sucessó-ria segund o o mod elo da família patriacal, mo nog âm ica,heterossexual, destinada à procriação legítima, etc. , mo-delo este regulamentado em minúcias pelo Código Civilbrasileiro, ainda que hoje passando p or profun das trans-formações. Em definitivo, pois, ao seguir a lógica dadesigualdade, o sistema penal não pode ser visto comoparadigma da igualdade nem, por isto mesmo, comoparadigma da diferença, porque as diferenças que reco-nhece são diferenças "reguladoras" - assentadas nopreconceito, na discriminação e na estereotipia -, e nãodiferenças "emancipatórias" - assentadas em subjetivi-dades, necessidades e interesses femininos.

E como as lógicas da "seletividade" e da "honesti-dade" revelam-se como marcas estruturais do exercíciodo poder do sistema penal, a criminalização de novascondutas de cunho sexual, como o assédio, não pareceter como libertar-se delas. De modo que não apenasdeve contar com o altíssimo custo que implica para asvítimas mas também com os outros, adicionais, adverti-dos pelas próprias criminólogas feministas (Larrauri ,1991, p. 220-1), como:

1) Sexismo machista. Pouca proteção real ou simbó-lica pode esperar-se de um sistema penal dominado porhomens socializados na cultura patriarcal e impregna-dos de valores profundamente machistas. Mas ainda

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2) Preço para o ofensor: repro duç ão da seletividad ejá que o impacto do sistema penal é altamente seletivo einjusto. Só a clientela que vive em simbiose com osistema penal é reconhecida na autoria dos crimes se-xuais, segundo os aludidos estereótipos.

3) Relegitimação da forma seletiva de operar dosistema. Por isso mesmo, representa evidente relegiti-mação de um sistema em aguda crise de legitimidade.Relegitima-se o sistema penal como uma forma desolucionar os conflitos sociais em detrimento de outrosmeios alternativos.

4) Desvio de esforços em busca de alternativas.

Quando não só não cabe esperar ajuda do sistemapenal, senão que o recurso a ele pode desviar os esforçosque iriam de outro modo dirigidos a soluções maisradicais e eficazes (suscitando falsas esperanças de mu-dança dentro de e por meio dele) e que poderiamfavorecer uma maior autonomia e auto-organização dasmulheres.

O discurso feminista da neocriminalização, louvá-

vel pelas boas intenções, encontra-se, nesta perspectiva,imerso na reprodução da mesma matriz (patriarcal) deque faz a crít ica, num movimento circular, pois, emprimeiro lugar, reproduz a dependência masculina nabusca da autonomia e emancipação feminina. Ou seja, asmulheres buscam libertar-se da opressão masculina re-correndo à proteção de um sis tema dem onstradam enteclassista e sexista e crêem encontrar nele o grande Paicapaz de reverter sua orfandade social e jurídica. Ofulcro da questão parece residir, pois, no próprio senti-do desta proteção. Até que ponto é uni avanço para aslutas feministas a reprodução da imagem social damulher como vítima eternamente merecedora de prote-

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informal ao controle formal reencontra a mesma respos-ta discriminatória em outra linguagem?

Em segundo lugar, ao reproduzir o discurso e aspráticas da "luta contra" a violência sexual através do

sistema penal, não raro associados a uma declaração deguerra contra o masculino (política separatista) a estra-tégia neocriminalizadora reproduz o alcance imperialis-ta do sistema penal que, ao maximizar a conversão dosproblemas sociais em problemas penais estendeu seuimpério sobre a sociedade como um polvo estende seustentáculos sobre a areia. E, ao tentar abarcar, ao maisfino grão, o cotidiano da vida social, assumiu uma tarefaenormemente superior à sua intrínseca capacidade.

3.7. Da negatividade do Direito Penal à positivi-dade dos Direitos

A crítica ao sistema penal aqui desenvolvida nãopode contudo ser estendida, genericamente, ao paradig-ma jurídico moderno, pois há que se distinguir, primei-

ramente, entre sistema penal e Direito Penal e, a seguir,entre Direito Penal e Direitos.É que o Direito Penal constitui, diferentemente dos

demais campos do Direito (Constitucional, Civil , Traba-lhista, do Consumidor, da Criança e da Adolescência,etc.) e ainda que oriundo de um paradigma comum, ocampo, por excelência, da negatividade, da repressivida-rfe.Trata-se do campo da supressão duplicada de direi-tos, ou seja, que suprime direitos de alguém (desde opatrimônio (multa) passando pela l iberdade (prisão) atéa vida (morte) em nome da supressão de direitos deoutrem, que utiliza a violência institucional da pena emresposta à violência individual do crime.

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demais ramos do Direito podem prescindir. E o queacabou por se fragilizar, na violência seletiva e arbitráriado sistema penal - da qual decorre sua contemporâneacrise de legitimidade de legitimidade - foi o própriopoder garantidor do Direito Penal.

Os outros campos do Direito constituem, mal oubem, um campo de positividade, onde o hom em e amulher podem, enquanto "sujeitos" reivindicar, positi-vamente, direitos.

3.8. O paraíso não passa pelo sistema penal: pela

mudança do paradigma jur ídico imperial emascul ino

O fulcro da discussão parece residir, neste sentido,na crise da legitimidade que afeta o sistema penal e opróprio paradigma jurídico moderno, seus l imites epossibilidades, e na busca de novos paradigmas paraalém do "mito do paraíso" com o qual finalizo, metafori-camente, este discurso.

É que o tema e os problemas que estamos aqui adiscutir parecem remontar, de fato e incessantemente,ao mito de "Adão e Eva" que nos furtou o Paraíso. Enossas sociedades eternizaram esta perda reivindicandoincessantemente a necessidade de recuperar o Paraísoatravés das instituições nas quais ele é simbolizado. Osistema penal é, na travessia da modernidade, uma dasInstituições mas quais a Sociedade sonha o resgate de

algumas promessas do paraíso perdido e dele parecenão poder prescindir, ainda que tenha demonstrado suavirtual incapacidade de cumpri-las. As mulheres (nós?)continuam caindo na (sedutora?) tentação do sistemapenal como Eva caiu na sedutora tentação do paraíso E

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zar-se através dele. Penso que é apenas matando o mito ereinventando o paradigma jurídico, imperial e masculi-no, que podemos buscar uma simetria para a "balança"jurídica já milenar e assimetricamente interposta entre

Adão e Eva desarmando, quiçá, por caminhos maiscriativos "o sexo como arma e o corpo como alvo" daviolência.

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4, Sistema penai e cidadania feminina:da mulher como vítima à mulhercom© sujeito de construção

da cidadania1

4.1. Introdução

Vou abordar um tema central da agenda feminista:violência contra a mulher e criminalização ou controledesta violência pelo sistema penal (controle penal).

Sendo o universo da violência um universo de dor,enfrentá-lo como objeto teórico e de reflexão implica,necessariamente, um esforço de suspensão da dor - e dopróprio discurso passional - o que pode tornar nossodiscurso aparentemente muito acadêmico, muito árido,quando não cético. Mas, colocar a dor em suspenso nãoimplica, em momento algum, perdê-la de vista ou divor-ciar-se dela, porqu e é a indignação pe la dor e o prop ósi-1 Este texto foi originariamente escrito como palestra, proferida na Conferên-cia Internacional Criminologia e Feminismo, promovido pela Themis - Asses-soria Jurídica e Estudos de Gênero, em Porto Alegre, RS, em 21 de outubrode 1996. Foi posteriormente reelaborado para palestra na Ordem dos Advo-gados do Brasil, em Florianópolis, em 9 de março de 1998, relativa à soleni-dade de posse da diretoria da Associação Brasileira de Mulheres da CarreiraJurídica (ABMCJ) e evento comemorativo do Dia Internacional da Mulher.

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Dentre os inúmeros projetos de lei neste sentido emtramitação hoje no Congresso Nacional,2 destacam-se osprojetos criniinalizadores relativos a violência familiar(Projetos de Lei ne s 244 e 132, de 1995, de autoria dasDeputadas Maria Laura e Marta Suplicy). No Direito doTrabalho, cite-se o Projeto de Lei 2.493, de 1996 (deautoria da Deputada Marta Suplicy), que altera os arti-gos 482, 483 e 468 da CLT. O assédio sexual, apósintenso assédio parlamentar3 feminino, foi finalmentecriminalizado através da Lei ns 10.224 de 15 de maio de2001, como curioso anexo do não menos curioso art . 216do Código Penal. Sob a fornia ímpar (do ponto de vista

da técnica-legislativa) de "Art. 216 -A ", passa a ser crime"constranger alguém com o intuito de obter vantagemou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente dasua condição de superior hierárquico ou ascendênciainerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.Pena-detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos".

2 Projetos de Lei n" 1.674, de 1996; Projeto de Lei n® 1.807, de 1996 (D epu tad oSérgio Carn eiro); Projeto de Lei n® 4.104-A , de 1 993; P rojeto de Lei n° 4.391,de 1994 (Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a violên-cia contra a mulh er); Projeto de Lei n® 1.374-A , de 1991; P rojeto de Lei n® 59,de 1995 (Deputada Rita Camata ); Projeto de Lei n® 1.609, de 1996; Projeto deLei n° 769, de 1995 (Deputada Vanessa Felipe).3 Tive a oportunidade de participar, em maio de 1997, em Brasília-DF, deuma "mesa redonda sobre assédio sexual e violência doméstica", eventopromovido pelo Cfêmea/OAB - DF, cujo objetivo central era discutir a ela-boração do próprio tipo penal de assédio sexual. Na ocasião, e contrariam enteao próprio objetivo do encontro, manifestei-me contra a criminalização pre-tendida, sob a argumentação que desenvolvo neste e no capítulo anterior eque foi, à época, publicada no Boletim do Cfêmea (D a domesticação da violênciadoméstica: politizando o espaço privado com a positividade constitucional. Fêmea.

Brasília, ano VI - especial, jan. 1998, p. 10-11) e na Revista Discursos Sediciosos(Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 4, 2° sem., 1997, p. 99-102). Eporque estou longe de esgotar o acervo de objeções possíveis ao "crime"consumado, em 15 de maio de 2002, remeto sua continuidade para um espaçopróprio, sem antes reafirmar, que quem perde com o "crime" de assédiosexual, não são apenas os "homens", certamente os "algozes" preferenciais

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Foi o feminismo que denunciou, que além dasformas mais conhecidas de discriminação de gênero noâmbito do trabalho (como concentração de mulheres emfunção semi ou não-qualificadas, guetos profissionais,dificuldades de acesso à promoção, controle do uso dobanheiro, etc.) as trabalhadoras brasileiras sofrem umaparticular violência que atinge o seu corpo e os seusdireitos reprodutivos, ao serem obrigadas, por muitosempregadores, a apresentar, no ato da seleção ou admis-são a um cargo, um exame de laboratório que prove quenão estão grávidas, ou um atestado médico que confir-me a sua esterilização, e assim por diante.

Foi o femin ismo que tornou visível, enfim, um a d asdimensões da opressão feminina que atinge proporçõesalarmantes no país, a saber, as diversas formas deviolência sexual.

De fundamental importância, nesse contexto, foi acriação, em 1984, das Delegacias de Mulheres, parareceber queixas específicas de violência de gênero, poiselas passaram a concorrer de forma decisiva (juntamen-

te com as pesquisas empíricas que potencializaram)para construir o retrato da violência, particularmentedos maus-tratos e da violência sexual

Paulatinamente foi se descobrindo que os maus-tratos e a violência sexual ocorrem com muito maisfreqüência do que se imaginava, que cada homem podeser um agressor, que cada mulher pode ser a vítima, eque a vítima e o ofensor muito freqüentemente seconhecem. Trata-se de violências praticadas por estra-nhos, na rua, sim. Mas sobretudo, e majoritariamente,nas relações de parentesco (por pais, padrastos, mari-dos, primos), profissionais (pelos chefes) e de conheci-mento em geral (amigos). Ocorrem, portanto, na rua, no

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dos sexuais ou "anormais", mas um vínculo forte com avítima.

A revelação dos espaços e relações em que ocorre ede que a incidência majoritária da violências ocorre noespaço familiar permite por sua vez interpretar que istosucede porque, historicamente, na sociedade patriarcal,a família tem sido um dos lugares nobres, embora nãoexclusivo (porque acompanhada da Escola, da Igreja, davizinhança, etc.) do controle social informal sobre amulher. E a violência con tra a fêmea no lar, do pai aopadastro, chegando aos maridos ou companheiros, podeser vista, portanto, (contrariamente à ideologia do

agressor como expressão de uma aberração sexual),como uma expressão de poder e domínio; como umaviolência controladora.

A desocultação feminista da violência, ao ir reve-lando uma enorme margem da vitimação feminina quepermanecia oculta, foi decisiva para que determinadosproblemas, até então considerados privados (como asviolências referidas) se convertessem em problemas pú-blicos (devendo merecer a atenção do Estado), ou seja,políticos, e tendessem a se converter, a seguir, emproblemas penais (crimes), mediante forte demandafeminista criminalizadora.

Este condicionamento histórico conduziu, portan-to, o movimento feminista não apenas a inscrever oproblema da violência contra as mulheres e da impuni-dade masculina com um dos pontos centrais da agendafeminista (tema posteriormente incorporado e até coop-tado pelos partidos políticos) como a eleger o controlepenal como o mecanismo prioritário para respondê-lo.Entre a luta feminista no Brasil e a demanda criminaliza-dora a que estou me referindo, existe, pois, um pro cesso

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4.4. O sent ido do feminismo

Retomando aqui o caráter não-monolít ico do femi-nismo, a que já aludi, há uma distinção importante a serlevada em consideração, entre "as" mulheres, em suainfinita singularidade e heteregoneidade (cada mulheruma voz) e o feminismo, enquanto movimento que falaem nome delas ou expressa suas demandas, e que sópode ser designado no singular ("o") por convenção,porque não fala, ele próprio, uma só voz. Estamos,portanto, perante uma imensa heterogeneidade deenunciações. Assim corno são múltiplas as formas, físi-

cas ou simbólicas, de violência contra as mulheres,também são multiplicadas as formas pelas quais deseja-riam respondê-la. Umas gostariam de afastar seus par-ceiros dos lares; outras, de finalizar o conflito e viverpacificamente sob o mesmo teto; outras desejariam agre-di-los, abandoná-los, ou, enfim, vê-los atrás das grades.

Quando "o " movim ento responde à questão "com odomesticar a violência?" com a referida demanda pelapunição do homem que violenta (domesticação do ho-mem pelo sistema penal) ou pela repressão masculinadesta violência está subjacentemente a postular o deslo-camento da gestão da violência do espaço tradicional-mente definido como privado (a domesticidadefamiliar) para o espaço definido como público (e esta-tal); o deslocamento do controle informal materializadona família para o controle social formal materializado nosistema penal (Lei-Polícia-Ministério Público-Justiça-sistema penitenciário). E está a privilegiar, dentre outrastantas, uma política criminal de resposta aos problemasde gênero.

Se o camp o em que a dem and a an cora é, portan to, o

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parece que tal base é a punição. O que conduz, a meuver, a uma situação paradoxal. Essa demanda pelosistema acaba por reunir o movimento de mulheres, queé um dos movimentos mais progressistas do País, com

um dos movimentos mais conservadores e reacionários,que é movimento de "Lei e ordem". Ambos acabamparadoxalmente unidos por um elo, que é mais repres-são, mais castigo, mais punição e, com isso, fortalecemas fileiras da panacéia geral que vivemos hoje em maté-ria de política criminal.

4 .6. Problematizando os pressupostos

Fundamental, pois, problematizar ambos os pres-supostos sobre os quais aparece latentemente fundada ademanda criminalizadora: o significado da violência e osignificado da proteção penal.

4.6.1. O significado da violênciaCom apoio na mais consistente literatura crítica

sobre a violência e o sistema penal, reconhecer quevivemos numa sociedade com valores patriarcais naqual os homens usam da violência para controlar asmulheres e submetê-las à sua dominação, não implicareessencializar a violência (é sempre masculina), poisela pode ser, e freqüentemente o é, um jogo relacional. Acondição de subalternidade de que compartilham nãodeve obscurecer que as mulheres agem, condenam,

exigem e, não raro, agridem, nos relacionamentos fami-liares. Decodificar tais comportamentos como reação oureprodução pode redundar numa eficácia invertida; ouseja, antes que contribuir para uma transformação, man-ter a estrutura básica que condiciona a violência Nesta

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da heterossexualidade. É que casam ento s h om ossex uaistêm revelado o mesmo problema (Gregori, 1993; Grossi,1996; Xavier, 1996).

4.6.2. O significado da proteção penal6

Em segundo lugar, redimensionar um problema ereconstruir um problema privado como um problemapúblico ou social, não significa que o melhor meio deresponder a ele seja convertê-lo, quase que automatica-mente, em um problema penal, ou seja, em um crime.Ao contrário, a conversão de um problema privado emum problema social, e cleste em um problema penal, éuma trajetória de alto risco, pois, como vimos afirman-do, regra geral eqüiva le a dup licá-lo, ou seja, s ubm etê-loa um processo que desencadeia mais problemas e confli-tos do que aqueles a que se propõe resolver, porque osistema penal também transforma os problemas comque se defronta, no seu específico microcosmos deviolência e poder.

Quero falar, então, da ineficácia e cios riscos dessaforma de luta pela construção da cidadania feminina no

Brasil. E não podemos fazer mais, aqui, do que exporuma hipótese, que é a hipótese central da pesquisa quedesenvolvi, sob o patrocínio do CNPq, intitulada "Siste-ma da Justiça Penal e violência sexual contra as mulhe-res: análise de julgamento de crimes sexuais emFlorianópolis, na década de oitenta."

Esta pesquisa parte cia análise teórica e empírica dofuncionamento do sistema da Justiça Penal relativamen-te à violência sexual contra a mulher para sustentar econcluir o seguinte: o sistema penal (salvo situaçõescontingentes e excepcionais) não apenas é um meioineficaz para a proteção das mulheres contra a violência(particularmente da violência sexual, que é o tema da

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da contra elas e as divide, sendo uma estratégia exclu-dente que afeta a própria unidade do movimento. Istoporque se trata de um subsistema de controle social,seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres

e porque é, ele próprio, um sistema de violência institu-cional, que exerce seu poder e seu impacto tambémsobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher asua complexa fenomenologia de controle social (Lei,Polícia, Ministério Público, Justiça, prisão) que repre-senta, por sua vez, a culminação de um processo decontrole que certamente inicia na família, o sistemapenal duplica, ao invés de proteger, a vitimação femini-na, pois além da violência sexual representada pordiversas condutas masculinas (como estupro, atentadosviolentos ao pudor, assédio, etc.) , a mulher torna-sevítima da violência institucional plurifacetada do siste-ma, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandestipos de violência estrutural da sociedade: a violênciaestrutural das relações sociais capitalistas (que é a desi-gualdade de classes) e a violência das relações patriar-cais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando

os estereótipos inerentes a estas duas formas de desi-gualdade, o que é particularmente visível no campo damoral sexual.

Mais especificamente ainda, a hipótese com quetrabalho é a de que: 1") num sentido fraco, o sistemapenal é ineficaz para proteger as mulheres contra aviolência porque, entre outros argumentos, não previnenovas violências, não escuta os distintos interesses dasvítimas, não contribui para a compreensão da própriaviolência sexual e a gestão do conflito e, muito menos,para a transformação das relações de gênero. Nestacrít ica se sintetiza o que vimos denominando de incapa-cidades preventiva e resolutória do sistema penal. 2S)

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vítimas, de acordo com sua reputação pessoal. No casodas mulheres, de acordo com sua reputação sexual,estabelecendo uma grande linha divisória entre as mu-lheres consideradas "honestas" (do ponto de vista da

moral sexual dominante), que podem ser consideradasvítimas pelo sistema, e as mulheres "desonestas" (dasquais a prostituta é o modelo radicalizado), que osistema abandona na medida em que não se adequamaos padrões de moralidade sexual impostas pelo pa-triarcalismo à mulher. A passagem da vítima mulher aolongo do controle social formal acionado pelo sistemapenal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma

cultura da discriminação, da humilhação e da estereoti-pia, pois, e este aspecto é fundamental, não há umaruptura entre relações familiares (pai, padastro, mari-do), trabalhistas ou profissionais (chefe) e relações so-ciais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processosde comunicação social) que violentam e discriminam amulher e o sistema penal que a protege contra estedomínio e opressão, mas um continuum e uma interaçãoentre o controle social informal e xercid o pelos prim eirose o controle formal exercido pelo segundo.

O sistema penal não apenas é estruturalmente inca-paz de oferecer alguma proteção à mulher, como a únicaresposta que está capacitado a acionar - o castigo - édesigualmente distribuído e não cumpre as funçõesintimidatória e simbólica que se lhe atribui. Em suma,tentar a domesticação da violência com a repressãoimplica exercer, sobre um controle masculino violentode condutas, um controle estatal tão ou mais violento;implica uma duplicação do controle, da dor e da violên-cia inútil.

Conseqüentemente a criminal ização de novas con-

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tas .t resposta penal, mediado pelo significado da vio-lência, não parece haver relação emanc ipatória possível.

Também é importante aduzir que a própria expe-riência em nível internacional sobre as reformas penais

criminalizantes produzidas pelo feminismo (a exemplodas reformas espanhola e canadense) t iveram resultadosaltamente frustrantes para as mulheres, se confrontadoscom suas expectativas originárias. Por último, ao relegi-timar-se o sistema penal como uma forma de resolver osproblemas de gênero, produz-se um desvio de esforçosdo feminismo que iria, de outro modo, dirigido a soluçõesmais criativas, radicais e eficazes, suscitando falsas es-peranças de mudança por "dentro" e "através" do siste-ma.

Em suma, enquanto segmentos majoritários do mo-vimento feminista insistem na demanda repressiva,como resposta à violência contra a mulher, o sistemapenal responde como? Transitando da violência insti tu-cional, da sua violência seletiva e da impunidade àtrivialização dos conflitos femininos. Enquanto se dáesse processo, o que subsiste ao final é o que chamaria

de uma "Vitimologia pragmática" que não tem tidoeficácia frente ao problema básico que enfim subsiste eque é o problema com o qual todos nós nos preocupa-mos.

4.7. Da mulher como vítima à mulher como sujeitode construção da cidadania

O discurso feminista criminalizador, louvável pelasboas intenções e pelo substrato histórico, parece encon-trar-se, nessa perspectiva, imerso na reprodução damesma matriz patriarcal de que faz a crítica num

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da opressão masculina (traduzida em diferentes formasde violência) recorrendo à proteção de um sistemademonstradamente classista e sexista e crêem encontrarnele o grande pai capaz de reverter sua orfandade social

e jurídica.O fulcro da questão parece residir, pois, no própriosentido dessa proteção. Resta questionar, nesta esteira, avalidade já não da criminalização masculina, mas daprópria vitiniiznção feminina como espaço de luta; atéque ponto é um avanço para as lutas feministas areprodução da imagem social da mulher como vítima,eternamente merecedora de proteção masculina, seja dohomem ou do Estado? É óbvio que nós somo s vitima das,mas até que ponto é produtivo, é progressista para omovimento, a reprodução social clessa imagem da mu-lher como vítima recorrendo ao sistema penal? ou, emoutras palavras, de que adianta correr do s braços v iolen-tos do homem (seja marido, chefe ou estranhos) paracair nos braços cio Estado, institucionalizado no sistemapenal, se nesta corrida do controle social informal aocontrole formal, as fêmeas reencontram a mesma res-posta discriminatória em outra l inguagem?

E resta questionar, enfim, a razão pela qual asmulheres, tendo conq uistad o, ao longo cios anos 80, umasignificativa cidadania constitucional "de papel", en-quanto sujeitos, concen tram hoje, na década de 90, suasenergias emancipatórias no campo da repressividade.

Com efeito, a Constituição Federal Brasileira de1988 é uma expressão desta con quista, p roduto d as lutas

feministas e nela encontra-se positivado, entre outrasimportantes conquistas, a cio artigo 226, que lemos inverbis:

"Art. 226: A família, base da sociedade, tem espe-

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Se o Estado se compromete, juridicamente, a estarpresente na ora de proteger a família e a cumprir umafunção preventiva da própria violência doméstica, por-que se abandona este espaço de luta - forjando mecanis-

mos para o cumprimento das promessas estatais - e sereivindica a presença repressiva do Estado, ou seja, nahora de punir?

Mas, ainda que o movimento feminista não desejerenunciar ao retribucionismo e ao impacto, pretensa-mente positivo da punição, não é demasiado lembrarque o Direito Civil e o Direito do Trabalho contemplamsançõe s de caráter indeniza tório, de ord em financ eira emoral que, mal ou bem, podem redundar em algumaresposta mais positiva para as mulheres. Há que sediferenciar, portanto, um espaço de luta jurídica centra-do no Direito Penal e nos outros ramos do Direito.

É que o Direito Penal constitui, diferentemente dosdemais campos do Direito (Constitucional, Civil , Traba-lhista, do Consumidor, da Criança e da Adolescência,etc.) e ainda que oriundo de um paradigma comum, ocampo, por excelência, da negatividade, da regressividade.Trata-se do campo da supressão duplicada de direitos,ou seja, que suprime direitos de alguém (desde o patri-mônio (multa) passando pela l iberdade (prisão) até avida (morte) em nome da supressão de direitos deoutrem, que utiliza a violência institucional da pena emresposta à violência das condutas definidas como crime.Os outros campos do Direito constituem, mal ou bem,um campo de positividade, onde o hom em e a mu lherpodem, enquanto "sujeitos", reivindicar, positivamente,direitos.

Com a alusão a esta especificidade, quero reafirmaro argumento. Considerando que a luta feminista tempassado necessariamente pelo Direito e a Constituição

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Nesta esteira, considero que a arena jurídica maisapropriada para a luta é a do Direito Constitucionalporque, diferentemente do Direito Penal, que constitui ocamp o, por excelência, da negatividade, da repressividade e

que tem (re)colocado as mulheres na condição de víti-mas-, o Direito Constitucional constitui u m cam po depositividade, com o potencial recolocá-las na cond ição desujeitos. Por sua vez, a um excesso de concentração deenergias feministas no campo da negatividade corres-ponde um profundo déficit de lutas e resultados nocampo da positividade.

Trata-se, portanto, de deslocar o leme da luta jurí-dica e de ressaltar a importância da construção de umespaço público polit izado pelas mulheres como sujeitospela via da positividade dos Direitos, particu larm ente doDireito Constitucional (recoberto e sustentado, obvia-mente, pelo plano das Declarações internacionais dosdireitos da mulher) e conduzente a uma construçãopositiva (e não defensiva) da cidadania. E enfren tar-secomo sujeito implica, preliminarmente, se autopsicana-lizar e decodificar os signos de uma violência relacional,quest ionando nossa auto-imagem de mulheres sempreviolentadas, para construir por dentro dos universosfeminino/masculino e do cotidiano da sua conflituosi-dade, o cotidiano da emancipação.

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Sistema penai e cidadania n© campo:a construção social dos conflitosagrários como criminalidade1

5.1. Introdução

Procurarei desenvolver aqui o argumento que se-gue. Encontra-se em curso, na sociedade brasileira con-temporânea, um processo de construção social dosconflitos agrários (sintomáticos da macroestrutura dadesigualdade) como conflitos criminais (criminalidade),com a conseqüente responsabilização penal (individual)dos "invasores" de terra e a concorrente responsabiliza-ção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra(MST), visto como o mentor intelectual de uma açãocriminosa que avulta a "Lei e a O rd em " no País. Inversa-mente, é no pólo da vitimação que as instituições esta-tais e os proprietários de terra são recolocados.

Embora, pois, seja o mecanismo menos adequado,verifica-se, de fato, a colonização do problema agráriopelo controle penal, que aparece com absoluta centrali-dade e hegem onia sobre outros meca nism os interpreta-tivos e resolutórios (porque contro le penal em vez de

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reforma agrária?); o que só se explica mediante umajustificativa reguladora e conservadora do stntus quo.

As conseqüências mais significativas são, em pri-meiro lugar, a descontextualização e despolit ização des-

tes conflitos com o conseqüente esvaziamento de suahistoricidade e imunização da violência2 estrutural einstitucional, pela sua existência. De outra parte, aoencerrar a complexidade destes conflitos (que estavamem estágio de latência controlada) no cód igo crime -penae ir construindo, seletivamente, uma criminalidade pa-trimonial rural (analogamente à construção históricaseletiva da criminalidade patrimonial urbana) este pro-cesso provoca a duplicação da violência contra os "inva-sores criminalizados", revelando a profunda conexãofuncional entre o controle penal e a estrutura social. Háuma dolorosa analogia entre os processos de exclusãona rua e no campo; entre os sem-teto e os sem-terra e,sem dúvida, a hegemonia do controle penal representaum forte obstáculo democrático à construção da cidada-nia dos excluídos no campo. No universo da "polít icacomo espetáculo" em que esta construção se insere, sãoindubitavelmente os holofotes da mídia (falada e escri-ta) que, em simbiose com o sistema penal, vêm desem-penhando uma função ideológica fundamental. Odiscurso dominante sobre a violência no meio rural é,portanto, socialmente construído em interação com opoder da mídia falada e escrita, sobretudo televisiva(jornais de grande audiência e circulação nacional elocal, além de programas políticos, etc.), cujas imagens e

opinião publicadas têm, como se sabe, significativopoder sobre a formação da opinião pública.

2 Considerando uma fenomenologia global da violência, esta é aqui com-did ã d id d i i l ã

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5.2. A construção social da criminalidade pelo sis-tema penal

A tese da construção social da criminalidade, que

aqui estou a utilizar como referencial de análise, partedos conceitos de "conduta desviada" e "reação ou controlesocial", como termos reciprocamente ind epen dentes, parasustentar que o desvio e a criminalidade não são umaqualidade intrínseca da conduta ou uma entidade onto-lógica preconstituída aos controles social e penal, masuma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados su-jeitos através dos processos de interação social, ou seja,através dos processos de definição e seleção realizadospelo sistema penal em interação com o controle socialinformal. Uma conduta não é criminal "em si" ou intrin-secamente criminosa (embora possa ser consideradaintrínseca ou socialmente negativa) nem seu autor umcriminoso por concretos traços de sua personalidade ouinfluência de seu meio-ambiente como sustenta até hojeo paradigma et iológico de Criminologia enraizado,diga-se, no senso comum. Não existe uma criminalidadea priori, cuja existência seja ontológica, anterior e inde-pendente da intervenção do sistema penal, que reagiriacontra ela, visando combatê-la e gerar segurança nasociedade.

Mas é a própria intervenção do sistema (autênticoexercício de poder, controle e domínio) que, ao reagir,constrói, co-constitui o universo da criminalidade (daíprocesso de criminalização) mediante: a) a definiçãolegal de crimes pelo Legislativo, que atribui à conduta ocaráter criminal, definindo-a (e, com ela, o bem jurídicoa ser protegido) e apenando-a qualitativa e quantitativa-mente e b) a seleção das pessoas que serão etiquetadas,

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O sistema penal é, portanto, constitutivo da própriaconstrução social da criminalidade, que se revela comouma realidade socialmente construída através do pro-cesso de criminalização seletivo por ele acionado. Assim

sendo, mais apropriado que falar de criminalidade ecriminosos é falar de criminalização e criminalizados.Pois bem, os conceitos de sujeito e responsabilida-

de são conceitos-chaves para a compreensão de como osistema penal constrói (legal, dogmática e ideologica-mente) o conceito e o universo da criminalidade. Consi-derando os indivíduos numa visão atomizada, isto é,como variáveis independentes e não dependentes dassituações, e a responsabilidade penal, por via de conse-quência, como responsabilidade individual, baseada nolivre-arbítrio, o sistema penal constrói um conceito decriminalidade ou violência criminal essencialmente vin-culado à violência individual (esta concebida com po-tencialidade para delinqiiir).

Desta forma, a violência de grupo e institucionalsão consideradas apenas em relação a ações de pessoasindividuais, e não no contexto do conflito social que elas

expressam. A violência estrutural e, em sua maior parte,a violência internacional, é excluída do horizonte doconceito de crime, ficando assim imunizada a relaçãoentre a criminalidade e estas formas de violência. Daíresulta que os sujeitos e os comportamentos a controlarsão "os criminosos" e os "crimes"; as técnicas de respos-tas são a "pena" e a "polít ica criminal". Caracteristica-mente, portanto, o controle penal: a) intervém sobre osefeitos e não sobre os condicionamentos da violênciacriminal; ou seja, sobre os comportamentos expressivosdos conflitos, e não sobre os próprios conflitos; b)intervém sobre pessoas, e não sobre situações e c)intervém reativa e não preventivamente; ou seja repri-

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Mas não apenas a forma como o sistema constrói oconceito é parcial, quanto sua intervenção do sobre olimitado âmbito da violência "construído" através doconceito de criminalidade é estruturalmente seletivo. E

esta é uma característica de todos os sistemas penaisvigentes. (Baratta, 1993, p. 48-9)Aquele reducionismo conceituai reaparece, portan-

to, como funcional à seletividade, que é a lógica estrutu-ral de funcion amen to do sistema p enal nas so ciedad escapitalistas centrais e periféricas, senão vejamos.

Com efeito, sabe-se hoje que desde o ponto de vistadas definições legais, a criminalida de se man ifesta com oo comportamento da maioria das pessoas na sociedade,e em todos os estratos sociais, antes que o comporta-mento de uma minoria perigosa da população, mas osistema penal está estruturalmente dedicado "a admi-nistrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações,seguramente inferior a 10%."(Baratta, 1993, p. 49) Destaperspectiva, a impunidade, e não a criminalização, é aregra no funcionamento do sistema penal. (Hulsman,1986, p. 127 e 1993, p. 65)

Por sua vez, impunidade e criminalização são desi-gual ou seletivamente distribuídas entre os vários estra-tos sociais, pois, em vez de uma incriminação igualitáriade condutas, o sistema promove uma seleção desigualde pessoas de acordo, sobretudo, com uma imagemestereotipada da criminalidade e do criminoso em que avariável status social dos acusados tem um peso decisi-vo. De modo qu e a gravidade da cond uta crim inal nã o é,por si só, condição suficiente deste processo, pois osgrupos poderosos na sociedade possuem a capacidadede impor ao sistema uma quase total impunidade daspróprias condutas criminosas. Enquanto a intervençãodo sistema geralmente subestima e imuniza as condutas

infrações de relativamente menor danosidade social

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infrações de relativamente menor danosidade social,embora de maior visibilidade, como delitos contra opatrimônio, especialmente aqueles cuja autoria são pes-soas pertencentes aos estratos sociais mais débeis emarginalizados. E a "imunidade dos crimes mais gravesé cada vez mais elevada à medida que cresce a violênciaestrutural e a prepotência das minorias privilegiadasque pretendem satisfazer as suas necessidades em detri-mento das necessidades dos demais e reprimir comviolência física as exigências de progresso e justiça,assim como as pessoas, os grupos sociais e os movimen-tos que são seus intérpretes. " (Baratta, 1993, p. 50)

A equação minoria (dos baixos estratos sociais ou

pobres) regularmen te criminalizada x maioria (dos estratossociais médio e alto) regularmente imune ou impune, na qualvenho sinteticamente traduzindo a seletividade, eviden-cia, em derradeiro, que a clientela do sistema penal éconstituída de pobres (minoria criminal) não porquetenham uma maior tendência a delinqüir, mas precisa-mente porque têm maiores chances de serem criminali-zados e etiquetados como criminosos, com as gravesconseqüências que isto implica. Logo, impunidade ecriminalização são realizadas geralmente pelo sistemapenal segundo a lógica das desigualdades nas relaçõesde propriedade e poder.

5.2.1. A ideologia penal dominan teMas, além de uma estrutura social (macrocosmos)

caracterizada pela desigual distribuição da propriedade(rural e urbana) e cio poder, é necessário aduzir que, emsimbiose com ela, existe uma cultura ou ideologia penalespecífica a sustentar o sistema penal (microcosmos) ecujas representações sintetizam, por sua vez, o conjuntodas funções declaradas ou promessas que legitimam suaexistência

Dogmática Penal e dos operadores do sistema penal

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Dogmática Penal e dos operadores do sistema penal,mas no senso comum sobre a criminalidade, o crimino-so, a pena e o Direito Penal, e se mantém constante aténossos dias.3

Ela pode ser enunciada analit icamente mediante osseguintes princípios (Baratta, 1982a, p. 30-1; 1991, p.35-7; Andrade, 1997a, p. 135-8):

a) Princípio do bem e do mal. O fato punível repre-senta um dano para a sociedade e o delinqüente é umelemento negativo e disfuncional do sistema social. Ocomportamento criminal desviante é o mal (compor ta -mento de uma minoria desviada), e a sociedade, o bem.

b) Princípio de culpabilidade. O fato pun ível é expre s-são de uma atitude interior reprovável, porque seuautor atua conscientemente contra valores e normas queexistem na sociedade previamente à sua sanção pelolegislador.

c) Princípio de legitimidade. O Estado, como expres-são da sociedade, está legitimado para, através do siste-ma penal, reprim ir a crim inalida de, da qual sãoresponsáveis determinados indivíduos.

d) Princípio da legalidade. O Estado não ape nas estálegitimado para combater a criminalidade, mas é auto-limitado pelo Direito Penal no exercício desta funçãopunitiva, realizando-a no marco de uma estri ta legalida-de e garantia dos Direitos Humanos do imputado.

e) Princípio de igualdade. O Direito Penal é igual paratodos. A reação penal se aplica de igual maneira a todosos autores de delitos.

f) Princípio do interesse social e do delito natural. O sinteresses que o Direito Penal protege são interessescomuns a todos os cidadãos.

g) Princípio do fim ou da prevenção. A pena não temi f ã d ib i i d li

geral). Com o sanção concreta, deve ressocializar o delin-

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geral). Com o sanção concreta, deve ressocializar o delinqüente (prevenção especial).

Enquanto ideologia de controle, consubstancia umadivisão maniqueísta entre o (sub)mundo da criminalida-de, identificado com uma minoria de sujeitos potencial-mente perigosos (o mal) e o mundo da normalidade,representado pela maioria na sociedade (o bem). Con-substancia, neste movimento, uma visão estereotipadada criminalidade e um estereótipo do criminoso, asso-ciadas, em última instância, à clientela da prisão, cujaimagem projetada para a sociedade perpetua, de resto,tal visão: o "perigo" seletivamente encarcerado, apare-ce, como "o" perigo , imunizando-se vastíssima esferada criminalidade e seu impacto nocivo à sociedade.

O sistema penal, constituído pelos aparelhos poli-cial, ministerial, judicial e prisional, aparece como umsistema que protege bens jurídicos gerais e combate acriminalidade (o "mal") em defesa da sociedade (o"bem") através da prevenção geral (intimidação dosinfratores potenciais) e especial (ressocialização doscondenados) e, portanto, como uma promessa de segu-

rança pública. Aparece, simultaneamente, como um sis-tema operacionalizado nos limites da legalidade, daigualdade jurídica e dos demais princípios l iberais ga-rantidores e, portanto, como uma promessa de seguran-ça jurídica para os criminalizados.

5.2.2. Das funções declaradas às funções reais e à eficáciainvertida do sistema penal

Chego, assim, a um ponto fundamental: o controlepenal se caracteriza por uma "eficácia instrumentalinvertida, à qual uma eficácia simbólica confere susten-tação";4 ou seja, enquanto suas funções declaradas ou

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B embora tal violação, am plam ente doc um enta daõ d d f d d h

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por insti tuições de defesa dos direitos humanos nacio-nais e internacionais, se verifique, em maior ou menorgrau, na totalidade dos sistemas penais vigentes, naAmérica Latina adquire contornos muito mais agudos,pela gravidade das ilegalidades cometidas, seja ao nívelinterno do sistema (policial, processual ou de execuçãopenal), seja ao nível paralelo de grupos (grupos arma-dos de repressão, paramilitares ou privados, que pro-movem intimidações, torturas, desaparições, execuçõessumárias, extermínios, matanças, massacres, etc.) cujaação integra, muitas vezes, um planejamento determina-do de certas elites (com o apoio direto ou indireto do

exército e dos governantes e cuja impunidade os pró-prios órgãos do Estado, que deveriam controlar, assegu-ram). (Zaffaroni, 1991 e Baratta, 1993)

O fenômeno, experimentado no Brasil , é o de umpoder penal extralegal, que inflige penas extralegais(controle social informal) e pode propriamente ser de-signado por sistema penal paralelo ou subterrâneo, quese dialetiza, funcionalmente, com o sistema oficial.

Reitera-se, pois, que há uma profunda conexãofuncional entre o macrocosmos social e o funcionamentodo microcosmos penal, que o expressa e reproduz,material e ideologicamente. O sistema penal revela-secomo um subsistema funcional da produção material eideológica (legitimação) do sistema social global; ouseja, das relações de poder e propriedade existentes epor isso a proteção que ele confere aos bens jurídicos ésempre seletiva: a propriedade em primeiro lugar

Nesta perspectiva, o sistema penal e especialmentea pena (legal e extralegal) apresenta-se como violênciainstitucional que cumpre a função de um instrumento

5 . 3 . A ( d e s ) o r d e m a g r á r i a : a e s t r u t u r a l a t i f u n d i á r i a ,

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o s d é f i c e s d e r e f o r m a a g r á r i a e a g r í c o l a , o sc o n f l i t o s e o M S T

Poucas, como a sociedade brasileira, são marcadaspor uma desigualdade tão profunda na distribuição dapropriedade (rural e urbana) e do poder e, conseqüente-mente, por relações sociais tão assimétricas e violentas.Nesta esteira, a compreensão da desigualdade agráriapassa necessariamente pela sua historicidade; ou seja,pela compreensão do processo histórico de distribuiçãooriginária da terra no Brasil, da configuração da respec-tiva estrutura fundiária e sua permanência no tempo.

Sem a possibilidade e a pretensão de abordar estahistoricidade, basta-me afirmar aqui, com apoio emampla literatura histórica, socio lóg ica e juríd ica,5 que aestrutura fundiária brasileira caracteriza-se por umaacumulação latifundiária improdutiva que, contempo-rânea à colonização do País (e, portanto acumulaçãooriginária da terra) nunca se redefiniu socialmente; ouseja, nunca foi objeto de uma reforma agrária efetiva-mente redistributiva, e vem produzindo uma exclusãosocial persistente, de efeitos gravemente cumulativos.

Desta forma, enquanto os processos de reformaagrária e democratização da terra foram e são realizadosno mundo inteiro, sob influxo de lutas sociais mais oumenos intensas, mais (México e Rússia) ou menos vio-lentas ou em caráter permanente (Estados Unidos, Fran-ça, Argentina), objetivando otimizar o aproveitamentoda terra e a qualidade de vida, "O Brasil é o País dolatifúndio. Foi e é." (Ferreira, 1994, p. 112)6

Convivendo com os défices de reformas agrária eagrícola, redistributivas da terra e dos recursos produti-vos há que se referir também mudanças sociais conjun-

turais de impacto agravador sobre o problema. É que od b i ã ( d d é l XX)

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processo de urbanização (em meados do século XX) e osatrativos dos centros urbanos, associado ao processo demecanização da agricultura (na passagem dos anos 60para 70) conduziram ao êxodo rural e ao fenômeno dosfavelamentos nas grandes metrópoles, ao tempo em queaumentaram a concentração fundiária. Para os peque-nos agricultores que permaneceram na terra, agrava-ram-se as dificuldades e a exclusão.

A tensão no campo e os conflitos agrários,7 l ibera-dos sobretudo na conjuntura de luta pós-80, são, po rtanto,expressão de um problemática secular, sendo condicio-nados tanto pela referida estrutura fundiária, quanto

pelas mudanças sociais de impacto cumulativamenteagravador e o profundo déficit reformista, ou seja, derespostas estatais /governamentais ao problema socioe-conómico da terra.

Trata-se, pois, de conflitos resultantes de um acú-mulo de efeitos perversos que culmina em um quadrode exclusão social não apenas persistente, mas insupor-tável, para expressiva parcela da sociedade brasileiraque, sem dúvida, não se reconhece no clássico conceitode classe trabalhadora, pois, não são sujeitos marcadospor relações de exploração e domínio, uma vez integra-dos no mercado e nas relações de trabalho, mas sujeitosmarcados pela inexistência de relação; pela não-relação.São os sujeitos que não têm um lugar no mundo.Tratam-se, propriamente, dos excluídos.8

Na convergência daquela tríplice face, e, portanto,enraizada no referido processo histórico, radica a pró-7 A respeito, consulte-se as publicações anuais intituladas da Comissão Pas-toral da Terra, que contêm um documentado cadastro dos conflitos no campo.O relatório de 1996 (Comissão Pastoral da Terra, 1997) revela que os conflitospassaram de 554 em 1995, para 750 em 1996; o núm ero de famílias en volvid assobe de 63.565 em 1995, para 96.298 em 1996. As ocupações vão de 146 para398 e as mortes de 41 em 1995 para 54 em 1996

pria fundação do MST, enquanto movimento sociali d d l T d d

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agenciador da luta. Tendo como antecedentes outrosmovimentos campesinos como as revoltas de Canudos(1896-1897) no Sertão da Bahia, do Contestado (1912-1916) em Santa Catarina, e as Ligas camponesas doNordeste (1954), em Pernambuco, além de outros gru-pos como os cangaceiros, entre os quais ressalta a figurade Lampião, eis que a luta pela conquista da terra ésecular no Brasil , o MST contribui, decivisamente, parainstaurar uma dialética de luta pela cidadania no cam-po.

Perfazendo um universo, em grande parte, de agri-cultores falidos ou sem perspectivas, e sua famílias, ossem-terra são despossuídos da própria base física, dohabitat do exercício da cidadania. E seu espaço público , opróprio espaço de luta, se desloca para o espaço (territó-rio) do outro, onde a contagem do tempo é, antes demais nada, o cronograma da subsistência.

E é esta carência básica que condiciona o horizonteno qual se projeta a própria luta e suas estratégias: ohorizonte da reforma agrária (reiteradamente prometi-da no discurso legal e político) utilizando-se de estratégiascomo mobilizações, marchas e, sobretudo, ocupações(acampamentos e assentamentos) de latifúndios priva-dos improdutivos ou terras públicas devolutas.

O que necessita ficar claro, contra toda orquestra-ção ideológica desqualificadora, é que a luta do MST, se"aparentemente" se exerce contra a legalidade, é parareafirmá-la inteiramente; é para forjar sua concretiza-ção; senão vejamos, apontando a base legal em que sefunda.Há uma Constituição formal que reconhece a "cida-dania", a "dignidade da pessoa humana ", "os valoressociais do trabalho e da livre iniciativa" como funda-

a marginalização e reduzir as desigualdades sociais eregionais"; "promover o bem de todos sem preconceitos

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regionais ; promover o bem de todos, sem preconceitosde origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outrasformas de discriminação"(art . 3C, incisos I, III e IV).Declara a "igualdade de todos perante a lei, sem distin-ção de qualquer natu reza" e a garantia do d ireito à vida ,à l iberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(art. 5S), dotando-a de função social (art. 5S XXIII),erigida em princípio reitor da ordem econômica (incisoIII do art. 170), cujo fim é "assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170,caput) e definindo o instrumento da desapropriaçãopara efetivar referida função social, bem como o seu

sentido (arts. 184 a 186).9

Reconhece os direitos sociaisdos trabalhadores urbanos e rurais, equ iparan do-o s (art .7-). Enuncia ainda que "a família, base da sociedade,tem especial proteção do Estado" e que a criança e oadolescente estarão "a salvo de toda forma de negligên-cia, discriminação, exploração, violência, maldade eopressão" (art. 227).

Não restam dúvidas de que a programação consti-tucional, se operacionalizada fosse, deflagaria o proces-so de resgate da dívida social agrária, sendo as normasprogramáticas nucleares as relativas à função social dapropriedade.

Mas precisamente porque, entre o espaço das pro-messas constitucionais - ainda depois da ConstituiçãoFederal de 1988 - e o espaço da partilha e gestão dopoder, os problemas agrários não têm encontrado outêm encontrado escassos canais de mediação para se

expressarem como polit icamente relevantes (no sentidode obter prioridade e satisfação de suas demandas, emnível governam ental e judicial) a estratégia encon tradapelo MST, de ocupação de latifúndios improdutivos ou

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cumprir a lei , feita precisamente para o "homem co-mum" não pode exigir que ela seja observada pelo

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mum , não pode exigir que ela seja observada pelohomem "incomum". Não tem legi t imidade para acusaro descumprimento da lei e muito menos para, em nomedela, erguer o braço armado do controle penal (punir).Esta é a face constitucional da crise de legitimadade dopoder punitivo.

Se os conflitos agrários são, portanto, o resultadohistórico de um pacto de exclusão do homem da terraque está na base da formação do Estado brasileiro naqual, antes da sociedade "pactuar", foi o Estado quedelimitou seus limites e possibilidades (o pacto concretoda elite estatal ocupa aqui a ficção do pacto social, comofundador da sociedade) tais conflitos são legítimos nasua raiz, encontrando, igualmente, amplo respaldo le-gal, antes e sobretu do de pois da Con stituição Fede ral de1988. A Luta do MST é, portanto, legítima social políticae juridicamente. Inversamente, é o poder do Estado e,particularmente, o poder punitivo, que experimentauma profunda crise de legitimidade, agravada pelopoder penal subterrâneo.

5 . 4 . A c o n s t r u ç ã o s o c i a l d o s c o n f l i t o s a g r á r i o sc o m o c r i m i n a l i d a d e e a h e g e m o n i a d o c o n t r o -le pena l

No entanto, no mesmo movimento em que o MSTpassa a adotar uma estratégia mais con tun den te de ação,o poder tem recolocado sua estratégia no âmbito do

controle penal, reapropriando-a, no sentido de deslegiti-má-la, não apenas como ilegal, mas sobretudo criminal.É que, como enunciei, prepondera na sociedade brasilei-ra a interpretação da conflituosidade no campo através

que estamos diante tanto de um processo de criminali-zaçãostricto sensupelo sistema penal em que as condutas

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zação stricto sensu pelo sistema penal, em que as condutasdos integrantes do Movimento e muito particularmentede seus l íderes, são tipificadas crimina lmen te, qu anto deum processo, simultâneo, de construção de uma opiniãopública (sobretudo através da opinião publicada pelamídia) criminalizadora da ação do MST. Nele conver-gem e interagem, portanto, o controle social formal(controle penal) e informal.

5.4.1. A construção social seletiva da criminalidadeagrária: criminalização x impunidade

Vejamos, pois, como tem se dado o processo decriminalização stricto sensu, para logo a segu ir focaliza ra intervenção da mídia.

A construção social da criminalidade agrária éseletiva precisamente porque reproduz a lógica estrutu-ral de funcionamento do sistema penal: ao mesmo tempoem que criminaliza os socialmente excluídos, imuniza-se as estruturas, o Estado e suas instituições, bem comoos latifundiários e sua constelação protetora.

Com efeito, estatisticamente documentada se en-contra a impunidade de que vem se beneficiando osmandantes de assassinatos e ameaças de morte no cam-po, em que os indícios de autoria atingem, de acordocom cadastramento da Comissão Pastoral da Terra(1997,p. 54-56), "grileiros", "pistoleiros", "fazendeiros","gerentes de fazendeiros" , "Gatos", "Jagunços", "Capi-tães da Polícia militar", "delegados" e outros policiais,"oficiais de justi ça" (mu itos, exp ressam ente nom ina-dos), sendo impressionante a relação de menores assas-sinados no campo,ou vítimas de assassinatos tentados eameaças de morte.

Segundo ainda a Comissão Pastoral da Terra (1997

mentos, entre eles 14 mandantes foram julgados, com 7condenações, dos quais 2 estão foragidos."

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condenações, dos quais 2 estão foragidos.Os conflitos mais recentes, que se notabilizaram no

País pela dimensão da barbárie, foram os Massacres daFazenda Santa Elina, em Corumbiara, que resultaramem 354 posseiros presos, dezenas de feridos, 10 agricul-tores e 2 policiais mortos, e o de Eldorado dos Carajás,no qual em torno de 200 policiais reprimiram violenta-mente os sem-terra que bloqueavam a Rodovia PA-150,resultando em 19 mortos e 51 feridos. Não há dúvida deque o limite entre o poder penal legal e extralegal, acimadescrito, encontra-se aqui fortemente tensionado.

Quanto ao processo de criminalização, Varella(1998, p. 328-9) conclui que "após uma ampla pesquisaao longo da atividade judiciária em torno do M ovim entodos Sem Terra, percebe-se que as principais acusaçõessão de crime de dano, pelas cercas e demais estruturasdestruídas quando das ocupações; crime de furto, pelodesaparecimento de lascas de madeira, cercas de arame,bois e alguns outros animais; crime de usurpação,11

devido às ocup ações de terra, e form ação de qu adrilha,12

pela reunião para o fim de cometer os crimes anterio-res."

Tratam-se, os três primeiros, de crimes tipicamentepatrimoniais e o último, de crime contra a "pa z pú blica ",ao qual se agregue, considerados ofensivos do mesmobem jurídico, os crimes de incitação ao crime (art. 286) eapologia de crime ou criminoso (287) pelos quais foiindiciado o Coordenador nacional do MST, João PedroStédile. Sua prisão preventiva foi solicitada pelo delega-

do federal Antônio Carlos Cardoso Rayol, em maio docorrente ano, sob o argumento de "preservação daordem pública". (Correio Braziliense, 13.05.98) Desta-11 O i d ã é d fi id110 Códig P l b il i d li

que-se, igualmente, a condenação, a mais de 20 anos deprisão, do líder José Rainha, acusado de participação no

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homicídio de um fazendeiro quando, na oportunidade,se encontrava em outro Estado; circunstância cuja provatestemunhal, amplamente indicada pelo acusado, foinegligenciada no processo-crime.

5.4.2. Violência superestimada e variáveis incluídas: ocódigo comportamental

Os conflitos agrários passam a ser decodificados,essencialmente, como decorrentes da violência indivi-dual (comportamental), identificando-se, no comporta-mento (livre-arbítrio) dos "invasores" de terra (maisrecentemente "saqueadores" das ruas e estradas) e suaslideranças, o fator decisivo e a responsa bilidad e (penal)pela "violência" no campo, então caracterizada comoviolência criminal (criminalidade).

Etiqueta-se o excluído como perigoso, culpável(culpado pela sua própria exclusão ?), crimin oso E aotempo em que etiqueta um culpado o controle penalidentifica, com a etiqueta, um perigo à sociedade. Está

construída a associacão entre os conceitos de criminali-dade e segurança, da qual resulta um conceito de segu-rança publica centrado nas idéias de punição e combateà criminalidade. A vitimação aparece associada, emconseqüência, com as vítimas da criminalidade indivi-dual.

Encerrada a complexidade dos conflitos num códi-go comportamental, possibili tada está a declaração deguerra contra o violento comportamento dos invasores eo MST (liderança negativa), assim como a declaração daviolência agrária como um grave problema de seguran-ça pública, justificando o seu combate repressivo epolicialesco em "defesa da sociedade" e do bem j rídico

sores)13 é co-responsabilizada pelo aumento da violênciano campo. Eis, portanto, em síntese, com o latente me nte sed difi fó l d l d i

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decodifica a fórmula dos culpados: comportamento in-dividual + impunidade = aumento da violência (crimi-nalidade) agrária.1'1

Reproduz-se, desta forma, a polarização ideológicamaniqueísta entre o bem (latifundiários vitimados emsuas propriedades) e o mal (invasores sem escrúpulos),típica da ideologia penal dominante. Entra em cena aapropriação do penal como paradigma de guerra, bélicoou da beligerância, pois, a construção seletiva da crimi-nalidade implica, neste universo, a demarcação de umautêntico "inimigo interno", contra o qual se declaraguerra. A ideologia penal aparece com uma forte analo-gia com a "ideologia da segurança nacional". A proble-mática agrária é, no mesmo movimento, despolit izada epolicizada (ou militarizada). No trajeto da exclusãosocial à criminalização penal, duplica-se a violência,assim como duplica-se a imunização.

E para que se justifique a guerra que o paradigmapenal subliminarmente instaura, é necessário mantersempre aceso o sentimento do perigo e do medo (senti-mento subjetivo de insegurança), gerador de indignaçãoe consensos silenciosos. A mídia, construindo seletiva esensacionalistamente a notícia sobre a criminalidade,cumpre um papel fundamental na construção social doperigo e do medo. Centrando a atenção na "violência"da rua e do campo, que ela e a polícia podem acessar,divulgando estatísticas alarmantes e sem fundamenta-ção científica de seu aumento assustador, ela é a maispoderosa agência do controle social informal que, em1 3 É de aduzir que, nesta visão co-responsabilizadora da impunidade incide,igualmente, o MST, em relação aos seus agentes repressores.14 Tal decodificação constitui, de resto, o discurso oficial sobre a violênciaque colonizando todos os demais possíveis e usado para interpretação das

simbiose com o sistema penal, sustenta o paradigma deguerra. Integra, portanto, o cotidiano dos brasileiros,

f

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invadindo suas casas, a informação massiva através deprogramas televisivos baseados na espetacularidade daviolência (sangue) e da vitimação (lágrimas) individuais,com interlocutores que bradam no ar tanto a "vergonha"da impu nidade ("Isto é uma ver gon ha" ) dos "m au scidadã os" quanto a apologia da repre ssão ("ca de ia")para eles. É o chamado "Movimento de Lei e Ordem".

Ilustrações desta construção seletiva sensacionalis-ta da notícia sobre a criminalidade podem ver-se emmanchetes cotidianas como as que seguem: "Prisãopreven tiva para o líder dos sem-te rra - Joã o P edroStédile é acusado de incitação ao crime por estimular ossaques e pode pegar pena de três a seis meses decadeia." (Correio Braziliense, 13.05.98)

Ou ainda: "Cidades, o novo alvo do MST: Líder dossem-terra avisa: vai tornar permanente a mobilizaçãopelos saques para desenvolver o Nordeste (Jornal daTarde, 23.05.98)

Conjuga-se, aqui, a imagem da criminalidade pro-movida pela mídia com a imagem promovida pelaprisão. A percepção dela como uma ameaça à sociedadedevido à atitude de pessoas, e não à existência deconflitos sociais, direciona a opinião pública para o"perigo da criminalidade", e a violência criminal adqui-re, na atenção do público, a relevância que deveriacorresponder à violência estrutural e, em parte, contri-bui a ocultá-la e mantê-la. "Trata-se de uma tentativa -particularmente perveresa - de legitimar a injustiça nas

relações sociais (a repressão violenta da exigência dejustiça)" (Baratta, 1993, p. 52-4).Tal processo apresenta, em derradeiro, uma "eficá-

cia invertida" relativamente ao objetivo originário do

"nós" (o "bem") que se defende contra "eles", outsiders (o"mal"), vilões da "Lei e da ordem", império do caos, contra

i d di i i i b i i l

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os quais se deve dirigir um rigoroso com bate criminal.

5.4.3. Violências sonegadas e variáveis excluídas: oscódigos ausentes

Chego, assim, às violências sonegadas e às variá-veis excluídas neste processo. Recordando que quandoum conflito é construído como criminal passa a sertratado desde tal lógica (violência e responsabilidadeindividual .v segu rança p úb lica), arrasta nd o con sigo asconseqüências desta decodificação (descontextualizacãoe despolitização), ao se identificar a potencialidade daviolência (o mal) na conduta individual dos invasores,abstrai-se, portanto, a violência definida como criminaldo seu contexto e conteúdo globais (a estrutura socialagrária, o déficit político reformista, as mudanças con-junturais, a violência policial legal e extralegal etc.),imunizando-se a concorrência das estruturas (violênciaestrutural), das instituições e relações de poder (violênciainstitucional), das conjunturas, etc., pela sua existência.

Desta forma, como conclui Dias Neto (1997): "Taltendência tem sido interpretada como produto de umaobstrução dos canais de comunicação polít ica. Estes nãotêm sido capazes de absorver e administrar os conflitosrelevantes e, desta forma, reduzir riscos existentes nosdiversos contextos da vida social. Em termos sintéticos,poderia ser ressaltado um processo d e perda de centrali-dade da polít ica que, num contexto de fortalecimentodos mecanismos de auto-regulação econômica, de crise

do Estado e de atrofia dos órgãos tradicionais de inter-mediação política, deixa de exercer seu papel de gestãode conflitos. A obstrução da via política de solução dosconflitos sociais gera um terreno fértil para soluções

criminais, onde alguns riscos são isolados e traduzidoscomo problemas morais. Problemas que requerem enfren-t t ltidi i li â bit d líti ( ô i

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tamento multidisciplinar no âmbito da política (econômi-ca, social, habitacional, educacional) são transferidos àinstância penal. Os processos sociais geradores de riscosdeixam de ser questionados em função de um processode individualização das responsabilidades pelos danos.Ao atribuir responsabilidades penais, o sistema polít icose libera de sua própria responsabilidade por conflitosque não é capaz de administrar. Neste sentido, pode-seafirmar que o processo de constru ção da crim inalida de éo outro lado do processo de despolit ização da socieda-de: o 'espaço da pena" se expande sobre o vácuo deixa-

do pela retração do 'espaço da política'."

5.5. Atrav essand o a geo grafia do con trole pena lrumo ao território da cidadania

Partindo-se da premissa da questão agrária comoproblema histórico multidimensional e complexo, háque se concluir, logicamente, que a luta pela construçãoda cidadania dos excluídos da terra - que passa pelaefetividade da reforma agrária - encontra tanta resistên-cia porque é, evidentemente, uma luta centrada nomacrocosmos estrutural que dá, por sua vez, sustenta-ção ao controle penal que sobre ele incide violentam ente.

Mas é necessário perceber que ultrapassa o âmbitodas relações capital .v trabalho stricto sensii. Fundamen-tal, portanto, desideologizar o discurso sobre a reforma

agrária, despindo-o dos anacrônicos elos com uma es-querda revolucionária, socialista, comunista ou anarquis-ta, porque a sua efetividade (respeitando a culturaprópria da vivência dos sem terra) é no Brasil dos anos

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rantidora do Direito Penal e Processual Penal liberais eos princípios gerais do direito, até suas respectivastécnicas jurídicas dogmáticas, constituem um código

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técnicas jurídicas dogmáticas, constituem um códigotecnológico apto a produzir interpretações ideologica-mente compensatórias da seletividade do sistema penal.

Foi precisamente a via da defesa penal dos sem-ter-ra a partir de uma rigorosa aplicação da técnica dogmá-tica do crime que Varella explorou, com propriedade,demonstrando como o etiquetamento criminal e a atri-buição de responsabilidade penal são, (no caso doscrimes de dano, furto, usurpação e quadrilha, pelosquais, se recorde, são criminalizados os membros doMST), improcedentes. E o fez argumentando especifica-

mente pela exclusão da tipicidade (pela ausência dodolo exigido pelo tipo) ou pela exclusão da ilicitude(pela presença do estado de necessidade) redefinindo ascondutas como crimes famélicos.

Logo, conclui Varella (1998, p. 349), numa argu-mentação desqualificadora do dolo (válida para todosos crimes referidos), que "o alvo do Movimento dossem-terra não é a propriedade que estão ocupando, masa União, que deve agilizar o processo de ReformaAgrária, concedendo mais terras aos que querem produ-zir, desapropriando as grandes fazendas improdutivasdeste país. O dolo não é se apropriar daquela terra, atoilícito, mas sim fazer com que o Governo Federal exerçaseu poder de soberania, desapropriando a fazenda ocu-pada e outras para realização de reforma agrária, nãohavendo, portanto, usurpação"

E ainda, uma vez que o fim das ocupações é

pressionar o Governo a desapropriá-las, "para que pro-cedam a ocupação, são obrigados a abrir cercas e cortararames. Logo, sua conduta não é uma conduta-fim, masuma ação-meio para se chegar à conduta-fim A vonta-

a propriedade, até porque a intenção dos integrantes domovimento é que a terra lhes seja tranferida em umfuturo iminente. Por que, então, destruir algo que se

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pleitea? Não há conexão lógica. Nenhum grupo de quese tenha conhecimento, até o presente momento, t inha

como objetivo destruir propriedades rurais." (Varella,1998, p.333)Quanto ao estado de necessidade, é forçoso con-

cluir que "... face às ocupações coletivas de proprieda-des agrícolas, há uma situação na qual os membros doMovimento dos Sem Terra não têm outra opção se nãoentrar na propriedade alheia, com o intuito de forçar oGoverno Federal a realizar desapropriações, amenizan-

do o problema social que se agrava a cada dia. Apóstantos anos de prom essas sem resu ltados e de diferen tesmétodos de luta pelo cumprimento do ordenamentojurídico brasileiro, que prevê a reforma agrária, foisomente com as ocupações que os excluídos, membrosdeste movimento social, conseguiram fazer acelerar oprocesso de democratização fundiária. Logo, util izam osmeios necessários e aptos a satisfazerem suas necessida-des, ficando patente a excludente da ilicitude pelo esta-do de necessidade, excluindo o próprio crime." (Varella,1998, p. 339). Tendo desqualificado o etiquetamentocriminal relativamente aos crimes de dano, furto eusurpação conclui que, obviamente inexiste o crime dequadrilha, que se caracterizaria, precisamente, pela as-sociação entre mais de três pessoas para a prática dosdemais crimes .

Sem dúvida há muito o que produzir nesta direção,

desde que se rompa com a ideologia dominante. E este éo desafio democrático que hoje se impõe aos que têm opoder da criminalização stricto sensu; pois têm, igual-mente o poder de apropriar as potencialidades ambí-

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6 . 1 . I n t r o d u ç ã o

O novo Código de Trânsito brasileiro (Lei 9.503 de23 de setembro de 1997), doravante designado por CTB,dispõe, no § 2e do seu artigo Io, que "o trânsito, emcondições seguras, é um direito de todos e dever dosórgãos e entidades componentes do Sistema Nacionalde Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivascompetências, adotar as medidas destinadas a asseguraresse direito."

Por trânsito considera-se, é o teor do precedente §1Q

do mesmo artigo, "a utilização das vias por pessoas,veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidosou não, para fins de circulação, parada, estacionamentoe operação de carga ou descarga."1 Este texto constitui uma derivação de uma Pesquisa mais ampla que vimosdesenvolvendo desde agosto de 1999 (até agosto de 2003) sob o patrocínio doConselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq) e intitulada "Código deTrânsito Brasileiro (Lei n° 9.503 de 23.09.97) e cidadania: decodificando oi d l i S i d d B il i " F i i i i bli d

Dispõe ainda o artigo 6° que: "São objetivos básicosdo Sistema Nacional de Trânsito: I- estabelecer diretri-zes da Política Nacional de Trânsito, com vistas à segu-

à fl id f t à d f bi t l à

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rança, à fluidez, ao conforto, à defesa ambiental e àeducação para o trânsito, e fiscalizar o seu cumprimen-to; (...)"

Tomando por referencial tais definições do CTB edo Código de Defesa do Consumidor2 e, portanto, con-textualizando jurídica e historicamente a abordagem,parece-me de imediato que o trânsito, ainda que social-mente visível como um velho problema e ainda que decontornos jurídicos bastante difusos, pode ser inscritona linha divisória entre o direito individual e supraindi-

vidual. Isso porque, se o direito ao trânsito apresenta-sefundado no velho direito individual de ir e vir, impri-mindo-lhe novos contornos; o direito à segurança notrânsito aproxima-se, por sua vez, dos novos direitostransindividuais, particularmente dos interesses ou di-reitos difusos que, regra geral, devem impor limitesàquele. Quanto ao dever jurídico de garantir o trânsitoseguro, compete, segundo o dispositivo supracitado, aoSistema Nacional de Trânsito (doravante SNT) o queimplica, de qualquer forma, uma responsabilidadeigualmente difusa.

Mas, de que segurança se trata? Qual o sentido dotrânsito seguro oficialmente erigido, como se vê, empromessa central do novo Código? Quais são os l imitese possibilidades do novo diploma na instrumentalizaçãodessa promessa? Tais são os interrrogantes que, à luz deuma leitura criminológica e polít ico-criminal, propo-2 Segu ndo o artigo 81 do Código d e Defesa do Co nsum idor (Lei n® 8.078 de11 de setembro de 1990), que aqui tomo por referente conceituai, entende-sepor direitos transindividuais ou supraindividuais aqueles abrangentes dosinteresses ou direitos difusos (de natureza indivisível, de que sejam titulares

d d l d â d f ) d

nho-me a responder, pois, a meu ver, trata-se do concei-to e do direito central, explicitamente referido comoobjetivo básico a alcançar, que funciona como condiçãode sentido da codificação opera latentemente ao longo

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de sentido da codificação, opera latentemente ao longode todo o seu discurso, e, no entanto, em momentoalgum , é explicitado. De outra parte, de svelar o conce itode segurança é fundamental, seja para a compreensãodos pressupostos ideológicos que orientam o novo CTB,seja para a compreensão dos seus l imites e possibilida-des na contenção da violência e na instrumentalizaçãoda prometida segurança no trânsito. Enfim, no interreg-no dessa explicitação, deverão também resultar indica-dos os limites do próprio direito ao trânsito.

E por que priorizar o trânsito? As razões poderiamse multiplicar, mas basta lembrar que o Brasil é um dospaíses com a maior taxa de mortalidade e mutilaçõesregistradas em acidentes de trânsito no mundo - quematam, anualmente, o número de pessoas mortas naGuerra do Vietname;3 basta lembrar quanto tempo denossas vidas passamos detidos no pequeno cárcere re-presentado pelos veículos e quanto tempo dem andam osno cuidado contra eles; basta pensar nos riscos, natensão entre a vida e a morte e na radicalidade docompromisso com a vida que se encontra implicadanessa problemática, para situar o trânsito como proble-ma capaz de nos sensibilizar e centrar a atenção, sejacomo indivíduos, profissionais ou comunidade; parasituar o trânsito, antes de mais nada, no território dacidadania e, pois, para justificar a importância de suaabordagem.3 A avaliação para a última década do século XX foi sombria. Estimou-se algoem torno de 350 mil mortos e um milhão e 500 mil vítimas portadoras dealguma forma de invalidez, temporária ou permanente. É digno de nota, pelaforça comovente e dramaticamente pedagógica de sua narrativa o livro "Thia-

G hi ó i d id " i D dé F l

Resta-nos saber se as promessas do Código que sepropõe a reger o nosso cotidiano sobre rodas no terceiromilênio já não nascem, até certo ponto, com sintomasmórbidos

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mórbidos.

6 .2 . O b j e t o e o b j e t i v o d a c o d i f i c a ç ã o : u m a p r o m e s -s a d e s e g u r a n ç a

É inegável a validade e importância de uma codifi-cação, nem que seja pela sistematização e princípio deunidade que confere a uma legislação, com a conseqüen-te melhora do acesso público a ela. No caso, não é a

primeira (vigorava no Brasil um casamento polígamo doCódigo Nacional de Trânsito com algo em torno de 800resoluções) e nem tudo nela é novidade em relação àlegislação anterior, fato que o efeito simbólico da publi-cação e a publicidade em torno do "novo" Código acabapor obscurecer.

O trânsito foi abordado, durante muitas décadas,como uma questão quase exclusivamente de engenhariade tráfego e de policiamento do Estado. Modernamente,é visto como problema complexo e multidimensional.Assim sendo, tanto a teorização e normatização relativasao trânsito somente podem ser levadas a termo atravésde esforços muldisciplinares, quanto as respectivas polí-t icas somente podem ser polít icas multiagenciais.

Por outro lado, da mesma forma que o trânsito éum problema multidimensional, a violência no trânsitoé um problema multifatorial , ou seja, condicionado por

uma multiplicidade de fatores, dentre os quais podemosmencionar, sem pretensões de exaustividade, fatoresque evocam aspectos estruturais, conjunturais, insti tu-cionais relacionais comportamentais e metereológicas

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zação de trânsito (capítulo VII), à engenharia de tráfego,da operação, da fiscalização e do policiamento ostensivode trânsito (capítulo VIII), aos veículos (capítulo XIX),aos veículos em circulação internacional (capítulo X),

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ç ( p ),aos registros de veículos (capítulo XI), ao licenciamento

(capítulo XII), à condução de escolares (capítulo XIII) e àhabilitação (capítulo XIV); até os aspectos da Educaçãopara o trânsito (capítulo VI) e da repressão às infraçõese crimes de trânsito (capítulos XV a XX).5

Em sentido estrito, o objeto da codificação é aviolência no trânsito e seu objetivo é combatê-la, redu-zindo os acidentes e, por extensão, as mortes, mu tilaçõe se danos materiais no trânsito. A aliança declarada é,pois, com a vida (ver § 5e do artigo 1Q do CT B).

6 . 3 . O s m é t o d o s n a c a m i n h a d a d a b a r b á r i e à c i v i -l i z a ç ã o : o b i n ô m i o e d u c a r e p u n i r

Nessa perspectiva, podemos identificar dois gran-des métodos priorizados pelo CTB na caminhada dabarbárie à civilização do trânsito brasileiro, a saber,educar e punir, mas com profunda hegemonia, comoveremos, do segundo sobre o primeiro.

6.3.1. Circunscrevendo a educação: quem e como seeduca para o trânsito?

A educação para o trânsito, contemplada no capítu-lo VI do CTB, em 6 artigos, deverá ser instrum entalizad aatravés de ensino público (educação formal), na Pré-Es-cola e nas escolas de primeiro seg un do e terceiro g raus ede campanhas públ icas de caráter permanente (educa-ção informal).

Além disso, creio que as próprias normas do CTB,

não-motorizados, à inspeção veicular, à condução deescolares e à habili tação destinam-se a cumprir, em simesmas, uma função pedagógica preventiva.

A exemplo partindo-se da premissa de que ao

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A exemplo, partindo se da premissa de que, aolongo da vigência da legislação anterior, a deficienteformação do condutor brasileiro revelou-se um dosprincipais indicativos da acidentalidade no trânsito, otexto do capítulo XIV destaca a relevância como deve serencarada a habili tação do candidato a motorista. E origor das exigências para obtenção da respectiva cartapretende converter a habili tação, de mera formalidadeque era t ida, em instrumento de conscientização docandidato da real possibilidade decorrente da condução

de um veículo automotor. Trata-se, pois, de ação peda-gógica em si mesma.6

Dessa forma, visualizo no CTB uma tríplice pro-messa pedagógica preventiva: a) através das normasjurídicas; b) através da Educação formal; e c) através daEducação informal.

Há que se considerar aqui que, diferentemente dapunição, um projeto escrito no Código e de exequibili-dade simultânea à sua entrada em vigor, a educação éum projeto a ser construído, ainda que a curto e médioprazo, e de forma e conteúd o em aberto: qu em e como seeduca para o trânsito?

Espera-se que, de fato, se tomem providências paraa implementação do ensino e das campanhas prometi-das na Lei, sob pena de desgatar, cada vez mais, as jádesgastadas expectativas do cidadão no Direito, sobpena de agudizar o descrédito na legalidade. Sugere-se,

também, que a educação para o trânsito util ize comorecursos pedagógicos básicos não apenas idéias e teo-rias, construídas a partir da nossa realidade (e nãoi t d iti t ) t bé i d

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ções ou crimes) inúmeras condutas até então não crimi-nalizadas nem como contravenções.

Exemplo de infrações consideradas gravíssimassão: dirigir sem possuir carteira nacional de habilitação

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são: dirigir sem possuir carteira nacional de habilitaçãoou permissão para dirigir (é também crime), com per-missão para dirigir ou carteira vencida ou cassada,deixar de usar cinto de segurança, conduzir o veículosem documentos obrigatórios, dirigir sem atenção, terveículo imobilizado por falta de combustível, avançarsinal vermelho de semáforo, dirigir sob influênica deálcool ou de outra substância entorpecente ou que deter-mine dependência física ou psíquica (é também crime)em nível superior a 6 decigramas de álcool por litro de

sangue.Alguns exemplos de infrações de gravidade média:ultrapassar pela direita, deixar de dar passagem pelaesquerda, dirigir o veículo com o braço de fora ou comapenas uma das mãos. Infrações, enfim, extensivas aosciclistas e motociclistas: direção agressiva de bicicleta,direção com uma só mão, condução de motocicleta semcapacete e vestuário ou transportando criança menor de

7 anos.As penalidades previstas para as infrações (cumu-ladas com medidas administrativas, se for o caso) são:advertência por escrito, multa, suspensão do direito dedirigir, apreensão do veículo, cassação da carteira nacio-nal de habilitação, cassação da permissão para dirigir, efreqüência obrigatória em curso de reciclagem (art. 256 e§ l9 do CTB).

O artigo 258 adota, para as infrações punidas commulta, um sistema classificatório categorial que as clas-sifica em quatro categorias, de acordo com sua gravida-de a saber: de natureza gravíssima (180 Ufir) grave (120

I - gravíssima - sete pon tos; II - grav e - cinc o po nto s;III- média - quatro pontos; IV- leve - três pontos."

Dispõe, ainda, o artigo 261, § 1Q, in fine, que "(...)asuspensão do direito de dirigir será aplicada sem pre que

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o infrator atingir contagem de 20 pontos, previstos noart. 259."As punições cominadas para os crimes de trânsito,cuja aplicação poderá ser cumulada com penalidades,são: detenção (prisão) para todos os crimes, multa esuspensão ou proibição de se obter a permissão ou ahabilitação para dirigir veículo automotor.

A hipercriminalização do cotidiano do trânsito e oelenco de penas adotado (registre-se a pena de prisãoem primeira ratio para os crimes de trânsito, eis quecominada para todos, indistintamente, e os altos valoresdas multas) revelam que o CT B apostou alto na retribui-ção e na prevenção geral, ou seja, na ilusão do poderintimidatório da punição.7

Digno de nota, nessa direção, é o fenômeno hojedenominado de "administrativização do Direito Penal"que, dominante na Europa, é importado agora pelo CTB.Trata-se, com efeito, da apropriação, pelos sistemas

administrativos, de métodos punitivos t ípicos do Direi-to Penal (inflacionando-se as chamadas sanções admi-nistrativas) com uma série relevante de implicações quefoge, contudo, aos meus objetivos abordar.

O afã criminalizador levou por sua vez a violar, emvários momentos, o princípio da legalidade e a técnicapenal construída em dois séculos para a garantia dos7 As funções oficialmente declaradas da pena são, tradicionalmente, a retri-buição e a prevenção geral e especial: a pena, além d e retribuir, deve preven ira criminalidade (no Brasil, ver artigo 59 do Código Penal). A prevenção geraldeve ser obtida através da intimidação dos cidadãos, dissuadindo-os da prá-tica de crimes pelo temor supostamente causado pela cominação (previsão)da pena em abstrato na lei penal. A prevenção especial dev e ser obtida já n ão

cidadãos contra punições arbitrárias, tema que, emboraigualmente relevante e fugindo dos nossos objetivosimediatos, tem centrado a atenção dos juristas.

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6 .4 . Educa r e pun i r : de sequ i l í b r io me tód ico

Diante do exposto, podemos concluir que o CTBcontém uma dupla potencialidade, a saber, pedagógicae repressiva e que, neste binômio, inexiste equilíbrio,pois, os potenciais repressivos (muito mais atuais) e,junto com eles, os potenciais corru ptor es, são quantitati-va e qualitativamente superiores aos potenciais pedagó-

gicos. De forma que o Código culmina por trair, em seuspróprios termos, a premissa da prioridade cidadã.Compreende-se, então, o significado às avessas do

humanismo do legislador: se, de fato, ele olhou para ohomem e seu complexo de direitos e deveres (e, maisespecificamente, para a relação condutor-veículo), des-centrando o automóvel, foi, parece-nos, para melhorpunir e, só, residualmente, para educar. O homem,declarado cidadão, acabou convertido em consumidordo trânsito e objeto de seu controle policialesco e buro-crático.

A favor da hipótese, me ncion e-se qu e o conceito decidadania - que deveria permear o conjunto do código,potencializando o homem como sujeito de construçãode uma cultura do trânsito - foi aprisionado num únicoe estático capítulo (V) de ap ena s 2 artigo s (72 e 73) e teveseu significado apropriado, precisamente, pelo resíduo

deste consumo: exercer a cidadania é peticionar, reque-rer ou solicitar informações ao SNT .Trata-se, com efeito, de um Código com a tônica e a

permanente inclinação para a seg rança pública em

licial, do que preveni-lo através de uma ampla açãopedagógica de conscientização. Neste sentido, pode-sedizer que a dom esticação da barbárie do trânsito preten-de se exercitar antes pelo poder manifesto na caneta dasautoridades do que pela civilização a partir de uma

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autoridades do que pela civilização a partir de uma

cultura cidadã, promovida por uma educação autênticacapaz de conscientizar os usuários para o exercício deuma cidadania responsável no trânsito. Trata-se, emsuma, de uma ordem que pretende ser verticalmenteimposta .

6 . 5 . A c o n s t r u ç ã o l e g a l d a v i o l ê n c i a e s u a s c a u s a se a h e g e m o n i a d o p a r a d i g m a d a b e l i g e r â n c i a

Encontro-me, pois, em condições de indagar: comofoi decodificado, no novo Código, o sentido da violênciano trânsito e suas causas? Qual a interpretação quesubjaz à letra de seu discurso?

Pelo discurso do CTB, pode-se constatar que aviolência no trânsito foi equiparada com "acidentalidade"e decodificada, essencialmente, como violência indivi-

dual (mais especificamente, como violência comporta-mental) e essa logo associada com violência criminal(criminalidade), identificando-se no comportamentodos condutores (livre-arbítrio) o fator decisivo e a res-ponsabilidade pelos acidentes de trânsito (responsabili-dade individual).8 A vitimação no trânsito apareceassociada, em conseqüência, com as vítimas da crimina-lidade individual.

Reproduz-se, dessa forma, uma polarização ideoló-gica maniqueísta entre o bem (vítimas e autoridades) e omal (criminosos de trânsito) e uma associacão entre osconceitos de segurança e criminalidade, da qual resulta

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motoristas imprudentes, imperitos, irresponsáveis, ne-gligentes) como se a conflituosidade e mesmo o caos notrânsito fosse um problema exclusivamente comporta-mental, para o qual não concorressem estruturas emudanças sociais e tecnológicas (conjunturas) comple-

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mudanças sociais e tecnológicas (conjunturas), comple-xas relações sociais e institucionais de poder, além deinteresses localizados.

O CTB aparece, nesse sentido, como um Códigocompo rtamental e com o uma declaração de guerra con-tra o comportamento dos motoristas, orientado pelo quedenomino "paradigma da beligerância", no marco doqual, identificados os inimigos segundo o diagnóstico eestereótipos de quem faz a lei, logo se desfere o ataque.

Por isso, o que culmina por se verificar é um cidadãorepressivamente cerceado no seu próprio direito delocomoção veicular.

Se o Brasil se caracteriza, de fato, pela existência deuma anticultura no trânsito e se os motoristas indubita-velmente a co-constituem e, portanto, o contro le daviolência veicular deve necessariamente contemplar oseu comportamento irresponsável e abusivo, não podeabsolutizá-lo e nele se esgotar, sob pena de a políticacriminal colonizar, unilateralmente, todas as demaispolít icas, contrariando, um a vez ma is, a evidên cia em pí-rica da multidimensionalidade do trânsito. Nessa estei-ra, nem para punir nem para educar - ainda que nesseúltimo resida, a meu ver, um dos fatores preventivoscentrais da acidentalidade - se pode reduzir o problemado trânsito a um problema comportamental.

6.5.2. Violências sonegadas e variáveis excluídas: oscódigos ausentesChego assim às violências sonegadas e às variá-

cional), produzindo a descontextualizacão e despolit iza-ção dos respectivos conflitos.

Por outro lado, ao se pressup or a poten cialidad e daviolência (o mal) no usuário, exime-se a concorrênciatanto das autoridades com poderes para reprimi-lo,

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tanto das autoridades com poderes para reprimi lo,

quanto das complexas estruturas e conjunturas que nãooferecem condições de pacificação no trânsito.A história do país atesta, contudo, não apenas a

existência daqueles motoristas, de fato, irresponsáveis(homicidas em livre circulação), com mínimos ou ne-nhum cuidados veiculares e com a vida humana, mas aexistência de irresponsabilidade, arbítrio e corrupçãodas próprias autoridades que têm o dever de garantir asegurança no trânsito.

Mais do que isso, a história do país atesta umaestrutural militarização do aparelho policial, que delanão se liberta nem no exercício de funções que nada têma ver com ataques militares (como o exercício da Políciaostensiva de trânsito). Daí a profunda crise de legitimi-dade que hoje afeta o aparelho ao qual se delega ocontrole central do trânsito.

Importante também destacar que os superpoderesconferidos às autoridades, além de muito maiores queas defesas conferidas aos cidadãos, não se submetem,como esses, a um código comportamental, pois o Códi-go limita-se a afirmar o trânsito seguro como direito e aresponsabilidade genérica do poder que o controla, aodeclinar, no § 3e do art. 1°, a responsabilidade objetivados órgãos e entidades do SNT por "danos causados aoscidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execu-ção e manutenção de programas, projetos e serviços quegarantam o exercício do direito do trânsito seguro" .

Indaga-se: qual é a efetiva abra ngê ncia deste dispo-sitivo? Inclui a responsabilidade pelas perdas e danos

Em definitivo, se é certo que o CTB contém umcódigo comportamental para os usuários, um códigofuncional (autorizador de competências e poderes) paraos órgãos e entidades do SNT (o Contran é o ator centralaqui) e para as autoridade s policiais e adm inistrativas

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aqui) e para as autoridade s policiais e adm inistrativase, ainda, um código veicular (novamente disciplinandoa conduta dos usuários em relação aos seus veículos) elenão contém um código disciplinador dos meios deprodução de veículos, de circulação de idéias e serviçosa seu respeito; ou seja, um código dos fabricantes,montadoras. , despachantes, publicitários e outros queimponha, por exemplo, l imites à velocidade e potênciadas máquinas. Não contém, igualmente, um códigoviário, que regulamente a construção e conservação dasvias para oferecer um trânsito seguro e em condições deser suportado pelos usuários sem chegar ao limite dostresse, autêntica esquizofrenia veicular que, reconheci-damente, contribuem para a violência no trânsito.

Indaga-se: quais são, no Código, os l imites impos-tos aos fabricantes e montadoras de veículos e aosconstrutores das vias, que possam definir suas respecti-vas responsabilidades pelos acidentes de trânsito? Equais são os l imites impostos à publicidade homicida,particularmente da mídia falada, em torno do "poder"(poiver) dos veículos? E à publicidade sobre os prazeresda bebida alcoólica? São todos unicamente beneficáriosde um mercado veicular em expansão? Se a responsabi-lidade jurídica do SNT é genérica e difusa, a responsabi-lidade indagada parece ser inexistente.

6 . 6 . O o u t r o c o m o p a r a d i g m a : o f a s c í n i oa l i e n í g e n a

submetidos,9 ainda quando o referencial do países ditosdesenvolvidos para a elaboração da legislação pátria seapresente, cada vez mais, retórico e perigoso.

Retórico, porque se assume os resultados alieníge-nas no trânsito como ideal a alcançar muitas vezes

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nas no trânsito como ideal a alcançar, muitas vezes"acima da" e "atropelando a" estrutura e a culturanacionais. Julga-se o trânsito do "outro" civilizado por-que o homem alienígena o é, sem ressaltar que ele seinsere em uma estrutura social e uma cultura quefavorecem e estimulam a sua "civilização". Ou, emoutras palavras, que o mesmo Estado que quer estarpresente na hora de punir não se omite ou se omitemenos na hora de educar e de se responsabilizar.

Perigoso, porque quanto mais o Direito promete,sem poder cumprir, mais perde poder e credibilidadesocial. Logo, copiam-se acrit icamente as exigências paraobtenção dos mesmos resultados, usa-se predominante-mente a represssão para alçar o plano do desenvolvi-mento; ou seja, define-se um amplo quadro de normas aobedecer, de difícil concretização, a com eçar p elo apare-lhamento obrigatório dos veículos e bicicletas, e logo aseguir, um amplo quadro de punibilidade administrati-va e penal real para punir o estágio ideal a alcancar.

Em síntese, projeta-se o ideal (veículos superequi-pados, com onerosos equipamentos, e multas de valoresfaraônicos que os brasileiros, mesmo dos estratos mé-dios, não podem pagar; hipercriminalização, que ossistemas penal e administrativo não podem operaciona-lizar), acima das estruturas e da cultura e pune-se,rigoramente, o seu descumprimento real, que é previsi-

bilíssimo.Por outro lado, o CTB fortalece o poder do SNTprecisamente quando se tornam públicas denúncias de

ã i i i d ó ã f l

do se aprofunda a crise do aparelho policial , especial-mente militar, e do sistema penitenciário. Fortalece apena de multa ao tempo em que o país experimentagrave crise financeira e depauperização da população.Saliente-se, em especial, que os números das pesquisas e

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as imagens sobre a violência no sistema penitenciáriobrasileiro são tão fortes, contundentes e graves quantoos relativos à violência no trânsito, evidenciando que oCTB se baseou numa apropriação seletiva de números,imagens e idéias: ao mesmo tempo em que apropriou osprimeiros, para justificar o argumento do "aumento" daviolência no trânsito, olimpicamente ignorou os segun-dos, apostando, portanto, "combater" uma estruturaviolenta com outra tanto ou mais violenta e sem qual-quer espaço potencial para absorver a criminalidade detrânsito.

6 . 7 . D é f i c i t d e b a s e n a c i o n a l e d e b a s e c i e n t í f i c ap a r a a p o l í t i c a c r i m i n a l

Chego, aqui, a um ponto fundamental. Se existeuma polít ica "criminal" orientando o CTB, ela pode terescutado a voz do poder de plantão e o senso comum,mas certamente não escutou nem a ciência nem a expe-riência (a realidade do próprio país), carecendo de umasólida base científica, teórica e empírica, pois, além deapostar nas funções já cientificamente desmitificadas dapena e do sistema penal, estendendo-as para o DireitoAdministrativo, aparece latentemente influenciado poruma visão alienígena.

Ao orientar-se, pois, pelos paradigmas da belige-rância e do etnocentrismo, contraria a moderna orienta-ção polít ico criminal minimalista e abolicionista que

A Criminologia contemp orânea d em onstra , em pri-meiro lugar, que a seletividade do sistema penal não éum acidente de percurso e não se deve a déficit deinfra-estrutura, mas se trata da lógica estrutural de seufuncionamento. A equação minoria (pobre) regularmente

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criminalizada x maioria (dos estratos sociais médio e alto)regularmente imune ou impune, na qual venho sintetica-mente traduzindo a seletividade, indica também que aimpunidade não é uma disfunção do sistema, mas suaregra de funcionamento. Sabe-se, nessa esteira, que oschamados "criminosos de trânsito" não correspondemao estereótipo dominante de criminoso (associado aopobre, preto, feio, sujo, desempregado, alcoólatra, etc.)constituindo uma clientela que está, pelo status social,subtraída ao cárcere e, regra geral, na esfera da impuni-dade ou da imunidade penal.

De outra parte, e paradox alme nte, com a vastíssimacriminalização nele consubstanciada o Código instaura,sem dúvida, o auto-retrato da criminalidade para ospertencentes aos estratos médio e alto da sociedade,historicamente excluídos do estereótipo de criminoso,mostrando a sua face real: é conduta de todos nós e não

dos outros (outsiders, marginais, bandidos). O Códigorevela , cr is ta l inamente, um "bandit ismo"(?) automobi-lístico e que para as seqüelas e mortes sob o signo dos"bandidos" sobre rodas - ainda quando seus colarinhossejam tão alvos ou coloridos (branco, prata, vermelho,azul, verde) quanto as cores dos seus automóveis - aspenas devem ser agravadas. Tratar-se-ia da construçãode um novo estereótipo de criminoso (ainda que paravelhas condutas?) apta a causar impacto na lógica estru-tural de funcionamento do sistema penal?

Em primeiro lugar, a própria questão da seletividadeadquire aqui novos contornos pois selecionar crimino

existe uma imensa diferenciação de status social. Demodo que a aplicação da Lei de trânsito será igualmenteseletiva se reproduzir essa desigualdade, por exemplo,centrando a repressão no condutor do Fusca 69, daKombi 70, da Brasília, da lambreta, etc. (que, de fato,

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tem menores condições de satisfazer as exigências vei-culares do CTB) e imunizando o condutores de eli te,cujo poder econômico, político ou social tanto permiteuma ultraequipagem e manutenção veicular, quanto me-lhor apropriar os potenciais corruptores do Código.

Em segu ndo lugar, no caso de p risão de pe ssoas .pertencentes ao referido status social, há uma potenciali-dade de impunidade. Imaginem-se os "cr iminosos" dotrânsito, os "nossos filhos", jovens dos médio e altoestratos sociais, detidos juntamente com "criminosos"perigosos, traficantes, estupradores, homicidas, aidéti-cos... dirão as elites, e a reação contra o Código poderávir do próprio poder que pune.

Quanto à prevenção geral, a Criminologia demons-tra que é impossível avaliar empiricamente o impactointimidatório da pena em abstrato e, se alguma avalia-ção pode ser feita a respeito, é a de que não possui aeficácia declarada pelo sistema penal, como o demons-tram, por sua vez, os inúmeros d ados em píricos existen-tes sobre a reincidicência ou o aumento dos índicescriminais após agravamento qualitativo ou quantitativodas penas (como no Brasil após as Leis que instituíramos crimes hediondos ou em Estados americanos apósimplantação de prisão perpétua ou pena de morte). Emsuma, não apenas inexiste fundamento científico parasustentar que o endurecimento da repressão guardeuma proporção direta com a redução das infrações ecrimes, quanto existe comprovação empírica de quepersistem apesar do seu impacto Razão pela qual é

ta que só obedece às regras da razão abstrata e só nocampo da abstração pode se sustentar. Mas não resisteao mais leve toque empírico.

Quanto à prevenção especial, é desnecessário insis-tir no óbvio. Não se necessitam das milhares de páginas

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criminológicas escritas sobre o "mito" da ressocializa-ção, mas basta ser um observador ou expectador detelevisão - a Criminologia dá suporte científico à evidên-cia - para se convencer de que o sistema penitenciárionão apenas é incapaz de ressocializar (o problema éestrutural e conceituai e não conjuntural) mas, ao con-trário, implica uma "fabricação de criminosos" e umaduplicação da violência inútil (e cada vez mais incontro-lável pelo poder público), com o agravante dos seusaltos custos sociais.

Tratando-se da infra-estrutura, a caótica situaçãodo sistema penitenciário brasileiro - retratada pela mí-dia e pelos últimos censos penitenciários publicados nopaís a partir 1994 pelo Conselho Nacional de PolíticaCriminal e Penitenciária do Ministério da Justiça - evi-dencia não apenas a absoluta inviabilidade, mas a im-possibilidade mesmo de se insistir na pena privativa de

liberdade como resposta punitiva, o que é particular-mente válido para os crimes de trânsito.Além de evidenciar a profunda seletividade do

sistema (95% dos presos são pobres), as indescritíveiscondições existenciais de sua clientela, o profundo défi-cit de vagas, etc., um dos dados que mais impressionanesses Censos é a desproporção profunda entre seucusto (custo da construção de estabelecimentos prisio-nais, de cada vaga, de manutenção do preso) e a suainutil idade social. Cada preso custa, em média, 3,5salários mínimos por mês o que, se investido fosse emtrabalho por exemplo empregaria aproximadamente

cognoscível) representa mais do que o dobro da cliente-la aprisionada e, dessa, apenas a metade se encontracumprindo pena em penitenciárias, enquanto o restantese encontra em presídios e delegac ias; em qua lquer caso,em plena violação da Lei de Execução Penal.

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Simplesmente - e derradeiros são os dados sobre asuperlotação - não existem vagas para mais ninguém,seja nas Penitenciárias ou nos presídios e delegaciasPúblicas, onde irregularmente se amontoa e se evade,hoje, metade da população prisional do país, cujo maiorproblema de segurança pública, anunciado pela crescenteocorrência e gravidade das rebeliões, fugas e mortes, deenvolvidos e inocentes, é o próprio sistema pen itenciário.

Outro dado: apenas para acabar com a superlotaçãoexistente até o ano de 1994, fora os mandados de prisãoexpedidos e não cumpridos à época, seria necessária aconstrução de 130 estabelecimentos a um custo aproxi-mado de 8 milhões de dólares cada um com capacidadepara 500 presos, sem computar no valor os equipamen-tos, apen as a cons truçã o. _

Em suma, a Criminoiogia contemporânea e a evi-jdência empírica, ou seja, a realidade dos nossos sistemas jpenais e penitenciários mostra, com uma exuberância tal ique beira às raias da alucinação, não apenas a absoluta <inutilidad e da pena de prisão, m as a du plica ção da íviolência que ela implica com o agra van te dos seus altos 'custos sociais. Tratar a violência do trânsito com a jviolência do sistema peniten ciário implica um a du plica - jção da violência inútil e num a ilusão de solu ção. Por ytodos esses motivos é que as Ciên cias criminais contem - /

porâneas já firmaram a convição em d uas grande s l inhasde polít ica criminal: a do minimalismo (sustentando autil ização da prisão como pena em ultima ratio) e a do

Indaga-se: onde e para que fim se prete nde encarc e-rar os "criminosos sobre rodas"? Quem pagará e comose pagarão os custos?

6 . 8 . D a p r o m e s s a a o m e r c a d o d a s e g u r a n ç a e à

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p g çe f i c á c i a i n v e r t i d a d o C ó d i g o d e Tr â n s i t o

Aceitando-se as premissas do trânsito como pro-blema complexo e multidimensional e da violênciacomo problema multifatorial, há que se concluir, logica-mente, que não se trata de um problema "estático" quepossa ser "solucionado" com intervenções unidimensio-nais e parcializadas, mas, ao contrário, se trata de um"processo" cuja necessidade de superação é permanentee dependente da concorrência de múltiplos fatores, noqual o Código, não obstante sua importante simbologiae instrumentalidade, assume todo o seu relativismo.

E como toda Lei, o CTB é um programa de ação, oqual não tem o poder, por si só, de mudar a realidadeque objetiva regular, quanto mais porque, como tenteidemonstrar, se reveste de limites estruturais e concei-tuais para instrumentalizar a prometida segurança notrânsito brasileiro; limites que vão desde a apreensãofenomênica da violência até os métodos eleitos para"combatê-la". Estou, portanto, em condições de respon-der afirmativamente ao interrogante formulado ao iní-cio: o Código destinado a reger nosso cotidiano sobrerodas e salvar vidas no terceiro milênio já nasce, atécerto ponto, com sintomas mórbidos.

Porém, mais do que limites, por conter inúmeros

centros irradiadores de polêmica, visualizo nele as po-tencialidades de uma "eficácia invertida",1 0 no campocriminológico e polit ico-criminal, que estou a abordar,

i hi i i l i idi d â i i fl

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tegicamente colocados em retas inocentes, verdadeirasarmadilhas de multas, com participação privada noslucros, conforme denunciado, recentemente, pelo Minis-tério Público catarinense. (...) E mais: ao redor da arreca-dação das multas fomenta-se uma rede (dependente) de

i dú t i i ( t 320 d CNT) t d

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indústrias e serviços (art. 320 do CNT), com todo umarsenal de interesses e poder, que a mídia, freqüente-mente, espelha e reflete."

6 . 9 . A t r a v e s s a n d o o m a p a d a c o d i f i c a ç ã o r u m o a ot e r r i t ó r i o d a c i d a d a n i a

Atravessando o mapa traçado pela codificação paraencontrar o camin ho da seguran ça, creio que seja funda-mental reencontrar o homem (nas ruas, nas praças, nasestradas), antes que no território do policiamento e domedo puni t ivo,1 3 no da pedagogia e da cidadania. Por-que esse é o território em que a segurança no trânsitopoderá ancorar com mais solidez. Nesse sentido serevela, a nosso ver, o andar mais importante da novacodificação: ter chamad o a atenção e definido base s para

a educação no trânsito. Em consonância, pois, com aargumentação aqui desenvolvida, resta-nos apostar que1 3 A conjuntura de entrada em vigor do CTB (janeiro/98) foi marcada poruma intensa euforia em torno dos números que, ocupando as manchetescotidianas dos jornais brasileiros, noticiavam o impacto do novo Código nadiminuição da acidentalidade de trânsito. Obviamente que esse é o resultadosocialmente desejado e vital. Mas, além da advertência de que devido às"cifras negras" da acidentalidade (aquelas que não são oficialmente registra-das e que não aparecem, portanto, nas estatísticas) é impossível saber-se onúmero total de acidentes no trânsito, é importante recordar também outrosdados que acompanharam a entrada em vigor do Código: o peso da informa-

ção massiva quanto ao seu rigor punitivo e a desinformação e incerteza dosusuários quanto ao seu conteúdo co ncreto e às suas específicas co nseqü ências(o que dá cadeia, o que não dá?) associadas ao policiamento ostensivo nasruas; o que resultou, de fato, no medo nas ruas e na tirada de pé do acelera-d N i i õ f i f i

na sua dupla potencialidade preventiva (educação/re-pressão) se explore, ao extremo possível, a prevençãopela pedagogia antes que a repressão administrativa epenal. E se explore, não através de decisões e políticaspúblicas verticalizadas, mas horizontais, mobilizadaspelo permanente exercício da cidadania, em que a popu-lação não apenas objeto mas sujeito do trânsito tenha

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lação, não apenas objeto, mas sujeito do trânsito, tenhareal participação. E relembrando, por sua vez, quecidadania provém de cidade, seu lugar originário deexercício, e que o CTB acaba de implantar a chamadamunicipalização, precisamente para que essa não sereduza a uma prefeiturização, resgate mo s o exercício dacidadania nas cidades, seja nas ruas, nas praças ou nosgabinetes, através de uma ação conjunta das autorida-

des e dos cidadãos envolvidos no processo (órgãos eentidades do SNT, condutores de veículos e pedestres)pois essa é, a meu ver, a dimensão mais importante donovo Código, porque a única capaz de concorrer paratransformar a anticultura brasileira do trânsito numacultura genuína; a única capaz de potencializar o novoCódigo como uma autêntica aposta na vida: nas vidasque, de fato, não queremos perdidas no novo milênio.

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